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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO MARIA JOSÉ DOS SANTOS TRAJETÓRIA EDUCACIONAL DE MULHERES QUILOMBOLAS NO QUILOMBO DAS ONZE NEGRAS DO CABO DE SANTO AGOSTINHO-PE MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

MARIA JOSÉ DOS SANTOS

TRAJETÓRIA EDUCACIONAL DE MULHERES QUILOMBOLAS NO QUILOMBO

DAS ONZE NEGRAS DO CABO DE SANTO AGOSTINHO-PE

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

SÃO PAULO

2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

MARIA JOSÉ DOS SANTOS

TRAJETÓRIA EDUCACIONAL DE MULHERES QUILOMBOLAS NO QUILOMBO

DAS ONZE NEGRAS DO CABO DE SANTO AGOSTINHO-PE

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como requisito para obtenção do

título de Mestre em Educação: História, Política, Sociedade, sob

orientação da Profª. Drª. Circe Maria Fernandes Bittencourt.

SÃO PAULO

2012

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra.

Orientadora/PUC-SP

Profa. Dra.

Orientadora/PUC-SP

Prof. Dr.

São Paulo,________de___________________________2012

DEDICATÓRIAS

Àquela que rege o meu orí (cabeça). As mulheres de minha vida:

Vovó, amada (hoje no òrun), mamãe Maria Francisca da Conceição,

minhas irmãs e sobrinhas, a Iyàlorìsa, Altamira (mãe Tatá), a

companheira de todas as horas, Graça Elenice dos Santos Braga e as

filhas que adotei por amor, Adriane Santos e Uana Mahin. Ao

Movimento Negro na pessoa de Inaldete Pinheiro e a todas as

Mulheres Quilombolas. Ao Professor Doutor José Bento Rosa da

Silva que, através do seu exemplo, me fez acreditar na academia como

um espaço de reformulação de saberes.

AGRADECIMENTOS

Ao homem da comunicação Esu pela abertura na trajetória acadêmica, Osun que

estabeleceu o percurso deste e a Oxalá que guiou todos os momentos. O axé da nossa

ancestralidade que se revela nas pessoas que vamos encontrando ao longo da nossa trajetória e

neste encontro vão expressando para que vieram: Vovó (no òrun) agradeço pelo amor e

dedicação, minha mãe Maria Francisca da Conceição que acreditou em mim primeiro,

incentivou e investiu nos meus primeiros passos na escola pública e fez de sua vida um

exemplo de garra e determinação para todos os filhos e filhas, a meu pai Jorge Pedro dos

Santos, os irmãos e irmãs, destacando Joseane do Santos que me incentivou durante todo o

percurso, as minhas sobrinhas, especialmente Klivian pelo carinho e atenção.

À Iyálorisa Altamira (mãe Tatá) e Margarida (Kutu) que intercederam por mim junto

aos Orixás, à minha família de axé do Ilê Axé Iyá Nossô Oká, conhecido como Casa Branca

do Engenho Velho, por compreenderem os momentos de ausência, além do ogân Paulo

Peixoto e família, pelo apoio.

Às Irmãs de Assunção da Santa Virgem – IASV, por terem me acolhido na família,

ainda adolescente, e despertado em mim o desejo de ser educadora e me prepararem para o

mundo.

À Graça Elenice dos Santos Braga, que me apoiou, inspirou e confiou, mesmo distante

fisicamente. Obrigada pela paciência, pela espera, por compreender que neste momento a

distância nos unia e fortalecia os nossos sentimentos.

Às amadas filhas: Adriane Santos (sobrinha) e especialmente Uana Mahin, que adotei

por amor, obrigada pela compreensão, e por torcer por mim, por entender a minha ausência

durante o seu crescimento e o meu esforço para ser parte cada vez mais de sua vida.

Ao Movimento Negro de Alagoas na pessoa dos amigos, Helcias e do professor Zézito

Araújo, as crianças e jovens negros/as que participaram da minha formação e influenciaram

no decorrer das reflexões deste trabalho, destacando os Malungos do Iylé de Bebedouro,

Maceió-AL.

Aos professores, estudantes e amigos do Movimento Negro do Maranhão, onde

intensifiquei o meu ser educadora negra, a Escolinha Pingo de Gente, da Vila Operária, São

Luis e aos Agentes de Pastorais Negros - APN do Norte e Nordeste, pela contribuição na

formação política e religiosa.

Ao Movimento Negro e as Organizações não governamentais e governamentais da

Paraíba que fortaleceram o meu ser mulher negra, ressaltando a Bamidelê - Organização de

Mulheres Negras na Paraíba, a Rede de Educadores Populares, a Rede de Mulheres, o Centro

Cultural Bajó Áyò e as instituições que de uma forma ou de outra deram sua contribuição

antes e durante a elaboração deste.

Às quilombolas de Caiana dos Crioulos, Paraíba, mulheres que impulsionaram o

desejo de estudar a nossa história e que me acolheram no quilombo. Aprendemos juntas quem

somos e de onde viemos, nos fortalecemos e ocupamos novos espaços na sociedade.

Aos amigos e amigas Combonianos, que proporcionaram momentos de estudos,

aprofundamentos e solidariedade.

Às quilombolas das Onze Negras que se colocaram à disposição para a realização dos

relatos e pela amizade que surgiu durante as visitas, proporcionando segurança no transcorrer

do trabalho. Nunca estive só, pois através de seus relatos se fizeram presentes.

À professora Célia do ensino fundamental, que teve a paciência de me ensinar a ler e

escrever, e a professora Marcelina - UNIPÊ, meus agradecimentos vem repletos de afeto, pois

foi esta mulher que um dia em público confessou que acreditava em mim. Agradeço pelo seu

testemunho de profissional da educação comprometida com as mudanças sociais.

Aos meus novos manos que por força do destino nos encontramos em São Paulo e

vencemos vários desafios juntos: José Carlos Evangelista e Rafael Núnes, as letras e palavras

não expressariam os meus sentimentos em relação a nossa amizade. Eles foram neste período

os irmãos que Olorum me presenteou.

A todos os professores e funcionários da PUC/SP, na pessoa da professora Circe Maria

Fernandes Bittencourt, que orientou o referido trabalho e a secretária Betinha, que não mediu

esforços para dar informações ou orientações durante o curso, colocando-se sempre

disponível.

Aos amigos e amigas de Pernambuco, Bahia, Paraíba e Alagoas que foram presentes e

que ficaram torcendo para tudo dar certo.

Aos colegas e amigos Fordistas, especialmente: Patrício, Janaina, Flávio, Josilene,

Ecivaldo, Ernandes e todos os Atirão, nosso grupo sempre foi espaço de apoio e

solidariedade.

Ao Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford-IFP e a

Fundação Carlos Chagas, na pessoa da professora Fúlvia Rosemberg, por possibilitar a

realização deste trabalho e pela confiança.

Agradeço a professora Josildeth Consorte, por ter sido atenciosa e paciente nos

momentos difíceis e por se colocar à disposição para me ajudar. Sua serenidade me

inspirou confiança e abriu novas possibilidades para mim enquanto estudante negra.

A Ólôdmuaré (Deus supremo) por se fazer presente em pessoas como o professor

doutor José Bento Rosa da Silva, que não mediu distância nem esforços para contribuir neste

processo científico.

Aos parentes, amigos, amigas, professores, estudantes, funcionários, comunidades e

colegas, citados ou não, mas jamais esquecidos. As palavras aqui escritas não exprimem toda

a gratidão que hoje sinto ao chegar até aqui enquanto mulher negra. Sem perder minhas

origens de matrizes africanas, acreditando no axé dos nossos antepassados, confesso que este

trabalho não é apenas mérito meu, mas de cada um/a que apostou na educação formal como

uma possibilidade de conquistar novos espaços.

RESUMO

Esta pesquisa aborda a história educacional de quatro mulheres moradoras do Quilombo das

Onze Negras, no Cabo de Santo Agostinho, situado no litoral pernambucano. Todas são

atuantes no quilombo e foram selecionadas para essa pesquisa por sua trajetória educacional e

pelo percurso em seu processo de escolarização. Vale ressaltar que este quilombo torna-se um

espaço de aproximação, na minha condição de pesquisadora, e que foi o empenho dessas

mulheres quilombolas por efetivação de políticas públicas educacionais que intensificou os

meus questionamentos em relação ao papel da educação formal na vida da população

quilombola. Portanto, foram esses os principais motivos que despertaram em mim o desejo de

compreender a história de vida dessas mulheres, destacando sua trajetória educacional. O

método de pesquisa fundamenta-se na história de vida das mulheres, centrando-se, dessa

forma, na história oral, na perspectiva de Paul Thompson e Isaura Queiroz, especialmente por

valorizar e possibilitar uma percepção mais profunda das dimensões da experiência de vida

das mulheres quilombolas. A pesquisa preocupou-se em situar historicamente o quilombo e,

em particular, o Quilombo das Onze Negras do Cabo de Santo Agostinho. Utilizo ainda como

bibliografia fontes etnográficas e relatos das mulheres. Esta pesquisa mostra como as

mulheres das Onze Negras superaram as barreiras do racismo, discriminação e preconceito,

acreditando na educação escolar como arma de transformação social.

Palavras-chaves: história de vida; educação; mulheres quilombolas; interculturalidade; Onze

Negras.

ABSTRACT

This research shows the educational history of four militant women that live at Quilombo das

Onze Negras, situated in Cabo de Santo Agostinho city, in the Brazilian state of Pernambuco.

These women were selected due to their educational trajectories and pathways. Quilombo also

is a collaboration space where these women have struggled for effective educational policies.

This struggle helped me to develop some research questions about the role of education in life

of the population that lives in quilombos. The main goal of this study was comprehend the life

history of those women, especially their educational trajectories. Oral history, on the

Thompson and Queiroz perspectives, was the method used in this research, focused at the life

history of this four women selected. Thus, it was possible to have a better understanding

about the life experience of these women. We concerned to present the Quilombo’s history,

particularly the history of Quilombo das Onze Negras. Audio recordings and other

ethnographic elements were used as methological tools. Finally, this research offers an

analysis about participation of quilombo women in development and accomplishment of

educational policies for cultural diversity.

Keywords: life history; education; quilombolas women; interculturality; Onze Negras.

LISTA DE SIGLAS

AMNB - Articulação de Mulheres Negras Brasileiras.

AMPRUQUION- Associação dos Moradores, Pequenos Produtores Rurais e Quilombolas

Onze Negras do Engenho Trapiche.

APN – Agentes de Pastorais Negros

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

CEACQP - Comissão Estadual de Articulação das Comunidades Quilombolas de

Pernambuco.

FCP – Fundação Cultural Palmares.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização.

OIT- Organização Internacional do Trabalho.

ONG – Organização Não Governamental.

PETI - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.

PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

MEC – Ministério da Educação.

MNU – Movimento Negro Unificado.

SECAD – Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.

UFPE – Universidade Federal de Pernambuco.

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

UNICEF – Fundo da Organização das Nações Unidas para a Criança e a Infância.

LISTA DE MAPAS

MAPA I: Quilombos no Brasil.....................................................................................28

MAPA II: Localização dos Municípios de Pernambuco...............................................33

LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO I: Levantamento dos quilombos do Brasil.................................................31

GRÁFICO II: Proporção de pobreza e indigentes segundo grupo selecionado

Brasil - 1996 e 2006......................................................................................................43

LISTA DE IMAGENS

IMAGEM I: Entrada do Quilombo invasão da Fábrica Projeto Novo.........................39

IMAGEM II: Centro Cultural Onze Negras................................................................48

IMAGEM III: Caminhada dos Terreiros de Pernambuco.............................................51

IMAGEM IV: Participação das Quilombolas no Seminário.......................................71

IMAGEM V: Escola Estadual Padre Henrique Vieira..................................................85

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................13

CAPÍTULO I - QUILOMBOS NO BRASIL:Trajetória histórica............................................20

1.1 Quilombos: Reflexão sobre suas origens...........................................................................20

1.2 Livre para Construir: Quilombos no Brasil........................................................................28

1.3 Quilombo das Onze Negras no Cabo de Santo Agostinho................................................34

CAPÍTULO II - MULHERES QUILOMBOLAS: Contribuições para a história dos

quilombos...............................................................................................................................42

2.1 Mulher Negra Construindo Cidadania...............................................................................42

2.2 Memória e Fé: Resistência e Soberania.............................................................................47

2.3 Mulheres Quilombolas: Contexto Histórico......................................................................57

CAPÍTULO III - TRAJETÓRIA EDUCACIONAL DE MULHERES DO QUILOMBO DAS

ONZE NEGRAS.......................................................................................................................64

3.1 O Lugar da População Negra na História da Educação Brasileira....................................65

3.2 MULHERES QUILOMBOLAS: Sem Alarde fazendo História........................................71

3.3 NOSSA IDENTIDADE: Orgulho de Ser Quilombola.......................................................83

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................91

REFERÊNCIAS.......................................................................................................................97

ANEXOS................................................................................................................................104

13

INTRODUÇÃO

Este trabalho nasce do diálogo com as questões pertinentes à temática da educação

para a população negra e quilombola, assim como das experiências vivenciadas

profissionalmente, como educadora em escolas públicas, na academia, nos grupos de

pesquisas e nos movimentos sociais e negros. Tem como finalidade dar sequência aos estudos

anteriores, realizados na graduação, cujo trabalho de conclusão de curso teve como título: O

desempenho escolar dos afrodescendentes na 1ª série do ensino fundamental: estudo de caso

sobre a repetência em escola pública. São estudos voltados para o processo educativo da

população afrodescendente e articulados ao meu trabalho como assessora pedagógica no

acompanhamento aos grupos de mulheres e adolescentes negras, quilombolas e comunidades

negras do Nordeste. Esta pesquisa relaciona-se às questões sobre a educação quilombola e a

efetivação de políticas educacionais nos quilombos, além de analisar como a educação tem

contribuído no fortalecimento das lutas das mulheres quilombolas. E indaga, principalmente,

sobre a participação das mulheres quilombolas na luta pela educação.

Com o intuito de perceber como vêm ocorrendo os estudos e as pesquisas nesse

campo, pelos levantamentos foram encontradas diversas produções no banco de teses e

dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e

outras organizações que estudam o processo educativo da população afrodescendente.

Observei que, no que se refere à atuação da mulher negra na educação, ainda são poucas se

comparadas a outros temas, e ainda em menor número são as que tratam da trajetória

educacional de mulheres quilombolas. No acervo da Capes13

, dos 43 trabalhos pesquisados de

2004 a 2011, período em que a Lei 10.639/03 é aprovada, tornando obrigatória a inserção nos

currículos escolares do estudo sobre a História da África e da Cultura Afro-brasileira, apenas

três se aproximam da minha temática. Os de Leite (2006) e Abreu (2009), que refletem a

trajetória de mulheres e professoras negras, e o de Silva (2011), sobre a educação diferenciada

em comunidade quilombola.

13

LEITE, Carmem Cinira Siqueira. 2006. Trajetória de professoras negras: vida escolar e profissional.

Dissertação de Mestrado, em Educação, da Universidade Federal de Mato Grosso.

ABREU, Elizete Santos. 2009. História de vida de Mulheres negras, Professoras nas cidades de Caxias e

Maranhão. Mestrado em educação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

SILVA, Elson Alves da. (2011) A Educação Diferenciada para o fortalecimento da Identidade Quilombola:

Estudo das Comunidades Quilombolas do Vale da Ribeira. Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade,

da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

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Esta pesquisa justifica-se também por ter identificado a existência de marcas do

silêncio e do descaso das políticas educacionais com a população negra, notadamente com os

quilombolas. Soma-se a isso a lentidão para a efetivação das políticas públicas, no que se

refere ao fortalecimento da cultura e história dos afro-brasileiros na vida educacional, e

permanece o desrespeito ao ser diferente no que se refere ao cotidiano escolar, espaço em que

predomina o desconhecimento dos valores culturais trazidos da realidade do educando de

origem africana. Conforme constatado pelo Censo Escolar de 2007, o Brasil tem

aproximadamente 151 mil alunos matriculados em 1.253 escolas localizadas em áreas

remanescentes de quilombos. Quase 75% dessas matrículas estão concentradas na região

Nordeste (MEC, 2007).

Por ter como objetivo central a educação escolar, recorro ao entendimento de cultura

e de escola nas reflexões de Forquin (1993) e Munanga (1999), sendo que o segundo enfatiza

uma perspectiva antropológica e educacional, ao ressaltar os valores culturais e educacionais

herdados dos antepassados da população negra que não são absorvidos no processo de

escolarização.

A opção por pesquisar em quilombo de Pernambuco justifica-se por ser um dos

estados do Nordeste que tem grande participação na história do país, nos aspectos

econômicos, políticos e culturais, com índice elevado de afrodescendentes (62,2% de negros),

segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2005), além de ser uma

região em que as origens das representações culturais são fundamentadas nas religiões de

matrizes africanas e afro-brasileiras.

Esse contexto político, cultural e religioso fez emergir o desejo de perceber quais as

contribuições das mulheres no processo educativo da população quilombola, especificamente

do Quilombo das Onze Negras, no Cabo de Santo Agostinho (PE). Atento, nesta pesquisa,

para a importância da trajetória educacional das mulheres negras, sua contribuição no

contexto educacional por meio de sua história até então desconhecida, silenciada e

invisibilizada no decorrer da trajetória da educação brasileira. É nessa conjuntura que

sentimos a necessidade de mergulhar na história e na historiografia, ressaltando as conquistas

e os mecanismos que fizeram essas mulheres superarem os desafios que surgiram no decorrer

de suas vidas, percebendo a constante busca da escolarização, seja para seu aperfeiçoamento,

seja para a formação do seu povo, entendendo esta como uma das formas de ascensão e

inserção no mercado de trabalho.

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A proposta inicial desta pesquisa era estudar três comunidades quilombolas

contemporâneas em Pernambuco: Quilombo Urbano de Xambá, em Olinda; Catucá, em

Goiana; Onze Negras, no Cabo de Santo Agostinho. Porém, a restrição do tempo do mestrado

e a opção pelas histórias de vida tornaram inviável analisar a história de mulheres

quilombolas das três áreas. Além disso, precisamos também levar em consideração os

aspectos e o papel do(a) pesquisador(a) na metodologia da história de vida, que, na explicação

de Queiroz (1988, p. 20):

Outro aspecto fundamental da história de vida é ser ela uma técnica cuja aplicação

demanda um longo tempo. Não é em uma ou duas entrevistas que se esgota o que

um informante pode contar de si mesmo, tanto mais que a duração delas é limitada

devido ao cansaço.

Daí a escolha de limitar o trabalho ao Quilombo das Onze Negras, onde, com o

levantamento inicial, foi possível identificar a atuação das mulheres na liderança do

quilombo, colocando a educação no centro do debate político e cultural.

Selecionada a comunidade quilombola das Onze Negras do Cabo de Santo

Agostinho, durante a observação de campo, realizada nos contatos iniciais no período de

mapeamento, foi com leituras de documentos do Quilombo (bibliografia sobre o local,

jornais, documentos de oficialização do Quilombo) e de fontes teóricas de estudiosos das

questões dos quilombos, que me preparei para trabalhar com um grupo que tem como herança

a oralidade. A tradição oral pode ser considerada uma forma de manutenção de sua história,

fonte de resistência e conservação da fé ao longo da sua trajetória de vida. Na medida em que

o conhecimento é transmitido de geração em geração por meio da fala e da escuta, a palavra

dita tem uma importante dimensão, pois traz consigo os valores sagrados e, na constante

repetição, torna-se o repasse de saberes.

Assim, na perspectiva de respeitar a cultura de matriz africana e manter a memória

histórica da oralidade deste povo, utilizo como metodologia de pesquisa a História Oral de

investigação proposta por Thompson (1992) e Ferreira (1994), que permitem ressaltar a

realidade, a identidade e a construção coletiva:

A história para o presente, é a historia da construção de uma identidade respectiva,

uma identidade que se deve construir a partir da igualdade, que é uma categoria que

torna crível o diálogo. Uma igualdade que não significa similitude, monotonia,

uniformidade, porque só as diferenças tornam interessantes os diálogos.

(FERREIRA, 1994, p. 56)

Dessa forma, entendo que a tradição oral afro-brasileira se traduz num modo de vida

que não se dá apenas na ausência da escrita ou do conhecimento estabelecido pela mesma.

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Esse modo de vida foi criado e recriado nas suas ações e significados através da oralidade. É

visível o quanto o povo negro tem o poder de reconstruir, como percebe Queiroz (1988, p.

20), ao afirmar que “a história de vida, por sua vez, se define como o relato de um narrador

sobre sua existência através do tempo, tentando reconstruir os acontecimentos que vivenciou e

transmitir a experiência que adquiriu”.

Essa transmissão de experiências das mulheres quilombolas por meio da oralidade é

a maneira de ensinar e de aprender. À medida que expressam o que viram ou vivenciaram,

transmitem um conhecimento e reelaboram novos saberes, contribuindo para a perpetuação da

história de um povo. Por esses motivos é que ressalto o valor da palavra e da escuta, destaque

principal desta pesquisa dentro da metodologia da história oral, a história de vida:

Dentro do quadro amplo da história oral, a “história de vida” constitui uma espécie

ao lado de outras formas de informação também captada oralmente; porém, dada a

sua especificidade, pode igualmente encontrar um símile em documentação escrita.

Trata-se de tipos de documentos próximos uns dos outros, mas que é necessário

distinguir, pois cada qual tem sua peculiaridade de coleta e de familiaridade.

(QUEIROZ, 1988, p. 19)

O foco desta pesquisa é essencialmente a história de vida educacional das

quilombolas, seja no seu cotidiano no quilombo familiar, seja na escola formal e informal, nas

associações e organizações. Desse modo, o cotidiano das mulheres é fundamental para este

trabalho, como reflete Pinsky (2005), ao garantir em seus escritos que a história de vida tem

como centro de interesse o próprio indivíduo na história, incluindo sua trajetória desde a sua

infância até os dias atuais, passando por diversos acontecimentos e conjunturas que

presenciou, vivenciou ou de que se inteirou.

Para esta análise, recorro a Meihy (2007), por este se referir à entrevista como

essência, ao dizer que, “como método, a história oral se ergue segundo alternativas que

privilegiam as entrevistas como essência dos estudos. Trata-se de centralizar os testemunhos

como ponto fundamental, privilegiado, básico, das análises”.

Busco ainda, conhecer a história do Quilombo, com base nas experiências das

mulheres e em suas ações para a efetivação de políticas educacionais dentro do Quilombo.

Sendo assim, tenho como procedimentos as entrevistas que supõem uma conversação

continuada com as quatro quilombolas, além de relatos gravados, registros de documentos

oficiais, cadernos de campo e fotografias. A escolha dessas mulheres ocorreu

voluntariamente, embora tendo como prioridades os seguintes critérios: ser do Quilombo; ser

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mulher; permanência no Quilombo e contribuições prestadas, de alguma forma, para a

educação no local.

Dentro desse perfil se apresentaram quatro mulheres que se dispuseram a relatar suas

experiências vividas como educandas e educadoras. A aproximação com essas mulheres

ocorreu em situação específica, com a preocupação inicial de representar uma forma de

realizar a pesquisa sem ser de maneira neutra e distanciada. Considerando minha própria

trajetória e meu envolvimento com as questões voltadas para a população quilombola, e em

especial para a atuação das mulheres na história dos quilombos, a aproximação se fez em

diferentes etapas:

Durante os primeiros contatos (mapeamento), na recepção inicial, demonstraram

receios. Houve questionamentos em relação à pesquisa e seu uso por uma pessoa ainda

desconhecida, demonstrando sua responsabilidade política no ato de serem entrevistadas.

A agenda seguinte correspondeu a uma visita ao Quilombo, que está localizado a dez

quilômetros do Cabo de Santo Agostinho (PE). Quem me recebeu foi a presidente da

Associação Quilombola, que solicitou outro momento com as demais mulheres

representantes, para apresentação do projeto de pesquisa. A partir de então, se

disponibilizaram a participar quatro quilombolas:

Dona Maria Conceição, nascida em 1939, em Apipucos, na cidade do Recife. Filha

do senhor Manoel José da Silva e de Antônia Maria da Silva (ambos falecidos). Aos dois anos

de idade, sua família mudou-se para morar no Engenho Trapiche do Cabo de Santo

Agostinho. Cursou até o 1º ano de Magistério e fez o concurso para ser alfabetizadora do

Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), onde atuou por dois anos. Foi a primeira

educadora no Quilombo. Hoje tem dois filhos, assume o cargo de conselheira na comunidade

e é vice-presidente da Associação dos Moradores, Pequenos Produtores Rurais e Quilombola

Onze Negras do Engenho Trapiche (AMPRUQUION), fundada em 1999. É uma das mulheres

mais antigas no Quilombo.

Dona Maria José de Fátima nasceu em 1959. Filha de Paulino Luís da Silva e

Antonieta Maria da Silva. Casada e mãe de dois filhos, é uma liderança forte na comunidade

quilombola: presidente da AMPRUQUION, representante na Comissão Estadual de

Articulação das Comunidades Quilombolas de Pernambuco (CEACQ)14

, tem uma grande

14

A CEACQ surge em 2006, tendo como principal objetivo articular e subsidiar as ações para contribuir com a

formação das comunidades quilombolas do Estado de Pernambuco.

18

influência no dia a dia do Quilombo. Seus pais fizeram parte do primeiro grupo de moradores

a chegar ao Quilombo das Onze Negras, na década de 1960 do século passado.

Maria José de Santana nasceu em 1955. Filha de Manoel José da Silva e Antônia

Maria da Silva (ambos falecidos). É mãe de dois filhos e integrante da Associação da

Comunidade.

Valdirene Maria nasceu em 1979, no Engenho Trapiche, filha de Djalma José de

Santana e Maria José de Santana. Tem dois filhos, é estudante de Pedagogia e monitora do

Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), além de integrante da Associação.

Os contatos seguintes prosseguiram com as pesquisas. As visitas passaram a ter

maior frequência e duração de julho de 2010, janeiro, junho, julho, agosto e setembro de

2011, para maior aproximação da realidade das mulheres, em todos os aspectos.

O caráter etnográfico da pesquisa exigiu a ida a campo com a utilização dos

seguintes instrumentos: caderno de campo, gravador, máquina fotográfica e um breve roteiro

com questões semiestruturadas.

É importante ressaltar que embora a comunidade das Onze Negras já tenha sido

identificada na demarcação do censo da Fundação Palmares, ela ainda não foi reconhecida

com a titulação e definição de suas terras. No início da pesquisa, as moradoras e os moradores

a designaram externamente como “Comunidade Quilombola Rural”, embora a maioria ainda

não se reconheça como quilombolas. Pôde-se constatar essa questão na experiência em

campo. A maioria dos que habitam a localidade ainda não visualizava a possibilidade de

utilização da identidade quilombola, fomentada por meio da Constituição de 1988, a qual

determina, em seu Artigo 68, Do Ato das Disposições Transitórias, o reconhecimento e a

titulação das chamadas “terras remanescentes de quilombos”.

Percebe-se que o Estado brasileiro avançou juridicamente na luta em prol das

comunidades de quilombos. Porém, não tem assegurado para esses sujeitos que possuem

histórias demarcadas em comunidades negras rurais o reconhecimento de sua identidade

étnica, voltada para um sentido político. Poucos, na região, já tinham ouvido a expressão

quilombo, enquanto conceito jurídico e político ou qualquer derivação dessa nomenclatura,

como quilombola ou remanescentes de quilombos.

Foi durante o período de mapeamento da Fundação Palmares, momentos de

formação e em reunião com representantes de outras comunidades que as lideranças e alguns

moradores da comunidade das Onze Negras descobriram que eram remanescentes de

19

quilombos, ao recordar e fazer relações ao seu passado com a nomenclatura clássica de

quilombos. Porém, algumas pessoas de fora da comunidade consideram que esse grupo possui

determinadas especificidades, que fazem com que ele seja considerado de uma forma especial

na comunidade. Em respeito à comunidade quilombola, à articulação estadual e ao

movimento negro organizado, nesta dissertação utilizaremos a expressão comunidades

quilombolas.

Este trabalho está subdividido em três capítulos. O primeiro traz uma breve

retrospectiva da história dos quilombos, desde a origem do nome até os conceitos

contemporâneos – com base em autores como Munanga (1995/1996), Reis (1996), Siqueira

(2005) e Flávio Gomes (2006), que vem se aprofundando nesta temática –, além de uma

apresentação da história do Quilombo das Onze Negras, com a participação das mulheres em

sua reconstituição, por meio dos relatos orais. O segundo capítulo busca dar visibilidade às

contribuições das mulheres afrodescendentes na história dos quilombos, especialmente na

comunidade quilombola a que nos referimos nesta pesquisa, destacando as formas de

resistência e a fé nos antepassados. No terceiro capítulo, destaco a trajetória educacional das

quatro quilombolas, através de seus relatos orais, partindo de suas histórias de vida:

explicando como decorreu seu processo educativo dentro e fora do Quilombo e como

ocorreram as conquistas de políticas educacionais para a comunidade quilombola.

