PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP · 2019. 1. 31. · Aos meus anjos da...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Marilia Cerqueira Lima A Proteção Integral e o Egresso da Medida Socioeducativa de Internação na Perspectiva de Reinserção Social MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2018

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    Marilia Cerqueira Lima

    A Proteção Integral e o Egresso da Medida Socioeducativa de

    Internação na Perspectiva de Reinserção Social

    MESTRADO EM DIREITO

    São Paulo

    2018

  • Marilia Cerqueira Lima

    A Proteção Integral e o Egresso da Medida Socioeducativa de

    Internação na Perspectiva de Reinserção Social

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito – Direitos Humanos, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Dias de Souza Ferreira.

    São Paulo

    2018

  • Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura: _______________________________________________________ Data: 05/11/2018 E-mail: [email protected]

    L732 Lima, Marilia Cerqueira

    A proteção integral e o egresso da medida socioeducativa de internação na perspectiva de reinserção social/ Marilia Cerqueira Lima. – São Paulo: s.n., 2018.

    168 p. ; 30 cm. Referências: 156-168 Orientador: Prof. Dr. Eduardo Dias de Souza Ferreira Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica de São

    Paulo, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2018.

    1. Adolescente; 2. Ato infracional; 3. Medida de internação; 4. Egresso; 5. Proteção integral; 6. Política pública.

    CDD 340

  • Marilia Cerqueira Lima

    A Proteção Integral e o Egresso da Medida Socioeducativa de

    Internação na Perspectiva de Reinserção Social

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito – Direitos Humanos.

    Aprovada em: __/__/__

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________

    Dr. Eduardo Dias de Souza Ferreira – PUC-SP

    ______________________________________________

    Dr. Motauri Ciocchetti de Souza – PUC- SP

    ______________________________________________

    Dr. George Sarmento Lins Júnior – UFAL/AL

  • Dedico este trabalho a todos os que amam, lutam e sonham com uma

    realidade infanto-juvenil mais coerente e justa, em que o real sentido da

    corresponsabilidade pela família, pela sociedade e pelo Poder Público na

    promoção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, seja

    assumido e vivenciado como fundamento da proteção integral e vetor

    prioritário do respeito à condição de “ser em desenvolvimento”.

  • AGRADECIMENTOS

    Diante das minhas convicções, agradeço primeiramente a Deus, sob

    forma de oração, pelo dom da vida, por encher a minha alma de paz,

    esperança e felicidade, mesmo nas turbulências da vida.

    Agradeço especialmente aos meus sagrados, meus amados pais,

    Waldemar Vieira Lima e Flora Cerqueira Lima, e meus filhos, Raphael

    Cerqueira Lima de Mendonça Gomes e Ricardo Cerqueira Lima de

    Mendonça Gomes, luzes e razões da minha vida.

    À minha família, que preenche minha existência.

    Aos meus amadíssimos e fiéis amigos(as) e companheiros(as) da

    jornada vida, meu muito obrigada, por todo o carinho, amor, disponibilidade,

    dedicação, generosidade, força, enfim por serem luzes no meu caminho. Em

    especial, agradeço a Lean Antônio Ferreira de Araújo, Isaac Sandes Dias e

    Maurício André de Barros Pitta, que sempre se disponibilizaram a ajudar com

    brilhantes ensinamentos, leituras e revisões deste trabalho.

    Aos meus anjos da guarda, sempre cuidando de mim, muito obrigada!

    Aos meus amigos(as) e companheiros(as) de Mestrado, meus

    agradecimentos pela vivencia solidária e carinho inesquecíveis, saibam que

    todos moram no meu coração. Em especial agradeço à Ana Carolina

    Domingues, Kamila Gouveia, Lícia Christynne Ribeiro Porfírio e Lívia Maria

    Tenório Jacintho.

    Aos meus queridos e eternos professores do Programa de Mestrado

    de Direito da PUC-SP, meus sinceros agradecimentos pelos brilhantes

    ensinamentos, atenção, generosidade e carinho a mim dispensados, em

    especial a Professora Carolina de Souza Lima, Professor Motauri Chiocchietti

    de Souza, Professor Willis Santiago Guerra Filho e Professor Oswaldo

    Henrique Duek Marques.

    Ao meu querido Orientador, Professor Eduardo Dias de Souza

    Ferreira, meu agradecimento especial, pelas riquíssimas lições, atenção,

    confiança, generosidade e carinho a mim dispensados.

    A todos os magnânimos Professores que integraram as minhas

    Bancas de Qualificação e Defesa, meus sinceros agradecimentos, dentre

  • estes, os Professores George Sarmento Lins Júnior e Lauro Luiz Gomes

    Ribeiro, tendo os demais já sido citados.

  • [...] A igualdade não é um dado – ele não é physis, nem resulta de um absoluto transcendente externo à comunidade política. Ela é um construído, elaborado convencionalmente pela ação conjunta dos homens através da organização da comunidade política [...]. (LAFER, Celso).

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CDC CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

    CASA FUNDAÇÃO CENTRO DE ATENDIMENTO

    SOCIOEDUCATIVO AO ADOLESCENTE

    CEDICA/RS CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS DA CRIANÇA DO

    RIO GRANDE DO SUL

    CEJIL CENTRO DE JUSTIÇA E DIREITO INTERNACIONAL

    CF CONSTITUIÇÃO FEDERAL

    CIDH COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

    CNJ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

    CNMP CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

    CNACL CADASTRO NACIONAL DE ADOLESCENTES EM

    CONFLITO COM A LEI

    COTEIDH CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

    CONANDA CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA

    CRAS CENTRO DE REFERÊNCIA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL

    CREAS CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DE

    ASSISTÊNCIA SOCIAL

    ECA ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

    FASE FUNDAÇÃO DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO

    FBSP FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA

    FEBEM FUNDAÇÃO ESTADUAL PARA O BEM-ESTAR DO MENOR

    FIA FUNDO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

    FUNABEM FUNDAÇÃO NACIONAL DO BEM-ESTAR DO MENOR

    INESC INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS

    IPEA INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA

    LDO LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS

    LOA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL

    LOAS LEI ORGÂNICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

    MSE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

    OC-17 OPINIÃO CONSULTIVA-17/2002

    OCA ORÇAMENTO DA CRIANÇA

    OEA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS

    ONU ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS

  • PAEFI SERVIÇO DE PROTEÇÃO E ATENDIMENTO

    ESPECIALIZADO A FAMÍLIAS E INDIVÍDUOS

    PAIF SERVIÇO DE PROTEÇÃO E ATENDIMENTO INTEGRAL À

    FAMÍLIA

    PIA PLANO INDIVIDUAL DE ATENDIMENTO

    PIDSEC PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONÔMICOS,

    SOCIAIS E CULTURAIS

    PNBEM POLÍTICA NACIONAL DE BEM-ESTAR DO MENOR

    PEMSEIS PROGRAMA DE EXECUÇÃO DE MEDIDA

    SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO E SEMILIBERDADE

    DO RIO GRANDE DO SUL

    PNAD PESQUISA NACIONAL DE AMOSTRA POR DOMICÍLIO

    PNAS POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

    POD RS SOCIOEDUCATIVO PROGRAMA DE OPORTUNIDADES E

    DIREITOS RS SOCIOEDUCATIVO

    PPP PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO

    PPA PLANO PLURIANUAL

    PROCON PROGRAMA DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR

    SAM SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA A MENORES SCFV

    SERVIÇO DE CONVIVÊNCIA E FORTALECIMENTO DE

    VÍNCULO

    SDG SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

    SEPREV SECRETARIA DE ESTADO DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA

    SINAJUVE SISTEMA NACIONAL DE JUVENTUDE

    SINASE SISTEMA NACIONAL DE ATENDIMENTO

    SOCIOEDUCATIVO

    SPDCA SUBSECRETARIA DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA

    CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

    SUAS SISTEMA UNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

    SUMESE SUPERINTENDÊNCIA DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

    TCU TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

    UFs UNIDADES FEDERATIVAS

    UNICEF FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA

  • Lima, Marilia Cerqueira. A proteção integral e o egresso da medida socioeducativa de internação na perspectiva de reinserção social. 2018. 168 p. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018.

    RESUMO

    O tema central deste estudo é a abrangência da proteção integral e a análise das políticas públicas necessárias, suas estratégias, mecanismos e instrumentos de ação e sua respectiva relação de responsabilidade para a promoção do resgate do adolescente em conflito com a lei e sua posterior reinserção sociofamiliar, enquanto egresso da medida socioeducativa de internação. Assim, este trabalho parte inicialmente da investigação da trajetória social da criança e do adolescente, as influências e determinações das relações de desigualdades sociais e o respectivo suporte jurídico-social do sistema especial de proteção. Em seguida, há a observância da tutela diferenciada como expressão da garantia desta proteção integral e da prioridade absoluta, pautadas no direito à liberdade, à igualdade, à inclusão social, a não discriminação, ao devido processo legal e à dignidade humana. Considerando a inserção deste jovem no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, o ato infracional, as medidas socioeducativas - notadamente a de internação, a política de atendimento, o processo socioeducativo e a condição de egresso, o objetivo passa a ser o enquadramento da necessária proteção social, sob forma de rede de atenção especial, como condição emancipatória, capaz de conduzi-lo à respectiva ressocialização. Foram utilizadas diversas pesquisas bibliográficas e documentais, além da indicação de dados como marcos situacionais da realidade nacional e, em especial, do Estado de Alagoas, para análise, definição de desafios e estratégias de ação frente a políticas de enfrentamento. Palavras-chave: adolescente; ato infracional; medida de internação; egresso; proteção integral; política pública.