A relevância deste trabalho está em vislumbrar um repensar das políticas públicas

educacionais voltadas para a população quilombola. Por outro lado, no campo social, busca

desmistificar os estigmas criados em relação às lutas das mulheres negras e dar visibilidade à

sua participação na sociedade, como protagonistas, ressaltando as suas contribuições ao longo

da história da população brasileira. Entendo a academia como um dos espaços de

reconstrução e reformulação de saberes, onde podem ser fomentados passos preliminares na

reelaboração de políticas públicas educacionais que incluam o diferente como agente de

intervenção.

20

CAPÍTULO I – QUILOMBOS NO BRASIL: TRAJETÓRIA HISTÓRICA

“Cada pedaço de chão, cada pedra fincada, um pedaço de mim, o povo

negro ajudou a construir o Brasil”.

Paulo Vaz e Cissa15

No processo de construção do nosso país, um elemento de fundamental importância é

a presença do povo de origem africana, que, como diz o autor da música, em cada pedaço de

chão de praticamente todo o solo brasileiro existe a presença dos africanos e sua

descendência: são homens e mulheres que, com sua força e com seus ventres, geraram e

alimentaram esta nação.

Neste capítulo, perceberemos como e de onde vem essa força que interfere na

formação do povo brasileiro, tendo como objetivo apresentar uma reflexão sobre a origem da

palavra quilombo, no decorrer da formação da história brasileira, em uma perspectiva de

aproximação do seu sentido atual, destacando o significado e a importância no cenário

brasileiro, assim como as mudanças que vão ocorrendo em torno de sua definição no contexto

histórico, político, social e cultural. Nesta perspectiva, destaca-se o Quilombo das Onze

Negras do Cabo de Santo Agostinho, em seu percurso de constituição. Citaremos a

historiografia dos quilombos de referência no Nordeste, para que se perceba a dimensão dessa

organização e estruturação de um modelo de sociedade. Os quilombos têm sido concebidos

sob a perspectiva de normas, considerando, porém, as mudanças que vão ocorrendo no

decorrer da história. Dessa forma, entende-se que é fundamental dialogar com os estudiosos

da área, levando em consideração a sabedoria da população pesquisada por meio da memória,

das experiências vividas por seus antepassados na formação do quilombo.

1.1 – Quilombos: reflexão sobre suas origens

Para uma aproximação da história dos quilombos no Brasil, é necessário fazer uma

breve retrospectiva com base em escritos de historiadores e de antropólogos que trazem

consigo a consciência de que os quilombos têm a sua origem na África e no processo de

15

Paulo Vaz e Cissa, compositores e cantores do bloco afro Ilê Aiyê – Salvador (BA), na música “Herança

Banto”.

21

emancipação no mundo moderno, a partir de sua criação no território brasileiro, como

descreve Reis (1996, p. 9):

A escravidão nas Américas consumiu cerca de 15 milhões de homens e mulheres

arrancados de suas terras. O tráfico de escravos através do Atlântico foi um dos

grandes empreendimentos comerciais e culturais que marcam a formação do mundo

moderno e a criação de um sistema econômico mundial. A participação do Brasil

nessa trágica aventura foi enorme. Para o Brasil, estima-se que vieram perto de 40%

dos escravos africanos.

A reflexão do autor é pertinente, pois o Brasil foi constituído no período da

acumulação primitiva do capital, utilizando a força de trabalho dos escravizados. Através do

tráfico, tentaram desumanizar os africanos, negando assim a sua existência e a sua história.

Nesse contexto, é necessário compreender a origem da palavra quilombo:

O quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de língua banto

(kilombo, aportuguesado: quilombo). Sua presença e seu significado no Brasil têm a

ver com alguns ramos desses povos bantus, cujos membros foram trazidos e

escravizados nessa terra. Trata-se dos grupos lunda, ovimbundu, mbundu, kongo,

imbangala, etc., cujos territórios se dividem entre Angola e Zaire. (MUNANGA,

1996, p. 58)

Nesse raciocínio, Munanga (1996) relembra que a palavra quilombo tem a conotação

de uma organização de pessoas abertas a todos, sem distinção de filiação e linhagem, nas

quais seus membros eram preparados por meio de rituais, tornando-se guerreiros. Recuperar a

origem da palavra nos faz perceber a forte ligação entre o Brasil e a África, afirmando a

reconstituição do quilombo para intervir no processo de escravidão e oposição à estrutura

escravocrata. Na afirmação, o quilombo organizado é uma instituição transcultural, que

acolhe as contribuições das diversas culturas, e sua estrutura foi transportada para o Brasil.

Dessa forma, nos séculos XVI e XVII, para o povo mundombe, de língua umbundu,

próximo de Benguelê, a palavra quilombo significava campo de iniciação, como também nos

explica Munanga (1996, p. 63):

A iniciação, além de conferir-lhes forças específicas e qualidades dos grandes

guerreiros, tinha a função de unificá-los e integrá-los ritualmente, tendo em vista que

foram recrutados das linhagens estrangeiras ao grupo de origem. Como instituição

centralizada, o quilombo era liderado por um guerreiro entre guerreiros, um chefe

intransigente dentro da rigidez da disciplina militar.

Ao analisarmos a explicação do autor, percebemos que os quilombos brasileiros tem,

como fonte inspiradora, os quilombos africanos, formando outra estrutura política na qual

poderia se encontrar todos os oprimidos. A revolta levou esse povo a se organizar para fugir

das senzalas e campos de plantações, ocupando parte do território brasileiro, especialmente os

lugares longínquos e de difícil acesso, semelhante ao modelo africano. Os quilombos

22

tornavam-se, assim, uma espécie de campo de iniciação e resistência, espaço aberto a todos os

explorados da sociedade, estabelecendo, desse modo, um modelo de democracia plurirracial

que o Brasil ainda está buscando. Munanga (1996, p. 1963) destaca o desprendimento ao

exclusivismo social dos escravizados, africanos e seus descendentes:

Com efeito, os escravizados africanos e seus descendentes nunca ficaram presos aos

modelos ideológicos excludentes. Suas práticas e estratégias desenvolveram-se

dentro do modelo transcultural, com o objetivo de formar identidades pessoais ricas

e estáveis que não podiam estruturar-se unicamente dentro dos limites da cultura.

É importante perceber que os africanos traziam consigo um modelo de sociedade na

qual o diferente se tornava parte de um coletivo, sem que necessariamente perdesse as suas

raízes e os seus valores. Pelo contrário, essa concepção de quilombo se torna um elo

fortalecedor que ampliava as possibilidades de uma maior intervenção no processo

escravocrata. O que fez o diferencial, nesse caso, foi o conjunto de estratégias utilizadas para a

organização do espaço de resistência que se formava a partir das experiências de luta dos

africanos e seus descendentes, sendo que, segundo Munanga, os quilombos brasileiros são a

primeira referência de um modelo de sociedade que inclui e exercita a interculturalidade.

Tiveram uma abertura externa em duplo sentido para dar e receber influências

culturais de outras comunidades sem abrir mão de sua existência enquanto cultura

distinta, e sem desrespeitar o que havia em comum entre esses homens. Visavam à

formação de identidades abertas, produzidas pela comunicação incessante com o

outro e não identidades fechadas por barricadas culturais que excluem o outro.

(1996, p. 63)

No entanto, observa-se como é forte a resistência em manter as suas origens. Mas,

permanecendo abertos a outras culturas, na perspectiva de construção do novo, entenderam

que a partir do momento em que se dispõe a acolher o diferente, intensificam-se as ações e a

expansão dos quilombos, praticamente em todo o território brasileiro, com características das

guerreiras e guerreiros africanos espalhados pelo Brasil.

Ao compreender a origem da palavra quilombo, faz-se necessário perceber a

complexidade de entendimento a respeito do conceito de quilombo ao longo da história, da

mesma forma o de sua organização política e social, no Brasil:

O quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano reconstruído

pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implementação de

uma outra estrutura política na qual se encontraram todos os oprimidos.

Escravizados, revoltados, organizaram-se para fugir das senzalas e das plantações, e

ocuparam partes dos territórios brasileiros não povoados, geralmente de difícil

acesso. (MUNANGA, 1996, p. 63)

De acordo com as reflexões anteriores, a forma de se organizar para lutar por sua

liberdade tem como exemplo a estrutura africana, ou seja, é uma maneira de apropriação dos

23

campos de iniciação e formação dos jovens guerreiros, como foi destacado anteriormente pelo

autor, mas é também um lugar político, do ponto de vista da organização, pensando na

sobrevivência e expectativa de se desenvolver a coletividade:

Não há como negar a presença, na liderança desses movimentos de fuga

organizados, de indivíduos escravizados oriundos da região bantu, em especial de

Angola, onde foi desenvolvido o quilombo. Apesar de o quilombo ser um modelo

banto, creio eu que, ao unir africanos de outras áreas culturais e outros descontentes

não africanos, ele teria recebido influências diversas, daí seu caráter transcultural.

(MUNANGA, 1996, p. 63)

A diversidade cultural retratada pelo autor nos faz compreender como a

transculturação é um dado fundamental da cultura afro-brasileira. Isso nos leva a perceber que

os africanos e os seus descendentes não ficaram presos aos modelos ideológicos excludentes e

fortaleceram, assim, as suas identidades na coletividade. Esses são elementos fundamentais

para se compreender a origem dos quilombos, assim como a sua forma de organização no

Brasil.

Nas reflexões de Reis, podemos observar que os estudos sistemáticos afro-brasileiros

sobre esta temática surgiram no Brasil a partir dos anos de 1930. As correntes de interpretação

a respeito dos quilombos e os vários vieses defendidos por estudiosos são fundamentais para

que seja compreendida a afirmação de Reis (1996, p. 11), que destaca: “a organização social

dos quilombos era identificada a um esforço ‘contra-aculturativo’, uma resistência à

‘aculturação’ europeia a quem eram submetidos os escravos nas senzalas”. Este autor

continua explicando as demais correntes, ressaltando a visão do quilombo como um projeto

restauracionista, no sentido de que os fugitivos desejaram implantar a África neste lado do

Atlântico.

Alguns estudos mostram que os africanos atuaram nessa dimensão nos quilombos na

época da colonização portuguesa e mesmo na fase de pós-independência e constituição da

nação brasileira. É importante destacar a formação de identidade e a comunicação incessante

entre eles na relação de convivência, como prosseguem na mesma ideia Reis e Gomes (1996),

ao refletirem que as trocas culturais e as alianças sociais foram realizadas com intensidade

entre os próprios africanos, oriundos de diversas regiões da África. Mas estes autores

destacam que, além destas trocas entre africanos de diferentes origens, surgiram novas

relações estabelecidas com os habitantes locais: negros e mestiços aqui nascidos, brancos e

índios. E é justamente para essa nova forma de se constituir culturas e relações sociais que os

autores chamam atenção:

24

É sobretudo para esse processo de construção de novas instituições culturais e

relações sociais que se devem voltar os estudiosos, até para descobrir por que

quilombolas e escravos em geral escolheram manter certos aspectos de suas origens

africanas e não outros e, assim ao mesmo tempo que africanizaram seu novo mundo,

renovavam o que da velha África conseguiram carregar consigo. (REIS e GOMES,

1996, p. 12)

Sendo assim, as análises de historiadores e de antropólogos, entre outros estudiosos

do tema, nas diversas formas de interpretar os quilombos, destacam que neles se constitui uma

nova sociedade, pela qual a interculturalidade é entendida como um dos pontos de partida na

busca do objetivo de se viver coletivamente e em liberdade:

Para a criação desta nova sociedade, de certo contribuíram fundamentalmente

instituições e, sobretudo, visões de mundo trazidas pelos africanos, os quais não

eram tábula rasa sobre a qual senhor, governo e Igreja coloniais inscreviam seus

desejos de dominação. As trocas culturais e as alianças sociais foram feitas

intensamente entre os próprios africanos, oriundos das diversas regiões da África,

além, é claro, daquelas nascidas das relações que desenvolveram com os habitantes

locais, negros e mestiços aqui nascidos, brancos e índios. (REIS, 1996, p. 12)

Reis adverte que, ao estudar quilombos, não se deve manter uma visão restrita, embora

haja uma inclinação historiográfica a considerar a resistência dos povos africanos e seus

descendentes nos quilombos como se fosse apenas a negação ao regime do cativeiro. Nesse

sentido, tanto as reflexões de Reis (1996), como as análises de Lurdes Siqueira (1995) são as

que mais se aproximam do novo pensar quilombos em dimensões mais amplas. Quanto ao seu

sentido político e cultural, Siqueira (1995, p. 3) considera que:

Os Quilombos representam uma das maiores expressões de luta organizada no Brasil

em resistência ao sistema escravocrata ao sistema colonial-escravista, atuando sobre

questões estruturais, em diferentes momentos histórico-culturais do país, sob a

inspiração, liderança e orientação político-ideológica de africanos escravizados e de

seus descendentes africanos nascidos no Brasil.

As representações citadas pela autora são pertinentes por destacarem os quilombos

como fontes inspiradoras para os homens e mulheres que neles viveram naquela época e que

permanecem ao longo dos anos. Percebe-se, no entanto, a necessidade de evidenciar as

colocações a respeito dos conceitos de quilombo dos autores citados, pois trazem uma

reflexão que não é apenas o enfatizar com base nos séculos passados, limitando a identificar

os quilombos como uma aglomeração de fugitivos ou um lugar de refúgio.

Neste contexto de entendimento do que são os quilombos no Brasil, o Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra, 2011), órgão ligado ao Ministério da

Reforma Agrária, que tem como objetivo acompanhar as políticas agrárias, afirma, em

documentos de 2011:

25

As comunidades quilombolas são grupos étnicos – predominantemente constituídos

pela população negra rural ou urbana –, que se autodefinem a partir das relações

com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas

culturais próprias. Estima-se que em todo o País existam mais de três mil

comunidades quilombolas.

Essa conceituação do Incra sintetiza os escritos anteriores, partindo de uma visão

moderna que se aproxima das afirmações das lideranças e de teóricos negros atuais como, por

exemplo, o entendimento de Abdias Nascimento (1980), em seu livro “O Quilombismo”. Para

Nascimento, quilombo é um movimento amplo e contínuo, tendo como características

importantes dimensões como as vivências dos africanos que não se submetiam a toda forma

de exploração e à violência do sistema colonial; as formas associativas de criar novos

espaços; a organização socioeconômica e política adequada à sua realidade e a sustentação da

continuidade africana por meio dos grupos genuínos de resistência. É importante salientar que

os militantes negros, nos anos de1930, já se inspiravam nos exemplos de luta e formas de

organização, a exemplo da Frente Negra Brasileira. E é nesse momento que a reflexão sobre o

quilombo ganha popularidade, conquistando espaço de reflexão acadêmica a partir das

décadas de 1950 e 1960.

É importante observar essas mudanças no entendimento de quilombo, que, aos

poucos, vão se aproximando das comunidades quilombolas:

Nesses novos estudos, os quilombos não são mais vistos como grupos que surgiram

genuinamente através da resistência que os negros estabeleceram no período da

abolição. Os estudiosos dessa temática costumam apontar diversas possibilidades

para explicar a origem dos quilombos contemporâneos. (SANTOS 2008, p. 156)

Dentro dessa nova perspectiva, tanto o movimento negro quanto os estudiosos de

diversas áreas no Brasil têm desenvolvido pesquisas sobre quilombo e, aos poucos, vão

fazendo surgir várias outras terminologias para referenciá-lo: comunidades negras rurais;

terras de pretos; remanescentes de comunidades de quilombos e comunidades remanescentes

de quilombos. Atualmente, é comum escutar as expressões que identificam os habitantes dos

quilombos como quilombolas ou remanescentes. São terminações que trazem uma conotação

de diversos contextos e análises, conforme enfatiza Santos (2008, p. 4) “Falar dos quilombos

e dos quilombolas no atual contexto é, portanto, falar de uma luta política e,

consequentemente, uma reflexão científica em processo de construção”.

De fato, é a partir do entendimento de luta e conquista da terra dos últimos anos que

o movimento negro e as organizações da sociedade civil tem interferido junto ao governo

brasileiro para que haja o reconhecimento das áreas quilombolas, o que só ocorreu

26

oficialmente na Constituição Federal do Brasil de 1988, Art. 68: “Aos remanescentes das

comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade

definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

O artigo da Constituição Federal de 1988 delimita espaço, propõe as considerações

aos verdadeiros proprietários e amplia o entendimento e desvincula o termo quilombo dos

conceitos da virada do século XIX. Mas é importante observar que, para a efetivação do

direito à terra pelo texto constitucional, foi necessária a intervenção do movimento negro, por

meio da sensibilização, junto aos órgãos públicos municipais, estaduais e federais. Ressalta-

se, ainda, que houve a intervenção do movimento negro para a assinatura o decreto nº

4.887/2003, pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que devolvia à população quilombola

o direito a autoatribuição como “único critério para a identificação das comunidades

quilombolas”, com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Nessa convenção está presente o direito de autodeterminação dos povos indígenas, tribais e,

ainda de acordo com o Decreto, que regulamenta o procedimento fundiário das áreas

quilombolas:

São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas

para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. (OIT, 2008)

Nesse esforço de consolidação de direitos, e dentro do quadro político com os quais

os quilombos estão se relacionando na atualidade, compreendem-se as diversas formas

particulares de se recuperar a identidade positiva da população quilombola. A equipe do

Centro Cultural Luiz Freire (2011) faz uma reflexão que sintetiza o entendimento de

quilombo, afirmando que:

Atualmente, o conceito de quilombola vai muito além de descendentes de escravos

fugidos. Essa situação fez com que a palavra quilombo passasse por uma mudança

de significado para que pudesse abarcar os diferentes contextos de posse de terras

por populações predominantes negras no País. O termo quilombo afastou-se da

concepção vinculada à imagem e modelo implantado por Zumbi em Palmares e

consolidou-se no âmbito da antropologia.

É também uma forma de intervir nas concepções das elites fundiárias e das grandes

indústrias que se apropriam do conceito clássico de quilombos, relacionando a origem desses

grupos com visões enraizadas ao passado da escravidão, com o intuito de negar as lutas das

atuais comunidades quilombolas. Para os grandes latifundiários é interessante pensar que as

atuais comunidades negras rurais nascem através da “ordem natural da divisão espacial”

(CARRIL, 1995. p. 6).

27

Para Ilka Boaventura, é interessante salientar que o conceito de quilombo não é uma

categoria construída indiferentemente aos projetos políticos, mas um espaço no qual a

condição de ser quilombola sempre esteve ligada às expectativas de ideologias políticas das

épocas:

Na tradição popular no Brasil há muitas variações no signficado da palavra

quilombo, ora associado a um lugar (“quilombo era um estabalecimento singular”),

ora a um povo que vive neste lugar (“às vária etnias que o compõem”) ou a

manifestações populares (“festa de rua”). A vastidão de significados, como

concluem vários estudiosos da questão, favorece o seu uso para expressar uma

grande quantidade de experiências. (BOAVENTURA, 2000, p. 333)

Os conceitos e denominações em relação ao quilombo vão sendo alterados conforme

as diferentes regiões do país, segundo Lurdes Siqueira (1995). Existem ainda grupos ou

organizações populares que se intitulam quilombos, com o objetivo de espelhar-se nas

experiências de articulação das comunidades quilombolas. Outros espaços importantes de

serem aqui ressaltados são as comunidades religiosas de matriz africana, denominadas como

comunidades tradicionais, como são os terreiros de Xangô (terminologia dos terreiros de

Pernambuco), Candomblé, as casas de Umbanda, Xambá, e demais que, em sua maioria,

também são reconhecidas como comunidades quilombolas.

Temos ainda os quilombos de áreas urbanas, que buscam o reconhecimento de sua

identidade e a segurança jurídica de seu direito à propriedade para romper o ciclo da

segregação espacial, prática naturalizada que nega aos setores socialmente diferenciados,

como negros, índios e pobres, o direito de viver em determinados espaços urbanos,

especialmente os do centro, que são dotados de infraestrutura.

A segregação espacial é um meio de reafirmar a hierarquia de valores que estrutura a

sociedade brasileira e impede o acesso de determinados grupos aos benefícios e

oportunidades da urbanização. Os quilombos urbanos são formados, principalmente,

por grupos que viviam ao redor de grandes cidades e foram englobados pelo

crescimento urbano dos municípios, além de populações que habitavam áreas

valorizadas nas cidades e que, a partir do século XX, foram obrigadas a se deslocar

para áreas de periferia para dar lugar a projetos de revitalização e embelezamento.

(CARRIL, 1995, p. 4)

Nesse contexto, é possível observamos que as comunidades passam a constituir uma

rede de solidariedade, procuram vencer as desigualdades sem abandonar sua identidade étnica

e buscam, de forma cada vez mais intensa, o reconhecimento como quilombo urbano em sua

inserção nas cidades, como explica Carril (1995, p.7). O quilombo urbano pode ser

identificado de várias formas, porém, é a identificação territorial a base para a formação da

28

identidade local. Para tal identificação, torna-se fundamental que o local tenha sua história

divulgada e reconhecida pela sociedade; a partir dessa identificação, é possível alavancar

ações de melhoria. Nas comunidades quilombolas, é preciso destacar que há uma luta

permanente dos grupos pela garantia e preservação de seu território, para consolidar sua

história de resistência e autonomia, além das lutas pelo direito de ter acesso a serviços

públicos.

1.2 – Livre para Construir: quilombos no Brasil

Hoje as comunidades quilombolas estão espalhadas por quase todo o país, com

exceção do Acre, Roraima e Distrito Federal, e são territórios de resistência cultural e

religiosa, com uma trajetória histórica própria. No último levantamento da Fundação Cultural

Palmares, do Ministério da Cultura, foram mapeadas 3.524 dessas comunidades, sendo que,

de acordo com o movimento negro, o número total de comunidades remanescentes de

quilombos pode chegar a cinco mil, concentrados nas diferentes regiõe do país. Pelo mapa

apresentado sobre a localização das comunidades quilombolas no Brasil, percebe-se que a sua

maioria está concentrada na região nordestina.

Mapa 1 – Quilombos no Brasil

Fonte: Google. Pesquisado em 03/07/2011.

Os quilombos têm sido estudados por vários pesquisadores em diversas regiões do

país, como, por exemplo, os quilombos de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e tantos

29

outros espalhados por todo o território brasileiro. Embora o mapa acima não destaque a

existentes dos quilombos em algumas regiões do Brasil, o quadro I, logo mais abaixo, faz um

importante levantamento de todo o país. Porém, é na região nordestina que vamos localizar

uma grande concentração. Um dos mais antigos é o Quilombo dos Palmares, localizado na

Serra da Barriga, no município de União dos Palmares, em Alagoas. Esse quilombo, que data

do século XVII, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(Iphan) em 1986, sendo considerado o mais importante e duradouro mocambo da América.

Segundo Reis (1996), a maioria dos seus habitantes veio da África, particularmente dos atuais

países africanos Angola e Zaire (atual República Democrática do Congo). A Fundação

Palmares (2011) considera:

O mais emblemático dos quilombos formados no período colonial foi o Quilombo

dos Palmares, que localizava-se na serra da Barriga, região hoje pertencente ao

estado de Alagoas. Palmares resistiu por mais de um século e o seu mito

transformou-se em moderno símbolo brasileiro da resistência do africano à

escravatura.

Palmares era considerado o maior quilombo das Américas, com extensão de 27

Km², formado por florestas tropicais e cercado de rios. Ocupa um espaço de referência e

reverência na história da população afro-brasileira, especialmente os que hoje lutam para se

manter em suas terras, pois é da terra que esse povo tira o sustento. Nessa perspectiva de

conquista, a Fundação Palmares (2011) explica que:

No período de redemocratização do Brasil, o Movimento Negro e lideranças das

comunidades remanescentes de quilombos intensificaram a busca por direitos de

cidadania. Envolvidos no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988,

asseguraram o direito à preservação de sua cultura e identidade, bem como o direito

à titulação das terras ocupadas por gerações e gerações de homens e mulheres que se

contrapuseram ao regime escravocrata e constituíram um novo modelo de sociedade

e de relação social.

A formação das comunidades quilombolas no Nordeste e nas demais regiões do país

foi possível pela luta e conquista da terra. A autodefinição, tendo como base as relações com

o solo, onde se constituiu uma identidade, a ancestralidade, as práticas culturais e a vida das

quilombolas, como relembra Dona Conceição, em depoimento registrado em 2011:

A gente vivia só da terra mesmo, porque papai plantava cana e, na noite de lua,

papai fazia “matumbo” (um tipo de buraco na terra). Tem as pequenininhas, que era

cova, e as grandonas, que era matumbo, onde coloca oito rebolo (manivas ou

sementes) numa só cova. Ele cavava à noite porque não tinha tempo pelo dia. Aí

plantava batata, cana, macaxeira, inhame, melancia. Mamãe tinha mania de plantar

na barriga das covas; papai tinha o cuidado na hora de limpar para não arrancar o

que tinha sido plantado por mamãe. Ela plantava coentro, batata e ajeitava com mais

paciência. Eles plantavam tudinho, e com isso nós tínhamos essa relação com a

natureza e queríamos também plantar. Já quando papai ficou mais velho e não podia

30

fazer, a gente ia e cortava os espinhos. Papai se perguntava se estava certo. (DONA

CONCEIÇÃO, entrevista em Julho 2011)

O relacionamento com a terra ocorre de maneira intrínseca à identidade, como forma

de referência, e com a história de vida dos quilombolas. A terra faz parte da vida das mulheres

que estavam ali, plantando junto, como relata dona Conceição, que aprendeu com o pai a

respeitar e a cultivar a terra. A relação com o solo tem a ver com a força – axé –, que na

religiosidade de matriz africana é fonte de sabedoria, fortalecimento e reencontro com os

antepassados. Local de preservação do ser, alimento da luta, da acolhida ao diferente,

independente de etnias, todos em situações semelhantes e tendo como objetivo principal a

vida em liberdade e em comunidade:

Em várias situações, escravos fugiram, formaram quilombos, promoveram

insurreições e revoltas, além de experiências multifacetadas, de protestos cotidianos,

nas quais incluíam formas de sociabilidade e cultura material. Procuraram,

fundamentalmente, reorganizar e transformar os mundos em que viviam. (GOMES,

2006, p. 248)

Esse desejo de mudança e de liberdade fortalecia negros e negras e, ao mesmo

tempo, desviava o poder dos senhores e das autoridades públicas que procuravam reprimí-los.

A contrução dos quilombos era um processo de intervenção ampla, por desestruturar as

formas de poder das autoridades, e dava a possibilidade de ir ao reencontro com os que

ficaram na África, por meio das lembranças, experiências e repasse de saberes como, por

exemplo, nas expressões religiosas, seus ritos e formas de identificação. Essa recriação

perdura até os dias atuais, e em diversos momentos do cotidiano da população negra,

especialmente no dia 20 de novembro, quando toda a comunidade negra faz homenagens ao

líder palmarino e à luta política na figura de Zumbi dos Palmares, liderança reconhecida como

político e exemplo de luta e resistência, que administrou, ao lado de mulheres e homens, por

quase um século, o quilombo palmarino.

O quilombo tradicional tinha várias estratégias de sobrevivência, buscando formas de

trabalho na plantação, e com negociações de seus produtos no comércio da cidade, sendo

muito comum a troca de produtos entre eles, e nos negócios com os comerciantes dos

arredores, como no caso do Quilombo dos Palmares:

Os quilombos, por exemplo, disputavam ou negociavam com os banqueiros o

controle das vias fluviais da área, fundamentais para o escoamento dos produtos da

Corte e outros mercados. Por meio de taberneiros que serviam de intermediários ou

empregadores, os fugitivos extraíam a lenha de mangues que ia aquecer os fornos da

capital. (REIS, 1996)

31

A observação do autor é pertinente, pois nos faz perceber o poder administrativo dos

quilombolas e suas estratégias de inserção na econômia colonial, assim como na sua

estruturação. No mesmo contexto, Clóvis Moura ressalta a resistência desse povo:

Palmares resistiu a todas as expedições punitivas de 1630 até 1695, fato que

demonstra cabalmente a sua capacidade de resistência e o seu poderio militar. Foi

destruída a república, mas somente depois de ter escrito a epopeia do seu exemplo: a

maior resistência – social, militar, econômica e cultural – ao sistema escravista.

(MOURA, 1981, p. 48)

É interessante destacar, ainda, que houveram vários quilombos no país. Entre eles,

destacam-se os da região Nordeste, além de Palmares, que foi e continua sendo um marco na

história do Brasil, onde se encontra o maior índice da população de afrodescendentes,

conforme os dados da Fundação Palmares citados abaixo:

Quadro 1 – Levantamento dos Quilombos no Brasil

Estados

2001

1

2010

2009

2008

2007

2006

2005

2004

Total

Certificados

AL 1 14 27 1 3 8 10 0 64

AM 0 0 0 0 0 1 0 0 1

AP 1 11 2 0 0 7 4 0 25

BA 33 48 21 36 28 122 62 30 380

CE 2 17 3 1 2 7 5 2 28

ES 0 2 0 0 0 20 6 1 29

GO 0 0 3 3 3 9 3 1 22

MA 23 50 6 44 29 25 47 157 381

MG 10 21 7 16 12 41 29 9 145

MS 2 1 0 1 2 2 11 0 19

MT 0 2 1 0 5 1 55 0 65

PA 2 10 0 0 20 36 8 22 98

PB 2 2 4 3 1 14 7 1 34

PE 3 6 3 11 29 11 45 5 104

PI 0 4 5 0 2 22 7 2 42

PR 0 0 0 0 4 24 6 0 34

RJ 2 2 2 2 1 6 5 3 23

RN 1 3 2 0 5 6 2 2 21

RO 0 0 0 0 1 3 2 1 7

RS 2 33 7 6 9 15 5 9 86

SC 0 2 3 0 2 1 0 3 11

SE 5 0 0 0 1 8 4 2 20

SP 0 0 0 3 10 15 15 1 44

TO 0 8 3 1 0 13 1 1 27

TOTAL 89 226 99 128 160 417 340 252 1.711

Fonte: Fundação Palmares. Pesquisado em 03/07/2011.

O Nordeste brasileiro possui um solo favorável ao plantio da cana-de-açúcar e do

algodão, produtos que sustentavam a economia desde os primeiros séculos de colonização

32

europeia. A economia se constituiu com base na mão de obra africana, apoiando-se na

exploração do trabalhador negro. Portanto, são os afro-brasileiros, com seu vasto

conhecimento no cultivo da terra, articulações e formas de coletividade, que fazem surgir no

país o primeiro modelo de sociedade livre e intercultural:

Vivendo num regime comunitário, organizado à base da agricultura e da criação de

animais de subsistência, Palmares era um reduto de franco florescimento, apesar da

ameaça permanente que sobre ele pairava. (MOURA, 1981, p. 40)

A convivência coletiva é um marco dos quilombos, como afirma Moura (1981) ao se

referir a Palmares e demais comunidades quilombolas que se destacaram em sua formação,

como as do Maranhão, da Bahia e de Pernambuco, que foi e continua sendo um dos focos de

comunidades quilombolas. Foi o lugar em que surgiu Palmares, que posteriormente passou a

pertencer a Alagoas, conforme se verifica pelo mapa anteriormente apresentado. O Estado de

Pernambuco acolheu um número de cativos de origem africana que cresceu bastante naquela

capitania. Segundo os dados da Comissão Pró-Índio (2011), em 1584, 15 mil escravos

labutavam em, pelo menos, 50 engenhos. Esse número subiu para 20 mil escravos em 1600, e,

na metade do século XVII, a população escrava somava entre 33 a 50 mil pessoas.

Nas proximidades da capital pernambucana e na zona canavieira se instalaram vários

quilombos ou mocambos, como o conhecido Catucá ou Malunguinho, que sobreviveu as

revoltas que assolaram a região (REIS, 1996). Esse mocambo foi criado no período da

Revolução de 1817 por escravos africanos que haviam feito juntos a travessia do Atlântico,

portanto, malungos, daí a denominação de malunguinhos.

Pernambuco é também um estado que se destaca pela história de resistência à

escravidão na formação de quilombos. Foi em uma região situada na então Capitania

de Pernambuco que, entre o final do século XVI e início do século XVII, o famoso

quilombo de Palmares se formou. Posteriormente, já no século XIX, essa província

foi palco da formação do quilombo de Catucá, dessa vez em região localizada na

Zona da Mata próxima à capital. (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 2011)

Em áreas pernambucanas foram descobertos, ao longo da história, como afirma a

Comissão Pró-Índio, diversas comunidades quilombolas, como a de Conceição das Crioulas,

no sertão pernambucano, localizada no município de Salgueiro, a uma distância de 550

quilometros da cidade de Recife16

. Segundo a Comissão Pró-Índo (2011), esse quilombo foi

fundado no século XIX, com a chegada de seis mulheres que arrendaram as terras para o

16

Sobre o Quilombo de Conceição existem várias pesquisas. Entre elas, ressalto a dissertação de mestrado de

Maria Aparecida de Oliveira Sousa, As Mulheres da Comunidade de Conceição e suas Lutas: história escrita no

Feminino. Departamento de História. Programa de Pós-Graduação. Instituto de Ciências Humanas. Universidade

de Brasília, 2006.

33

trabalho de cultivo do algodão. Trata-se de um dos quilombos liderados por mulheres desde a

sua fundação até os dias atuais, na região do agreste pernambucano. Próximo à cidade de

Garanhus encontram-se as comunidades quilombolas Castainho, Timbó e outros quilombos,

que, segundo a Comissão Pró-Índio, foram formados após a destruição de Palmares. Em áreas

próximas ao litoral de Pernambuco encontra-se o Quilombo das Onze Negras do Cabo de

Santo Agostinho, que tem sua própria história, mas é também integrante dessa longa história

do Quilombo dos Palmares.

Mapa 2 – Localização dos Municípios de Pernambuco

Fonte: Google. Pesquisado em 03 jul. 2011.

O município do Cabo de Santo Agostinho localiza-se em área litorânea, que foi

ocupada por indígenas dos povos Caetés, em uma longa história, que se inicia antes da

chegada dos portugueses. Atuamente, na região do Cabo de Santo Agostinho está instalado

um dos mais importantes complexos industriais e portuários do país, o de Suape. Segundo os

dados da Prefeitura, além de sua importância econômica, trata-se de uma região de relevância

histórica para todo o Nordeste:

O patrimônio histórico e arquitetônico do município é significativo e representado

por velhos engenhos, edificações religiosas e fortes. Muito desse acervo encontra-se

em ruínas, como é o caso da Capela de São Francisco, antiga igreja do engenho

Trapiche, local onde nasceu o Conde da Boa Vista, em 1802. Em frente às ruínas da

Capela do Engenho Garapu, encontra-se um cruzeiro em alvenaria e pedra, com uma

cruz de madeira. A construção dessa capela é desde o século XVII, e o engenho ao

34

qual pertence foi um dos primeiros da freguesia do Cabo. Surgiu no século XVI e foi

confiscado pelos holandeses em 1637. (PREFEITURA MUNICIPAL DO CABO

DE SANTO AGOSTINHO, 2011)

O município integra a região administrativa denominada Região Metropolitana do

Recife, com uma população atual de 160.968 habitantes. É nesse município que vamos

encontrar o Quilombo das Onze Negras.

1.3 – Quilombo das Onze Negras, no Cabo de Santo Agostinho

A história da comunidade quilombola das Onze Negras foi o objeto de estudo pela

própria comunidade, resultando em um livro que relata a história do Quilombo. Essa

publicação, que foi fruto da articulação das mulheres quilombolas com os orgãos

governamentais do município, foi realizada pela Prefeitura Municipal do Cabo de Santo

Agostinho (PE), em 2007.

Em entrevista, Dona Fátima, da comunidade quilombola, expressa, por meio do seu

olhar, o quanto é significativo o fato de ter em mãos um livro contando a história de seu povo,

e que é fruto de sua luta junto às mulheres do Quilombo:

Este livro é uma forma da gente guardar a nossa história, repassar para nossos filhos,

netos, bisnetos e não deixar morrer. É um registrar nosso feito com a fala da gente,

somos um dos primeiros quilombos a ter sua história publicada pelas próprias

mulheres. (DONA FÁTIMA, entrevista em 17 de janeiro 2011)

A entrevistada segurava o livro como algo de grande importância. A firmeza da

pegada e o movimento de abraçar o livro transmitiram a sensação de que ela estava abraçando

a sua própria história, ali relatada: “A senhora já pensou? Uma história contada por nós em

um livro? É a certeza de que não vai se perder, porque está aqui escrito. E ainda mais: fomos

nós, mulheres, que lutamos por isso, é o sacrifício da gente junto aos orgãos públicos”

(DONA FÁTIMA, 17 de janeiro de 2011).

O livro ressaltado pela entrevistada, uma das principais fontes para se estudar a

comunidade das Onze Negras, revela que sua formação ocorreu nos anos de 1940, quando três

famílias migraram da capital e do interior de Pernambuco para o Cabo de Santo Agostinho,

em busca de trabalho nas terras da Usina Santo Inácio. As famílias, em sua maioria, vivem do

cultivo da cana-de-açucar e irrigação, nos trabalhos domésticos na casa do usineiro:

Nessa época já era disseminada a prática pelos usineiros de oferecer emprego à mão

de obra assalariada com aproveitamento sazonal. Contudo, os sálarios eram baixos,

os trabalhadores rurais explorados, pois não lhes eram garantido nenhum direito

trabalhista e a sua produção comercializada por um preço baixo no mercado. Além

35

disso, existia a exploração infantil, mão-de-obra não remunerada. (ONZE NEGRAS,

2007, p. 19)

É importante perceber como a história de exploração e opressão vai se perpetuando,

especialmente no que se refere ao trabalho infantil e à desvalorização do trabalhador rural. Os

parentes desses trabalhadores rurais enfatizam esse período como a experiência mais dura em

suas vidas. Desta forma, através da plantação de cana-de-açucar e da permanência

praticamente obrigatória no local, formou-se uma comunidade negra de ex-escravizados no

Cabo de Santo Agostinho, como descrevem os relatos no livro das Onze Negras (2007, p. 20):

Essa comunidade foi fundada no Engenho Trapiche, nas imediações onde hoje está

instalada a Ambev, indústria especializada na produção de bebida alcoólica. Essas

terras eram propriedade da Companhia de Revenda e Colonização-CRC, e eram

usadas pelo dono da Usina Santo Inácio de forma indevida, visto que o usineiro não

pagava ao Estado pela ocupação do solo.

Segundo os moradores mais antigos do Quilombo, como Dona Conceição, nessas

localidades também viviam funcionários e existia a casa grande, habitação dos proprietários

da usina. Na época da moagem da cana, os trabalhadores de outras usinas dos arredores do

Cabo de Santo Agostinho, que tinha sua economia centrada no desenvolvimento da

monocultura da cana-de-açucar, vinham em busca de emprego e moradia até o final da

moagem. Depois desse período, as famílias sobreviviam da pesca, do cultivo da terra, sem

energia elétrica e sem água encanada, e embora os trabalhadores fossem assalariados, não

tinham o direito de receber seu ordenado, pois os apontadores (administradores e fiscais)

repassavam o dinheiro para os donos dos barracões, obrigando as famílias a ficarem reféns

dos altos valores dos alimentos de seus estabalecimentos. Esses trabalhadores tinham como

meio de transporte apenas animais como o cavalo, o burro, o boi ou o jumento, cadeira e redes

para o socorro de doentes. (ONZE NEGRAS, 2007)

No decorrer da história desses trabalhadores e trabalhadoras, houveram casamentos,

dando origem às três famílias que fundaram o Quilombo: Sr. Manoel da Silva e Srª. Antônia

Maria da Silva, Sr. Paulino Luis da Silva e Srª. Antonieta Maria da Silva; Sr. Manoel Marques

da Silva e Srª. Severina Marques da Silva. Os descendentes dessas três primeiras famílias

moram no Engenho Trapiche17

por mais de trinta anos. E, atualmente, encontramos

descendentes diretos dessa primeira geração vivendo nesse local, como partilha conosco Dona

Conceição:

17

Engenho Trapiche é o nome dado às terras que ficam nas imediações do engenho, onde hoje se encontra o

Quilombo das Onze Negras e as instalações da Ambev, indústria especializada na produção de bebidas

alcoólicas.

36

Lembro que meu pai contava que a avó dele, minha bisavó, era angolana, e papai

dizia que ela não vestia roupa, vivia com um rabichinho (pequeno pedaço de pano),

com os peitos de fora. Quando chegava visita, papai dizia: “coloca uma roupa nela,

que hoje vem visita”. Vestiam um casaquinho nela, daqui a pouco ela dizia “não

quero isso não”, aí tirava o casaco. Era coisa que papai contava aos pouco, mas eu

pouco me importava quando papai falava isso. Se fosse hoje, é claro, eu teria

explorado. Foi depois disso que viemos relembrar que tínhamos descendentes

quilombolas. (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em Setembro de 2011)

Estas lembranças de Dona Conceição expressam uma maneira de nos fazer perceber

como esse povo preserva as suas histórias, sua cultura e suas terras. Foram tetemunhos como

esse que fizeram com que o Quilombo das Onze Negras fosse reconhecido pelos orgãos

federais.

Dona Conceição prossegue relatando como ocorreu a intervenção nas terras

quilombolas, a partir do surgimento da rodovia que liga a cidade de Recife ao Cabo de Santo

Agostinho, a BR 101.

Quando nós fomos morar ali, não existia a BR ainda! A BR surge quando fomos

morar lá em cima, próximo ao atual posto de gasolina, onde tem as bananeiras.

Inclusive, quando vieram para fazer a BR eles perguntaram a papai se ele queria

ficar ali próximo à pista, mas papai disse que não, pois tinha muitas crianças. Por

este motivo fizeram a nossa casa no Passarinho (nome do local), depois fomos morar

próximo da igreja. Eu vim de Recife tinha dois anos de idade. Como já falei,

morávamos ali bem na entrada do Quilombo, era a minha casa e a casa do avô de

Fátima, que era compadre de papai. Aí papai foi fazer uma casa de taipa mais pra

dentro; ao invés de ir para a cidade, ele se afastou. Foi quando fizeram todo o

planejamento da BR, primeiro era estrada de terra bem apiladinha (aterramento

plano). Foi bom porque indenizaram, papai recebeu o dinheiro da casa, porém

muitos não quiseram ficar por aqui. Papai, meu compadre, o pai e a mãe de Fátima

que moravam lá por trás da igreja, foi quem ficou. Tinha a casa de seu Paulino e

tinha a casa do Cabo, tinha a casa de seu Du, que era tio de Fátima, mais abaixo

tinha a casa de seu Joaquim, seu José. Depois foi que indenizou o pessoal para

morar aqui. Juntou todo esse pessoal e seu Neco do lote 7, seu Zé Luis, que por parte

de pai era tio de Fátima, aí cada um fez a sua casa. (DONA CONCEIÇÃO,

entrevista em Julho de 2011)

Esse cenário de resistência das famílias em permanecer no território nos remonta às

lutas de nossos antepassados. Dona Conceição prossegue:

Nós ficamos morando aqui, fomos os primeiros a chegar, papai, compadre Pedro e

seu Paulino, que morava com a mãe dele, do outro lado veio pra cá porque ele estava

de namoro com a comadre Toinha. Esses pegaram, cada um, um lote. Depois as

famílias foram crescendo, crescendo até tornar-se uma verdadeira cidade só de

familiares. (Janeiro de 2011)

Dona Fátima confirma esse relato de Dona Conceição, complementando:

Papai e os três irmãos dele, e meus avôs, disseram que queriam morar no engenho.

Isso aqui era uma moita só de mata virgem. Mata, mata mesmo. Fizeram uma

casinha de barro e ficaram morando, aí ficaram três lotistas. Papai e minha mãe

vieram para cá, os três irmãos, ainda garotinhos, cortando cana. Aí, pronto, com a

casinha de barro, papai casou e foi crescendo, crescendo. Era tudo casa de palha, não

tinha casa de alvenaria. (Setembro de 2011)

37

Nos relatos das mulheres, é possivel perceber que, com o avanço da cidade do Cabo

de Santo Agostinho – especialmente com o complexo industrial e o desenvolvimento

econômico na década de 1960 – e com a abertura de uma rodovia que dá acesso à capital,

Recife, cortando a área dos moradores, os trabalhadores e famíliares buscaram uma

negociação. Porém, foram obrigados a desocupar as terras da Companhia de Revenda e

Colonização, como registra o livro das Onze Negras (2007, p. 21): “Nesse processo de

desocupação, os moradores recebem uma indenização do governo do Estado, que poderia ser

realizada através do pagamento em dinheiro ou por meio da construção de uma casa para a

família no local que eles escolhessem”.

Embora com todos os problemas na estabilidade e estruturação, foi proposta a

retirada do local das famílias que ali moravam, mas os descendentes dessas três famílias

permaneceram lá. Tomaram a decisão de comprar para cada uma das famílias um lote e

escolheram uma área ainda nas imediações do Engenho Trapiche, mas que ficasse um pouco

distante da rodovia. Compraram o lote18

mais barato que encontraram, aproveitando o valor

da indenização, para construir as casas das famílias. Desse modo, a comunidade quilombola

das Onze Negras do Cabo de Santo Agostinho assegurou suas terras, se diferenciando das

histórias da maioria das comunidades existentes no país. Explica-se como ocorre a formação

do Quilombo nessa conjuntura específica, constituída pela transformação do processo a partir

da migração da população afro-brasileira e africana do interior do estado para a capital, tendo

como um dos motivos o complexo de indústrias no Cabo de Santo Agostinho. Esse contexto

explica a singularidade desse quilombo:

Um quilombo encravado entre engenhos de açúcar, bem no meio de um complexo

industrial, a pouco mais de uma hora de distância da capital pernambucana. A

comunidade das Onze Negras no município do Cabo de Santo Agostinho, Região

Metropolitana do Recife, tinha tudo para se transformar numa área urbana. Seus

membros, porém, preservam muitas tradições de seus ancestrais, além de resgatarem

manifestações artísticas e culturais do passado. (CENTRO CULTURAL LUIZ

FREIRE, 2011, p. 32)

A comunidade, no entanto, ainda não era reconhecida como Quilombo das Onze

Negras, pois, de acordo com o livro das Onze Negras (2007) a mesma recebe vários nomes,

como, por exemplo, Burrama, por causa da criança que não sabia falar corretamente o nome

do animal que não resistia à carga e caiu. A criança saía gritando “burrama morreu!”; burrama

era igual a “burra”. O segundo nome foi Pista Preta, usado devido ao piche, produto químico

18

Documentação como certidão de compra. Ver em Anexos.

38

ultilizado nas estradas e asfaltos. Só em 1999, com a fundação da AMPRUQUION, a

comunidade passa a ser reconhecida pelo nome de Onze Negras, com a intenção de

homenagear o time de futebol existente no Quilombo. É possível observar nos contatos com

as mulheres da comunidade o seu empenho na administração do Quilombo. Elas assumem a

liderança desde a fundação, assim como na legalização das terras, durante o processo de

reconhecimento. Como registra o livro, essa organização das mulheres vem de um processo

histórico:

A Comunidade Quilombola das Onze Negras, desde a sua fundação, há trinta e nove

anos, é liderada por mulheres. Essa liderança vem garantindo conquistas importantes

no âmbito da assistência social, educação e saúde para os remanescentes

quilombolas do Engenho Trapiche, localizado no Cabo de Santo Agostinho. Do

grupo pioneiro que fundou a Associação dos Moradores, Pequenos Produtores

Rurais e Quilombola Onze Negras do Engenho Trapiche – AMPRUQUION, quatro

mulheres faleceram, sendo substituídas por outras do mesmo núcleo familiar ou que

guardavam entre si alguma relação social. (ONZE NEGRAS, 2007. p. 27)

A forma como se organiza essa comunidade quilombola tem demonstrado possuir

alguns diferenciais. Primeiro, ser liderada por mulheres, algo que nos escritos dos

pesquisadores em relação à formação dos quilombos pouco se destaca. Segundo, o repasse das

lideranças de geração a geração, com um elo famíliar ou de convivência no Quilombo,

mostrando o fortalecimento e a resistência da continuidade da luta pelo coletivo. Neste

contexto, em diversas regiões, revivem o legado dos seus antepassados como reflete Siqueira

(2005, p. 38):

São núcleos vivos de iniciativa comunitária, identitária, sem perder de vista as

dinâmicas das transformações históricas-políticas-culturais, ocorridas no decurso de

tantos séculos, que essas tradições atravessam em tempos e espaços diferentes.

Segundo a publicação do livro das Onze Negras, ao longo das quatro décadas, muitas

coisas mudaram. O número de moradores vem aumentando, estimando-se, atualmente, a

existência de 486 famílias, sendo 32 idosos, 250 adultos, 250 adolescentes, 200 pré-

adolescentes e 65 crianças. Devido ao crescimento, a organização e as necessidades da

comunidade são diversas. Em relação aos aspectos socioeconômicos, as famílias vivem do

trabalho de pedreiros e domésticas, e sobrevivem, ainda, de programas e projetos de geração

de emprego e renda da prefeitura, além da agricultura familiar. Segundo Dona Fátima:

O Quilombo é reconhecido hoje graças à luta das mulheres que tiveram coragem de

deixar filhos, filhas e família para correr atrás, junto com outras quilombolas e

organizações. Era uma luta de todos, mas ainda tinha gente que não entendia e

interpretava com maldade. Mas a gente não esmorecia, ia em frente, até conseguir.

Trouxemos a Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadores e historiadores,

como aquele menino que é professor, José Bento, tudo pra dentro da nossa

comunidade. E, graças a Deus, o grande dia que foi quando chegou aqui a Fundação

39

Palmares, a pessoa da secretária das Políticas Públicas da Igualdade Racial, Drª

Denize, foi a maior alegria para todos nós. (DONA FÁTIMA, entrevista em Janeiro

de 2011)

Esse reconhecimento vai além da permanência na terra – solo consagrado pelo

esforço dos antepassados das três famílias – e da preservação da cultura, como reafirma:

O respeito aos antepassados também levou a localidade a conquistar a posse

definitiva das terras onde vivem seus moradores. Isso vai garantir maior qualidade

de vida e de oportunidades às proximas gerações de quilombolas. (CENTRO

CULTURAL LUIZ FREIRE, 2011, p. 32)

Mesmo sendo reconhecida, a comunidade quilombola das Onze Negras vem

sofrendo com a invasão dos proprietários das fábricas que estão nas proximidades do

Quilombo, chegando a prejudicar a saúde da população com o uso de matérias químicas e já

ocupando parte de suas terras.

Imagem I – Entrada do Quilombo: invasão da fábrica Novo Projeto

Área interditada pela Secretaria do Meio Ambiente (construção do galpão da fábrica). Quilombo das Onze

Negras. Foto: Maria José dos Santos (Janeiro de 2011).

A Imagem I retrata o estado da entrada do Quilombo, com as terras que foram

devastadas pela fábrica Novo Projeto19

, exatamente na rua que dá acesso à comunidade

quilombola, dificultando a entrada de veículos, o único meio de transporte que conduz os

19

Empresa Novo Projeto. Fábrica de espumas para colchões e móveis tubulares, instalada nas mediações do

Quilombo.

40

moradores até o centro do Cabo Santo Agostinho. Dona Conceição, moradora do local,

expressa a sua indignação diante dessa falta de respeito com a comunidade e relata o fato:

Saíram arrancando tudo e enterrando as árvores de macaíba, mangueira, azeitona, e

enterrando os canos de água, tanto que faltou água e ficamos sem energia elétrica,

porque os fios foram aterrados, prejudicando os nossos eletrodomésticos. (DONA

CONCEIÇÃO, entrevista em 20 de janeiro de 2011)

As mulheres da Associação da Comunidade Quilombola das Onze Negras, na pessoa

de Dona Fátima, recorreram ao Ministério Público de Pernambuco, que foi informado da

situação e tomou todas as providências cabíveis, a começar por embargar a obra. O Instituto

Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foi igualmente

informado e acionou seu corpo de fiscais para inspecionar a área e tomar as medidas de

proteção ambiental.

Essas lutas das quilombolas em prol das terras da comunidade e todo seu empenho

em resguardar este espaço demonstram que essas mulheres vivenciam o que Perico (2011)

chama de território. Em suas ações, elas destacam a organização em prol da comunidade

quilombola, em processos concretos que buscam alcançar os objetivos comuns, de forma que

tanto o espaço quanto seus componentes adquirem expressões territoriais, possibilitando que a

pertinência, a apropriação e o empoderamento sejam pontos de partida para uma mobilização

concreta. Tais ações trazem como consequências maior fundamentação em suas

reivindicações, asseguram sua identidade e suas heranças culturais.

Ao serem indagadas sobre o significado de quilombo, podemos entender o sentido do

pertencimento a um lugar especial, embora o termo seja para estas mulheres uma reflexão

muito recente:

Dona Conceição: Eu não sabia que eu era quilombola, aprendi que são os

moradores de quilombos e me orgulho das minhas origens. (19 de janeiro de 2011)

Dona Maria José: Até hoje, diante da situação em que estamos como quilombolas,

ainda falta muita coisa para ser reconhecida de fato em nossa comunidade. (19 de

janeiro de 2011)

Dona Fátima: Eu já sabia que era negra e descendente de escravos desde a minha

infância. Orgulho-me da minha origem, da minha ancestralidade negra. (ONZE

NEGRAS, 2007, p. 30)

Para as mulheres, o ser quilombola, assim como o conceito de quilombo, surgiu nos

últimos anos, por ser uma discussão nova nas agendas governamentais. Embora o movimento

negro organizado tenha traçado uma trajetória de ações políticas, com diversas formas de

intervenção junto ao governo federal, estadual e municipal – através de assembleias,

41

caminhadas, projetos de lei e conferências –, é somente a partir desta década que se ampliam

as discussões no interior dos quilombos, por meio de reflexões com outras comunidades e

cursos promovidos pela Comissão de Articulação dos Quilombos. Porém, a luta das mulheres

negras para que suas ações sejam reconhecidas pela sociedade brasileira tem sido mantida,

elas continuam a buscar seus espaços e vão rompendo com as diversas formas de

preconceitos.

42

CAPITULO II – MULHERES QUILOMBOLAS: CONTRIBUIÇÕES PARA A HISTÓRIA

DOS QUILOMBOS

Às vezes eu fico pensando, dentro de mim, como é que eu tive essa força,

essa coragem de lutar, que muitos na comunidade não tem a coragem de fazer o que

eu fiz e o que faço. É porque quando eu me lembro do processo que minha mãe

passou, e minha avó, escravizada com 12 anos, foi levada pelo homem de engenho.

Então, isso eu não queria que acontecesse comigo, porque eu ia ser uma das negras

revoltadas, porque lembro o que minha avó passou (repete). Elas começaram a luta

para construir e conseguir, mas elas não tiveram acesso.

(DONA FÁTIMA, agosto de 2011)

Este capítulo propõe uma reflexão sobre as contribuições das mulheres afro-

brasileiras e sua atuação na história dos quilombos. Tem como referência o Quilombo das

Onze Negras, lugar escolhido para esta pesquisa devido às lutas das mulheres quilombolas e

sua liderança na comunidade. Embora tenhamos o conhecimento que apenas recentemente a

historiografia tem situado as mulheres no contexto histórico, as mulheres passaram a ser

estudadas a partir da articulação do movimento feminista, conforme Soihet (2005).

As produções historiográficas sobre as mulheres se ampliam com base em novas

propostas metodológicas, considerando que existem poucos registros escritos oficiais,

elaborados por elas. Os escritos administrativos – legislações, entre outros – são realizados

por homens, principalmente nos setores da vida pública, onde poucas mulheres atuam (ou tem

atuado) oficialmente. Se para o estudo histórico das mulheres existem desafios, para o caso da

mulher negra essa situação se agrava ainda mais.

2.1 – Mulheres Negras Construindo Cidadania

A história das mulheres negras brasileiras está atrelada a um passado repleto de

obstáculos na trajetória de formação deste país, enfrentados pela população negra, com

consequências que perduram até os dias atuais. São muitos os desafios para que as mulheres

negras possam superar tais obstáculos, porém no decorrer de sua história, elas aprenderam a

utilizar sua experiência de vida e a transformá-los em armas, com as quais foram enfrentados

e, em sua maioria, superados, especialmente no processo de construção da cidadania de seu

povo. Essas mulheres têm renegado todas as formas de acomodação e de omissão diante das

diferentes provocações da vida cotidiana privada e pública. Pelo contrário, elas foram

43

resistentes e reagiram contra condições adversas, de diferentes naturezas. E as influências

negativas que se apresentaram no decorrer de suas histórias têm sido constantes, como analisa

Theodoro:

As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada, que o discurso

clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado

conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na

identidade feminina das mulheres negras. (2011. p. 2)

De fato, a realidade da mulher negra hoje se manifesta na prolixa trajetória vivida no

período de escravidão com algumas mudanças e muita permanência, pois ela continua em

último lugar na escala social, sendo a que mais carrega as desvantagens do sistema injusto e

racista do país. Inúmeras pesquisas realizadas nos últimos anos mostram que a mulher negra

apresenta menor nível de escolaridade, trabalha mais, porém, com renumeração menor, e

poucas conseguem romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial, ascendendo

socialmente. Como afirma Nascimento (2008, p. 50):

A prática camuflada da discriminação, ao lado de um discurso democrático racial,

insere a mulher negra em um contexto que denominaríamos aqui como espaço da

falta. Sofrendo uma tripla discriminação – racial, social e sexual –, a mulher negra,

numa sociedade racista e discriminadora, nada mais faz que acumular perdas no que

se refere à dificuldade de sua inserção nos quadros sociais representativos do país.