  • Lima, Marilia Cerqueira. The full protection and egress in the social-educative measure of internment in the social reinsertion perspective. 2018. 168 p. Dissertation (Masters in Law). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018.

    ABSTRACT

    The central theme of this study is the coverage of full protection and the analysis of necessary public policies, their strategies, mechanisms and instruments of action and its respective responsibility relationship to the promotion of adolescents’ rescue conflicting with the Law and their posterior social-familiar reinsertion, as an egress of internment social-educative measure. Therefore, this work stems from, initially, the investigation of a child’s and adolescent’s social trajectory, the influences and determinations of social inequality relationships and its respective juridical-social support from the protection special system. Henceforth, there is the compliance of the special custody as an expression of collateral for this full protection and absolute priority, guided by the right to freedom, equality, social inclusion, non-discrimination, proper legal process and human dignity. Considering the insertion of this juvenile in the System of Assurance of Child and Adolescent Rights, the infractional act, the social-educative measures – notably the internment one, the service policy, the socio-educational process and the egress condition, the objective becomes the framework of needed social protection, under the form of a special attention network, as an emancipatory condition, capable of conducting him or her to the respective rehabilitation. Diverse bibliographic and documental researches were used, besides the indication of data as situational milestones of national reality and, specially, of the State of Alagoas, for analysis and formulation of challenges and action strategies before confront policies. Keywords: adolescent; infractional act; internment measure; egress; full protection; public policy.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 15

    CAPÍTULO 1 - A HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS RELAÇÕES DE DESIGUALDADES SOCIAIS ............................................... 18

    1.1. A violência estrutural no Brasil e a trajetória da criança e do adolescente .................................................................................................. 18

    1.2. Dados da realidade brasileira: a relação entre a pobreza resultante de direitos fundamentais irrealizados e a violência contra jovens ..................... 40

    CAPÍTULO 2 - PROTEÇÃO INTEGRAL: DIMENSÃO E GARANTIA ASSECURATÓRIA ..................................................................................................... 47

    2.1. Sistema Global de Proteção da Organização das Nações Unidas – ONU ..............................................................................................................48

    2.2. Sistema Regional de Proteção Interamericano ...................................... 60

    2.3. Sistema Nacional de Proteção ............................................................... 66

    CAPÍTULO 3 - TUTELA ESPECIAL DE PROTEÇÃO JURÍDICO-SOCIAL ..... 90

    3.1. O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente ......... 90

    3.2. O Ato infracional e as medidas socioeducativas .................................... 95

    3.3. A política de atendimento ao jovem em conflito com a lei .................. 100

    3.3.1. Trajetória no Brasil ................................................................................. 104

    3.3.2. Instrumento de proteção/intervenção: Plano Individual de Atendimento – PIA ............................................................................................. 108

    3.3.3. Do orçamento público. Do orçamento da criança e do adolescente – OCA ..................................................................................................................... 110

    3.3.4. Da Ordem Social ..................................................................................... 117

    3.4. O Egresso ............................................................................................ 118

    3.4.1. O egresso na perspectiva de ressocialização adotada na política de atendimento socioeducativo no Estado do Rio Grande do Sul .................. 123

    CAPÍTULO 4 - PROTEÇÃO SOCIAL DO EGRESSO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO ............................................................... 126

    4.1. Dados da realidade nacional sobre a proteção social do egresso da medida socioeducativa de internação ......................................................... 126

    4.1.1. O Sistema Socioeducativo no olhar do Relatório CNMP/2015 ....... 126

    4.1.2. Estudo sobre Reincidência Infracional do Adolescente no Estado de São Paulo ............................................................................................................ 133

    4.1.3. Pesquisa no Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei – CNACL, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ .............................. 136

  • 4.2. Sistema de Atendimento Socioeducativo do Estado de Alagoas ......... 137

    4.2.1. Dos Planos Decenais Estaduais de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul e de São Paulo ................................................................. 141

    4.3. A responsabilidade do Estado e a efetivação do sistema de proteção social na perspectiva de ressocialização .................................................... 143

    4.4. Rede de proteção e desafios da interinstitucionalidade e intersetorialidade ........................................................................................ 147

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 152

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 156

  • 15

    INTRODUÇÃO

    O projeto inicial desta pesquisa objetivava investigar a realidade dos

    jovens em conflito com a lei, submetidos à medida socioeducativa de

    internação frente ao direito subjetivo público da educação e a necessidade de

    sua efetividade para uma proposta emancipatória. Contudo, a partir do estudo

    e amadurecimento da temática promovida, vislumbramos a importância de

    conhecermos mais sobre o egresso do Sistema de Atendimento

    Socioeducativo e suas reais perspectivas de superação da condição de conflito

    com a lei, capaz de conduzi-lo a uma vivência cidadã na sociedade brasileira,

    notoriamente marcada pela irrealização ou realização precária dos direitos

    fundamentais de crianças e adolescentes.

    Assim, a ideia aqui será a construção de um entendimento a partir

    do espelhamento de possíveis causas, do conhecimento do suporte jurídico-

    social existente num Sistema Especial de Proteção infanto-juvenil, passando

    pelo estabelecimento de instrumentos e ações estratégicas, com políticas

    públicas voltadas à pretensa promoção de proteção social no processo de

    reinserção sociofamiliar do adolescente egresso de medida que implica em

    privação de liberdade.

    No primeiro e segundo capítulos, serão delineados os aspectos

    históricos e sociais atinentes ao adolescente em conflito com a lei no nosso

    país, ao mesmo tempo que trará uma reflexão acerca da raiz da desigualdade

    social e da violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Em

    seguida, será desenhado o sistema especial de proteção de crianças e

    adolescentes, em que há a definição do suporte jurídico-social relativo à

    proteção integral, enquanto moldura definida tanto internacionalmente –

    Sistema Global e Sistema Regional Interamericano, como na nossa Carta

    Constitucional e nas correspondentes legislações infraconstitucionais. Esse

    suporte configura-se regido substancialmente pelo devido processo legal, que

    permeia os direitos infanto-juvenis e, em especial, é garantia na condição do

    adolescente em conflito com a lei e egresso do sistema socioeducativo.

  • 16

    Será tratada nesse contexto, acerca dos fundamentos e abrangência

    do princípio da proteção integral, sua elevação à condição de garantia

    fundamental dos direitos da criança e do adolescente, mormente daquele que

    violou o direito de outrem, bem como acerca da definição da

    corresponsabilidade da família, da sociedade e do poder público na promoção

    e consecução dos direitos fundamentais e especiais daqueles que estão numa

    fase de pessoa em desenvolvimento, e que, por isso mesmo, gozam da

    proteção especial e da primazia de seus interesses.

    O terceiro capítulo seguirá com a exposição do Sistema de Garantia

    de Direitos da Criança e do Adolescente e a respectiva tutela judicial especial;

    na sequência serão tratados o ato infracional e o sistema socioeducativo em

    que se inserem as medidas socioeducativas, em especial a medida de

    internação, seu fundamento, requisitos, princípios, implicações e perspectivas,

    tendo como contraponto a respectiva proposta de responsabilização, enquanto

    face ambígua de uma mesma relação que também intenta à promoção da

    cidadania mediante a garantia dos direitos dos adolescentes internos, bem

    como dos egressos.

    Adiante, será tratada a política de atendimento à criança e ao

    adolescente no Brasil, sua trajetória, passando do assistencialismo,

    institucionalização e repressão à concepção da proteção integral, garantia de

    direitos e prioridade absoluta, bem como as correlatas definições Constitucional

    e legais atinentes a um processo democrático e participativo, pautado na

    articulação em rede de órgãos governamentais e não-governamentais com

    destaque à descentralização político-administrativa e à municipalização do

    atendimento.

    Evidencia-se, neste momento, uma oportunidade para a reflexão

    acerca dos instrumentais de proteção e intervenção disponíveis, sendo

    amadurecida a importância do Plano Individual de Atendimento – PIA e a

    necessária apropriação do conhecimento sobre o Orçamento Público, em

    especial o referente à área prioritária da criança e do adolescente, sua

    destinação, interesses e possíveis inferências num permanente diálogo com o

    compromisso dos atores do Sistema de Garantias de Direitos.

    Haverá, outrossim, a fundamental verificação da condição de

    egresso, observada a evolução de sua concepção e tratamento legal

  • 17

    dispensado, bem como será objeto de reflexão a existência de políticas e

    programas correspondentes no país, seguido no quarto capítulo de indicações

    de estudos e resultados de pesquisas.

    Neste último capítulo indicado, dados de diversas realidades serão

    demonstrados, diagnósticos sociais expostos, os quais permitirão as

    respectivas análises e ponderações acerca das possibilidades de realizações

    de ações estratégicas que venham a afiançar a pretensa concretização de

    proteção social nas situações de vulnerabilidades e riscos psicossociais,

    notadamente na condição de egresso da internação proveniente do sistema de

    atendimento socioeducativo, sendo enfrentadas as multidimensões da

    territorialização e da complexidade do contexto familiar e comunitário em que o

    indivíduo está inserido, bem como os desafios da interinstitucionalidade e

    instersetorialidade.

    Para a elaboração deste estudo, vamos utilizar tanto informações

    quantitativas, como recursos qualitativos, possuindo como base uma

    interpretação dinâmica, em que serão feitas pesquisas bibliográficas, de

    autores nacionais e estrangeiros, não só no campo da ciência jurídica, mas de

    outras áreas do conhecimento, com a revisão de literatura e dos fundamentos

    usados, o que exigirá a produção de um texto argumentativo, numa sequência

    ordenada quanto ao objeto e objetivo propostos.

  • 18

    CAPÍTULO 1 - A HISTÓRIA SOCIAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E AS RELAÇÕES DE DESIGUALDADES SOCIAIS

    1.1. A violência estrutural no Brasil e a trajetória da criança e do adolescente

    Primeiramente uma reflexão sobre a desigualdade social e sobre a

    violência, envolvendo adolescentes no Brasil, pressupõe a priori um olhar

    sobre nosso processo de evolução econômica, como determinante e/ou

    condicionante ativo, que impõe os contornos do desenvolvimento das relações

    sociais, políticas e ideológicas na nossa sociedade, especial palco de

    demandas em que fenômenos como submissão, opressão, isolamento,

    exclusão, segregação, discriminação, marginalização e outras formas de

    violência ocorreram e ainda ocorrem, as quais, por sua vez, traduzem-se em

    violações dos direitos humanos.

    Assim, é de ser esclarecido, como ponto referencial desta primeira

    análise, o pensar sobre o longo caminho histórico de desenvolvimento e

    evolução da cidadania no Brasil, em que avanços e retrocessos são

    apontados, desde a Colônia até o período de redemocratização do país,

    sempre numa correlação dos respectivos contextos econômicos, políticos e

    sociais, perpassados pelo jogo de interesses entre grupos dominantes e

    grupos dominados.

    Nesta perspectiva, esta investigação nos leva a possíveis causas

    apontadas e implicações identificadas, num movimento dialético que vai seguir

    um rumo próprio de desenvolvimento capitalista no Brasil, diverso da dinâmica

    da evolução europeia, mas a partir de peculiaridades marcantes, como a

    passagem da aristocracia agrária com seu estatuto colonialista para o

    capitalismo com sua caracterização, através das novas formas de atividades

    econômicas, divisão de classes sociais, desenvolvimento urbano, crescimento

    de uma economia interna, e, assim, todo um esforço voltado à criação de um

    Estado Nacional.

  • 19

    As mudanças, por óbvio, não ocorreram repentinamente, mas

    paulatinamente, através das brechas do sistema estruturado anteriormente e

    diante do citado jogo de interesses presente à superestrutura deste. Desse

    modo, vão sendo definidas, a partir do modo de produção, a organização e

    funcionamento da sociedade, donde hão de vir ações e posições políticas

    capazes de oferecerem suporte à manutenção ou modificação deste mesmo

    sistema, e onde serão, muitas vezes, escamoteadas as reais intenções,

    através de formas de representações de acordo com os interesses

    hegemônicos do grupo dominante.

    Nesta senda dimensiona Iamomoto:

    O processo capitalista de produção expressa, portanto, uma maneira historicamente determinada de os homens produzirem as condições materiais da existência humana e as relações sociais através das quais levam a efeito a produção. Neste processo se reproduzem, concomitantemente, as ideias e representações que expressam estas relações e as condições materiais em que se produzem, encobrindo o antagonismo que as permeia [...]. Na sociedade de que se trata, o capital é a relação social determinante que dá a dinâmica e a inteligibilidade de todo o processo da vida social1.

    No Brasil, o processo de instalação do capitalismo foi se firmando a

    partir dos contornos existentes no estatuto colonialista, ainda que num molde

    diverso da definição tradicional deste e, somente num momento posterior,

    eclodem mudanças advindas do avassalador desenvolvimento industrial. Desta

    forma, através do estabelecimento de novas relações de produção, seguiram-

    se as redefinições atinentes às relações de poder, presentes a todas as formas

    de organização social e que quase sempre trazem consigo a capacidade de

    dissimulação ideológica de interesses.

    Assim, na primeira forma de organização da sociedade brasileira, no

    Brasil Colônia, o domínio interno, basicamente, integrava as forças

    oligárquicas, calcadas em privilégios advindos do desenvolvimento econômico

    voltado para a exportação, com benefícios evidentes à Coroa Portuguesa, mas

    que representavam legitimamente benesses aos donos dos meios de

    1 IAMAMOTO, Marilda Vilela; CARVALHO, Raul de. Relações Sociais e Serviço Social no

    Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 4. Ed. São Paulo: Cortez; [Lima, Peru]: CELATS, 1985, p. 30.

  • 20

    produção. Estes tinham um poderio superior representado econômica e

    socialmente, estando em posição de domínio na relação senhorial, em que

    negros eram trazidos para a Colônia para servirem como mão de obra escrava

    na exploração agrária - inicialmente na monocultura da cana-de-açúcar -, além

    de serem espoliados de qualquer condição humana de subsistência digna.

    Ao contrário, podemos aferir que tal condição escravocrata com

    suas representações, dentre estas a utilização de práticas violentas, não era

    objeto de interesse e de discussão quanto a possíveis modificações, já que era

    uma sociedade estruturada em estamentos e a relação de poder e dominação

    era escravagista com todas as suas possíveis implicações.

    De acordo com Comparato 2 , “há um simbolismo advindo da

    mitologia grega entre a relação de poder e força ou violência” e, desta maneira,

    adverte para o que os pensadores clássicos chamam de “vínculo estreito que

    une o poder à força ou violência”.

    Nesta relação de dominação senhor/escravo, havia o objetivo de

    impor uma submissão e obediência desmedidas às ordens então definidas,

    numa hierarquia previamente estabelecida e engessada em bases que tendiam

    a minar quaisquer possíveis formas de organização política dos escravos que

    porventura tivessem pretensões referentes a terem uma condição de vida

    diversa daquela a que estavam submetidos.

    Desse modo, fica evidenciado que os senhores encontravam

    legitimação para agirem em nome da manutenção e reprodução desta relação

    (quer pela omissão ou ideia de aceitação existente, quer pelo temor ou pela

    caracterização proveniente da própria submissão), através do emprego da

    violência, da segregação, da não promoção de qualquer possibilidade de

    acesso à educação, enfim, da imposição à submissão dos escravos às

    diversas formas degradantes de sobrevivência, sempre permeadas por

    proibições e, desta forma, qualquer desrespeito seria passível de

    “disciplinamento”, castigo e punição.

    Outrossim, é importante destacar, como marco no campo do

    desenvolvimento da relação de poder na sociedade brasileira, a existência de

    2 COMPARATO, Fábio Konder. A Oligarquia Brasileira: visão histórica. São Paulo: Editora

    Contracorrente, 2017, p. 12.

  • 21

    uma verdadeira coligação oligárquica, conforme assinalado por Comparato3, na

    união entre os controladores da produção e distribuição dos produtos para

    serem exportados com a chamada burocracia estatal, formada através da

    mercantilização de elevados cargos públicos, o que traduzia-se em uma

    associação de interesses, ainda que de pequenos grupos, os quais detinham o

    poder nas mãos, sempre em detrimento do interesse público, voltado à

    satisfação dos anseios do povo, este com o rótulo de “grande ausente deste

    regime”, ou seja, a associação de pequenos grupos dominantes, detentores de

    privilégios e interesses comuns, numa certa relação de apoio e dependência,

    sempre foi a regra como traço marcante na formação da nossa sociedade. Se

    necessário, articulam-se e aliam-se na consecução de interesses pessoais.

    Nas Colônias, nos dizeres de Comparato4, a fidalguia confundia-se,

    de uma maneira geral, com a riqueza pessoal, e “essa estreita ligação da

    riqueza com o prestígio pessoal tem sido, desde sempre, um traço marcante da

    sociedade brasileira”, revelando-se, desta forma, mais um fermento da nossa

    relação de poder.

    Na mesma linha de raciocínio, temos como um mito presente na

    mentalidade coletiva e nos costumes vigentes no Brasil a concepção de que há

    um distanciamento “natural” entre os integrantes do nominado grupo social

    dominante e o grupo dos dominados e, por via de consequência, haveria a

    impossibilidade de uma comunhão entre estes, guardando sempre viva a

    correlação direta com os institutos do latifúndio e o da escravidão e suas

    respectivas representações5.

    Diante dessas premissas de dominação, de associação para a

    promoção e a perpetuação de interesses e de privilégios, revelada está a

    incidência de uma dinâmica estratégica de ampliação de proteção, manutenção

    e reprodução do status quo, ao tempo em que são expostos e utilizados

    mecanismos que fomentam o processo de desigualdade e de exclusão que,

    por sua vez, está presente em todo o processo de desenvolvimento social no

    Brasil. Assim, a massa da população brasileira não estava satisfeita e

    protegida, já que não fazia parte do contexto de privilégios estamentais,

    3 COMPARATO, Fábio Konder. A Oligarquia Brasileira: visão histórica. São Paulo: Editora

    Contracorrente, 2017, p. 18-19. 4 Ibid., p. 45.