As mulheres negras são as que até hoje carregam o mito da mulher sexuada, visão

concebida em uma sociedade patriarcal onde sempre se determinou o poder dos homens sobre

a mulher. O Dossiê Mulher 2010 mostra que as mulheres pretas e pardas (negras, na categoria

do IBGE) são a maioria entre as vítimas de homicídio doloso, aquele em que há intenção de

matar (55,2%); tentativa de homicídio (51%); lesão corporal (52,1%); estupro e atentado

violento ao pudor (54%). As mulheres brancas só eram maioria nos crimes de ameaça

(50,2%).

Quadro 2 – Proporção de pobres e indigentes, segundo grupos selecionados. Brasil, 1996

e 2006.

Grupos Selecionados

Pobreza

1996 2006

Indigência

1996 2006

Brancos 21,5 14,5 8,3 4,5

Negros 46,7 33,2 21,9 11,8

Urbano 25,4 16,1 9,4 5,5

Rural 61,8 47,6 34,1 21,0

Nordeste 57,9 44,3 30,4 18,0

Sul 22,3 12,6 8,0 3,5

Total 32,7 23,8 14,4 8,1 Fonte: IBGE Pnad/microdados. Elaboração: Ipea/Disoc, Unifem e SPM.

44

Considerando os dados apresentados, cabe destacar que a desigualdade nos

rendimentos existente entre brancos e negros é evidenciada também quando se examina a

distribuição da população pela renda per capita. Quanto mais se adianta em direção aos

grupos populacionais de maior renda, menor é a proporção de negros. Ainda que uma

pequena melhora na distribuição da riqueza produzida no país possa ser percebida em relação

ao ano de 2006, quando se analisam negros e brancos a permanência da desigualdade continua

sendo o destaque dos dados aqui apresentados (IBGE, 2006). Também há uma permanência

de pobreza acentuada para o caso do Nordeste. Os desafios do século XXI são apresentados

em dados oficiais, embora o Estado brasileiro reconheça ser necessário efetivar políticas de

inclusão, mas uma inclusão que favoreça a participação e o protagonismo feminino negro,

com a elaboração e a efetivação de políticas públicas, como explica Palmeira (2009)

Uma questão importantíssima a ser analisada com relação ao vagaroso progresso da

efetivação dos direitos das mulheres negras, é quanto à representatividade política

destas. Não há um contingente significativo de mulheres negras no parlamento, isso

resulta muitas vezes na falta de criação e concretização de políticas públicas

voltadas para esta parcela da população. As políticas implantadas são em sua

maioria de cunho genérico, e num universo de desigualdades social, racial e de

gênero é necessária a realização de políticas públicas específicas para as mulheres

negras, posto que são as mais vulneráveis em casos de ocorrência de violação de

direitos humanos.

Contudo, não podemos deixar de considerar que esse horizonte não é absoluto e,

mesmo com todo o racismo, há uma parcela de mulheres negras que conseguiu vencer as

adversidades e chegar à universidade, utilizando a vida acadêmica como ponte para o sucesso

profissional. A academia para a mulher negra tem sido um grande obstáculo que está em

processo de conquista. Um processo ainda lento, por diversos fatores, porém, com alguns

avanços. Há um grupo significativo de intelectuais negras, conforme apresenta o

levantamento realizado por Palmeira (2009):

Entre os nomes das escritoras que já publicaram e/ou publicam nos Cadernos Ne-

gros citamos: Alzira Rufino, Ângela Galvão, Ana Cruz, Ana Célia da Silva, Andréia

Lisboa, Benedita De Lazari, Célia Aparecida Pereira, Cristiane Sobral, Conceição

Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Graça Graúna, Iracema Régis, Marta

André, Marise Tetra, Maria da Paixão, Miriam Alves, Mel Adún, Lia Vieira, Regina

Amaral, Roseli Nascimento, Ruth Souza Saleme, Serafina Machado, Sônia Fátima,

Sueli Ribeiro, Teresinha Tadeu, Vera Lucia Barbosa. É relevante destacar que,

dentre as escritoras citadas acima, duas são baianas: Ana Célia da Silva e Mel Adún.

Por meio de suas perspectivas – marcadas, como não poderia deixar de ser, pela

vivência de ser mulher negra na sociedade brasileira – essas escritoras afro-brasi-

leiras, que publicam nos Cadernos Negros, contribuem para a constituição de uma

história brasileira sob a perspectiva feminina negra que revela elementos apagados

e/ou desprivilegiados pelas escritas falocêntricas e brancas.

45

O destaque da autora em relação às escritoras negras é pertinente e, ao mesmo

tempo, propõe novas reflexões, especialmente no contexto acadêmico e educativo. Pois se

subentende que o fato de serem negras, e trazerem suas experiências para dentro do espaço

científico e de reformulação de saberes é realmente uma forma de contribuir com a luta

histórica de seus ancestrais, desmistificando estereótipos criados ao longo da historiografia do

Brasil.

A mulher negra, portanto, tem que dispor de uma grande energia para superar as

dificuldades que se impõem na busca da sua cidadania. Poucas mulheres negras

conseguem ascender socialmente. Contudo, é possível constatar que está ocorrendo

um aumento do número de mulheres negras nas universidades nos últimos anos.

Talvez a partir desse contexto se possa vislumbrar uma realidade menos opressora

para os negros, especialmente para a mulher negra. (XAVIER, 2009, p.1)

As lutas das mulheres negras para conquistarem melhores cargos no mercado de

trabalho exigem uma força muito maior do que de outros setores da sociedade. Algumas

sofrem as consequências pagando, provavelmente, um preço alto pela conquista, muitas vezes

abdicando do lazer, da realização da maternidade, do namoro ou do casamento. Essas

mulheres estão em um campo de disputa e necessitam comprovar sua competência

profissional, lidando com o preconceito e a discriminação racial que lhes impõem maiores

desafios para a conquista do ideal sonhado e desejado. A questão de gênero é um

complicador, mas quando somada à de raça, se traduz nas maiores dificuldades. A

discriminação racial na vida das mulheres negras é constante. Apesar disso, muitas

constituíram estratégias próprias para superar as dificuldades decorrentes dessa problemática.

De várias maneiras têm sido montadas estratégias que resultam em avanços para a população

negra, com a efetivação de políticas e passos na busca constante de ter assegurada a sua

cidadania, como adverte a autora:

O primeiro passo, para a efetivação de nossa cidadania, após vários séculos de

exclusão e degradação, é a inclusão do povo negro como sujeito desta nação. É

preciso criar condições para que a população negra saia da miséria, do analfabetismo

e do subemprego, através das políticas sociais que hoje se constituem direitos de

todos e dever do Estado, implementando os preceitos constitucionais que garantem

saúde, educação, assistência social, moradia, transporte, trabalho. (XAVIER, 2009.

p. 1)

O marco que anunciou esse novo momento para a articulação das mulheres negras,

enquanto resultado concreto, como introduz Xavier, foi a incorporação da maior parte de sua

agenda de luta na Constituição de 1988. Embora com todos os desgastes, elas deram passos e,

concretamente, os resultados dessa luta vem se plasmando, com a estruturação dos conselhos

de direitos, delegacias especializadas no atendimento às mulheres e políticas públicas de

46

promoção à saúde da mulher, entre outros. “A luta contra a violência contra as mulheres,

implementada pelo movimento de mulheres, tem alcançado importantes vitórias no que se

refere à responsabilização do Estado no enfrentamento da violência, no provimento de direitos

e de segurança” (XAVIER, 2009), direitos esses que as mulheres negras, em diversas formas

de organização, tem se esforçado para tornar reconhecidos. É só nas últimas décadas, como

reflete Sebastião (2008, p. 27), que as pesquisas em torno das organizações feministas negras

começam a ser estudadas:

A mobilização de mulheres negras é um fenômeno recente e ainda pouco

pesquisado. Desde a década de 1970 até os dias atuais e em um período

relativamente continuado, mulheres negras organizadas têm se esforçado para

desempenhar o papel de sujeito da própria história e, assim, consolidar um

protagonismo político em vários campos da vida social, por exemplo, ao ocupar

cargos de liderança em instituições públicas.

A conquista de espaços de direitos para as mulheres negras ocorre através dos seus

esforços e de suas articulações com a própria comunidade, tendo os órgãos públicos por

testemunha. Dona Fátima, ao fazer uma breve avaliação dos resultados das mulheres no

Quilombo, afirma:

Hoje, somos 468 famílias, a maioria é alfabetizada, outras estão estudando, temos

quilombolas indo para a faculdade. Então, isso se torna um motivo de orgulho muito

grande para conseguirmos nosso espaço e chegarmos onde estamos hoje. Mas, nós

temos orgulho porque são lutas e vitórias. Hoje me sinto muito orgulhosa de ver o

futuro. Porque eu tive graças a Deus um futuro bom, porque minha mãe nos fez

cidadãos, não importa a cor e sim a qualidade da pessoa. Então, graças a Deus, na

minha comunidade a gente tem uma educação muito boa, temos nossa cultura, está

sempre lidando, estamos sempre juntos, na parafernália. Chega no Dia Internacional

das Mulheres, a gente faz eventos na comunidade, no dia 25 a gente faz eventos

dentro da nossa realidade. Festejamos o Carnaval, o São João, a nossa festa típica de

nossa realidade e cultura, nunca vamos perder. (DONA FÁTIMA, entrevista em

Janeiro de 2011).

A mulher negra, se observarmos a fala de Dona Fátima, tem um potencial que foi

desconhecido pela versão masculina e machista da historiografia tradicional, que não

possibilita dar visibilidade à presença feminina. Em sua trajetória, o desejo de vencer

coletivamente sai do seu eu com muita facilidade, e a sensibilidade pelas questões comuns é

realmente destacável. O senso de comunidade é constatado na fala e na história das

quilombolas, como expressa a entrevistada.

Não podemos perder de vista que essa luta tem um histórico marcado, sobretudo,

pelo enfrentamento ao racismo, ao patriarcalismo e as diversas expressões de preconceitos

que vem ganhando novas perspectivas, na medida em que também incorpora diferentes

47

formas de subordinação, sem os quais não é possível produzir um ambiente de segurança e

conforto para as mulheres negras.

2.2 – Memória e Fé: Resistência e Soberania

Sabemos que a memória do passado é fundamental para a construção do presente,

especialmente para a população afrodescendente, para quem a oralidade está presente por

fazer parte da visão de mundo da África tradicional, sobretudo no momento da grande

diáspora. Foi essa memória que contribuiu para que a história dos afrodescendentes pudesse

perdurar e influenciar na constituição da identidade do país. É essa memória que permite aos

descendentes de africanos, por meio da história oral, irem além das iniciativas que ocorreram

na prática. Mas é também a partir dessa oralidade que as reivindicações do movimento de

mulheres acabam sendo trazidas pelas militantes para as esferas públicas e acadêmicas. Trata-

se, pois, de uma ferramenta importante para o estudo da história política e da sociedade

urbana, capitalista, ocidental e burguesa. Vansina (1982, p. 157) nos ajuda a perceber que:

Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação

diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais,

venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A

tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de

uma geração a outra. Quase em toda parte a palavra tem um poder misterioso, pois

palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das

civilizações africanas.

Na perspectiva de preservação dessa memória histórica utiliza a palavra para criar, se

colocando mais uma vez à disposição, visando reconstruir, com um novo cenário, a história da

mulher negra. Na tentativa de compreender, resgatar e respeitar a cultura de matriz africana

preservada pelas quilombolas e comunidades negras, é importante ressaltar a realidade, a

identidade e a construção coletiva, como explica Ferreira (1994, p. 56):

A história, para o presente, é a historia da construção de uma identidade respectiva,

uma identidade que se deve construir a partir da igualdade, que é uma categoria que

torna crível o diálogo. Uma igualdade que não significa similitude, monotonia

uniformidade, porque só as diferenças tornam interessante o diálogo.

A identidade é construída em uma visão coletiva, onde cada uma e cada um tenha

algo a dar e a receber. A expressão de valores culturais e religiosos acontecia na troca de

experiências, no cotidiano. Esse modo de vida foi criado e recriado em suas ações e

significados. Isso acontece nas culturas que não perderam a influência das tradições africanas,

reafirma Vansina (1982, p. 56):

48

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os

aspectos. Pode parecer caótico àqueles que não lhe descortinam o segredo e

desconcerta a mentalidade cartesiana, acostumada a separar tudo em categorias bem

definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o mental não estão

dissociados.

Portanto é visível o quanto os afrodescendentes, e em especial as mulheres

quilombolas, trazem consigo esse dom de reconstruir, fortalecidas pela herança de seus

antepassados africanos. As quilombolas da comunidade Onze Negras assumem na

comunidade um papel que guarda semelhança com os griots. Vansina (1982, p. 204),

relembra que:

Uma vez que a sociedade africana está fundamentalmente baseada no diálogo entre

os indivíduos e na comunicação entre comunidades ou grupos étnicos, os griots são

os agentes ativos e naturais nessas conversações. (...) Cabe aos griots cumprirem

aquilo que os sábios decidiram e ordenaram.

Os griots, na sociedade africana, ocupam um espaço de fundamental importância na

vida da comunidade. À semelhança dos griots, as mulheres na comunidade quilombola usam

dessa sabedoria para dar continuidade à história do quilombo e resguardar sua cultura. Ainda

neste contexto, é importante ressaltar quem são essas mulheres que se disponibilizaram a

relatar a história do Quilombo das Onze Negras: Maria José de Fátima Silva Barros é

liderança na comunidade quilombola, representante da Associação Quilombola e integrante da

Comissão Estadual, vem representando o Quilombo em várias instâncias. Maria José de

Santana faz parte do Conselho da Comunidade e da Associação. Maria da Conceição Marques

foi a primeira educadora na comunidade, lecionou no Mobral e atualmente é vice-presidente

da Associação. Por ser uma das mais antigas no Quilombo, assume também o papel de

conselheira. Valdirene Maria de Santana, formada em Pedagogia, é integrante da Associação.

Imagem II – Centro Cultural Onze Negras

Centro Cultural das Onze Negras. Foto: Maria José dos Santos. (Janeiro de 2011)

49

Foram essas mulheres do Quilombo das Onze Negras que fundaram a associação de

mulheres na comunidade, o Centro Cultural, cuja estrutura podemos observar na Imagem II.

Elas interferiram junto aos governos estadual e municipal para que fosse criada uma Escola de

Ensino Fundamental I no Quilombo e conseguiram trazer melhorias de infraestrutura, como

rede elétrica e hidráulica, linha telefônica e uma creche para as crianças. Além disso,

continuam na luta por políticas públicas para o Quilombo.

O nosso papel como mulher no Quilombo é muito forte mesmo, chega fico arrepiada

(faz o movimento de passar as mãos na pele dos braços) quando falo assim, porque

todos me respeitam. Todos vêm a mim para explicar o que está acontecendo, e

assim, quando eu faço reunião, comparecem 260 pessoas. Eles são um povo muito

comunicativo, eu marco uma festa, não é só na hora da alegria, não, na hora da dor

eles também vem. A gente está sempre juntos. (DONA FÁTIMA, 2011)

Como podemos perceber, são mulheres que estão na conquista de seus espaços, e tem

compromissos com o coletivo assim como com os seus antepassados.

Observamos que os homens nesta comunidade tem uma participação singular e

atuam em momentos pontuais. Ainda é forte a presença deste como o reprodutor e o pai de

família, mas quem de fato assume os problemas da comunidade e busca as soluções são as

mulheres.

O principal motivo de escolher essas mulheres para a pesquisa foi seu empenho nas

lutas por melhorias na comunidade quilombola e a dedicação em seu trabalho junto à

comunidade, tendo como foco a luta por políticas públicas para a educação. Ao perceber toda

essa mobilização, passei a indagar: como conseguem se mobilizar no enfrentamento de tantos

problemas de ordem material e cultural, e como elas conseguem vencer os obstáculos,

especialmente no que se refere à educação? Que estratégias utilizam para chegar a ocupar

posição de liderança em espaços que, em sua maioria, são ocupados por homens? Por que

acreditar tanto na educação como um processo de ascensão social, se até então esta as tem

excluído? Na tentativa de responder a essas questões, fiz diversas leituras preliminares, e

assim me aproximei da comunidade.

Porém, embora tenha sido indicada por um professor da Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE) e pela conselheira da Seppir20

de Pernambuco, Vera Barone, no primeiro

contato fui questionada pela senhora Fátima.

20

A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foi criada pelo Governo Federal no dia 21

de março de 2003. A data é emblemática: em todo o mundo, celebra-se o Dia Internacional pela Eliminação da

Discriminação Racial. A criação da Secretaria é o reconhecimento das lutas históricas do movimento negro

brasileiro. A missão da Seppir é estabelecer iniciativas contra as desigualdades raciais no país.

50

Quem é você, e por que escolheu a nossa comunidade? O que vamos ganhar com

isso? Vem estudar a comunidade e depois não vai dar nem um retorno pra nós? Você é

negra? Foi essa a fala de Dona Fátima ao telefone, em julho de 2010. Diante do

interrogatório, confesso que fiquei inquieta, mais aumentava o desejo de conhecer a historia

destas mulheres. Acredito que quando me questionou em relação a ser negra – ou seja, uma

questão de identificação, que vai além da cor –, ela falava sobre um sentimento de pertencer

ao mesmo grupo, o que talvez seja uma maneira de sustentação da identidade. Ao me

identificar, expliquei que também sou quilombola e que venho trabalhando há dez anos com

mulheres quilombolas. Após minha colocação, Fátima respondeu (ainda por telefone):

Agora você falou a minha linguagem, é uma das nossas. Então, seja bem vinda.

Desculpe lhe fazer tantas perguntas, é porque estamos cansadas de ser exploradas. O

povo vem aqui, pesquisa nossas histórias, fazem projetos e nem retornam para dar

uma satisfação. Então, decidimos que não vamos mais aceitar isso, não. Mas você

pode vir, que a gente conversa e eu lhe apresento a comunidade. (DONA FÁTIMA,

entrevista em Abril de 2010)

As indagações da entrevistada ajudaram-me a perceber o quanto é significativo para

essas mulheres resguardar sua cultura, sua identidade e a história de sua comunidade. E

naquele momento eu era uma estudante querendo me aproximar para conhecer o universo que

até o momento pouco foi explorado cientificamente, se o consideramos como sujeitos na

contribuição de mudanças sociais e educacionais. É importante pensar também que esta

reconvenção pode ser uma forma de resistência da comunidade para com os que não são

habitantes. Podemos analisar como uma estratégia de sobrevivência, ou, ainda, uma reação a

uma certa exploração acadêmica.

Desse momento em diante, mantive contato com as mulheres, levando em

consideração alguns cuidados éticos, enquanto pesquisadora, e naturalmente elas foram se

colocando à disposição para as entrevistas. Entendendo que tais cuidados devem-se,

sobretudo, ao fato de ser este um trabalho relacionado com pessoas, que não devem ser

tratadas como objetos de pesquisa, mas como sujeitos da pesquisa. E para ser coerente com as

mesmas no respeito aos seus antepassados e na forma de relembrar e trazer a memória de suas

contribuições por meio da oralidade, relatando as suas histórias de vida, optei pela

metodologia da história oral, tendo como fontes teóricas Paul Thompson (1992), Pinsky

(2005) e Queiroz (1988), os quais vêm trabalhando a temática da oralidade e deram suporte ao

modo de fazer e analisar a pesquisa com as mulheres, sem desrespeitar a cultura das mesmas.

A fala de Dona Fátima era instigante e comprometida, demonstrando o quanto a visão política

51

e o compromisso dessas mulheres com a preservação da história do Quilombo era evidente.

Além disso, destaca o quanto eram exploradas pelos pesquisadores, sem reconhecimento ou

retorno para a comunidade.

Esta forma de preservar a comunidade quilombola nos reporta, aos poucos, aos

estudiosos que vão resgatando, por meio da oralidade e em documentos da história oficial,

notícias que unem os terreiros e as lutas quilombolas por libertação em todo o Brasil, como

ressalta Frisotti (1994, p. 10):

Além do caso dos quilombos, encontram-se ligações entre os terreiros e as revoltas

dos escravos e libertos, as organizações com o poder público, as greves do século

passado e deste século e quase toda organização negra, das irmandades religiosas às

associações e escolas de samba.

Observa-se nas leituras e análises que os terreiros se constituíam como uma espécie

de família, composta por filhos e filhas de santos consagrados. Isso faz lembrar a semelhança

com a estruturação do quilombo, especialmente o das Onze Negras, onde as três famílias

casam entre si e constituem a liderança da comunidade. Quando morre uma das onze, é uma

filha ou parente quem assume seu lugar, na expectativa da continuidade.

Tudo vem testemunhar a trajetória da organização de um povo que descobre a

importância de sua dignidade e monta estratégias políticas para a sobrevivência. Uma prova

desse empenho das mulheres pode ser observada nos terreiros de Xangô21

e nas casas de

cultos de matriz africana. Neste século, entendidos como comunidades negras, ou seja,

comunidades quilombolas, em sua maioria liderada por mulheres, que trazem as experiências

de seus antepassados vivos em seu cotidiano, este é um dos motivos que os terreiros de

religiões de matrizes africanas são reconhecidos como patrimônios públicos. Os terreiros são

mais uma espécie de continuidade dos quilombos e mocambos, como explicam Schumaher e

Brazil (2011, p. 82):

Em alguns mocambos elas representavam o elo com as divindades e fortaleciam o

espírito combativo de seus habitantes. Através dos seus rituais e práticas litúrgicas

enraizavam o sentimento de proteção dos quilombolas em suas caçadas e

enfrentamentos com as tropas de captura.

O elemento religioso, segundo a escritora, destaca-se por fortalecer todo o processo

de luta e conquistas da população negra e renovar o hoje, através da manutenção das raízes

culturais, alimentando a fé e propondo novas formas de viver em sociedade. Como refletimos

21

Xangô – Orixá da justiça, é também o nome dado aos terreiros em Pernambuco.

52

no capítulo anterior, a necessidade de demarcar espaços e assegurar a identidade é algo

explícito no povo negro.

Imagem III – Caminhada dos Terreiros de Pernambuco

V Caminhada dos Terreiros de Pernambuco. Foto: Maria José dos Santos (2011).

As mulheres abraçam essa causa com toda a sua sabedoria e vão à luta. Na Imagem

III, podemos observar o empenho para garantir seu espaço, tendo sempre como referência a

sua vivência na África tradicional e a ancestralidade. Embora no decorrer da história tenham

sido vistas como as bruxas, de forma pejorativa, e por esse motivo tenham sofrido diversas

formas de perseguições:

As tentativas de silenciar a história negra passaram também pela religiosidade. A

demonização da religião negra foi um dos mecanismos utilizados para esvaziar e

marginalizar a espiritualidade de matriz africana. Terreiros invadidos pela força

policial e religiosa, membros do candomblé impedidos de participar de comunidades

cristãs, ridicularização de adeptos e adeptas dos cultos afros como bruxas e

feiticeiras, são algumas formas de expressão de um preconceito que permanece em

nossos dias. (SILVA, 1998, p. 29)

No caso das Onze Negras, a religião que predomina desde a fundação do Quilombo é

a católica. Porém, os depoimentos destacam um catolicismo popular, e não aquele da

hierarquia institucional. A comunidade ressignificou o catolicismo, assim como as

irmandades, sobretudo a da Boa Morte, relembra Dona Conceição:

Todos os anos, à noite, a gente rezava o terço. Cada noite era de um grupo. Era a

noite dos rapazes, das moças, dos solteiros, das crianças, era o mês de maio todinho,

aí a igreja era visitada. E assim não tinha outro evento na igreja, só quando chegava

o dia de nossa Senhora da Saúde para celebrar a missa. (Agosto de 2011)

Dona Fátima confirma, dizendo que:

53

Estive muito doente de catapora. No meu caso, mamãe colocou meu nome Maria de

Fátima, porque mamãe tinha feito uma promessa para Nossa Senhora de Fátima;

minha irmã, Maria do Carmo, mamãe disse que tinha devoção a Nossa Senhora do

Carmo, neste caso a maioria dos moradores da comunidade antigamente recebiam

nomes de santos, como Sebastião, Damião e Pedro. (Agosto de 2011)

Embora o catolicismo tenha uma forte influência na vida da comunidade desde sua

origem, as moradoras, como Dona Fátima, relembram que existia no local a presença da

religião de matriz africana, e que seus familiares faziam parte dela:

Tinha parteira e tinha benzedeira, e meu tio que era pai-de-santo de terreiro, meu tio

Duquinha, meu tio Bebé e também minha tia Malú na comunidade, mas já faleceu.

Já na BR, aí tinha maracatu. Quem levou essa prática religiosa pra família foi tia

Malú, levou o centro dela. Ela mora em Carpina, o maior centro é dela. Ela hoje

deve ter uns 80 anos, é a única tia que eu tenho. (Julho, 2011)

Interrogamos sobre as possíveis razões pelas quais deixaram morrer a religião de

matriz africana. A resposta de Dona Fátima foi:

Porque é assim, depois que meu avô faleceu, o pessoal mais antigo morreu, e com a

pressão da discriminação, minha prima tornou-se evangélica e daí começou puxando

um e outro, dizia que essa coisa de catimbozeiro não era coisa de Deus. E conseguiu

fazer uma igreja da Assembleia de Deus. Tia Maria ainda vive disso, mas é uma

coisa em segredo, porque a filha não quer procurar ela nem fala dessas coisas. Tia

Maria está lá em cima (aponta para o alto da ladeira), era filha-de-santo do meu tio

Manuel Pretinho. Ela tinha as roupas, fazia toque, tinha licença e tudo aqui na

comunidade. Por causa das filhas, foi deixando. Hoje em dia, ela faz remédio, assim,

em segredo, porque a filha não gosta. (Julho de 2011)

O relato de Dona Fátima revela como a religião evangélica se apresenta com um

imediatismo que resolveria os problemas das pessoas, voltada para as questões da moral e a

renúncia dos prazeres do divertimento e dos prazeres do corpo, em prol de uma moral

rigorosa (SILVA, 2007). Alimentando a discriminação, desrespeita a maneira desse povo se

relacionar com suas divindades. Contudo, Fátima revela que a religião de seus antepassados

de matriz africana existe na invisibilidade, “debaixo do tapete” – resiste –, embora não seja

vista pelos de fora da comunidade quilombola.

Dona Fátima continua seu relato explicando os motivos que levaram a prima a não

ter dado continuidade:

Minha prima dançava justamente no Xangô desse meu tio, e depois que meu tio

morreu, ela ficou assim, meio perturbada. Onde chegava, dava santo. Dizem que

meu tio tinha botado um negócio na cabeça dela, que só ele poderia tirar, fez

trabalho em quarto fechado. O engraçado é que quando ela fazia isso, eu era louca,

apaixonada, também queria fazer, mas eu não tinha. Pois isso tem que vir de

nascença, e minha prima teve com sete anos de idade. A gente estava brincando, aí

dizia “vamos brincar de Xangô, vamos!”. A gente amarrava um lenço na cabeça e

começava a dançar, aí ela caiu, gritou e caiu, ficou desmaiada. Minha avó, que já era

do centro, a pegou, porque a gente pensava que ela tinha morrido. Minha avó veio e

colocou ela dentro de casa e afastou o espírito. Desse dia em diante, vovó disse que

54

tinha que prever, e com 17 anos ela foi coroada. Aí, com 17 anos, ela começou a

trabalhar, casou e toda vez que tinha toque a gente ia, porque gostava de comer

manguzá, confeito, bolo. Antigamente isso era um festão, como se fosse festa de

casamento, na comunidade não tinha outra atividade. Depois que meu tio morreu, o

pessoal foi acabando, essa Malu, que era filha do meu tio, levou o centro para

Carpina. Ela ficou solta, era uma coisa incrível, à noite na casa dela as tampas

saltavam mesmo, batiam mesmo, parecia que tinha gente batendo, ela queria se

matar, ficava ouvindo vozes, levaram ela nessa igreja evangélica. Agora sofrimento,

e depois que foi evangélica sofreu muito mais. Hoje ainda sofre, quando entrou na

igreja evangélica o marido se separou dela. O povo dizia que é porque ela não deu

continuidade. E se formos conversar com ela sobre isso, ela não conta. Quando tinha

toque a gente ia, era um salão enorme, meus primos tocavam o Ilu (tipo de atabaque,

instrumento de percussão) até o dia amanhecer. (DONA FÁTIMA, entrevista em

Julho de 2011)

Nas explicações da entrevistada, a religiosidade é praticamente genética, vem de

heranças de seus avós, tios, tias e pessoas da comunidade. A relação com a religião expressa o

respeito aos mais velhos que, para os afrodescendentes, são os que tem a sabedoria. Era

comum desde a infância brincar de Xangô, como narra a representante da comunidade. Fazia

parte do seu cotidiano, com as crianças convivendo naturalmente com as revelações do que

para elas era sagrado. De acordo com Halbwachs (2004, p. 66):

Desde que a criança ultrapasse a etapa da vida puramente sensitiva, desde que ela se

interesse pela significação das imagens e dos quadros que percebe, podemos dizer

que ela pensa em comum com os outros, e que seu pensamento se divide entre o

conjunto das impressões todas pessoais e diversas correntes de pensamento coletivo.

Observa-se, tanto na fala da senhora Fátima como nos escritos de Halbwachs, que a

solidariedade e a coletividade são elementos fundamentais na religião afro-brasileira. Para

Dona Fátima, o fato de ter os parentes oriundos do Xangô era motivo de orgulho. Isso é um

elemento que dá força para ela continuar seu trabalho.

Porém, é visível a presença do preconceito e da discriminação em relação à religião.

Isso foi um dos motivos. O outro, segundo a representante da comunidade quilombola, é que

o Quilombo hoje se encontra muito próximo do centro da cidade, e isso vem interferindo, de

certa forma, na cultura local, o que fez surgir a presença da Igreja Pentecostal – que, segundo

as narrativas das quilombolas, hoje é predominante no Quilombo –, sem respeitar a cultura

existente, pois existia um grupo cultural de dança afro, que, com a presença da igreja

evangélica, acabou.

É importante ressaltar ainda que, das quatro entrevistadas, a única que se sentiu

segura para narrar a relação da comunidade quilombola com a religião de matriz africana foi

Dona Fátima. As demais não fizeram comentário algum. Porém, Dona Conceição afirma ter

55

existido a presença da religião, por ter conhecido algumas pessoas que iam cultuar fora do

Quilombo.

As diversas formas de ações executadas pelas mulheres negras para marcar espaços

de referência e de estruturação de uma nova sociedade são inseridas em diferentes áreas.

Como podemos constatar, a religião é uma forma que, mesmo sendo vista como demonização,

como descreve Silva (1994), torna-se um meio de fortalecimento e de preparação para a

batalha. Como reflete Werneck (2000, p. 31): “As mulheres encontraram nas religiões negro-

brasileiras uma outra dimensão social de identidade, além daquela trazida de suas culturas”. A

religião foi e continua sendo um dos focos de resistência da população negra, como explica

Silva (1994, p. 8):

A religião de um povo é viva e dinâmica, como a cultura de onde a religião é gerada.

Com as religiões de origem africana não é diferente. Elementos significativos foram

sendo introduzidos na prática religiosa tanto de inspiração banto quanto nagô, a

partir da realidade vivida pela comunidade negra no Brasil e demais países da

América.

Nesse espaço religioso, seja nos terreiros de candomblé ou nas irmandades, as

mulheres negras assumiram cargos de reverência e reconhecimento. O respeito pelas Iyás

(mães), ekèdis (zeladoras) e pelos ogãs (zeladores) são cultivados e mantidos. A religião de

matrizes africanas foi e continua sendo um espaço de empoderamento e reconhecimento da

presença feminina predominante.

Quanto à participação, é notável que a mulher negra possui uma presença marcante.

Ou seja, a mulher, no candomblé, no Xangô, nos centros de Umbanda e nas comunidades

quilombolas comumente dirige os "terreiros", na pessoa da yalorixá, da mãe-de-santo. Ela tem

o conhecimento dos rituais e segredos da mística religiosa afrodescendente, além de ser a

responsável pela administração da "roça", de todo o contexto da casa e seus arredores.

Em inúmeras situações, nos terreiros e nas irmandades, encontravam identidade

dissociada do trabalho escravizado ou de baixa valorização. Nos terreiros onde

sempre alcançavam cargos importantes na hierarquia, eram tratadas com reverências

especiais. O respeito às iyás e ekèdis e aos ogãs é observado com rigor. A pessoa se

firma na comunidade. Os sentidos da vida vão muito além da satisfação de suas

necessidades materiais e ganham mais significado de acordo com os valores da

tradição. (WERNECK, 2000, p. 31)

A religião de matriz africana devolve à mulher negra seu empoderamento.

Aprendendo e ensinando, a religião afro-brasileira desenvolve suas capacidades

administrativas e recupera sua autoestima, especialmente ao tornar-se uma ialorixá ou ao

assumir cargos de liderança nas comunidades. Temos como exemplo as mulheres quilombolas

56

e diversas comunidades no Estado de Pernambuco, e entre estas destacamos Conceição das

Crioulas, no município de Garanhuns; Dadá, na comunidade quilombola do município de

Goiana; Mãe Biu, na comunidade de Xambá, no município de Olinda, e as Onze Negras,

assumindo cargos políticos e sociais. São comunidades que constituem verdadeiros sistemas

de alianças, que variam segundo os estados em que se localizam e as origens de seus

fundadores. Os laços de sangue são substituídos pelos de participação na comunidade, de

acordo com a antiguidade; as obrigações, de acordo com sua linhagem. Em Salvador,

encontramos o terreiro de candomblé Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca,

que segundo os estudiosos é um dos mais antigos do Brasil, liderado por Altamira, Mãe Tatá.

No Rio de Janeiro, a baiana Tia Ciata da Oxum, Hilária Batista de Almeida, ficou conhecida

no início do século por suas ligações diretas com o samba de morro carioca, gerador das

conhecidas escolas de samba. Agripina de Souza, de Xangô; Mãe Cantulina Pacheco, Mãe

Bida ou Mãe Beata de Iemanjá são mulheres negras conhecidas e respeitadas no Rio de

Janeiro por suas lideranças religiosas e comunitárias, da mesma forma que Mãe Andresa e

Mãe Celeste da Casa das Minas do Maranhão, são exemplos de força e seriedade em São Luís

(THEODORO, 2011). Analisando a fundação e a administração dessas comunidades,

especialmente as tradicionais, encontramos as mulheres assumindo o papel de frente.

O grande símbolo de luta é a luta de Mãe Menininha, mãe-de-santo do terreiro do

Gantois, em Salvador. Desde 1922, quando tinha 28 anos, negociava o direito de

culto com a sociedade, sendo obrigada a celebrar os orixás sem atabaques, só com

cabaças e palmas. (FRISOTI, 1994, p. 12)

Buscando com coragem vencer o enraizado preconceito que desde o período colonial

as ameaça, mas não conseguem mantê-las sobre seu jugo, pois trazem consigo a experiência

da coletividade e a força da fé nos antepassados. Com isso, se articulam com outras instâncias

da sociedade, buscando intervir junto ao Governo Federal por meio de manifestos e

elaboração de projetos de lei, para que assim, nos finais dos anos 1990, pudessem conquistar a

Constituição Federal de 1988, em seu Art. 5º:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

VI. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre

exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma de lei, a proteção aos locais de

culto e a suas liturgias.

A Constituição Federal de 1988 é também fruto das lutas das organizações sociais,

do movimento negro e das articulações das mulheres negras, por meio de mobilizações,

57

marchas e reivindicações, junto aos órgãos federais, estaduais e municipais. Essa forma de se

organizar, em rede, em grupo e na perspectiva de um retorno coletivo, tem fundamentação,

referência e história. Observa-se que a base da formação dessas mulheres é africana e está

gravada na memória e no corpo; o que foi vivenciado permanece registrado, impulsionando,

estimulando e efetivando a luta. O culto aos antepassados faz reviver e resgatar diversas

formas de mobilizações, como redes de mulheres de terreiros, articulações de mulheres

negras, municipais, estaduais e federais e organizações não governamentais.

A mulher que cotidianamente, no mundo ocidental, vive em conflito com o social,

porque relegada a um plano inferior da existência em sociedade, encontra nos ritos dos

terreiros a forma de ritualizar esse conflito.

2.3 – Mulheres Quilombolas: Contexto Histórico

A participação das mulheres quilombolas não tem sido destacada nos trabalhos

acadêmicos. Fala-se dos quilombos, mas pouco se ressalta a presença e as contribuições

dessas mulheres, incluindo desde as que chegaram da África até as que nasceram em território

brasileiro e, assumiram a luta junto a toda a comunidade, como detalha Valdirene, do

Quilombo das Onze Negras:

É a luta das mulheres brigando por causa não só de homens. As mulheres saem,

viajam, trazem recursos pra comunidade. Saíram de suas casas, foram à luta. Aqui já

tem uma creche, espaço cultural, escola, isso não foi conquista dos homens, e sim

das mulheres. Isso é que eu tenho orgulho de saber que minha mãe, minha tia

chegou a este processo. Aí eu digo às meninas: “não saio do meu barraco pra morar

no barraco de ninguém”. Porque aqui a gente antigamente não tinha energia, não

tinha luz, não tinha nada. E hoje em dia temos transporte, temos água, temos

telefone, isso tudo pra gente e pra todo mundo da comunidade é gratificante, e me

orgulho de dizer que tudo foi trazido pelas mulheres, porque em tudo tem mania de

dizer que só é os homens. Mulheres era só pra beira do fogão, mas elas estão

mostrando que não é. Os homens ajudam, mas o braço forte é o da mulher. As

mulheres tem que conquistar seus espaços. Não só daqui, mas, em geral, elas não

estão sendo valorizadas. (VALDIRENE, entrevista em Janeiro de 2011)

Para Valdirene, assumir a luta junto à comunidade é o ponto de partida para as

mulheres das Onze Negras, desde a sua fundação. Ela tem como referência as mais idosas do

Quilombo, e não perde de vista a sua fonte inspiradora, que são os seus antepassados, fazendo

de suas experiências de vida exemplos para a juventude quilombola e demarcando espaços

enquanto mulher na sociedade. Gomes (1995, p. 115-116) assegura que:

A trajetória das mulheres negras, desde quando elas foram trazidas como escravas

para o Brasil foi de luta e resistência. A mulher negra, apesar de desagregada de sua

58

família e tendo que trabalhar na roça, na casa grande, amamentando as crianças

brancas enquanto lhe era negada a própria maternidade, e considerada objeto de

prazer para satisfazer aos desejos dos senhores, conseguiu estabelecer-se com

dignidade no espaço público, ao lado dos homens, superando-os, não raro, em vários

aspectos.

As marcas do passado encontram-se extremamente atreladas ao presente, como

relembra Nilma Gomes. Isso está explicito na história de nosso país, pois o conhecimento de

que o período escravista foi marcado pelas diversas formas de opressão para as mulheres não

foi diferente.

Obrigatoriamente tiveram que servir à exaustão como mão e corpo para toda e

qualquer obra. Roubaram delas parte da liberdade e muitas vidas, mas não a

memória e os traços de identidades. Desde o primeiro momento resistiram, lutaram e

geraram soluções. Ao longo dos tempos reinventaram verdadeiramente um Mundo

Novo, no qual plantaram sementes e valores que brotaram, floresceram e deram os

mais variados, belos e vigorosos frutos. (SCHUMAHER E BRAZIL, 2007, p. 23)

Embora a citação dos autores pareça poética, a resistência está expressa. São

elementos que destacam as conquistas que se realizaram através de guerras ou guerrilhas

constantes, como as que ocorreram no Quilombo dos Palmares, em Minas Gerais, no Rio de

Janeiro e nos demais quilombos espalhados pelo Brasil. É nesse momento histórico que se

encontra a presença guerreira das mulheres negras (THEODORO, 2011).

No decorrer das análises dos textos científicos, observa-se que pouco se comenta a

respeito da presença das mulheres africanas e suas descendentes e sua atuação no processo de

formação e na mobilização para a efetivação dos quilombos. Mesmo trazidas inicialmente da

África em numero menor que os homens, foram as mulheres as articuladoras, como relembra

Helena Theodoro (2011, p.1):

Algumas mulheres se destacaram na afirmação socioexistencial negra, que foram os

quilombos. Uma delas foi AQUALTUNE, líder do Quilombo dos Palmares. Era

princesa na África, filha do rei do Congo, vendida como escrava para o Brasil.

Organizou sua fuga e de outros escravos para Palmares e ao lado de Ganga Zumba,

iniciou o processo de organização do Estado de Palmares. Chefiou uma das

povoações que levava seu nome: Mocambo de Aqualtune.

É importante resgatar a presença das mulheres na construção de Palmares e nas

organizações negras, como afirma a autora, visto que se trata de um momento marcante na

história do nosso país. Foram essas mulheres que se submeteram a ser pontos de referência e

que usaram sua sabedoria e coragem para dobrar as ordens dos senhores de engenhos.

Nesse contexto, destacamos ainda a presença de Teresa do Quariterê. Theodoro

(2011, p. 1) explica em seus escritos que:

59

Teresa foi Rainha do Quilombo Quariterê durante duas décadas, no século XVIII.

Teria nascido em Benguela, Angola, embora exista a possibilidade de ter nascido no

Brasil. Liderou um grupo de negros e índios instalados próximos a Cuiabá, não

muito longe da fronteira de Mato Grosso com a atual Bolívia. Impôs tal organização

a Quariterê que o quilombo sobreviveu até 1770. Contava com um parlamento, um

conselheiro da rainha e um sistema de defesa organizado com armas trocadas com

brancos ou roubadas nas vilas próximas.

Como é possível observar, a presença das mulheres na formação dos quilombos

destaca-se por assumirem uma função política e social, como é visível nos escritos de

Munanga (1996), ao se referir aos quilombos como um espaço de preparação dos guerreiros,

embora não ressalte que junto aos homens havia as guerreiras. Nos escritos de Theodoro e

outras estudiosas, encontramos a presença das quilombolas, como explícita na citação

anterior, fazendo perceber que a presença das mulheres é de fundamental importância, devido

à sua coragem de enfrentar o sistema escravocrata individual ou coletivamente, sua habilidade

nos contatos e na política de negociação. Eram mulheres, assim como os homens oriundos dos

países africanos, que sabiam o que era a liberdade e traziam consigo as experiências do

convívio no coletivo na África. Elas buscavam instituir, junto aos homens, espaços de

sobrevivência em liberdade, o que fortalecia sua identidade.

Ao reportar a presença e participação das quilombolas como agentes de intervenção

social e econômica na história da sociedade brasileira, são sabidas, mas não expressas, as suas

contribuições no período colonial, quando as africanas desempenhavam diversos papéis,

desde as tarefas domésticas até a lida diária nas extensões de terra roxa. Segundo Schumaher

e Brazil (2007. p.39): “No interior das casas-grandes, preparavam a comida, lavavam, cerziam

e arrumavam, efetuando todos os afazeres cotidianos para as famílias escravocratas”. Nesse

espaço doméstico, a mulher negra é vítima de abusos e violentada de diversas formas. Porém,

é importante destacar que é nesse espaço que as mesmas criam fôlego e descobrem maneiras

de reagir em sua defesa e na preservação do coletivo, repassando informações para os homens

e mulheres que estavam na senzala (espécie de galpão onde ficavam os negros e negras que

trabalhavam na lavoura), além de colocar em prática seus dotes culinários. Eram estratégias

para estarem atentas às decisões dos senhores, assumindo uma postura política, na busca de

articular uma ação coletiva, arriscando suas vidas, porém com intuito de realizar um ideal

amplo, na perspectiva de um todo.

Na economia do Brasil, serviram à monocultura da cana-de-açúcar. Em todas as

etapas da produção e manufatura dos produtos canavieiros houve a labuta das mulheres

escravizadas, como afirmam Schumaher e Brazil (2007, p. 62):

60

Assim como em Lisboa, as mulheres africanas ajudaram a estruturar e organizar

sociedades que entre si articulavam estratégias de resistência. Instalaram negócios e

estabeleceram continuamente redes de comunicação entre os três continentes. No

Brasil, adaptaram seus produtos de acordo com as ofertas e interesses locais e

conquistaram, na prática, o controle do chamado comércio a retalho.

A participação das mulheres na economia brasileira e nas articulações das redes de

comunicação tornou-se uma ameaça para as autoridades escravocratas, devido à liberdade de

acesso aos espaços e por representar um elo de integração com a população local.

Acredita-se que foi a partir dessas articulações que surgiram os quilombos e,

posteriormente, as comunidades de remanescentes.

As comerciantes eram também vistas como um grande perigo e ameaça pelas

autoridades escravocratas, pois além de terem liberdade de circulação,

representavam um importante elo resistência e integração na trama de relações das

populações negras locais. Espalhadas por regiões estratégicas das cidades, elas

percorriam ruas e vielas não só anunciando os mais variados produtos, mas

propalando ideias. Documentos atestam que auxiliavam o mercado clandestino de

ouro e a fuga de escravizados nas vilas das Minas Gerais. (SCHUMAHER, 2007, p.

65)

Assim como ocorre em Palmares, as fugas vão acontecendo com maior frequência. É

possível analisar que houve uma verdadeira expansão dos quilombos, com a participação das

mulheres que arriscaram tudo na luta pela liberdade e pela dignidade.

A história oral aponta o início do século XIX, mais precisamente 1802, como o ano

em que as seis mulheres chegaram à região de Salgueiro, em Pernambuco, onde

fundaram a comunidade hoje conhecida como Conceição das Crioulas. Outra

liderança mucambeira teria sido Zacimba Gambá, da capitania de Espírito Santo. Há

ainda o nome de Mariana Crioula, do Quilombo do Manuel Congo, que em 1838,

após uma grande rebelião, se instalava no interior da então província do Rio de

Janeiro. Outra foi Zeferina, que na década de 1920, comandava os combates do

Quilombo do Urubu em uma revolta ocorrida nos subúrbios de Salvador.

(SCHUMAHER, 2007, p. 82)

Essas mulheres, como tantas outras, foram importantes na construção dos quilombos;

guerreiras silenciadas na historiografia brasileira, no entanto, registraram no corpo e na alma o

que viveram na África e no Brasil. As contribuições das mulheres negras na administração, na

política e na economia tinham todo um controle, como afirma, Theodoro (2011):

Teresa exercia grande controle e influência sobre o Quilombo, que contava com uma

agricultura de algodão e alimentos muito desenvolvida. Possuía teares com os quais

fabricavam tecidos que eram comercializados fora dos quilombos, bem como os

alimentos excedentes. Quariterê se caracterizou pelo seu trabalho com a forja, pois

transformavam em instrumentos de trabalhos os ferros utilizados contra os negros.

Ao longo da história, a mulher negra esteve presente lutando ombro a ombro com os

homens negros. Além disso, as mulheres exerciam frequentemente funções logísticas

61

significativas, transportando alimentos, pólvora e armamentos, assim como removendo e

cuidando dos feridos (SCHUMAHER E BRAZIL, 2007).

É interessante ressaltar que a luta das mulheres afrodescendentes por espaço e

reconhecimento social perdura até o século XXI. É uma ação contínua para garantir seu

espaço na sociedade brasileira, mesmo sendo essas mulheres, no pós abolição, que se

submeteram a permanecer trabalhando para os ex-senhores, mantendo suas famílias, como

detalha Alzira Rufino (2005)22

:

Após a Lei Áurea, com a vinda de imigrantes europeus, que passaram a ocupar o

lugar de trabalhadores negros na agricultura, indústria e comércio foram as mulheres

negras que continuaram trabalhando nas casas dos ex-senhores, assegurando a

sobrevivência da família negra já que os homens perderam seu trabalho.

Como é possível observar, o Brasil, que se favoreceu do trabalho escravo ao longo de

quatro séculos, colocou à margem um dos seus principais agentes construtores: o

afrodescendente, que passou a viver na miséria, sem trabalho, sem possibilidades de

sobrevivência e sem condições dignas. É a mulher negra que busca alternativa para sustentar a

família, submetendo-se aos abusos por parte dos homens brancos e de suas senhoras. Há de se

questionar: de onde vem tanta coragem, determinação e entrega dessas mulheres? O que as

conduz a lutar com tanto empenho? Seria a fé nos seus antepassados, a cultura, a educação, os

elementos registrados na memória que as fazem tão seguras? Surgem vários questionamentos

diante dos estudos e testemunhos das mulheres. Sabemos que nem todos terão respostas, pois

as pesquisas a respeito dessa temática, com maiores detalhes, ainda estão em escassez (ou são

escassas). Mas tentaremos analisar com base em alguns autores e autoras que nos últimos

anos vem aprofundando essas questões; contaremos com os testemunhos na luta por

melhorias no Quilombo das Onze Negras para nos aproximarmos das respostas aos nossos

questionamentos. Um exemplo é o testemunho de Dona Conceição na luta por uma escola

pública na comunidade quilombola:

Fomos a campo por uma escola de verdade. A nossa era de verdade, mas só que nós

buscávamos uma escola com registro, com professora reconhecida, com diretor, com

uma secretária, tudo o que a gente queria. Então, a nossa intenção era fazer isso

pelas crianças, que não iam estudar lá fora e não ficariam sem ir a escola. Foi

quando a gente começou andando pela Secretaria de Educação, falando com o

governo, falou com Miguel Arraes, com Madalena, passávamos o dia todinho lá e

não se conseguia nada. Até que um dia nós conseguimos, e hoje ela está aí com o

ensino fundamental. Agora nossa luta é para avançar mais, ir até o nono ano. Foi

desafiador, mas não impossível. Para chegar onde ela está foi quase impossível, pois

22

Profissional da saúde, escritora, ativista. Fundou, em 1986, o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada

Santista e, em 1990, a Casa da Cultura da Mulher Negra, em Santos-SP.

62

para levantar isso foi com a ajuda da prefeitura. Depois de muita luta e depois de

muito andar, tinha muitas pessoas que diziam “isso não vai dar em nada”, elas estão

é procurando o que fazer. Muitas não acreditavam, não. (DONA CONCEIÇÃO,

entrevista em Janeiro de 2011)

As forças da articulação com as demais, em diversas formas de redes, fazem romper

conceitos e preconceitos, como explica Dona Fátima:

Eu luto para que tanto os meus netos, meus bisnetos, tataranetos, meu irmão, meus

tios e parentes que estão aí consigam os frutos de nossa luta. Vamos lutando e

deixando aí que é pra eles prosseguirem. Porque quando eu penso a humilhação que

passaram meus antepassados, e o direito que a gente tinha e foi tirado, sinto que tem

espaço para a gente correr atrás dele. A hora é essa, da gente correr, construir e lutar,

lutar pra ter o melhor. (em Julho de 2011)

E Dona Fátima continua relatando com entusiasmo a sua participação:

A mulher levanta de manhã cedo, deixa a casa e vai para o mundo, e vai batalhar

pela comunidade. Eu observo que isso tem crescido dentro de mim e vejo que isso

tem crescido muito, porque a gente tem conseguido cestas básicas da Conab, da

Fundação Palmares. Aqui na comunidade se recebe cesta básica, aqui a gente

consegue a compra direta, que é macaxeira, inhame, é assim, uma fartura muito

grande, a gente conseguiu, energia é assim. Eu vejo essa energia, eu vejo essa

energia saindo de dentro de mim, essa força que não me dá vontade de ficar parada

meia hora dentro de casa. Minha vontade é de batalhar e lutar e trazer ao todo para a

comunidade; eu não trabalho em prol de mim, eu não tenho nada, porque não

trabalho em prol de mim. O que eu observo é quando você é eleita como presidente

ou prefeita, é que confiam em seu trabalho. Eu tenho essa força dentro de mim.

Quanto mais eu vou buscar, eu gosto de correr atrás, de participar das conferências.

Porque não adianta a gente ficar só assistindo televisão, sem participar de nada, a

gente deve participar de conferências, conselhos e lutar para conseguir uma vaga pra

todo mundo, seja nacional, estadual ou municipal, porque tem propostas que tem

que ir para o município enquadrar e tem que ir para o estado. Então, assim a gente,

em conjunto, trabalha muito por esta parte. (em Julho, 2011)

Para analisar esses relatos com prudência de pesquisadora, fiz novas leituras e

busquei entender como pessoas como Dona Fátima, que das quatro pesquisadas foi a única

que não teve acesso à escola pública, constrói um discurso político como esse, repleto de

coerência com a sua realidade e com uma ampla visão sobre um universo? Como explicar este

processo de aprendizagem? Para isso, recorro a Halbwachs (2004), que afirma: “Não é na

história aprendida, é na história vivida que se apoia nossa memória”.

O sociólogo e pedagogo é feliz em sua colocação, pois no caso de Dona Fátima, seu

testemunho revela o quanto vivencia no Quilombo, assim como seu engajamento a

potencializa, ampliando a sua visão de mundo.

Diante desses relatos, observamos que as mulheres da comunidade das Onze Negras

desafiam o processo de escolarização da comunidade quilombola e em geral, pois até que

63

ponto estão sendo aproveitadas as experiências dessas mulheres no cotidiano escolar? Qual é

a disposição para que suas histórias possam contribuir em um novo entendimento de escola,

currículo, proposta pedagógica, formação e sala de aula, para que a vida, a cultura, a religião,

sejam de fato elementos do processo educacional e o respeito ao diferente seja levado conta?

Os estudo e análises dos relatos fazem entender que, a força dessas mulheres vem mediada

pela fé nos seus antepassados e no futuro de seus descendentes. Inclusive, acreditando que a

escola que elas não tiveram, ou que tiveram de passagem, seja o caminho para o futuro da

comunidade.

64

CAPITULO III – TRAJETÓRIAS EDUCACIONAIS DE MULHERES DO

QUILOMBO DAS ONZE NEGRAS

Porque tudo é educação, é matéria de todo tempo, ensinem a quem sabe de tudo a

entregar conhecimento. Na sala de aula é que se forma um cidadão, na sala de aula

é que se muda uma nação, na sala de aula não há idade nem cor.

Leci Brandão23

Este capítulo apresenta as experiências de quem sempre desejou dividir os

conhecimentos, guardados nas memórias das mulheres, em relação ao seu processo educativo,

seja na convivência na comunidade quilombola ou no acesso às escolas públicas ou privadas.

Por nos referirmos às questões educacionais, sentimos a necessidade de situarmos o contexto

histórico da educação brasileira, intercalando-o com a realidade das entrevistadas. As

indagações que percorreram os depoimentos dessas mulheres quilombolas referem-se às

diversas formas de lutas pela educação, não apenas no que tange a ganhos pessoais, mas como

estas estão relacionadas a concepções educacionais mais amplas, inseridas em uma

organização comunitária que se envolve com o futuro das crianças e dos jovens quilombolas.

E que não deixam de sonhar com esse futuro, ao mesmo tempo em que constroem suas lutas

nas lembranças vivas de seus antepassados. Provavelmente, essa atitude das mulheres inspirou

reflexões de Conceição Evaristo (2008, p.21):

A noite não adormece nos olhos das mulheres, a lua fêmea, semelhante nossa, em

vigília atenta vigia a nossa memória. A noite não adormece nos olhos das mulheres, há

mais olhos que sono onde lágrimas suspensas virgulam o lapso de nossas melhoradas

lembranças.

No decorrer deste capítulo, perceberemos na atuação das mulheres essa vigilância, ao

nos aproximarmos das trajetórias educacionais das quilombolas do Município do Cabo Santo

de Agostinho, buscando, dessa maneira, acompanhar como dedicaram suas vidas na luta por

melhorias na comunidade, e acreditaram na educação como ponto de partida para que

ocorressem mudanças em suas vidas e nas políticas internas e externas ao Quilombo. Os

registros estão relacionados à observação do fortalecimento de suas ações e da forma como

contribuíram no fazer diferente e, nesta perspectiva dar visibilidade às suas histórias,

engajamentos, lutas e intervenções no cotidiano da comunidade quilombola. A intenção,

portanto, é entender as concepções que as levaram a acreditar na educação como fonte de

23

Leci Brandão, ativista negra, cantora e compositora. “Anjo da Guarda”, música de sua autoria.

65

ascensão social e a tratar suas histórias como ponto de partida para novas reflexões na

educação escolar, na formação docente e na formação acadêmica.

Ainda neste capítulo, buscaremos trazer as histórias de vida dessas mulheres,

ressaltando as experiências no processo educacional e como este vivido pode tornar-se um

instrumento de luta pela efetivação de políticas públicas, onde a população afro-brasileira

sonha melhorar e se apropriar desse espaço, cujo acesso tem sido permeado de dificuldades,

de enfrentamentos diários de diferentes condições, tanto econômicas, quanto culturais.