    5 Ibid., p. 29.

  • 22

    tampouco da própria representação da sociedade civil, uma vez que imperava

    como base uma construção racial, social e econômica, estabelecida a partir do

    restrito estatuto da Colônia.

    Neste contexto, havia a criança e o adolescente que, como

    preleciona Rizzini6, sempre existiu no decorrer da nossa história o objetivo de

    exercer um controle em face deles, tendo sido realizadas ações nesse sentido

    no Período Colonial, primeiramente sob a forma de catequização das crianças

    índias pelos Jesuítas, representando as determinações da Corte Portuguesa e

    da Igreja Católica e, depois, mediante a importação africana de mão de obra

    escrava, em que as crianças filhas de escravos viviam a situação decorrente da

    escravidão com todas as suas representações e mazelas junto às suas mães

    escravas.

    Góes e Florentino realçam que:

    As crianças que as fazendas compravam não eram o principal objeto de investimento senhorial, mas sim as suas mães, que com eles se agregavam aos cafezais, plantações de cana-de-açúcar [...]. Poucas crianças chegavam a ser adultos [...], os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos, dentre estes, dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80% até os cinco anos. Aqueles que escapavam da morte prematura iam, aparentemente, perdendo os pais [...]7.

    Mais adiante, Góes e Florentin 8 denominam haver um

    “adestramento” de crianças escravas, referindo-se às condições a que eram

    submetidas: “o adestramento da criança também se fazia pelo suplício. Não o

    espetaculoso, das punições exemplares (reservadas aos pais), mas o suplício

    do dia a dia, feito de pequenas humilhações e grandes agravos”.

    Outra situação que vai sendo gerada no Brasil, inicialmente no

    decorrer do Período Colonial e posteriormente sequenciada pelos demais

    períodos da história, foi a existência das chamadas Rodas dos Expostos nas

    6 RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Org.). A arte de governar crianças: a história das

    políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 17. 7 GÓES, José Roberto; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos escravos. In:

    PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2018, p. 179-180. 8 Ibid., p.185.

  • 23

    Santas Casas de Misericórdia, as quais abrigavam crianças enjeitadas e

    abandonadas pelas famílias, tendo sido criada a primeira Roda na Bahia, em

    17269.

    Há um importante relato em relação às crianças que ficavam nestas

    Casas de Expostos, a princípio seguindo o regimento lusitano, até os sete

    anos, sabendo-se que alguns meninos foram enviados para trabalharem em

    arsenais ou em navios mercantes10.

    As marcas da dinâmica colonial, notadamente relativas ao

    escravismo e às desigualdades estruturais, vão se perpetuando no decorrer da

    história brasileira – afinal foram três séculos de existência, especialmente

    quando analisamos do desenvolvimento da cidadania no Brasil e suas relações

    econômico-sociais e, desta forma, notam-se os reflexos nos tempos atuais,

    exemplificados adiante nas desigualdades geradoras de violência social, com

    demarcação de territorialização, exclusão e consequente marginalização de

    crianças e adolescentes, em sua maioria, pobres e negros.

    Batista, quanto ao tema, faz menção de que:

    [...] a violência é um elemento constitutivo da realidade social brasileira. Ao trabalho compulsório do negro soma-se a despersonalização legal do escravo; o escravo era mercadoria, não era sujeito [...]. Como a transição para o capitalismo no Brasil não destitui a elite agrária, a modernização se dá ‘pelo alto’, pela via conservadora. Sobrevivem intactos até hoje a despersonalização legal das massas negras e pobres urbanas e o desprezo pelo trabalho manual no coração das nossas elites11.

    Segundo Fernandes 12 , sequenciadamente, no processo de

    evolução histórica e constituição de um Estado nacional, houve modificações

    na “estrutura colonial” devido à implantação da “estrutura imperial”, não

    significando, com isso, o surgimento de algo novo, apesar da Independência,

    9 RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Org.). A arte de governar crianças: a história das

    políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 19; VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7.

    ed. São Paulo: Contexto, 2018, p. 196.

    10 Ibid.

    11 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de

    Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 38. 12

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1976, p. 32-33, 43.

  • 24

    mas a existência de ajustes e acordos no tocante à ampliação de domínio, em

    que o “senhor colonial” passa a ser o “senhor-cidadão”, tão somente,

    associando politicamente privilégios sociais, sem, contudo, abarcar

    preocupações relativas à situação política de igualdade e à própria defesa dos

    direitos dos cidadãos em geral. Tudo passando pelo interesse econômico-

    financeiro.

    Passagem importante e ilustrativa, de acordo com Fernandes, que

    segue neste sentido:

    [...] Pela própria dinâmica da economia colonial, as duas florações do ‘burguês permaneciam sufocadas, enquanto o escravismo, a grande lavoura exportadora e o estatuto colonial estiverem conjugados. A Independência, rompendo o estatuto colonial, criou condições, de expansão da burguesia, e, em particular, de valorização social crescente do “alto comércio” [...]. Por fim, desse núcleo é que partiu o impulso que transformaria o antiescravismo e o abolicionismo numa revolução social dos ‘brancos’ e para os ‘brancos’; combatia-se, assim, não a escravidão em si mesma, porém, o que ela representava como anomalia, numa sociedade que extinguira o estatuto colonial, pretendia organizar-se como Nação e procurava, por todos os meios, expandir internamente a economia de mercado (sic)13.

    Assim, fica evidenciado, em conformidade com o já destacado, que,

    ao fim do período colonial, a grande massa era excluída dos direitos civis e

    políticos e que o estabelecimento da monarquia constitucional também não

    significou avanços neste campo, mormente pela manutenção da escravidão14,

    que trouxe como significado evidentes restrições aos direitos civis.

    Nesse sentido, Carvalho (2016, p. 50-51) especifica que:

    A herança colonial pesou mais na área dos direitos civis. O novo país herdou a escravidão, que negava a condição humana do escravo, herdou a grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder privado [...]. A escravidão só foi abolida em 1888, a grande propriedade ainda exerce seu poder em algumas áreas do país e a desprivatização do poder público é tema da agenda atual de reformas (sic)15

    13

    FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1976, p. 18-19. 14

    A Lei da Abolição somente ocorreu em 1888, pela Lei Áurea. 15

    CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 50-51.

  • 25

    Quanto aos direitos políticos, apesar da permissão ao voto do

    analfabeto, estes também eram carreados de restrições, como a proibição do

    voto feminino e a referida situação dos escravos, que não eram sequer

    considerados cidadãos, afora outras limitações, como o próprio procedimento

    das eleições. Substancialmente assinala Carvalho que:

    Os brasileiros tornados cidadãos pela Constituição eram as mesmas pessoas que tinham vivido os três séculos de colonização nas condições que já foram descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justiça, uma postura municipal. [...] mais de 90% da população vivia em áreas rurais, sob o controle ou a influência dos grandes proprietários. Nas cidades, muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelo governo16.

    A questão da escravidão era extremamente séria e imbricada às

    nossas raízes, pois, era exercida em todas as províncias e por diversas

    pessoas, até as consideradas pobres chegavam a alugar como fonte de renda

    seu único escravo, além dos libertos que chegavam a ter também escravos17.

    Os negros fugiam das grandes propriedades e procuravam um

    refúgio, um esconderijo, um local em que se sentissem abrigados e seguros,

    pela total ausência de dignidade vivenciada, espoliados da condição humana e

    cultural, dando início à formação de guetos, organizados sob a forma de

    comunidades quilombolas, que também faziam o papel de resistência ao longo

    da história e, por isso mesmo, foram alvos de inúmeras perseguições e

    destruições - um dos mais conhecidos foi o Quilombo dos Palmares, no Estado

    de Alagoas18.

    Acrescenta Comparato 19 , sobre a utilização da capoeira como

    estratégia de sobrevivência dos negros, que dissimulavam se tratar de uma

    16

    CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 37-38. 17

    Ibid., p. 54. 18

    CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 53. 19

    COMPARATO, Fábio Konder. A Oligarquia Brasileira: visão histórica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017, p. 32.

  • 26

    dança, quando, na realidade, tinha uma significação de treinamento para

    defesa e resistência20.

    Aspecto fundamental a ser observado e destacado é que esta

    restrição de liberdade dos negros escravos teve como característica, no

    processo de evolução histórica do Brasil, a promoção da respectiva

    estigmatização de sua etnia, de um desprestígio e de um preconceito que

    parece perseguir a indigna condição de perpetuação da desigualdade. Prova

    histórica de tal fato é que por ocasião da abolição da escravidão, os ex-

    escravos não foram inseridos em nenhuma política inclusiva de direitos

    fundamentais, correspondente à condição de recém-libertos. Ou seja, a

    desigualdade, com suas repercussões sociais e políticas determinantes,

    revelam, através do preconceito e discriminação subjacentes, a dinâmica da

    relação de poder em uma sociedade excludente.

    Nessa esteira, Carvalho revela que:

    No Brasil, aos libertos não foram dadas nem escolas, nem terras, nem empregos [...]. As consequências da escravidão não atingiram apenas os negros. Do ponto de vista que aqui nos interessa – a formação do cidadão -, a escravidão afetou tanto o escravo como o senhor. Se o escravo não desenvolvia a consciência de seus direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e humilhação de muitos21.

    Neste contexto, tínhamos, inclusive, a criança escrava que ficava

    nas mãos de seus senhores mesmo depois da Lei do Ventre Livre, em 1871,

    pois estes ainda permaneceriam com o direito de mantê-la até os 14 anos e

    seriam ressarcidos dos respectivos gastos, valendo-se de seu trabalho até os

    21 anos, ou a entregariam ao Estado, mediante indenização22.

    20

    “De fato, a capoeira foi, inicialmente, uma forma de defesa dos quilombolas no meio rural. Nos espaços controlados pelo senhor, todavia, os escravos tinham necessidade de dissimular essa característica de combate corporal da capoeira, apresentando-a como forma de dança […].” 21

    CARVALHO, José Murilo de, op. cit., p. 57-58. 22

    RIZZINI, Irene. O Século Perdido: Raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 18.

  • 27

    Venâncio23 realça também situação de utilização da criança e/ou

    adolescente até em situação de guerra no Período Imperial, numa revelação de

    violação de direitos, ainda que se argumentasse a possibilidade de lhes serem

    ministrados algum estudo e/ou aprendizagem – primeiro eram crianças

    enviadas pelas Casas de Expostos, depois começava a haver o recrutamento

    de crianças carentes enviadas pelos pais ou tutores e algumas presas por

    vadiagem, como se observa em suas palavras:

    Em uma primeira fase, após a independência, recrutaram-se crianças para a Marinha, valorizando, no entanto, a formação prévia daqueles que tinham estudado nas Companhias de Aprendizes Marinheiros; em um segundo momento, marcado pela Guerra do Paraguai, os burocratas imperiais assumiram uma postura arcaica, enviando inúmeras crianças sem treinamento algum aos campos de batalha [...]24.

    As leis que regiam as Companhias não eram claras quanto à idade

    dos garotos e, segundo documentação correlata constante no Arquivo

    Nacional, a Instrução para o alistamento de voluntários de recruta para o

    serviço da Armada, datado de 14/04/1855, afirmava-se que “os aprendizes

    marinheiros devem ser cidadãos brasileiros de 10 a 17 anos” e, mais adiante,

    há uma ressalva: “poder-se-á também admitir menores de dez anos que

    tenham suficiente desenvolvimento físico para os exercícios do aprendizado”25.

    Nesse sentido, outro equívoco já despontava neste Período Imperial,

    posto que os “carentes” e os “delinquentes” seriam encaminhados, enquanto

    recrutados, para um mesmo alojamento, numa prática institucional que

    denotava a ausência de compreensão das condições e necessidades de

    atenções e intervenções diferenciadas26.

    Na primeira Constituição brasileira, outorgada em 25 de março de

    1824, não houve nenhuma especificação quanto à proteção da criança nem do

    adolescente. Havia sim, restrições a diversos direitos para os indivíduos em

    geral, como, por exemplo, a imposição de restrição do direito de votar, que se

    23

    VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7.

    ed. São Paulo: Contexto, 2018, p. 192-193.

    24 Ibid.

    25 Ibid., p. 198.

    26 Ibid.

  • 28

    sujeitava a condições pessoais como a alfabetização, ser possuidor de uma

    renda mínima para seu exercício, dentre outras. Em seu Título 8o, foram

    definidas “garantias de direitos civis e políticos”, mas não raro havia, na

    sequência, uma restrição, vista claramente no direito a não perseguição

    religiosa, desde que respeitasse a do Estado e não ofendesse a moral pública

    (artigo 179, inciso V). Neste artigo, inciso XVIII, há a determinação para a

    posterior organização de um Código Criminal. Em suma, a caracterização

    maior desta Constituição era a atribuição de legitimidade à vastidão de

    atribuições do Poder Moderador.

    Registre-se que quanto à menoridade e responsabilidade penal dos

    “menores”, o Código do Império de 1831 previa, em seu artigo 10, que “[...] não

    se julgarão criminosos [...] os menores de 14 anos”; contudo, em seu artigo 13,

    estabelecia que os garotos que, mesmo não atingindo a idade mínima de 14

    anos, tivessem cometido crimes, com “discernimento”, ou seja, de forma

    consciente, deveriam ser recolhidos à Casa de Correção, pelo tempo que o

    Juiz determinasse, contanto que o referido recolhimento não exceda a idade de

    17 anos.

    Havia então, o estabelecimento da menoridade aos 14 anos, com

    ressalva de condição subjetiva a determinar encaminhamento restritivo do

    direito à liberdade. Decisão nas mãos do Juiz, em que a Jurisprudência, à

    época, procurava nortear os casos para aferir o “discernimento”27.

    Isto é, o subjetivismo empreendido sequer levava em conta qualquer

    manifestação técnica específica, além de representar uma extrema tendência

    de centralização de decisão nas mãos de um Juiz, característica que vai

    acompanhar a história da criança e do adolescente nos fins do século XIX, e

    que, desta forma, permeava a áurea republicana que se desenhava no Brasil,

    sendo também característica que eclodia em todos os continentes –

    especialmente o europeu e americano, ainda que cada um tivesse

    peculiaridades a serem consideradas. Era uma situação que se configurava

    como uma “onda de preocupação mundial com o aumento da criminalidade

    infanto-juvenil”.

    27

    SANTOS. Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século XX. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2018, p. 216.

  • 29

    Nesta mesma época, no Brasil, ecoavam essas inquietações

    internacionais, com a peculiaridade de que o país vivia um momento histórico

    marcado pela busca de uma condição emancipadora, de uma identidade

    nacional28.

    Desta forma, com a Proclamação da República, em 1889, de igual

    sorte, sob outras roupagens, o domínio sobre as crianças foi exercido durante

    muitas décadas, na busca de perpetuação de um controle, através de políticas

    - detalhadas mais adiante, que as aprisionavam na condição de objeto de

    intervenção estatal.

    O Código Penal da República, em 1890, como o do Império, não

    considerava criminosos os “menores de 09 anos completos”, mas trazia uma

    mudança na forma de punição daqueles que, tendo entre 09 e 14 anos,

    tivessem agido com “discernimento”, em que seriam “recolhidos a

    estabelecimentos disciplinares industriais”, pelo tempo que o Juiz

    determinasse, não podendo ultrapassar os 17 anos. A ideia de recuperação

    passa agora por uma pedagogia de trabalho obrigatório. E, finalmente, aqueles

    entre 17 e 21 anos teriam uma penalidade sempre atenuada.

    Isso porque nas duas primeiras décadas, com o avanço da

    industrialização, urbanização e correspondente aumento da criminalidade, com

    a participação de “menores”, além da mencionada influência externa, passava

    a ser instituída a ideia da necessária promoção e “recuperação de menores”. O

    cenário também se apresentava marcado pela presença de crianças carentes,

    “menores nas ruas”, provenientes de famílias sem a assistência devida.

    Méndez29destaca inclusive que, nesta época, havia uma verdadeira

    “cruzada moral” internacional, em que os chamados Reformistas procuravam

    uma construção social mais adequada para a condição da infância e

    adolescência, sob o manto da necessária proteção-repressão, quando então foi

    28

    CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 81-88. 29

    MÉNDEZ, Emílio García. La legislación de menores en América Latina: una doctrina en situación irregular. In: Derecho de la infancia/adolescencia en América Latina: de la situación irregular a la protección integral. III Seminario Latino Americano. Universidad del Zullia Vicerrectorado Académico (1997) – SERBILUZ – LUZ Repositorio Académico, p. 13-14. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2018.

    http://www.produccioncientifica.luz.edu.ve/index.php/capitulo/article/download/4084/4083

  • 30

    instituído o “Tribunal de Menores” 30 . Contudo, a ideia era o exercício do

    controle sobre esse público referenciado, em que a defesa da sociedade seria

    o último parâmetro de legitimação das ações. Em verdade, houve o ensejo

    para o nascimento da cultura de judicialização das políticas sociais

    complementares, na tentativa de suprir as deficiências das políticas sociais

    básicas.

    Assim, no Brasil, surge a correlata legislação, o Código de Menores

    de 1927, que levou o nome do primeiro Juiz da Infância – Código Mello Mattos,

    e um tribunal específico, 1o Juizado da Infância e da Juventude, em que

    passou a haver uma “justiça de menores”, uma “justiça-assistência”.

    Importante evidenciar que havia uma situação de abandono material

    e moral desse público específico e, assim, existia uma classificação

    correspondente, como sendo o “abandonado”, o “desvalido”, o “vadio”, o

    “pervertido”, ou “aquele em perigo de o ser”, existindo, então, uma mobilização

    social para “salvar as crianças” ou para “corrigir os menores” e também para

    prepará-los “para e pelo trabalho”, ou seja, passariam a ser produtivos e seriam

    “regenerados”31.