O relato de Valdirene expressa com lucidez o significado das mudanças na vida das

mulheres no Quilombo em relação à educação:

Para mim melhorou bastante porque as mulheres não estudavam, ou seja, estudavam

só até algumas séries, aprendiam a fazer o nome, se tornavam donas de casa e

paravam. Hoje eu não vejo isso, as mulheres estão trabalhando sim, mas fora de casa

também estudam, trabalham e ajudam em casa. E no processo educacional, para

mim se tivesse mais ajuda na educação seria melhor, não só das pessoas de fora, mas

que o município ele todo abraçasse a causa. Teria formação não só pra gente, mas

para outras comunidades, poderiam estar trazendo sua experiência de vida no

processo de educação. (VALDIRENE, entrevista em Janeiro de 2011)

Observa-se no relato, que a pedagoga tem uma visão do papel da mulher que vai

além de sua função doméstica e que acredita na possibilidade da apropriação de uma

educação para transformar suas vidas. Neste capítulo, dedicado à trajetória educacional de

quatro mulheres do Quilombo das Onze Negras, no Cabo de Santo Agostinho-PE, situamos os

problemas educacionais enfrentados pelas quilombolas para ter acesso à educação escolar e

para a efetivação de políticas educacionais na comunidade, que favoreçam a manutenção de

suas histórias, cultura e lutas. Para nossa reflexão, nos sustentamos em conceitos de

diversidade cultural, escola, democracia e currículo de acordo com os escritos de Forquin

(1992), Apple e Beane (2001), Goodson (2001) e Gomes (1995, 2006). Na análise das

principais fontes empíricas, os relatos das mulheres quilombolas colhidos em entrevistas,

usamos os fundamentos de Paul Thompson, (1992), Meihy e Holanda (2007) e Pinsky (2005).

3.1 O Lugar da População Negra na História da Educação Brasileira

Temos conhecimento que as comunidades quilombolas vem enfrentando diversas

formas de desafios em relação à educação24

e, em particular, a educação escolar,

24

Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef, as mais atingidas são as [crianças] oriundas de

populações vulneráveis como as negras, indígenas, quilombolas, pobres, sob risco de violência e exploração, e

com deficiência". Segundo dados divulgados do total de crianças que não freqüentam a escola, 450 mil são

negras e pardas e a maioria vive nas regiões Norte e Nordeste.

66

principalmente no que se refere a encontrar nesse espaço de formação possibilidades de

(re)produção e (re)criação de sua cultura de origem. Uma das justificativas mais presentes é o

distanciamento da cultura escolar pública da realidade quilombola. Concorda-se com a

afirmação de Silva25

, de que a importância dos diferentes grupos e culturas no Brasil, e a

ampla possibilidade da escola se abrir para esse universo, empreende, em seu cotidiano, uma

reflexão que pode interligar teoria e prática.

Desde os primórdios da colonização, a educação se estruturou de forma diferenciada

em relação aos diversos grupos sociais. Nos estudos de História da Educação, predomina a

ideia de que a população negra escravizada ou livre não teve acesso ao sistema educacional.

Estudos recentes, no entanto, como o de Fonseca (2009) tem demonstrado que, em

determinados locais, populações negras e pobres também estiveram na escola elementar do

século XIX.

Com o período republicano e as novas políticas públicas em relação à educação, a

expansão das escolas elementares não atingiu as populações mais pobres. Os discursos

políticos buscavam ampliar a escolarização, mas, enfrentavam dificuldades quanto ao

financiamento de uma ampla rede de escolas, uma vez que cabia aos estados os gastos com o

setor primário educacional. Alguns estados, com maiores condições econômicas, ampliaram a

rede escolar, porém, sempre com defasagens quanto às necessidades do conjunto da

população infantil. É importante ressaltar que, pelas Constituições republicanas, para ser

eleitor era necessário ser alfabetizado, e tal exigência excluía dos direitos políticos uma parte

considerável da população, notadamente a população negra.

No decorrer da década de 1930, a criação do MEC e da política nacionalista de

Getúlio Vargas transformou a educação em assunto de segurança nacional. Nesse período,

com a expansão da indústria e da urbanização, novas demandas educacionais forçaram o

governo a ampliar a rede escolar, incluindo as escolas técnicas e profissionais. Nesse

contexto, podemos identificar o surgimento de mobilizações da população negra e a criação

de organizações que começam a pautar em suas lutas a questão da educação, como enfatiza

Gonçalves e Silva (2000).

Em momentos cruciais da história republicana, podemos encontrar registros dos

movimentos de protesto dos negros: o mais emblemático foi promovido pela Frente

25

SILVA (2011) A Educação Diferenciada para o fortalecimento da Identidade Quilombola: Estudo das

Comunidades Quilombolas do Vale da Ribeira. Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade, da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP

67

Negro Brasileira, em 1931, na cidade de São Paulo, mobilizando em torno de

100.000 militantes (p. 139).

É importante enfatizar esse contexto histórico do movimento trazido pelo autor, pois

são movimentos negros que em toda parte do Brasil incorporam as lutas em prol da educação

para a população negra e no combate à discriminação, criando mecanismos de valorização da

raça negra. Isso tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, com o Teatro Experimental do

Negro. A concretização da compreensão de Libertação, proposta pela Lei de 1888,

determinava que todos fossem educados, isto é frequentassem a escola. As entidades negras

do Nordeste se uniram aos demais estados do país, como afirma Gonçalves e Silva:

A posição de algumas entidades negras no Nordeste não deixa dúvida de que, ali

também, os negros tiveram que, inicialmente, assumir para si os encargos da

educação de seu grupo étnico. Foi criada em Recife, em 1936, a Frente Negra

Pernambucana, que contava em seus quadros com o poeta negro Solano Trindade

(2000, p.139).

Na reflexão dos autores, observamos que a busca de educação era a bandeira de luta

do movimento, pois era nítido que um dos indicadores de exclusão da população negra, era a

baixa escolarização. Esta luta pela escola era emblemática enquanto fator de cidadania e, é

preciso salientar, que ela se fazia a despeito da ideologia que permeava a escolarização

voltada ao fortalecimento da indústria, ou seja, que toda a aprendizagem estivesse voltada

para a formação do agente produtivo, sem haver preocupação com o desenvolvimento do

senso crítico do indivíduo, pois sua função seria produzir, auferir lucros à sociedade

industrial. É justamente nesta ocasião, que os atuais moradores do quilombo das Onze Negras

foram morar no Engenho Trapiche, no município do Cabo de Santo Agostinho.

É o momento do atrelamento entre a escola e o mercado de trabalho. Isso é retratado

nos testemunhos das entrevistadas ao relembrar suas histórias. A partir desse período, a

educação passa por várias reformas incluindo as do regime militar que, de forma

contraditória, ampliou a escolarização para um setor, dentro dos modelos econômicos de

internacionalização. A educação acompanha, então, o processo econômico e social. Se na

história da formação da sociedade brasileira o negro foi apresentado como um ser passivo,

submisso, sem poder de voz e de vez. Tal situação perdura. É neste período de educação

tecnicista, que se reproduz na sociedade a ideia de igualdade para todos. Mas, para as

mulheres quilombolas, este ainda era um período de desafios em relação ao acesso a escola,

como recorda Dona Conceição:

Para ir a escola era difícil, pois a gente ia a pé até Engenho Novo onde começamos a

estudar. Nós tudo criança, mamãe dizia que temos que estudar e nós tinha que ir

68

mesmo. Passávamos por uma trilha, um caminhozinho, atravessávamos o Rio

Passarinho26

, na plantação de goiabeira e azeitonas, era muito mais este caminho que

fazer todo o retorno pela outra estrada que ficava por trás da casa de seu José Neto.

Nessas mediações eu encontrava minha irmã de leite, para ir a escola e encontrava as

tias de Fátima, que tinha dias que não iam, pois tinha que lavar roupa para ajudar a

mãe e então perdia de ir para a escola. Após este período da escola do Engenho

Novo fomos estudar na escola do Cabo, que era lá nas imediações do cemitério e por

fim estudei na Destilaria onde era a maioria branca, mas, tinha negros também entre

os filhos dos funcionários (em Janeiro de 2011).

Nota-se na fala da conselheira da Comunidade Quilombola, que a escola não

condizia com a realidade dos moradores e não proporcionava situações de permanência dos

estudantes em condições sociais e econômicas desfavoráveis. Havia, como no caso do

depoimento de Dona Conceição, agravantes para o caso de crianças que moravam em zonas

rurais e que eram trabalhadoras:

Quando fui trabalhar na casa de branco levei minhas bonecas para brincar, pensando

que quando terminasse os serviços eu poderia brincar. Eu fazia tudo e não sobrava

tempo para brincar, a mulher quando via que eu tinha terminado uma coisa, já me

dizia que eu tinha que fazer outra. Mamãe conversava comigo e dizia que a patroa

era assim e eu tinha que trabalhar para ajudá-la, a partir daí eu vi que a vida era

outra, só em casa a gente fazia o serviço e brincava. E mamãe queria dizer que a

casa de branco era dureza, tinha que trabalhar. (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em

Agosto de 2011).

Este depoimento mostra o quanto era sofrida a realidade dos afrodescendentes e

como era contraditório pensar em práticas de democracia racial, tal qual políticos e

intelectuais tentavam colocar o Brasil, como um país no qual todos teriam direitos à ascensão

social, independentemente da característica étnico-racial. Sobre esta estratégia política,

Cavalleiro (2000, p. 29) faz a seguinte colocação:

A ideologia da 'democracia racial' aparece como um elemento, complicador da

situação do negro. Essa ideologia, embora se tenha fundamentado nos primórdios da

colonização e tenha servido para proporcionar a toda sociedade brasileira o orgulho

de ser vista no mundo inteiro como sociedade pacífica, persiste fortemente na

atividade, mantendo os conflitos étnicos fora do palco das discussões.

Dos anos 1970 à atualidade, foi estruturada a obrigatoriedade do ensino público nos

termos previstos pela lei federal 5692, de 11 de agosto de 1971. Essa lei, ao definir as

diretrizes e bases da educação nacional, estabeleceu oito anos de escolaridade obrigatória

como objetivo geral para o ensino fundamental. Destacamos no final desta década o

surgimento do Movimento Negro Unificado, organização que abrange todo território

nacional.

26

Riacho que passa por dentro das terras quilombolas.

69

Já nos anos 80, o movimento negro tem um caráter nacional, reúne entidades negras

de todo o país em defesa da democracia, e fortalece os objetivos de políticas educacionais.

Surgem nesta década os Agentes de Pastorais Negros - APNs - que embora tenham sua

origem na igreja católica progressista, não possuíam vínculo institucional, sendo abertos para

toda comunidade de fé e tendo como uma das finalidades fomentar discussões sobre a

discriminação e marginalização da mulher negra. O movimento negro, em suas diversas

atuações, inseriu-se neste período em várias formas de mobilização articuladas pela sociedade

civil organizada, em torno da luta pela redemocratização, que visava o final da ditadura

militar e a elaboração de uma nova Constituição para o país.

Nos anos 1990, a educação passou por mais uma alteração em seus documentos, com

o surgimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), tendo a formação para a

cidadania como um dos seus objetivos principais, como está explícito no seu documento

introdutório: “Proporcionar aos educandos a formação necessária ao desenvolvimento de suas

potencialidades como elemento de auto-realização para o trabalho e para o exercício

consciente da cidadania” (PCN, Introdução, 1997, p. 14).

Percebe-se, portanto, a necessidade de investir em uma educação que contribua na

formação de pessoas, que sejam capazes de saber quais os seus direitos e deveres. Até o

momento, os professores sentem a dificuldade de trabalhar a questão do diferente,

especialmente no sistema da escola pública. A proposta de inclusão dos valores étnicos em

seus currículos favorecerá um resgate da formação da identidade brasileira. Essa informação

corrobora com a constatação do PCN, em sua introdução:

[…] A Constituição de 1988, afirma a necessidade e a obrigação de o Estado

elaborar parâmetros claros no campo curricular capazes de orientar as ações

educativas do ensino obrigatório, de forma a adequá-lo aos ideais democráticos e a

busca da melhoria da qualidade do ensino nas escolas brasileiras. (1997, p. 15)

Ainda nas décadas de 90, vamos ter acontecimentos significativos quanto a uma

educação democrática, como por exemplo, a Conferência Mundial de Educação Para Todos.

A realização desta Conferência demonstra a seletividade existente e que persiste, nos

diferentes sistemas educacionais, bem como o fato de que alguns segmentos ainda estão em

fase de luta por direitos sociais, para se chegar à universalização da educação. Assim, cabe

indagar: Como se referir à educação para todos, se na verdade há uma imposição da cultura

branca sobre negros e indígenas? Como falar de educação para todos se, na verdade, a maioria

70

negra e quilombola existente no país não têm acesso à educação de qualidade e são os que

representam a maioria analfabeta deste país, conforme os dados do IBGE:

A taxa de analfabetismo diminuiu na última década, passando de 13,3%, em 1999,

para 9,7%, em 2009, para o total da população, o que representa ainda um

contingente de 14,1 milhões de analfabetos. Apesar de avanços, tanto a população

de cor preta quanto a de cor parda ainda têm o dobro da incidência de analfabetismo

observado na população branca: 13,3% dos pretos e 13,4% dos pardos, contra 5,9%

dos brancos, são analfabetos (IBGE, 2010).

Os dados demonstram que a nossa educação classista, não deixa que as camadas

populares incluam-se no quadro dos cidadãos capazes de propor mudanças e expressar suas

ideias, sua cultura e religiosidade com maturidade. As formas de exclusão se inserem nessa

política educacional, tal qual expressa Romanelli:

A necessidade de manter os desníveis sociais teve, desde então, na educação escolar,

um instrumento de reforço das desigualdades. Neste sentido, a função da escola foi a

de ajudar a manter privilégios de classes, apresentando-se mesma como uma forma

de privilégio, quando utilizou de mecanismo de seleção escolar e de conteúdo

cultural que não foi capaz de propiciar às diversas camadas sociais sequer uma

preparação eficaz para o trabalho. (1978, p.24)

Os desníveis sociais, econômicos e culturais, assim como a manutenção da

desigualdade de classes permanecem até hoje quando nos voltamos para a realidade da escola

pública, onde é visível o descaso com a educação para as camadas populares, com seu o

quadro de repetentes e de evasão escolar. Explica-se a repetência e a evasão escolar pelos

processos educativos, bem como pelas práticas pedagógicas que lhe fornecem sustentação

material e simbólica e que não podem ser dissociados da realidade histórica e cultural na qual

se encontram enraizados valores e normas, dentre as quais o racismo que, ao longo da

trajetória da educação brasileira, legitima injustiças e relações sociais atravessadas pelo

autoritarismo e conservadorismo.

A educação, sob essa ótica, materializa um determinado projeto de sociedade,

mobilizando representações que orientam e definem o sentido das práticas desenvolvidas

pelos sujeitos no espaço escolar, como é possível observar nos índices do IBGE (2009).

Em 2009, 62,6% dos estudantes brancos de 18 a 24 anos cursavam o nível superior

(adequado à idade), contra 28,2% de pretos e 31,8% de pardos. Em 1999 eram

33,4% entre os brancos, contra 7,5% entre os pretos e 8% entre os pardos. Em

relação à população de 25 anos ou mais, com ensino superior concluído, houve

crescimento na proporção de pretos (2,3% em 1999 para 4,7% em 2009) e pardos de

(2,3% para 5,3%). No mesmo período, o percentual de brancos com diploma passou

de 9,8% para 15%. (IBGE 2009).

Como é possível observar, a educação brasileira nos últimos anos tem, como um dos

seus maiores desafios, a busca pela superação da desigualdade, da exclusão e do racismo,

71

elementos impregnados no contundente silêncio da historiografia e no modelo de sociedade

voltado para as elites do país. Como podemos afirmar que o sistema educacional é

democrático se convivemos em um contexto de desigualdade? Quando o ensino passou a

ser público, ele se inseriu em uma política de mercado, impregnado das sequelas de uma

sociedade capitalista na qual tudo gira em torno do capital, e a escola torna-se o espaço onde

essa política perpassa, estabelecendo regras e formas de atuação. Em outras palavras, ela é

administrada e controlada pelo capital econômico, perdendo assim a possibilidade de ser

“aquela que deveria formar a todos, independente de etnia, gênero, religião ou classe social”

(VIEIRA, 1997). É neste contexto, que tentaremos nos aproximar da trajetória educacional

das mulheres do Quilombo das Onze Negras, observando como todo esse processo da

educação brasileira interveio, ou não, em sua história de busca de escolarização.

3.2 – Mulheres Quilombolas:sem alarde, fazendo história

Este item pretende fazer uma aproximação da história das mulheres e apresentar quem

são essas quilombolas, que embora sem reconhecimento na historiografia oficial tradicional,

fizeram de suas vidas um instrumento de luta incansável.

Imagem IV – Participação das quilombolas no Seminário, junto com estudantes

e professores.

Seminário da Comunidade Quilombola de Rio Formoso (PE). Foto: Maria José dos Santos

(Novembro de 2011).

72

A Imagem V registra a participação das quilombolas junto com estudantes,

professores e comunidades em um dos seminários sobre educação nas comunidades

quilombolas. Com todos os desafios ressaltados nos itens anteriores, em relação à educação da

população afrodescendente, essas mulheres não se acomodaram, como relata Dona Fátima:

Sou da Comissão Estadual e sou liderança da comunidade quilombola das Onze

Negras. Para mim como quilombola tenho muito orgulho em contribuir nas

políticas públicas voltadas para os quilombos, especialmente voltadas para nós

mulheres. Como quilombola tive uma educação muito difícil, muito difícil mesmo,

porque minha mãe e meu pai não tiveram condições de botar a gente para estudar

em escola. A gente aprendeu na época no Mobral que hoje é o EJA, aprendeu em

casa mesmo com a Conceição, que era a mais velha na comunidade e era quem

sabia, quem foi alfabetizada. Ela era quem nos ensinava, o Mobral que chamava o

b-a = ba o b-e = be. Com isso hoje a gente, apesar das dificuldades, aprendemos a

assinar nossos nomes. E na nossa comunidade a questão da educação tem uma

comissão dividida em educação, saúde. A gente tem o grupo dividido em cada

comissão, cada processo tem um núcleo que trabalha voltado para aquela atividade,

no caso da educação diferenciada para a comunidade quilombola. E o que seria

educação quilombola? (a mesma faz o questionamento e responde) A gente quer

que, realmente nossa história vá para os livros, seja publicada a partir da nossa da

realidade, porque até hoje as imagens que temos é de Saci Pereré, a empregada

doméstica sempre aquela negra. Graças a Deus a gente tem lutado, para que a nossa

imagem vá completamente diferente. Observamos que negro agora é reconhecido,

antigamente a gente era discriminado, principalmente a gente aqui da comunidade,

sofremos muita discriminação. Na época de nossos pais não havia condições de

mandar a gente pra escola, a gente não tinha um lanche de qualidade. O lanche era

macaíba, azeitona, araçá e a maioria dos meus irmãos não tiveram realmente

condições de ir para uma sala de aula. A gente estudava em uma casinha de palha e

a moça nos alfabetizava, era assentadinha em uma cadeirinha de (neste momento

gaguejou e estralou os dedos, e fechou os olhos por alguns segundos - como se esta

volta ao tempo de sua infância fosse dolorosa), madeira de vara, e a gente foi

alfabetizado no b-i-bi, no b-o – bo e assim a maioria daqui aprendeu a fazer o seu

nome. (DONA FÁTIMA, entrevista em Janeiro de 2010).

Ao retratar sua história a entrevistada nos leva a perceber o quanto a educação

escolar se manteve distante das possibilidades deste povo e ao mesmo tempo como este foi

descobrindo outros valores e formas de aprender. E o fato de não ter tido acesso a escola não

quer dizer que não houve aprendizagem, como explica Trindade (2000, p.18):

Nem sempre no Brasil e no resto do mundo de uma maneira geral, a ausência de

letra, o analfabetismo, o não ser letrado, quer dizer que não seja culto. É possível ter

sabedoria, ter cultura, no sentido de uma instrumentalidade para lidar com o real,

sem passar pela letra.

Nas colocações de Dona Fátima, transparece o quanto a educação escolar é

importante, porém ela destaca que deve ser uma educação que possa ir além das letras. Ela

expressa a necessidade de investir em uma educação que contribua na formação de pessoas

que sejam capazes de saber quais os seus direitos e deveres. Uma educação escolar

73

humanizadora que leve o indivíduo a se ver dentro do processo, com todas as dimensões do

ser humano em desenvolvimento.

Embora não tenha passado pelos bancos da escola pública e nem pela academia, a

entrevistada tem um acúmulo de experiências que dão suporte ao seu entendimento do que

seja educação escolar e o valor desta em sua vida e na vida da comunidade quilombola. Por

ter este entendimento do papel do/a profissional da educação é que a representante quilombola

sente-se motivada e vem intervindo na educação do Quilombo, especialmente junto aos

professores, quando o assunto é a manutenção da tradição dos seus antepassados e junto aos

órgãos públicos, pois a mesma observa as dificuldades que os professores sentem ao trabalhar

a questão do diferente e sua cultura, como explica Dona Fátima em seu depoimento se

referindo à presença dos docentes na escola do Quilombo:

Hoje estamos avançados porque temos uma escola na comunidade, registrada no

Município, que é a nossa luta para ser de qualidade, para ter a nossa realidade, nossa

vida do dia a dia. Lutamos também para que as diretoras e as professoras se adaptem

a nossa realidade, que não venham fazer uma educação diferenciada, sem ser de

acordo com a nossa realidade e quando temos uma professora ou uma diretora

atrapalhando muito, que isso já ocorreu em nossa comunidade, ao chegar um

professor aqui, que não se adaptou a condição de vida e nem de nossa realidade

cultural, então houve um problema, lutamos e o tiramos. Hoje a gente tem

professores que buscam trabalhar junto com nossa cultura, com nossa realidade, com

nosso dia a dia, embora ainda seja um processo. (DONA FÁTIMA, entrevista em

Janeiro de 2011)

De onde vêm essa aprendizagem e esse conhecimento em relação ao papel do

profissional da educação e da escola, se esta senhora nunca frequentou os bancos escolares,

como ela ressalta em sua fala anterior? Dona Fátima diz que aprendeu a assinar o nome na

comunidade, pois ainda criança teve que ajudar a seus pais. Em seu depoimento a presidente

da Associação nos faz perceber a atividade de educadora que, embora não tenha tido a

oportunidade de frequentar a escola, traz consigo um entendimento de educação

comprometida e participativa, orientada pela perspectiva de realização para toda a

cominudade, baseada no saber existente e que estimula a participação em um projeto

comunitário, como afirma seu conterrâneo Paulo Freire (1996/1999) em seus escritos, quando

refere-se à educação popular, explicando que esta não é uma educação fria e imposta, pois

baseia-se no saber da comunidade e estimula o diálogo. É uma educação que visa a formação

de sujeitos com conhecimento e entendimento do que seja ser cidadão. É uma estratégia de

construção da participação popular para o redirecionamento da vida social, que tem como

principal característica a utilização do saber da comunidade como matéria prima para o

74

ensino. É aprender a partir do conhecimento do indivíduo e ensinar a partir de palavras e

temas geradores de seu cotidiano.

Portanto, na fala de Dona Fátima, é subentendido que a escola deve ser um dos

espaços sociais existentes na sociedade, que deve existir como uma agência socializadora com

uma importância singular e um compromisso diferenciado de uma escola voltada para a

competitividade e para o individualismo. Pelos textos oficiais é na escola que o estudante

deve ter uma permanência obrigatória, para que ela possa contribuir no seu desenvolvimento

enquanto ser social. Neste espaço, o alunado deve se perceber dentro do seu contexto, e não

deve sofrer discriminação negativa de forma que interrompa seu processo de aprendizagem.

Como afirma a atual Constituição Brasileira (CF/88), está assegurada a universalização da

educação, assim como a responsabilidade do Estado:

Art. 205 - A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, promovida e

incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da

pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho

(CF/88).

Partindo deste pressuposto, entendemos que a escola deve estar aberta para acolher

os estudantes com a sua realidade diversa: cultural, econômica e religiosa, pois a função da

escola é contribuir para a construção de uma sociedade democrática de fato, que ofereça aos

estudantes elementos que os ajudarão em seus questionamentos, nas fases do seu

desenvolvimento. Esta é a real função da educação conforme exprime Gadotti (1997, p. 09):

“Educar significa capacitar, potencializar, para que o educando seja capaz de buscar a

resposta do que pergunta, significa formar a autonomia”.

A educação escolar para as mulheres quilombolas, no entanto, sempre esteve fora de

sua realidade, especialmente o acesso, sempre foi desafiador pela questão do distanciamento,

a começar pela localização da escola, como expressa Dona Conceição.

Em tempo de pequena eu estudava no Cabo, porque ainda não tinha escola por aqui.

A escola era muito longe, a gente ia com um sacrifício muito grande, porque tinha

que andar em lugares desertos. Se fosse hoje eu não teria coragem mais, felizmente

naquele tempo acho que as pessoas eram menos maldosas, a gente tinha que

atravessar o rio e passar pela mata para poder chegar à estrada e ainda tinha um

problema. Se a gente visse uma pessoa que a gente não tinha o costume de ver muito

a pessoa no caminho, na estrada, a gente corria para o meio das canas, se escondia,

deixava a pessoa passar e depois era que a gente seguia. Imagine o perigo, se fosse

hoje as pessoas corriam atrás, com tanta maldade. Tinha tempo que diziam que

estava dando cachorro doente, eu ficava com medo, pois eu saia praticamente só

daqui para ir ao Cabo, é que você não sabe. Ali onde mora José Aniceto, morava

uma colega minha que era como se fosse minha irmã de leite e ali eu me encontrava

com ela e aí seguíamos juntas as duas para a escola. Lá perto do cemitério, um lugar

que a gente chamava de Pedra do Ronco, ali em cima quando a gente voltava para

casa, ainda no meio do caminho, mamãe e papai gritavam: deu a lição? (o olhar de

75

Dona Conceição elevou-se para o alto como se fosse viajar no tempo) Se eu

dissesse que não, ia apanhar, porque não tinha dado a lição, mas geralmente eu dava

porque tinha medo de apanhar. (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em Janeiro de

2011)

Em vários momentos dos relatos, vamos perceber que a questão da distância da

escola para o Quilombo é retomada pelas entrevistadas, e esta condição foi algo que ficou

marcado na história das mesmas. Outro detalhe pertinente é a insistência da mãe para que as

filhas aprendessem a ler. Dona Conceição continua seu relato:

E assim estudei um ano no Cabo, é que a Destilaria era condomínio fechado, mas

quando foi depois eles, como mamãe lavava roupa para a Destilaria, aí eles abriram

para os filhos de algumas pessoas que trabalhavam lá dentro da Destilaria. Então,

quando eu estudei com muita dificuldade, pedia para não ir, mas mamãe nisso aí ela

sempre teve muito cuidado, para a gente ir para escola. Ela disse “eu não estudei

muito, mas vocês são novas, tem que estudar, vamos embora aprender a ler, pronto”

(repete a fala da mãe). Ela já sabia que íamos ter uma tarefa na casa dos outros e ela

dizia “quem vai ensinar a vocês é casa do branco” (expressão da mãe). A gente ia

aprender a ler, mas tendo que pensar que ia trabalhar. Comecei a trabalhar com 9

anos de idade, já tinha terminando a 2ª serie primária, parei de estudar no Cabo,

passei um tempo. Aí eu tinha uma irmã, mas ela já faleceu, ela ficava muito

preocupada porque era muito longe. Aí a gente passou para Engenho Novo, (nesta

hora alguém pede informação passando na frente da casa, o galo começa a cacarejar

fiz uma pequena pausa). (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em Janeiro de 2011)

É importante observar nas histórias dessas mulheres, o quanto foi difícil ter acesso a

escola e ao mesmo tempo perceber o empenho dos seus pais. A mãe assume o compromisso

de motivar e exigir empenho das filhas com as tarefas da escola. A família assume o papel de

dar condições para que Dona Conceição tenha a possibilidade de ir à escola. Os desafios eram

muitos, as barreiras do acesso a escola eram diversas, como ela expressa ao relembrar:

Ainda tinha um problema, minha família não tinha muita coisa, tinha dias que meu

caderno era partido ao meio, a gente dividia o caderno ao meio para os demais

filhos, não tinha o privilégio de ter o caderno para uma só. Eram muitas, tinha que

dividir o caderno, então juntava as folhas, fazia um grude para colar o caderno.

Tínhamos dificuldade de ter sapatos, era aqueles tamanquinhos no mercado de São

José, aí então às vezes a gente ia só com um pé e dizia que o outro estava doente,

mas não era verdade, é porque não tinha. Tudo foi dificuldade que a gente enfrentou

para estudar, mamãe se preocupava muito para a gente estudar, isso aí ela se

preocupava muito, não era por pensar em nos ver formados. Não, para ela o

importante era aprender a ler. A gente tinha até um vizinho nosso que dizia que não

queria que as filhas estudassem, para não fazer carta para namorado, mas mamãe

não, para ela era o aprender a ler, não era pensando na continuidade, não, era

aprender a ler. Com nove anos fui para casa de família, mas minha vontade era de

estudar. (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em Julho de 2011).