    Em suma, segundo Rizzini 32 , o “menor” era concebido como

    categoria jurídica e socialmente construída para designar a infância pobre –

    abandonada (material e moralmente), e o delinquente.

    Portanto, evidenciava-se que não havia uma conotação de

    promoção de igualdade, ao contrário, havia uma dicotomia promovida entre a

    “infância de crianças em geral” e a “infância de crianças pobres e de

    delinquentes” – “menores”; estas sem acesso aos meios que satisfizessem

    suas necessidades básicas, a requererem, outrossim, encaminhamentos e

    tratamentos diversos, sendo competente para fazer tais encaminhamentos e

    encontrar as supostas soluções, a figura central do Juiz de Menores.

    Diante desse quadro de realidade descrito, Rizzini33 aponta que a

    partir de legislação específica, de 1927, contemplada com 231 artigos, que

    tratavam de diversos aspectos atinentes à criança e ao adolescente, o Juiz de

    30

    O 1o Tribunal foi criado em Illinois em 1899.

    31 RIZZINI, Irene. O Século Perdido: Raízes Históricas das Políticas Públicas para a

    Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 22-23. 32

    Ibid., p.134. 33

    Ibid., p. 133.

  • 31

    Menores passava a ser legitimado a agir também na área social, contudo,

    inserido na moldura que definia os “menores” já assinalados e, assim,

    determinava, nesta perspectiva, a adoção de medidas “protetivas” e

    assistenciais com o intuito de “resolver” o problema desses “menores”,

    enveredando por mecanismos “tutelares”, de “guarda”, “vigilância”, “educação”,

    “preservação” e “reforma”.

    Ressalva necessária a ser feita é a de que a referida “educação”

    era concebida no seu aspecto amplamente restrito, como “antídoto à

    ociosidade e à criminalidade e não como instrumento que possibilitasse

    melhores chances de igualdade social”34.

    Surge então, de imediato, a determinação legal para o fechamento

    das “Casas de Expostos”, que abrigavam as crianças abandonadas e

    desvalidas e promoviam o encaminhamento destas para novas famílias, devido

    ao elevado índice de mortalidade infantil nestes ambientes, bem como

    corroborando a política higienista que estava sendo protagonizada por setores

    de saúde da sociedade neste momento - houve resistência e no Rio de Janeiro

    funcionou uma Unidade até 1935, em São Paulo até 194835.

    Neste sentido, incidiriam as possibilidades de encaminhamentos

    diversos dos “menores” pela autoridade judicial para “asilos”, “escolas de

    prevenção ou preservação”, “estabelecimentos industriais”, ou ainda

    “patronatos agrícolas” (meios rurais) no tocante aqueles material e moralmente

    abandonados; e para os “delinquentes”, os respectivos encaminhamentos eram

    para as chamadas “escola de reforma”, sempre com o resgate pela “educação”

    e pelo “trabalho” – este desde a infância36.

    Carvalho 37 demarca que, de 1889 até 1930, fim da Primeira

    República, havia o que chamou de “uma cidadania em negativo” (com a

    ressalva dos movimentos abolicionistas e o Tenentismo), predominando uma

    união oligárquica dos grandes Estados, sobretudo São Paulo e Minas Gerais, e

    um domínio e poderio dos chamados “Coronéis”. Assim, práticas eleitorais

    fraudulentas prevaleciam, sem a possibilidade de livre participação popular nos

    34

    RIZZINI, Irene. O Século Perdido: Raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011p. 144. 35

    Ibid., p. 120. 36

    Ibid., p. 20, 22, 26. 37

    CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 47, 50, 62.

  • 32

    eventos políticos nacionais, por negação de direitos civis, tendo havido uma

    herança de um período de escravismo (abolição em 1888), de propriedade

    rural fechada à ação da lei e um Estado comprometido como poder privado,

    levando a negação do próprio aparelho da justiça.

    A Constituição Republicana de 1891 retrocedeu na questão da

    obrigatoriedade da educação primária, prevista na de 1924, e proibia a

    regulamentação quanto ao trabalho, havendo avanço, contudo, no tocante ao

    reconhecimento dos sindicatos rurais e urbanos. Exceto o que fora

    regulamentado no Código de Menores de 1927, não houve maior

    expressividade na área da infância38.

    O Decreto 16.272, de 20 de dezembro de 1923, alterou a maioridade

    penal para 14 anos de idade.

    A partir de 1930, já se podia dizer da existência de um povo

    organizado politicamente num sentimento nacional, com uma aceleração nas

    mudanças sociais e políticas, como assevera Carvalho39. Nesse sentido, foi

    criada uma legislação trabalhista e previdenciária, completada em 1943, com a

    instituição da Consolidação das Leis do Trabalho, tendo sido seguida de um

    avanço na legislação social. Quanto aos direitos políticos, estes foram mais

    truncados, devido à alternância entre fases ditatoriais, especialmente o Estado

    Novo de 1937 até 1945, e democráticas, em especial o período pós 1945, que

    posteriormente fora interrompido pelo Golpe de 1964, só retornando, enfim, a

    chamada redemocratização em 1985.

    Notoriamente houve restrições aos direitos civis e políticos nos

    períodos ditatoriais, especialmente o exercício do direito à liberdade, o direito à

    liberdade de expressão e de organização, consagrando grandes retrocessos

    históricos sob a égide de estado de exceção.

    Entretanto, em 1932, foi criado o primeiro Código Eleitoral, sendo

    instituído o voto secreto e foi criada uma Justiça Eleitoral, além do direito do

    voto da mulher, o que representou avanços da cidadania política, isto no início

    da Era Vargas.

    38

    CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 67-68. 39

    Ibid., p. 91.

  • 33

    O Código Penal de 1940, utilizando apenas o critério biológico,

    alterou a imputabilidade penal para 18 anos, como se verifica em seu artigo 27,

    definindo a sujeição do adolescente às normas da legislação especial.

    Nesse sentido, se pensarmos em direitos sociais, estes também

    foram alvos do jogo estratégico de interesses de governos que se sucederam

    na República brasileira, com fins de manutenção no poder, sendo traços

    marcantes desta utilização, o populismo, o autoritarismo, a repressão, o

    paternalismo, o clientelismo e outras formas de reprodução da condição de

    dependência da população em relação às benesses e concessões advindas do

    governo com sua política compensatória, sendo exigida, em contrapartida,

    “obediência” ao comando hierárquico promovedor da ordem e desenvolvimento

    nacional.

    Na Constituição de 1934, pela primeira vez numa Constituição

    brasileira, foram incluídas normas de proteção e amparo à criança, como a

    proibição do trabalho para o menor de 14 anos e a proteção à maternidade,

    sendo destinado o percentual de 1% das rendas dos diversos entes

    representativos do poder público. Tal proteção é ampliada à luz da Constituição

    de 1946, que contemplou a descrição de preceitos mínimos a serem

    observados na legislação trabalhista, ao passo que reafirma a vedação do

    trabalho para menores de 14 anos e o noturno e em indústrias insalubres para

    menores de 18. Ainda traz normas de proteção à criança e amparo à família de

    prole numerosa, com obrigatoriedade da assistência à infância e à

    adolescência.

    Quanto à Constituição de 1937, “dentro de sua política

    intervencionista, o Estado colocou a infância e a juventude sob sua direta

    proteção [...]”. Uma das maneiras encontradas para proporcionar o pleno

    desenvolvimento de crianças e jovens foi fornecer compensações para famílias

    tidas como numerosas, na forma da lei. Registre-se ainda, que na vigência

    desta Constituição foi criado, no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, o

    Departamento Nacional da Criança para coordenar as atividades relativas à

    proteção à maternidade, à infância e à adolescência40.

    40

    COELHO, Bernardo Leôncio Moura. A proteção à criança nas constituições brasileiras: 1824 a 1969. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 35, n. 139, jul./set., 1998, p. 102-103.

  • 34

    Já a Constituição de 1969, segundo Coelho 41 , foi tida como “a

    Constituição mais autoritária da história constitucional brasileira, pois, apesar

    de conter uma longa enumeração dos direitos individuais (art. 153), detinha

    poderes de supressão desses mesmos direitos.” Enquanto a Constituição de

    1946 adotava a idade mínima de 14 anos para o trabalho, na de 1969 houve a

    redução para 12 anos. Já seu artigo 175 prescrevia a proteção à infância e à

    adolescência, sem, contudo, se seguir a respectiva regulamentação, o que

    tornava prejudicada sua aplicação.

    Nesta mesma sequência temporal, aqui explicitada, em referência

    aos textos constitucionais da República, encontram-se as políticas voltadas à

    infância, as quais correspondiam aos interesses econômicos, políticos e

    ideológicos dominantes em cada momento do desenvolvimento histórico da

    nossa cidadania, tendo então se notabilizado, como se constata, a existência

    de política de recolhimento e segregação de “menores”, sob o manto

    idealizador da proteção e assistência.

    Rizzini42 assim assinala que:

    Com a crescente intervenção do Estado na assistência, a partir da década de 1920, tem início a formalização de modelos de atendimento, não se constatando, no entanto, diminuição da pobreza ou de seus efeitos. Assim, a pretensa racionalização da assistência, através da inclusão de especialistas do campo social, longe de concorrer para uma mudança nas condições concretas de vida da criança e de sua família, foi muito mais uma estratégia de medicalização e criminalização da pobreza. O caso do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), estabelecido no início dos anos 40, é exemplar neste sentido [...]. O mesmo se passou com a FUNABEM. Criada na década de 60 em substituição ao SAM, ao final dos anos, 80, fazia a sua própria autocrítica, condenando o modelo ‘correcional-repressivo’, adotado nas duas décadas de sua vigência.

    Rizzini 43 também explicita que na década de 20 é instituída a

    legitimação de intervenção estatal na família, através da criação do instituto da

    suspensão do então “pátrio poder” e da busca e apreensão dos “menores” em

    abandono pelas famílias pobres.

    41

    COELHO, Bernardo Leôncio Moura. A proteção à criança nas constituições brasileiras: 1824 a 1969. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 35, n. 139, jul./set., 1998, p. 107. 42

    RIZZINI, Irene. O Século Perdido: raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 191. 43

    Ibid., p. 25.

  • 35

    Assevera ainda que, em 1941, em pleno Estado Novo, o SAM

    promovia o encaminhamento dos já declinados “menores abandonados” ou

    “desvalidos”, às instituições oficiais e particulares conveniadas, enquanto aos

    “delinquentes, se fazia o encaminhamento, por determinação judicial, aos

    reformatórios”.

    A partir de 1964, a questão do “menor” passou a ser encarada como

    de segurança nacional, sendo criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do

    Menor (FUNABEM) e a respectiva Política Nacional de Bem-Estar do Menor

    (PNBEM), num viés de controle político deste, tanto na formulação como na

    implementação da assistência à infância, havendo um maciço direcionamento

    à internação dos “irregulares” nas FEBENS e entidades privadas de

    assistência44.

    Assim, foi instituído o Antigo Código de Menores, através da Lei

    6.697, de 10 de outubro de 1979, em que os “menores” agora estariam

    inseridos na chamada doutrina da “situação irregular do menor”, que não difere

    das condições eleitas para se encaminhar/determinar a mesma medida de

    institucionalização promovida à luz da ação tutelar do Estado - 1o Juízo de

    Menores, sob o manto do primeiro Código de Menores de 1927, apenas com

    nomenclaturas diversas.

    A “Doutrina da Situação Irregular do Menor” tratava a criança e o

    adolescente a partir do entendimento de que seriam objetos de tutela ou

    intervenção, sujeitos às determinações do mundo adulto. E, assim, em seu

    artigo 2o há a definição de “menor em situação irregular” como sendo aquele

    “privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução

    obrigatória”; “vítima de maus-tratos ou castigos imoderados”; expostos a

    “perigo moral”; “privado de representação ou assistência legal”, e, ainda,

    incluía-se com “desvio de conduta em virtude de grave inadaptação familiar e

    comunitária” e autor de infração penal.

    Nesse sentido, havia um tratamento de segregação a ser

    determinado para o “menor”, tanto numa situação de risco pessoal e social,

    como numa situação de ser este o violador de direitos, não reconhecendo que

    eram condições distintas a ensejarem medidas e providências também

    44

    RIZZINI, Irene. O Século Perdido: raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011, p. 27.

  • 36

    distintas, inclusive, se necessário fosse, em relação à respectiva família. Eram

    os “menores irregulares” a carecerem de institucionalização, de retirada do seio

    da sociedade. As naturezas assistencialista, repressiva e correcional

    imperavam e representavam as determinações da política vigente na época.

    Nenhum dos encaminhamentos previstos até então, por

    conseguinte, tinham o condão de promover os direitos de crianças e

    adolescentes, mas, ao contrário, sob o prisma da assistência, era promovido o

    clientelismo, a filantropia e a caridade e, assim, para os “menores” pobres,

    abandonados ou delinquentes, deveria haver uma intervenção política.

    Não havia ainda nenhuma proposta de rompimento com o

    tratamento desigual e desrespeitoso empreendido, muito menos com a

    recepção de prioridade quanto aos interesses de crianças e adolescentes.

    Somente em 1988, a partir da nossa Carta da República, houve a definição de

    um novo tratamento dado à criança e ao adolescente, através de mudanças

    paradigmáticas que ocorreram no Brasil, com a instituição de nova doutrina

    denominada “Doutrina da Proteção Integral”, como será detalhada mais

    adiante.

    Uma grande mudança a partir daí foi promovida, pois nunca houvera

    antes da nossa Constituição Cidadã de 1988, direitos consignados em prol da

    criança e do adolescente, estando apenas consignado, exemplificativamente,

    no Antigo Código de Menores, à luz do seu artigo 119, nas Disposições Finais,

    do Título III, que o “menor irregular” teria direito à assistência religiosa.

    Evidentemente a compreensão era de que o viés desta garantia cingia-se à

    consagração de um mecanismo de controle social bastante utilizado no

    contexto da época, como já destacado, constatado numa simples análise pela

    incongruência que representava, inclusive pelo registro de que sequer havia a

    garantia do direito à vida, onde se encontrava a suposta “garantia do direito à

    assistência religiosa”.

    Considerando, igualmente, que o Estado Constitucional instaurado

    contempla o indivíduo como centro de suas ações, de imediato se impõe a

    precisa compreensão do conceito de cidadania, até porque não se pode deixar

    de reconhecer que a criança e o adolescente apresentam-se na nova

    Constituição como sujeitos de direitos fundamentais; e reconhecer a existência

  • 37

    de direitos fundamentais, contemplando este segmento em desenvolvimento,

    significa reconhecer a condição de cidadãos.

    Nesta perspectiva, Lafer45 traz com clareza e precisão o alcance

    deste conceito de cidadania, que na concepção de Hannah Arendt seria “o

    direito a ter direitos”, e que também aponta os direitos humanos como

    construção da igualdade, sendo esta uma elaboração coletiva numa

    organização política que decide pela promoção e garantia a todos de direitos

    iguais.

    Ramos46 dimensiona que além da igualdade, a liberdade e a dignidade

    devem compor obrigatoriamente o que se configura como núcleo fundamental

    desses direitos considerados indispensáveis para uma vida humana. Seriam os

    direitos de todos os cidadãos, considerados em sua universalidade,

    essencialidade, superioridade normativa ou preferencialidade.

    Segundo Saes 47 , contemporaneamente, o conceito de cidadania

    presente ao Estado capitalista contempla a “forma-sujeito de direitos”, tanto dos

    que detêm os meios de produção como pelos trabalhadores, indo muito mais

    além do que qualquer concepção clássica quanto à possibilidade de exercício

    de direitos políticos. Há de se ter garantidas as liberdades civis e políticas, as

    quais devem ser efetivadas e corporificadas para que não sejam esbarradas

    por uma utopia subjacente, ainda que seja através de luta popular e burocrática

    pela concretização da lei, percorrendo sempre o ideal de prerrogativas

    baseadas na igualdade entre todos os indivíduos.

    A concretude da condição cidadã exige, por sua vez, ações positivas

    do Estado, isto num cenário marcado por um desenvolvimento social calcado

    historicamente num processo de promoção de desigualdade na efetivação de

    direitos fundamentais dos indivíduos em sociedade, em especial de crianças e

    adolescentes. Estes, desassistidos em suas necessidades básicas para uma

    formação plena, enquanto pessoas em processo de construção, com a

    trajetória marcada pela presença de políticas assistencialistas e de controle

    45

    LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 207-208. 46

    RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 24-25. 47

    SAES, Décio Azevedo Marques de. A questão da evolução da cidadania política no Brasil. História Política. São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da USP, v. 15, n. 42, Maio/ago., 2001, p. 2-3.

  • 38

    social, em que a filantropia e a indiferença sempre foram as tônicas

    norteadoras, são alcançados por um processo de violência social, com

    demarcação de territórios, marginalização e exclusão de direitos.

    Minayo48, ao tratar da violência social, destaca que está advém da

    desigualdade que, por sua vez, produz fenômenos como a alienação no

    trabalho, o menosprezo de valores e normas em função do lucro, o

    consumismo, a força e o machismo, como exemplos.

    Sales49 complementa o raciocínio, destacando o desenho irregular

    ou as anomalias na história do desenvolvimento da cidadania, no Brasil, o que

    chama de “cidadania escassa”:

    [...] Estes e tantos outros mais integram a história de profunda injustiça social e descaso pelo destino de milhões de cidadãos sem sobrenome, sem propriedade, sem estudo, sem dignidade. Dentre tais problemas, a violência avulta como produto da cidadania escassa no Brasil – a qual se traduz como modalidade histórica de inscrição sócio-étnica subalternizada de vários grupos e segmentos sociais na divisão social e repartição de riquezas do país, caso da maioria das crianças e adolescentes pertencentes às classes trabalhadoras, configurando-lhes um acesso precário intermitente aos direitos sociais – e coloca-se como desafio à democracia à criação de um verdadeiro estatuto para os direitos civis: uma realidade que ninguém pode permanecer indiferente.