Dona Conceição nos faz entender o quanto os afrodescendentes estiveram à margem

da sociedade e o quanto foram vítimas da exclusão, o que motivou a persistência da mãe para

que a filha tivesse acesso à leitura. Neste contexto, compreendemos o quanto a educação

76

esteve e permanece ligada ao passado, onde a escola era apenas para quem tinha o poder

econômico. Conforme Vieira:

Em nossa história o privado veio a articular-se organicamente com formas de vida

social que se plasmaram numa sociedade excludente. Em outras palavras, no

contexto de uma educação voltada para as elites, o privado representou insígnia de

classe social e marca diferenciadora dos detentores do poder. (1997, p. 66).

Outro fator agravante nesta época, que é interessante enfatizar, era o objetivo da

escola, muito mais voltado para o aumento da produção industrial e fortalecimento do

capitalismo. A escola não absorvia as diversas culturas em que ela é composta, estando

voltada para o monopólio do poder e a concentração do capital, o qual encontra-se centrado

na cultura dita dominante. As quilombolas relatam com alegria a cultura herdada de seus

antepassados e que poderiam ser um elemento fortalecedor do processo de ensino

aprendizagem. Dona Conceição narra as festas e momentos de manifestações culturais que

marcaram sua história:

Era muito bom no Carnaval, a gente brincava três dias. Aí tinha a sede, enfeitava tudo,

quando era domingo saia a Lauça e o dinheiro arrecadado a gente guardava, pra

comprar comida, pra continuar rolando a festa, isso era até a terça-feira de Carnaval. A

Lauça saia o dia todo, chegava a noite, lavava o rosto, tomava um banho, dava um

cochilo e acordava chamando os colegas que já estava na hora, de meia noite da terça

tinha um pessoal que era muito católico que parava tudo, pois diziam que começava a

quarta-feira de cinzas. Tinha a Páscoa, o São João, também fazia fogueiras, a gente era

afilhados e comadres de fogueira, muito animado mesmo. O pessoal dizia que quem

não fazia uma fogueira na porta, aí o diabo vem e bota, ai o pessoal fazia a fogueira

nem que fosse pequenininha. É tinha na casa grande do administrador uma

distribuição de prêmios para todas as crianças, ganhavam um corte de fazenda, um

pacote de confeito. Era uma festa pra gente, era muito bom, não lembro a data, mas

era uma vez por ano. (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em Agosto de 2011).

Os acontecimentos que fazem parte do cotidiano da vida do Quilombo são

desconhecidos para a escola, mesmo sendo uma marca profunda na tradição dos

afrodescendentes. Além do que, a escola poderia contribuir na manutenção dessa rica

criatividade das tradições quilombolas, constituindo-se como elementos que deveriam estar

inseridos em seu currículo e projetos políticos e pedagógicos. Entendendo cultura na

perspectiva de Forquin:

(...) pelas ciências sociais contemporâneas: a cultura considerada como o conjunto

dos traços característicos do modo de vida de uma sociedade, de uma comunidade

ou um grupo, aí compreendido os aspectos que se podem considerar como os mais

cotidianos, os mais triviais ou os mais “inconfessáveis” (1993, pg. 10).

É incontestável, haver, entre educação e cultura, um entrelaçamento íntimo e

orgânico. O conjunto de traços que Forquin destaca é o que daria vida ao currículo, eu seria

ainda mais audaciosa e diria que é a alma da educação, entendendo esta no sentido amplo, de

77

formação e socialização do indivíduo. O distanciamento da educação em relação a cultura

local, acarreta diversos fatores como o desrespeito, o preconceito e a discriminação. Ao ser

interrogada se havia discriminação na época em que ela estudava, Dona Conceição descreve:

Existia sim, tinha um menino que chamava a gente sempre de negrinha ou dizia

“tocaram fogo na mata, as guariba estão fugindo”, mas a gente não ligava, pois

estávamos chegando para a escola. Aí então a gente ficava preocupada em revidar e

não aumentar a agressividade das meninas. Das minhas meninas para cá tem

melhorado, porque eles nunca queriam chamar pelo nome, agora a professora era

uma só dona Paula, do Cabo, do Engenho Novo Santana, era bem rígida. Era tão

rígida que ensinava bem, e aprendia com ninguém, mas também ela batia mesmo e

batia pra valer. Foi dessa vez que minha irmã me tirou de lá e me colocou na

Destilaria porque ela me deu bolo que eu cheguei em casa com as mãos inchadas,

agora eu tinha medo de me dirigir a ela, eu não tinha coragem de perguntar as coisas

a ela. Aí eu tinha medo de falar com ela, eu era canhota e mamãe disse que quando

ela me visse pegar o lápis com a mão esquerda, podia bater, pronto ela batia pra

valer. Por conta disso, quando pegava o lápis com a mão esquerda sentia uma

dormência e passava o lápis para a direita, por conta disso hoje escrevo com a mão

direita, sou canhota mais escrevo com a mão direita, não consigo de jeito nenhum

apoiar o lápis na mão esquerda de tanto apanhar na mão (Agosto, 2011).

A atitude de rejeição e descaso da parte da professora, amigos e da mãe, que também

são vitimas de um contexto bem mais amplo, que tem suas raízes em um modelo de sociedade

opressora, pode ter trazido várias dificuldades no desenvolvimento físico e intelectual.

Aumentando, assim, por tantos anos, o quadro da repetência, evasão e desistência do alunado

negro, que continua vivenciando no cotidiano escolar a discriminação, o preconceito e o

racismo que, sem sombra de dúvidas, afetam sua aprendizagem, como afirma Cavalleiro:

Não há como negar que o preconceito e a discriminação constituem um problema

que afeta em maior grau a criança negra, visto que ela sofre direta e cotidianamente

maus tratos, agressões e injustiças, que afetam a sua infância e comprometem todo o

seu desenvolvimento. (2000, p. 56).

A partir daí podemos perceber que a criança desde os seus primeiros anos na escola,

já encontra barreiras no desenvolver da sua aprendizagem, pois o ambiente escolar, assim

como as relações existentes nele, em vez de contribuir em seu desempenho, gera bloqueios

que dificultam o aprendizado. Há, dessa maneira, um desrespeito a natureza humana, como

demonstra o relato dessa mulher ao nos descrever esse período de sua vida que, embora hoje

esteja com seus 72 anos, fazia com que ela abrisse e fechasse as mãos, prova que esta

lembrança ficou registrada em seu corpo e em sua memória27

, sem contar o sentimento de

culpa ao dizer que aquela era uma forma de fazer com que ela pudesse se interessar pelos

estudos.

27

O sociólogo Maurice Halbwachs (2004) destacou a importância de investigar a memória a partir da infância,

sobretudo no segundo capítulo de sua obra: Memória Coletiva e Memória Histórica.

78

Nesse contexto, observamos que nesta comunidade quilombola, como na maioria dos

quilombos do Brasil, existe um forte laço familiar, onde todos na comunidade são parentes.

Dona Maria José, que é irmã de Dona Conceição, é uma senhora extremamente animada,

segundo as demais, sua marca no Quilombo é a alegria, ela vem confirmar o empenho da mãe

no seu processo educativo escolar e que, embora sendo rígida, esta era uma forma de exigir

dos filhos o gosto pelos estudos.

Mamãe sempre dizia pra gente, vocês tem que aprender o nome, vocês tem que

estudar e a gente ia por ela. Eu dava a lição na escola e tinha que dar a mamãe, eu

acho que dava mais correta em casa do que na escola, com medo da “péia” (um tipo

de cipó) que mamãe tinha de lado. (DONA MARIA JOSÉ, entrevista em Janeiro de

2011)

Como refletimos anteriormente, a preocupação de se preparar para o mercado é um

dos reflexos da sociedade capitalista e excludente, portanto, aprender a assinar o nome e a ler

era fundamental. Além da preocupação com a preparação para o mercado de trabalho é

intrínseco às colocações dessas mulheres, as experiências que trazem marcas e que hoje vem

interferindo em qualquer momento de suas vidas, como relembra Dona Conceição ao assistir

um filme, em uma das raras vezes em que foi ao cinema:

Eu fico pensando se eu tivesse sido escrava eu era muito revoltada e tinha morrido

logo. Porque tinha que se sujeitar a muita coisa, eu não aceitaria. (Ela começa a

comentar um filme que assistiu), eu assisti um filme do João Negrinho e o que me

marcou, foi assim: a mãe do menino trabalhava como escrava e tinha um filho

pequeno. Aí a mãe estava fazendo um doce e o menino pediu um pouquinho e a mãe

dizia não, porque a sinhá não deixava, e o menino insistia e ela dizia: se a sinhá

chegar por aí vai reclamar. Mas o menino continuava insistindo (neste momento

Dona Conceição chora das lágrimas rolarem de seus olhos) prossegue: quando se

menos espera a sinhá chega e coloca a colher de doce quente na palma da mão do

menino, de imediato faz um buraco da queimadura, (Dona Conceição pede

desculpas por estar chorando, eu interfiro alegando que esta história tem a ver com

a nossa realidade e dos nossos antepassados, por isso nos comove. Fizemos um

momento de silêncio e ela continuou). É que a gente só conta as coisas boas e as

ruins, deixa prá lá, também não adianta buscar coisas que vai só se aperrear. Ela

continua o filme: depois o menino cresceu, ele era muito amigo do filho da patroa da

mãe, embora a mãe não estivesse de acordo. E a mãe (escrava) do menino sempre

preocupada em colocar o menino para estudar. Quando foi um dia o menino, viajou,

estudou e se envolveu na luta pela Lei Áurea e foi liberto. Certo dia ele volta para

encontrar o amigo, neste momento o filho da sinhá pede para a mãe apertar a mão

dele, quando ela apertou sentiu o buraco e lembrou-se do que havia feito. Eu só

lembro desse pedaço, que me chamou atenção, assisti no cinema, já faz muito

tempo. Eu digo não ia aguentar uma coisa dessas, só assistindo ficou tudo guardado

em minha cabeça, quanto mais na da mãe dele! (Agosto de 2011).

Não foi por acaso que o filme ficou marcado na memória da entrevistada, e veio na

lembrança justamente quando nos referimos ao seu processo de escolarização. Lembremos

que em uma de suas falas anteriores, ela fica com a mão trêmula ao recordar da palmatória

79

com a qual a professora lhe bateu, para que escrevesse com a mão direita. Mas o fato de trazer

essa memória de Dona Conceição foi para nos ajudar a compreender o seu processo de

aprendizagem e como os fatos vividos ou observados podem influenciar na nossa

aprendizagem. Sem contar com a coragem de vencer a dor, o querer aprender acima de tudo,

na intenção de não ser vítima, mas saber dar um retorno imponderado diante da situação de

opressão. Ela demonstra que o fato do menino do filme ter estudado e voltado como um herói

é a certeza de que vale a pena lutar, investir na educação escolar. O ocorrido com sua irmã

mais velha e outro agravante em sua vida relembra que:

A minha irmã é quem foi muito castigada por patroa. Ela grande foi pra roça e

tempo de pequena foi pra casa de família. Uma vez estava na casa de uma senhora

que mandou ela ir com um bilhete na barbearia, ela foi. Quando chegou lá pediram

para ler o bilhete e estava escrito “pele o cabelo da negrinha”. Isso aconteceu com

minha irmã por parte de pai, e cortaram, pois era uma ordem. (DONA

CONCEIÇÃO, entrevista em Agosto de 2011)

Mais uma vez, Dona Conceição vê o acesso à escola, o saber científico, como uma

arma que poderia ser usada em sua defesa, de sua irmã e da manutenção de sua cultura. Para

Dona Maria José, o acesso à escola não foi diferente das demais, causou um desprazer, pois

ela sofria com a discriminação.

Na escola tinha dias que eu dizia a minha mãe, eu não quero ir para a escola, porque

ficam me chamando de negra e dizendo que botaram fogo na mata. Era muita coisa,

não era fácil não. Isso não dá vontade de ir para a escola, não dá para ir mais nunca.

(DONA MARIA JOSÉ, entrevista em Janeiro de 2011)

Ao contrário de Dona Conceição, Maria José tem uma reação de distanciamento

frente à escola e pára de estudar, como relata:

Só fiz até a 8ª serie, antes eu parei na quarta, mas aí consegui um emprego na casa

de família, fiz o quarto ano, depois a 5ª, 6ª, 7ª e 8ª series. Fui trabalhar na casa de

família tinha 13 anos. Quando fiz 16 anos comecei a estudar novamente, porque

uma das minhas patroas disse, que só ficava lá se estudasse, (Dona Maria dá uma

risada!) mas era com muita dificuldade neste tempo. Não tinha condução, energia,

não tinha nada. Aí as filhas da minha patroa começaram a dizer “mamãe não tem

condição de ficar abrindo a porta pra tu”. Eu estudava a noite, com seis meses sai da

casa. Minha irmã e meu pai iam me buscar todos os dias. Terminei, fiz até a 8ª série.

Parei e não estudei mais. (DONA MARIA JOSÉ, julho 2011)

Os desafios de Maria José em relação ao preconceito na escola não foram tão

diferentes para sua filha, que anos depois narra sua experiência nas escolas do Cabo:

Os professores aceitavam. Mas, no começo eu fiquei com medo, eu tinha receio de

estudar lá fora, porque é assim. Eu só vivia aqui na comunidade, eu só ia ao Cabo

nos finais de semana, fazer feira. Eu estudava com meu irmão e com meu primo, só

que meu primo desistiu, ficou só eu e meu irmão. No começo tinha rejeição de

alguns meninos porque eles eram brancos e a gente negros. Comigo mesmo ficavam

me chamando de chipanzé, macaco, perguntavam o que a macaca estava fazendo na

80

sala, me chamavam de bicho, que eu passei a não querer mais estudar. Eu chegava

em casa chorando, contei a minha mãe, que foi na escola falou com o diretor,

pedindo que parassem com isso, que ela tinha me colocado na escola para estudar e

não para ser xingada. Nunca tinha sido xingada, mas sempre fui uma pessoa muito

medrosa, sempre tive medo de gente assim de fora da comunidade. (VALDIRENE,

entrevista em Janeiro de 2011)

Embora isso ocorra nos anos 1980 – pois, das mulheres pesquisadas Valdirene é a

mais jovem e está concluindo o curso de Pedagogia – é possível observar a história de

discriminação que se repete de geração em geração. E ela diz como isso interferiu em sua

aprendizagem:

No começo atrapalhou, eu fiquei com medo de pessoas de fora, até hoje na faculdade

fico meio retraída quando a professora diz que é para apresentar um trabalho. Na

infância quando estudava a 1ª serie fiz um trabalho errado e a professora chamou

atenção na sala de forma bem ignorante, aquilo ficou marcado, que hoje tenho medo

de falar em público para não errar. (VALDIRENE, janeiro 2011)

É visível o quanto o racismo está enraizado nas mentes e na formação dos

profissionais, inclusive dos pedagogos. Reproduzimos ações racistas, às vezes conscientes em

nossas práticas diárias, outras vezes inconscientes e outras por insegurança ou medo de

enfrentar a sua realidade. No caso da educadora ser negra, fica ainda mais desafiante, sem

contar com a imposição das colegas ou da direção da escola. Segundo Gomes, a ação racista é

um problema que passa pela dimensão política pedagógica, ao expressar que:

As dificuldades na abordagem da questão racial em nossa escola revelam o peso

imaginário dos valores racistas em nossa sociedade. Revela ainda lacunas

lamentáveis em nossa formação profissional: o despreparo profissional para lidar,

como educadores com sujeito sociocultural diverso. O racismo presente em nossas

práticas escolares revela-nos o quanto temos ainda de avançar como profissionais

educadores(as). É um problema político profissional e como tal precisa ser encarado

em nossa qualificação (GOMES, 1996, p. 81).

Não queremos simplesmente condenar as reações dos profissionais que discriminam,

mas queremos enfatizar os desafios que estão à sua frente, como agente de transformação. O

que falta para nossos professores na atualidade é uma formação mais coerente, na qual eles

estejam com os ouvidos atentos às necessidades dos estudantes, sem separatismo, sem

preconceito e sem monopólio cultural. É como diz FREIRE: “Não há nada talvez que desgaste

mais um professor que se diz progressista do que sua prática racista...” (1996, p.123).

E para vivência desta coerência, faz-se necessário uma transformação que nos leve a

isto, que nos desarme dos preconceitos e que nos conscientize como promotores da vida, nos

leve à descoberta de novos saberes, trazidos das diversas culturas, fazendo acontecer a

democracia que até então permanece escrita, mas pouco concretizada no cotidiano escolar.

Analisando as trajetórias das quilombolas em suas narrativas, há uma certa semelhança e os

81

acontecimentos de suas histórias é o que fortalece suas vidas, suas buscas e conquistas. São

mulheres que trazem em seus percursos educacionais, obstáculos que poderiam levá-las a ver

a educação escolar como algo que não dignifica o ser humano, mas o destrói e alimenta a

ideia de que ser negro é sinônimo de ser escravizado e estar sujeito à violência, a ignorância,

afastando-as de seu convívio familiar. Mas, pelo contrário, elas desenvolveram dentro de si o

desejo de desmistificar o processo de escolarização e, estando ou não ligadas a escolas,

buscaram se unir: uma ensinava a outra, como relata Dona Conceição, que buscou alfabetizar

seu povo:

Porque sempre, toda vida tenho vontade de estudar, agora não tinha possibilidade,

inclusive quando fiz quinze anos fui para o Rio de Janeiro passei um período lá,

porque minha irmã já estava lá e perguntou se eu queria. Havia uma vaga de babá e

dizia que eu podia estudar, pois realmente eu queria estudar, foi no Ginásio Brasil

hoje conhecido como Colégio Brasil, no Rio de Janeiro. Terminei o primário, fiz o

ginásio e fiz o supletivo que na época se dizia teste de aquisição, passei e comecei a

fazer o pedagógico, parei no 2º ano pedagógico. Voltei para a comunidade e eu não

conseguia uma companhia para ir para a escola, era a noite, não tinha uma pessoa

para me levar. Papai ainda assim cansado às vezes me esperava, ele tinha muita

tontura aí pronto, tinha dia que só misericórdia, mal conseguia andar. Era muito

sacrifício pra ele, tive que parar no meio do estudo, mas mesmo assim eu queria

continuar estudando, como tem muitas meninas que estudavam comigo e hoje são

todas professoras. Mas aí eu tinha que trabalhar, eu estudava no emprego mesmo,

assim ia batalhando alguma coisa. Foi quando apareceu a inscrição do Mobral28

, aí

eu fiz e consegui, me encaixei aqui na comunidade. Neste tempo não era na casinha

onde a gente brincava e fazia de nossa sede. Era feito uma palhocinha, uma casinha

de palha que não era de dendê, era de sapé. Então, ali tinha umas cadeiras, não era

nem cadeiras, eram bancas que os meninos eles mesmo faziam e ali eu ensinava.

Passei mais de um ano ali ensinando um bom período. Só que o dinheiro não era

todos os meses que saía, às vezes era de dois em dois meses e eu tinha os meninos

para sustentar todos os dias. A formação era no Cabo, trazia o material, cartilha, não

era apostila, era como se fossem folhas com os exercícios de cada dia e cada semana

era uma lição e a gente seguia por ali. Mostravam como era e a gente passava para

as meninas, mas a gente viu que não dá certo não. Eu queria, mas não dava por

causa das minhas condições financeiras. (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em Julho

de 2011)

Como refletimos anteriormente, o desejo de estudar, de aprender e contribuir na

formação da comunidade é visível na fala da relatora. Em um ambiente desfavorável e sem

espaço físico adequado, ela não mede esforços para aprender e ajudar os demais.

Eu gostava de ensinar, mas não tive oportunidade, se tivesse eu tinha continuado e

hoje seria aposentada como professora. Mesmo sem oportunidade eu queria que as

pessoas soubessem, tinha tanta vontade de aprender que achava que as pessoas

também deveriam ter, pra mim todo mundo deveria saber. (DONA CONCEIÇÃO,

entrevista em Julho de 2011)

28

Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado pelo governo brasileiro, pela Lei 5.379, de 15 de dezembro de

1967.

82

Deparamo-nos, na narrativa desta Senhora com um elemento que permeia toda luta

da população afrodescendente em nosso país, que é a luta pelo bem coletivo, com intuito de

fortalecer a luta por liberdade e dignidade, com o domínio das armas. Neste caso, a educação

escolar é vista como uma arma para conseguir entrar no combate, ao racismo, ao preconceito,

a homofobia, a toda forma de injustiça social. O aspecto de busca em conjunto é uma das

marcas da população negra.

Pra mim a satisfação foi muito grande, porque muita gente ficou alfabetizada. Eu

queria muito ser uma das professoras da minha comunidade, para isso eu tentei,

lutei, mas não deu, mas, é tudo como Deus quer. Não tive possibilidade, mas me

vejo na minha sobrinha, na minha neta que também já ensinou aqui na creche, me

inspiro nas professoras que estão aqui hoje que são amigas nossas. Aqui entre nós

qualquer coisa que a gente precisa, elas fazem e estão a serviço da comunidade, com

isso me realizo. (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em Julho de 2011).

Partindo do testemunho de Dona Conceição, no seu empenho em prol da formação

dos quilombolas, podemos pressupor que a escola interfere na vida social do ser humano e é

nela que ocorrem os primeiros ensaios de cidadania e exercícios de igualdade. Entendemos

que a criança, o adolescente, mulheres e homens devem buscar na escola essa contribuição,

para aos poucos conhecer o valor da liberdade e da sua participação no processo de ensino-

aprendizagem. Mas, a nossa escola atual faz dessa aproximação da realidade da criança, um

dos espaços de desenvolvimento da reprodução da sociedade racista em todos os aspectos,

como afirma GOMES (1996, p.69):

A escola não é um campo neutro onde após entrarmos, os conflitos sociais e raciais

permanecem do lado de fora. A escola é um espaço social-cultural onde convivem

os conflitos e as contradições. O racismo, a discriminação racial e de gênero, que

fazem parte da cultura e da estrutura da sociedade brasileira, estão presentes nas

relações entre educadores (as) e educandos.

A escola deveria contribuir na luta por dignidade e espaço para todos sem distinção

de raça, cor e nação, sem se tornar um empecilho para o desenvolvimento humano da

população. Especialmente, para as mulheres quilombolas, que em seus relatos nos fizeram

perceber quantos desafios tiveram que enfrentar para chegar à escola, e que, no entanto,

quando conseguiram ter acesso, depararam-se com uma forte carga de preconceitos. Enquanto

a escola for apenas uma forma de manter a máquina do governo elitista, jamais servirá para

responder às necessidades do povo, pois seu objetivo estará voltado para manter os privilégios

de uma pequena minoria, que não tem interesse em mudar a sociedade. Como destaca

NASCIMENTO (2008, p.62):

83

“Vozes mulheres”, grandes mães que atravessam a linha do tempo como pano de

fundo, mas no direito desse avesso mostram-se capazes de dar continuidade a uma

linhagem, ao contrário da obediência aparente-determinada. Mulheres fervilhando e

ramificando vozes nos fundos, nos becos escuros da sociedade brasileira.

As vozes de nossas entrevistadas são exemplo desta linhagem que ressalta a autora,

pois embora tenham passado por todos os obstáculos que se apresentaram nas em suas

trajetórias, elas buscaram alternativas para contribuir com a comunidade quilombola em

vários aspectos, porém tendo como uma de suas principais bandeiras de luta a educação

escolar.

3.3 – Nossa Identidade: Orgulho de ser quilombola

Recordando a história da mulher negra nas lutas para ocupar seu espaço de direito na

sociedade brasileira, vamos observar que cada conquista é fruto de entrega, persistência e

resistência, como Leila Gonzales29

, que desde o final dos anos 70 lutou pelo espaço da mulher

negra dentro dos movimentos sociais, junto ao movimento feminista, sendo uma das

fundadoras do Movimento Negro Unificado-MNU, que trouxe para as agendas políticas as

questões voltadas para a realidade negra. Leila Gonzales foi uma das protagonistas nas

reflexões sobre gênero e raça no Brasil. A história das quilombolas tem sido desafiadora, mas

elas trazem consigo a esperança e seguem intervindo em diversos setores, como é o exemplo

de outras quilombolas, como a expressiva liderança da comunidade quilombola de Conceição

das Crioulas, Givânia Maria da Silva. Vereadora eleita, em 2000, no município de Salgueiro-

PE, Givânia desmistificou e rompeu com diversas formas de preconceito. É importante

registrar que, se para a mulher negra da cidade é difícil romper com os estigmas impostos pela

sociedade machista, classista e racista, imagine para as mulheres quilombolas. Porém, a

pergunta que me deixou inquieta, como essas mulheres do Quilombo das Onze Negras

chegaram à conquista de espaços de liderança, a escola e as demais ações, existentes na

comunidade?

A escola para elas era um ponto de partida, como partilha Dona Conceição:

A luta foi grande, porque primeiro a gente começou, reunia as onze negras e os onze

negros, que era o pessoal do time de futebol que gerou o nosso nome de Onze

Negras. Aí com o passar do tempo já tinha mais pessoas aqui, mais crianças e todas

as mães já não sentiam segurança de mandar seus filhos sozinhos para a escola. Já

tinha carro e também diziam tá dando cachorro doente, o menino não ia para a

29

Leila Gonzales. Doutora em antropologia feminista e militante negra. Referência nas discussões sobre o

movimento das mulheres negras no país.

84

escola, quando dizia tá dando papafigo30

, também não ia para a escola. Foi neste

momento que sentimos a necessidade de alguém ensinar na comunidade.

Começamos falando com Antenor, um vereador, para ver se ele nos ajudava, que

nos auxiliou. Ele tinha uma professora Conceição, que foi a primeira professora que

veio aqui, ele pagava uma parte e a gente dava a outra parte, que era pra manter a

professora ensinando os meninos. Agora só que ela parece que ainda não tinha o

registro, quem estudasse com ela de qualquer maneira ia repetir tudo lá fora, quando

fosse pra lá não tinha como dizer que estava alfabetizado, mesmo que fazendo

arguição, podia passar ou não. (DONA CONCEIÇÃO, entrevista em Julho de 2011)

É interessante que as entrevistadas não se intimidam e vão cobrando dos poderes

públicos o que é de direito para a comunidade. Dona Maria José prossegue:

Por causa dos meus filhos e das crianças da comunidade já conseguimos a escola, só

faltava o registro, começamos a correr atrás do governador no palácio. Aí quando

chegava a secretária explicava a gente, ele não vai atender hoje não, aí traziam

mortadela e pão. Tinha dias que estávamos lá três horas da manhã, saia já era noite e

nada. Até que ele assinou para cadastrar a escola. (DONA MARIA JOSÉ, entrevista

em Janeiro de 2011).

Hoje a comunidade conta com a presença de uma escola, reconhecida pelo Estado

com o nome de Escola Estadual Padre Henrique Vieira, com o total de 53 alunos/as. A escola

funciona apenas no turno da manhã, em turmas multi-anos, 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª series (na mesma

turma) e uma 4ª serie com três estudantes que permanecem dos anos anteriores. Uma turma de

pré-escolar, com 15 alunos (sem multi), as crianças são da comunidade e dos povoados

próximos. Tem como funcionárias três professoras graduadas (das três professoras uma é

também a Coordenadora que responde pela escola junto à Secretaria) e uma Supervisora. A

escola foi fundada em 1984. Desde 2003 trabalha com base na Lei 10639/03 (segundo as

professoras), são acompanhadas pelo Grupo Estudos e Trabalhos Afro-Indígenas (Getai), da

Secretária de Educação Municipal. Segundo a professora que trabalha há 12 anos na escola:

“(...) houve um grande avanço na comunidade e hoje os jovens estão em funções diversas

(pedreiro, soldador e outras) nas indústrias”. A professora relata ainda que contribuiu, junto às

mulheres da comunidade, por melhorias para a escola. Mas, expressa que hoje os moradores

melhoraram a situação econômica e os filhos não vão para a escola do Quilombo e sim para

escolas particulares no Cabo. (PROFESSORA, setembro, 2011)

30

Papafigo, nome dado a alguém que roubava crianças, ou assustava quando a encontrava sozinha na estrada.

85

Imagem VI – Escola Estadual Padre Henrique Vieira

Escola do Quilombo das Onze Negras. Foto: Maria José dos Santos (Agosto de 2011).