    Tarefa árdua, especialmente quando se tem como disposição

    espacial a agravar, o fenômeno da territorialização, que abriga em

    comunidades isoladas aqueles que, desprovidos de assistência e atendimento

    mínimos a seus direitos fundamentais e essenciais à existência de uma vida

    digna, buscam abrigo e proteção. Karam 50 a este fenômeno denomina de

    “aparthaid social”.

    É instalada, assim, como evidência, uma divisão social e política,

    que interessa à manutenção de um sistema de característica excludente e

    natureza opressiva e segregante, geradora de uma invisibilidade social que se

    abate sobre crianças e adolescentes com evidentes prejuízos.

    48

    MINAYO, M. Cecília. A Violência Social sob a Perspectiva da Saúde Pública. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, supl. 1, 1994, p. 8. 49

    SALES, Mione Apolinário. (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência. São Paulo: Cortez, 2007, p. 48. 50

    KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, n. 1, p. 4, jan./jun., 1996.

  • 39

    No sentido da violência, em suma, Sales51 observa que:

    A violência é, pois, manifestação do poder, expressão de como as relações sociais estão aqui organizadas, do como o capitalismo se engendrou e se perpetua no país. É exploração, opressão e dominação, mas não é somente força pura, é também ideologia e sutileza. Violência que embora seja estruturalmente produzida pelas elites, como um dos mecanismos que sustentam e fazem a política e a economia, não constitui seu patrimônio exclusivo. Reproduzida pelos mais diversos estratos sociais, tende, porém, a ser associada de maneira reducionista e invertida, pelo senso comum, aos pobres e miseráveis, vistos como “classe perigosa” e de onde provêm os “maus elementos”. Associação que se reforça e ganha visibilidade, sobretudo por meio dos indivíduos mais insubmissos das classes trabalhadoras nos seus embates cotidianos, nem sempre visíveis, contra o processo de sujeição e também como expressão dele. Ações e reações que ora são puro fetichismo e alienação, ora se transmutam em política e revolta.

    Cenário hodierno para o desfrute e a atuação de um dos

    mecanismos ideológicos muito presentes nas elites, através do sentimento de

    medo que, direcionado aqueles rotulados e estereotipados como “indivíduos

    perigosos”, levam a um clamor social à promoção de formas de controle social.

    Pobres, negros, muitos desempregados, moradores de favelas ou

    grotas (portanto, segregados da sociedade), marginalizados pela etnia,

    condição pessoal e social e territorialização, seriam sempre, prioritária e

    oportunamente, considerados por uma elite dominante como possíveis

    violadores de direitos, legitimando, assim, um processo de exclusão social e

    moral de grande parte da população e produzindo um distanciamento entre

    setores de uma mesma sociedade, a qual aniquila a possibilidade de

    comunicação e de interação entre cidadãos, reduzindo-se a uma vivência de

    desigualdade e suas mazelas.

    Em resumo, infere-se que é a reprodução de uma cultura de

    “desqualificação ou valorização do outro”, a depender de sua condição pessoal

    e social, marcada pela ausência de oportunidades a uma maioria e privilégios

    para uma minoria detentora de concentração de renda, ficando o processo de

    mobilidade social engessado em suas bases.

    51

    SALES, Mione Apolinário. (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência. São Paulo: Cortez, 2007, p. 59-60.

  • 40

    Outro destaque no processo de desigualdade, ainda, é a relação

    identificável tanto nos espaços sociais locais, quanto regionais, num país de

    dimensões continentais como o Brasil.

    Rocha e Albuquerque52 fazem observações pertinentes à questão

    quando pontuam a importância de dimensionar espacialmente os níveis de

    desigualdades sociais, quer locais, quer regionais ou nacionais, ou ainda em

    relação ao campo e às metrópoles ou entre estas ou entre os Municípios

    menores, o que necessariamente passa pelo desenvolvimento histórico de

    cada região e seus condicionantes econômicos, políticos e sociais, como já

    traçados para, a partir de então, considerar as variáveis e indicativos, como a

    renda familiar e o consumo, a definição de necessidades básicas, o nível de

    escolaridade, de analfabetismo, de mortalidade infantil, de trabalho infantil, de

    saneamento básico, de acesso a serviços públicos e benefícios sociais

    propiciados pelo Estado, programas de geração de emprego e renda, emprego

    formal, enfim, fatores capazes de gerar possibilidade de mobilidade social.

    Assim, para se aferir a pobreza ou a extrema pobreza - Decreto n.

    9.396/201853- no Brasil, há de se observar verificadores como a renda e tantos

    outros indicadores sociais e econômicos, a concretude ou não de direitos

    fundamentais, os desequilíbrios regionais e as políticas de enfrentamento

    antipobreza.

    1.2. Dados da realidade brasileira: a relação entre a pobreza resultante de direitos fundamentais irrealizados e a violência contra jovens

    A Organização das Nações Unidas – ONU, através do Fundo das

    Nações Unidas para a Infância - UNICEF, acaba de divulgar, neste mês de

    agosto de 2018, dados relativos a um estudo realizado sobre as várias

    dimensões ou faces da pobreza a que vivem milhões de crianças e

    52

    ROCHA, Sônia; ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcante de. Geografia da pobreza extrema e vulnerabilidade à fome. Estudos e Pesquisas. Seminário Especial Fome e Pobreza. Rio de Janeiro: INEA – Instituto Nacional de Altos Estudos, n. 54, 2003, p. 3. 5353

    Decreto n. 9.396, de 30 de maio de 2018: Art. 2 O Decreto n. 7.492, de 2 de junho de 2011, passa a vigorar com a seguinte alteração; Art. 2 (…) Parágrafo único. Para fins do disposto neste Decreto, considera-se em extrema pobreza a população com renda familiar per capita mensal de até R$ 89,00 (oitenta e nove reais). (NR) Disponível em: . Acesso em: 04 abr. 2018.

    http://www.planalto.gov.br/

  • 41

    adolescentes no Brasil, tendo por base os resultados obtidos na Pesquisa

    Nacional por Amostra de Domicílio – Pnad – de 201554.

    Neste estudo, é apontado que de cada 10 crianças e adolescentes,

    6 vivem em situação de pobreza, sendo compreendidas e analisadas como

    dimensões, tanto a monetária, quanto a relativa a privações de direitos

    fundamentais, o que, por sua vez, é denominado de “privações múltiplas”, a

    servir de termômetro de referência da atual situação social a que vivem

    meninos e meninas no território brasileiro, expondo objetivamente dados de

    uma realidade desigual no país, os quais impactam o respectivo

    desenvolvimento e qualidade de vida destes.

    Nessa esteira, os dados revelam que:

    De acordo com o Pnad 2015, 61% das crianças e adolescentes brasileiros são pobres, seja porque estão em famílias que vivem com renda insuficiente – pobreza monetária -, seja porque não têm acesso a um ou mais direitos – privações múltiplas [...]. São 18 milhões de meninas e meninos (34,3%) afetados pela pobreza monetária – com menos de R$ 346,00 per capita por mês na zona urbana e R$ 269,00 na zona rural. Desses, 6 milhões (11,2%) têm privação apenas de renda. Ou seja: mesmo vivendo na pobreza monetária, têm seus direitos analisados garantidos. Já os outros 12 milhões (23,1%), além de viverem com renda insuficiente, têm um ou mais direitos negados – estando em privação múltipla. A esses 12 milhões, somam-se mais de 14 milhões de meninas e meninos que não são monetariamente pobres, mas têm um ou mais direitos negados. Juntos, eles representam quase 27 milhões de crianças e adolescentes brasileiros com privações múltiplas, sem a garantia de seus direitos fundamentais [...]. (UNICEF, 2018).

    Por conseguinte, são explicitadas, através deste estudo da UNICEF

    (2018), as dimensões múltiplas de vulnerabilidade das crianças e adolescentes

    54

    Estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, denominado Pobreza na Infância e na Adolescência, publicado em 13/08/2018. Disponível em: e redes sociais , , . Acesso em: 17 ago. 2018. Foi analisada a renda familiar de meninas e meninos brasileiros de até 17 anos de idade e o acesso deles a 06 (seis) direitos básicos: educação, informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil. Também foi analisada a ausência de um ou de mais desses direitos, sendo segmentados dados por regiões e grupos populacionais, como negros e brancos, ainda tendo sido feito um comparativo de dados de 2005 a 2015. No presente estudo, foi feita uma categorização, separando crianças e adolescente com acesso aos direitos aqui assinalados, daquelas que tinham o acesso com privação intermediária - acesso ao direito de maneira limitada ou com má qualidade – e privação extrema, ou seja, sem nenhum acesso ao direito.

    http://www.unicef,org.br/http://www.facebook.com/unicefbrasilhttp://www.instagram.com/unicefbrasil

  • 42

    aos direitos fundamentais básicos indicados, num quantitativo relativo ao total

    de privação – intermediária ou extrema -, nos seguintes termos: direito à

    educação: 8.789.820; direito à informação: 6.821.649; direito à moradia:

    5.889.910; direito ao saneamento básico: 13.329.804; direito à água:

    7.647.231; trabalho infantil: 2.529.749.

    Ainda são dimensionados alguns destaques que dizem respeito às

    referidas desigualdades quanto às diferenças regionais, bem como relativas à

    cor e idade deste público especial epigrafado:

    Moradores da z