A escola tem uma infraestrutura pequena, na Imagem VI é possível observar que

não há espaço para o lazer das crianças, não tem biblioteca e os livros estão na sala das

professoras em um carrinho de supermercado, no mesmo espaço em que funciona a secretaria

e a diretoria. “O terreno é do Quilombo e o prédio é alugado a prefeitura, portanto, a escola é

do Município” (PROFESSORA, setembro 2011). Essa mesma professora nos informa que a

escola tem poucos estudantes e que quem tem condições vai para as escolas do Cabo. Outro

detalhe que ela enfatiza, é que os jovens oriundos do Quilombo hoje estão com uma profissão,

porém são funções que sempre foram impostas à população negra, constituindo-se como mão

de obra barata e que exigem força bruta. Sãos cargos que não interferem nas políticas de

intervenção pública, tais como pedreiros, agentes de limpeza, serventes e outros, que, embora

sejam empregos dignos, distanciam a juventude negra do sonho de participar do processo de

mudanças sociais. Mas ao mesmo tempo em que existe essa necessidade, como reflete

Valdirene, professora e moradora do Quilombo, é necessário uma maior participação da

Secretaria de Educação municipal:

Quem ajuda muito aqui são os programas sociais, a educação aqui na comunidade é

só a existência da escola. Na minha opinião, quem deveria ser centrada aqui era a

Secretaria da Educação. Eu posso estar errada, mas para mim a Educação deveria

abraçar esta causa e dar oportunidade as professoras da própria comunidade, não só

a mim, mas a filha de Fátima que agora não está mais exercendo a função de

pedagoga. Assim nós teríamos a oportunidade de trabalhar na comunidade não

86

desrespeitando as outras colegas que também são professoras e trabalham a

comunidade. Se a Educação abraçasse a causa da comunidade quilombola, a gente

teria mais oportunidade dentro da escola. (VALDIRENE, entrevista em Janeiro de

2011).

Valdirene, que foi professora na escola da comunidade e que teve que sair por conta

do término do contrato, acredita que sua presença na escola poderia contribuir mais na

educação dos quilombolas e detalha:

Acho que sendo professora da comunidade repassa a educação que está ligada à

realidade da comunidade. E o que ensinam não é a partir do nosso cotidiano e sem

uma formação, então a gente aprende só o que é deles. Como pode dizer que a

educação é diferenciada para a comunidade quilombola? Em 2005, não lembro bem

o ano, fizeram um processo de resgate da história das comunidades quilombolas

mais pontual, com entrevistas as comunidades quilombolas, com as mais antigas na

comunidade, Conceição, Fátima e a mãe de Fátima que era viva, desfilando, mas só

ficou ali. Pediram a cartilha para fazer o livro e não deu de volta, e a comunidade só

tem até então o apoio do programa social, mas da Secretaria de Educação não. Eu

gostaria que estivesse atenta ao processo da comunidade. (VALDIRENE, entrevista

em Janeiro de 2011)

A preocupação com a manutenção e melhoria da escola é explicitada no depoimento

da pedagoga, os órgãos públicos abandonam as comunidades quilombolas e não estimulam,

nem efetivam as políticas públicas para os estabelecimentos escolares. A mesma preocupação

é dividida com as famílias, por compreenderem que estes são espaços privilegiados de

reprodução e desconstrução de estereótipos e segregação, onde é possível visualizar os efeitos

perversos que esses fenômenos tem sobre os indivíduos. A Constituição Federal, no Art. 227,

afirma que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao

adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,

à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,

à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a

salvos de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

O artigo da Constituição Federal parece contraditório em relação à realidade, pois

esses direitos não são do conhecimento da população, e quando o são, sua efetivação não

corresponde à Lei. Nas reações da população escolar, o desrespeito ao diferente e o

desconhecimento é expressivo, como afirma o relato de Dona Fátima em um momento festivo

para a comunidade escolar e demais moradores:

No desfile do dia 7 de Setembro, em 2005, levamos a nossa cultura para o

Município, a gente levou as Onze Negras, com o maculelê, a percussão, dança afro,

capoeira e maracatu. Isso para o nosso município foi um show, para quem entende

de cultura. Quem não entende nos vaiou e nos chamou de catimbozeiros, mas eu

dizia aos meninos, não desanimem, vão em frente. É que esse povo não entende de

cultura e um dia eles vão entender. Para mim foi o que mais abalou o desfile no

município do Cabo, foi o dia que a gente desfilou, somos uma comunidade

87

reconhecida nacionalmente, assim como a comunidade de Conceição das Crioulas,

porque é um grupo de mulheres que evoluiu muito e as Onze Negras é um grupo de

mulheres que está evoluindo. Cada uma de nós tem um papel na comunidade e seu

compromisso, assim estamos lutando para as meninas que estão estudando, para

assumirem a sua cadeira, para não perder espaços e dar continuidade. (DONA

FÁTIMA, entrevista em Agosto de 2011)

Vejamos neste relato a reação do público, que desconhece suas origens, embora

sejam alunos e moradores da cidade onde a comunidade quilombola está localizada. Outro

elemento é a reação de Dona Fátima, que nos faz perceber a coerência, a coragem e a sua

apropriação do conhecimento acerca de sua cultura. O reconhecimento de que não estão

sozinhos nesta luta, pois tem outras comunidades que avançaram, que hoje são referências

para ela, como ela mesma cita a comunidade de Conceição das Crioulas.

Neste testemunho observamos ainda, que é impossível pensar em mudanças sem

perceber a multiplicidade étnica e cultural brasileira ou simplesmente impondo modelos que

não correspondem ao que realmente somos e fazemos. Não pode existir uma única cultura que

sirva para caracterizar a sociedade brasileira, historicamente pluriétnica e pluricultural. Assim,

de acordo com a Lei 10.639/2003:

A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e a produção

de conhecimentos, bem como atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos

quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar

objetivos comuns, que garantam a todos respeito aos direitos legais e valorização de

sua identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. (BRASIL, 2005)

Sem dúvida, a Lei não é uma doação do Estado, mas uma iniciativa do ativismo do

movimento negro e das lutas das mulheres – como afirmam as quilombolas – e que vem

impulsionando, desde a década de 1970, a luta para incluir a história do negro no currículo

escolar. Vale lembrar, os debates que foram travados, por exemplo, no processo de elaboração

dos chamados “parâmetros curriculares nacionais” (PCN), tendo em vista incluir a temática

raça/etnia. Assim, admitimos que a Lei também se configura como um reconhecimento de que

a sociedade brasileira, o ensino público e suas práticas pedagógicas são excludentes e racistas.

As mulheres quilombolas fazem de suas vozes, suas experiências e seu cotidiano, ponto de

partida para a conquista de seus direitos. A voz que foi silenciada ao longo dos séculos, hoje

sai das entranhas dessas mulheres cheias de sabedoria, empoderamento e reivindicações.

Principalmente, na questão de saúde e educação diferenciada nós queremos

realmente que a nossa educação seja de qualidade, e a partir de nossa cultura, não

seja uma coisa que hoje vá se acabar no papel, que ela continue cada vez mais, a

gente valorizando a nossa cultura. A educação diferenciada, proposta na Lei

10.639/2003, fruto de nossa luta e empenho para conseguir implementar,

principalmente aqui no Município já está trabalhando. E a Secretária de Educação

chama a gente quando faz um seminário, a gente já teve uma conversa em relação a

88

merenda que desejamos, que será sempre de qualidade, uma merenda diferenciada,

porque a dos municípios por aí, vinha igual a das escolas que não são de

comunidade quilombola. Nós lutamos com a comissão. Hoje, a nossa merenda vem

diferenciada, de qualidade, vem o que a gente come e o que a gente quer comer,

porque antes eles queriam dar uma sopa, uma papa, uma comida que não era

alimentação nem para animal. Mas eu lutei com a Secretaria de Educação e graças a

Deus estamos com uma merenda de qualidade. (DONA FÁTIMA, entrevista em

Julho de 2011)

E Dona Fátima continua relatando a sua participação:

Eu participo do Conselho de merenda, eu luto para que a merenda venha para minha

comunidade de acordo como o que temos direito e conseguimos, graças a Deus,

avançou bastante. E assim a gente hoje tem o pré-escolar, creche, os meninos já

estão se alfabetizando na creche, a professora da creche já está falando da nossa

cultura, a gente tem amor por nossa cultura. (DONA FÁTIMA, entrevista em julho

de 2011)

Nesse aspecto percebemos que existe uma contradição nas falas, tanto da professora

quanto das entrevistadas, em relação à educação de qualidade e em relação à efetivação da Lei

10639/2003. Nas diversas visitas ao Quilombo, a escola na maioria das vezes esteve fechada

ou as professoras estavam saindo para pegar o transporte. É importante ressaltar que todas as

professoras atuais não são moradoras do Quilombo e a escola só funciona no turno da manhã,

em um dos momentos conseguimos passar parte da manhã com professoras e alunos. Isso nos

ajudou a ter uma aproximação maior da história da escola e como de fato se deu a

participação das mulheres nesta conquista, bem como sobre a perpetuação da cultura dos seus

antepassados.

Ainda no contexto da educação Dona Conceição informa que o projeto de escola

pensado não era o que foi realizado pelo município:

Pensamos nas crianças que estão no tempo de ir para a escola, e não tinha escola no

Quilombo, aí começamos nossa luta para conseguir. Não foi melhor porque o

projeto era para ser uma escola modelo, e fizeram uma escola assim, a mesma luta

foi para uma creche na comunidade que era também da prefeitura e era para ter

berçário, uma psicóloga, mas não fizeram como a gente queria. (DONA

CONCEIÇÃO, 2011).

A escolarização é uma das bandeiras de luta das Onze Negras e elas seguem

buscando uma educação escolar que corresponda às expectativas da comunidade. Este pensar

das quilombolas tem uma semelhança com o pensar dos educadores negros dos Agentes de

Pastorais Negros-APNs quando afirmam:

Nós educadores negros pensamos que toda escola que pretenda ser verdadeiramente

democrática tem que se engajar numa educação construtivista que liberte a criança e

o adolescente negros. Para que isso aconteça, os educadores envolvidos nesta escola

terão que ver o mundo com os olhos dos alunos negros e auxiliá-los na valorização

89

da cultura de seu povo e no resgate de sua história dando-lhes condições para a

apropriação de conhecimentos. (TRIUNFO, 1997. p. 79)

Partindo deste pressuposto, entendemos que a escola deve estar aberta para acolher

os estudantes com a sua realidade diversa, cultural, econômica e religiosa, pois a função da

escola é contribuir para a construção de uma sociedade democrática de fato, que ofereça aos

alunos elementos que os ajudarão em seus questionamentos, nas fases do seu

desenvolvimento. A educadora quilombola expressa a sua alegria nesta conquista das

mulheres.

É gratificante e um orgulho, para mulheres negras saírem de suas casas pra ir em

busca de uma coisa, sem saber que haveria retorno positivo, no entanto elas

voltaram e tiveram. É uma luta porque por elas aqui tinha até a 8º serie, mas só tem

até a 4º serie, em parte já foi uma batalha vencida. O que elas querem é que a

comunidade cresça tanto no processo educacional, para que tenhamos orgulho de

dizer eu moro numa comunidade quilombola. (VALDIRENE, entrevista em Janeiro

de 2011)

Valdirene é uma das Onze Negras que faz parte da Associação e que tem se

esforçado para concluir seus estudos, pois seu sonho é ser professora na comunidade. Quando

Dona Fátima se refere à creche do Clube de Mães, fundada em 9 de setembro de 1999, com o

total de 25 crianças, é mais uma conquista da articulação das mesmas com a prefeitura. As

entrevistadas compreendem que não basta a educação e que esta deve estar atrelada a outros

fatores como a saúde, transporte, meio ambiente e especialmente a terra. Além da luta pela

escola, a batalha é por um posto de saúde na comunidade, pois com suas organizações já

conseguiram solicitar a visita dos agentes do Programa Saúde da Família-PSF, o que não é o

bastante. Quando alguém fica doente não tem posto, mas segundo a Presidente isso já está

sendo providenciado.

Percebe-se em capítulos anteriores que essas mulheres estão organizadas na sua

comunidade e vinculadas a outras instituições como a Comissão Estadual de Articulação das

Comunidades Quilombolas do Estado de Pernambuco, participam de formação política e são

cadastradas no Centro Cultural Luiz Freire, que presta assessoria e acompanha o

desenvolvimento dos quilombos em Pernambuco. Elas são as griots de hoje e essa força tem

suas origens aonde?

Às vezes fico pensando assim, que já nasceu do ventre de nossa mãe, porque nossa

mãe traz consigo a cultura dos seus pais. Hoje eu sou a terceira geração, primeiro

foram meus avôs, depois meus pais. Primeiro quem chegou aqui foram meus avôs e

hoje nos encontramos com 468 famílias. Então, pra gente é um orgulho estar

representando nossa descendência e ancestralidade. Minha avó morreu com cem

anos, minha mãe morreu com 90 e pouco. Eu tenho orgulho de viver no meu

Quilombo lutando, pois antes não tinha água, energia e graças a Deus, hoje nossa

90

comunidade tem, fruto do nosso esforço. (DONA FÁTIMA, entrevista em Agosto

de 2011)

Essa referência a ancestralidade como a força que sustenta a luta é presente no povo

negro, que ao longo dos anos vem lutando para garantir seu espaço na sociedade. Os

empecilhos são muitos para que as comunidades negras vivam em paz em suas terras,

preservando suas tradições e fortalecendo a cultura brasileira, sem discriminação, sem

separatismo e preconceitos. Nas histórias das mulheres está explícita a sede de cidadania,

respeito e reconhecimento. Porém, estão vivendo um dos maiores desafios “o problema com a

estrada, convidei o ministério público e os direitos humanos, para estar ciente” (DONA

FÁTIMA, julho de 2011).

Na verdade, esse é o dilema da grande maioria das comunidades quilombolas. No

caso das Onze Negras, seu território se localiza em área de especulação, de indústrias e

fábricas, que enxergam a comunidade como um empecilho para executar seus projetos. No

momento, a comunidade é auto reconhecida, mas vem sofrendo com as fábricas que estão ao

seu redor, que estão ocupando as terras do Quilombo. E quem está na frente para evitar esta

violação são as mulheres, que percebem as suas terras como mãe, onde foram geradas e que

hoje continuam fertilizando sua cultura e seus ancestrais.

91

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O referido trabalho possibilitou uma aproximação e compreensão da trajetória

educacional das quatro lideranças quilombolas do Quilombo das Onze Negras, tendo como

ponto de partida seu lugar de origem, suas lutas para ter acesso à educação escolar e suas

formas de superar os desafios ocupando espaços de lideranças na comunidade. Respeitando a

cultura existente, usando a oralidade como o eixo condutor da pesquisa, tendo como base as

produções científicas de Thompson (1992), visto que o autor acredita que a história oral

permite uma escrita democrática e dá voz aos que, nos documentos tradicionais, não foram

considerados. Isto possibilitou observar no decorrer dos estudos acadêmicos e nas várias

leituras realizadas, o silêncio em relação a trajetória da educação das mulheres negras.

As reflexões causaram em mim, enquanto quilombola de àrea urbana, um grande

constragimento como pesquisadora, pois os desafios para chegar à academia foram diversos e

as barreiras dos preconceitos enquanto estudante negra é um fato atual. Mas prossegui,

fazendo as análises, pesquisas, teorias, literaturas e testemunhos, e constatei o cruel descaso

em relação a participação das mulheres negras na história destes país. Confesso que os

corredores da academia tornaram-se estreitos para passar, pois a partir deste momento senti o

peso da responsabilidade, da busca e da conquista de espaço no contexto acadêmico. No

acesso à educação, a permanência passou a ser coletiva ao lembrar muitas mulheres negras de

vários lugares dos quilombos como: Onze Negras – PE, Caiana dos Criuolos – PB, Bamidelê

- Organização de Mulheres Negras na Paraíba, Rede de Educadores Populares, Rede de

Mulheres de Terreiros-PE, Mulheres APNs e as mulheres de minha família, que não tiveram a

oportunidade de chegar a este espaço.

Percebi que era necessário reconhecer que não estava descobrindo algo novo, mas

que outras afrodescendentes como Eliane Cavalleiro, Josildeth Consorte, Nilma Gomes,

Petronilha Beatriz, Iolanda Oliveira, Eliete Santiago, Claudilene da Silva, Jerusa Wernek,

Denize Botelhoe e demais, já deram os primeiros passos na tentativa desmitificar e

oportunizar novas fontes de saberes. A consciência coletiva herdada de meus antepassados me

fez ver que as autoras e autores citadas/os, assim como os testemunhos orais das mulheres,

foram luzes que possibilitaram constatar que a grande vítima de tamanho descaso, foi e

continua sendo a população negra, sobretudo a mulher negra.

92

Acredito na possibilidade de que seja esse um dos motivos que desafiam os

estudiosos a escrever sobre nós, mulheres negras, ressaltando as nossas contribuições na

história deste país, pois encontramos poucos escritos e pesquisas que reflitam essa temática,

sem dar tanta evidência à brutalidade que perpassa essa trajetória. Quando nos referimos às

quilombolas, sejam elas de zonas rurais ou urbanas, temos pouquíssimos escritos sobre a

trajetória educacional dessas mulheres no Estado de Pernambuco, sobretudo no Quilombo das

Onze Negras, localidade onde nada havia sido sistematizado em termos de documentação,

inclusive os orais, até então direcionada à educação dessas mulheres. Tornando-se pertinente

aqui evidenciar, que a presente pesquisa inaugura, ou seja, passa a ser o primeiro documento

escrito focado na temática.

Embora tenhamos o conhecimento que são essas mulheres que articularam,

organizaram e alimentaram os filhos e filhas deste país, ao longo da sua formação permanece

entrelaçado e impregnado o machismo e o racismo que tenta sufocar as vozes presas nas

gargantas de mulheres que deram suas vidas, seus ventres e sua fé. Cabe-se destacar nessa

trajetória, o papel primordial das mulheres que trazidas para serem escravas e gerarem uma

descendência escrava, as mulheres negras africanas, ganharam o espaço da rua como escravas

de ganho, compraram alforrias, se tornaram livres por estabelecerem acordos entre brancos e

negros, homens e mulheres, religiosos e curiosos. Liberdade esta que as mulheres brancas

suas contemporâneas (ainda prisioneiras do espaço da casa) nunca chegaram a conhecer

(PALMEIRA, 2009).

Sabemos que foram vítimas e o quão é difícil apagar as marcas de um passado que se

perpetua, devido a discriminação ser constantemente imposta no nosso cotidiano,

desmerecendo nossa participação na sociedade brasileira, o que é constatado no testemunho

das quilombolas durante os depoimentos. E, embora os autores e autoras que foram estudados

e analisados para este trabalho tenham sido em sua maioria intelectuais mulheres negras, as

sequelas e marcas da dor do preconceito e da discriminação, estão incutidas sutilmente no

cotidiano de forma a esconder as vitórias das lutas e conquistas de ontem e de hoje.

Foi desafiador escrever cada capítulo deste trabalho, pois trouxe fatores que

enquanto pesquisadora, negra, mulher e de religião de matriz africana, causaram-me

sentimentos diversos. E, por mais que, como pesquisadora, eu tentasse me distanciar para não

intervir no processo científico do texto, o contexto permanecia desafiador, pois eu estava

diante da história de meu povo, de mulheres como minha avó, que não teve a oportunidade de

93

chegar à escola, minha mãe que criou sete filhos e ajudou a criar mais cinco sobrinhos,

trabalhando de sol a sol, lavando roupa para casa de branco, deixando as crianças na rua, sob

os cuidados dos mais velhos da vizinhança. E, comendo ou sem comer, tínhamos que ir para a

escola, caminhar léguas subir e descer ladeiras, atravessar rio, mas os estudos para mamãe

também eram prioridade, assim como eram para os pais das entrevistadas. Confesso que não

foi fácil em vários momentos, especialmente quando procurei autores que retratassem em seus

escritos as contribuições das conquistas da mulher negra, para me dar suporte e encontrei

pouquíssimos.

Ver a atual realidade do Quilombo que está prestes a ser invadido pelas indústrias e,

por fim, o sofrimento no momento das entrevistas, transcrições e análises, as lágrimas, o suor

das mãos e o medo de perder o teor científico da pesquisa, da qual tive que me afastar em

vários momentos, abandonando o texto. É impossível ser pesquisadora neste caso, enquanto

mulher negra, sem se perceber parte, seria me omitir diante da minha história, como liderança

no movimento negro desde os anos 1980, contribuindo nos estados do Nordeste, sobretudo

nas comunidades quilombolas junto às mulheres, como educadora, assessora pedagógica,

dançarina e assessora cultural. As lembranças me impulsionaram a ir mais além. Além do

tráfico escravo, da colonização, da ditadura, da redemocratização, além de tudo isso descobrir

e visibilizar a arte de ser e efetivar políticas destas quilombolas, de fazer de suas histórias o

ponto de partida para destacar suas contribuições na história do país. De fato, desejar produzir

este texto com base nos escritos de mulheres negras, de religião de matriz africana e que

tenham um reconhecimento acadêmico foi muito difícil, pois encontrei poucos trabalhos sobre

essa temática. Na tentativa de compreender como essas mulheres conseguiram manter sua

identidade e consequentemente sua cultura, em uma estrutura de sociedade que tem como

eixo de sustentação o capitalismo, o racismo e o patriarcado. Essa é a prova de sua resistência

e sua identidade, o que as sustentou no que são hoje em diversos espaços.

Thompson (1992) no decorrer das leituras e da escrita ajudou-me a desmisficar

algumas informações, por confiar na importância da história como um instrumento de

intervenção na sociedade e motivadora de mudanças. No período das análises, observo que o

fato dessas mulheres conhecerem, dominarem suas histórias e manterem vivas as memórias de

seus antepassados, as fortaleceram, favorecendo a compreensão do presente, impusionando-as

para uma intervenção intra e extra comunidade.

94

Os escritos orais apresentados nesta pesquisa pretendem preencher parte dessas

lacunas, deixadas pelas fontes tradicionais que no percurso da história da educação brasileira

tentaram silenciar o eco da mulher negra. No intuito de estimular e provocar o ecoar do grito

dessas quilombolas sufocado há séculos, tentei fundamentar em alguns autores a concepção

desta pesquisa como um instrumento que possa impulsionar a expressão dessas vozes.

Precisamente as que, em momentos como este, ecoam ainda como um suave gemido, pois

carregam consigo, na memória do corpo e da alma, sequelas incuráveis do racismo e da

intolerância relgiosa.

Uso o termo gemido em seu real sentido, como define Ferreira (2008, p. 2430):

“Exprimir dor moral ou física com voz chorosa. Produzir som triste, ou monótono. Ranger,

estalar. Sofrer, gemendo”. Cada palavra da definição do autor, em seu dicionário de

português, revela o sentimento que marca profudamente nossas vidas, enquanto negras em um

país no qual, numericamente somos maioria: no analfabetismo, vítimas da violência, fora do

processo de escolarização, desempregadas, sem acesso ao atendimento a saúde e outras

situações de vunerabilidade. Com todos os obstáculos, inclusive o de esconder sua dor, como

partilhou em seu testemunho Dona Conceição ao dizer: “Falo do que foi bom, mas o que me

fez sofrer guardo para mim, assim não tem tristeza” (setembro de 2011). A história de vida

das quatro mulheres, tornou-se um instrumento que me conduziu a buscar compreender onde

encontram forças para permanecer na luta e de onde vem essa coragem. Tento me aproximar

de suas origens no primeiro capítulo, partindo do entendimento dos autores e os testemunhos

das mulheres sobre o Quilombo.

Considero que com a diversidade de estudos e conceituação de quilombo tornam-se

restritos para o real significado, que perpassa a posse da terra e o seu reconhecimento na

atualidade, pois trazem consigo a história de conquistas dos quilombolas, da preservação da

cultural e como um acervo, mas acima de tudo o solo é sagrado, de onde tira-se o sustento do

corpo e o fortalecimento da fé. Portanto, Quilombo é constatação, afirmação da história

negada e silenciada, vista pelos “ombros”, é modelo de administração política e social

imperceptível, a forma de organização européia e capitalista.

Em relação a Palmares observo que foi o ponto de partida para que pudessem se

expandir por outros Estados brasileiros, outros quilombos, especialmente no Norte e

Nordeste, os quilombolas se instalaram também próximos aos centros urbanos ou áreas de

povoamento. É evidente que ao longo do tempo, o entendimento de comunidade quilombola

95

contemporâneo vai se ampliando e renovando seu significado político, social e cultural sem

perder sua originalidade, seja ela rural ou urbana.

Percebemos que a história de luta e conquistas dos afrodescendentes tem forte

contribuição no processo histórico do país, no entanto, hoje poderia ser especialmente nos

sistemas de ensino estudada na perspectiva de desmistificar os preconceitos em torno da

literatura que apresenta os africanos e afrodescendentes como povo submisso, acomodado e

rebelde. E contribuindo na identidade do povo brasileiro, assim como as demais etnias, pois

são estes homens e mulheres que no decorrer da história deste país, ensinaram com suas

experiências, o real significado de uma sociedade livre, resistente e sua dimensão de

coletividade. Entendendo que ninguém exercita a liberdade sem que um dia tenha estado livre,

jamais teriam experiências de resistência se não tivessem a necessidade de resistir, e a

coletividade é sinônimo de reconhecimento da importância de cada um na construção do todo.

No segundo capítulo foi comovente aprofundar e tentar visibilizar a história da

mulher negra de uma forma menos dolorosa que as poucas historiografias tem apresentado ao

longo dos séculos, porém, é um grande desafio que só mesmo ela pode intervir e buscar

formas de dar visibilidade e reescrever sua história, expondo suas contribuições ricas,

audaciosas e corajosas. Esse novo olhar e esse apelo constante das quilombolas traz uma

urgência necessária na escuta de seu grito, seu ensinamento, seu senso de coletividade, sua

relação com as divindades e seu ser divino. Esta pesquisa teve a pretensão de ser uma das

respostas à comunidade quilombola, contribuir com as reflexões das organizações sociais e

suas políticas públicas, direcionadas à intervenção no processo escolar dentro da esfera

pública em sua plenitude, seja ela municipal, estadual ou federal.

O terceiro capítulo é a constatação de que as mulheres negras, particularmanete as

quilombolas que participaram deste trabalho, tem sido extremamente habilidosas em usar sua

posição de marginalização para resistir à opressão que encontraram dentro das escolas,

academias e da sociedade em geral, apesar da duradoura história de privação de direitos que

vem enfrentando. Para manter esta posição de resistência, as quilombolas tiveram que não

perder suas raízes, firmaram a identidade, se reuniram e somaram as suas energias coletivas e

continuaram a identificar proativamente as lutas por melhorias na comunidade. As mulheres

das Onze Negras fizeram o percurso da superação, ou seja, romperam as barreiras do racismo,

da discriminação e do preconceito durante seu processo educacional. Concluindo ou não seus

estudos, elas acreditaram todo tempo que a educação escolar é uma arma que dá suporte para

96

a luta e pode transformar a sociedade. Mas, as mesmas afirmam que as coisas só mudam

quando participamos do processo, por isso exigem para a comunidade uma educação de

qualidade e que de fato seja diferenciada. Além disso, buscaram na espiritualidade os

incentivos para continuar a confiar em suas convicções individuais e/ou coletiva como um

mecanismo de enfrentamento, ponto de resistência, e uma concepção de identidade integrada,

a fim de criar uma barreira contra o isolamento que enfrentam. Considero o referido trabalho

relevante, no tocante à educação e a produção acadêmica, por constatar que o processo de

aprendizagem vai além dos muros e paredes das escolas e que o processo de assimilação

ocorre no cotidiano, nas respostas às necessidades constantes. Porém, este torna-se um

instrumento que abre novas perspectiva de estudos e pesquisas científicas.

97

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IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais. Uma

Análise das Condições de Vida da População brasileiras, 2010.

FONTES ORAIS:

MARQUES, Maria da Conceição. Depoimento (jan. junho, agosto e setembro, 2011).

Entrevistadora: Maria José dos Santos, Comunidade Quilombola das Onze Negras- Cabo de

Santo Agostinho – PE. Entrevista concedida para dissertação “ A trajetória Educacional de

quilombolas no Quilombo das Onze Negras do Cabo de Santo Agostinho-PE

ONZE NEGRAS, Comunidade Quilombola do Cabo de Santo Agostinho-PE, 2007.

SANTANA, Maria José de. Depoimento (jan. junho e agosto, 2011). Entrevistadora: Maria

José dos Santos, Comunidade Quilombola das Onze Negras- Cabo de Santo Agostinho – PE.

Entrevista concedida para dissertação “A trajetória Educacional de quilombolas no Quilombo

das Onze Negras do Cabo de Santo Agostinho-PE”.

SANTANA, Valdirene Maria de: Depoimento (jan. junho e agosto, 2011). Entrevistadora:

Maria José dos Santos, Comunidade Quilombola das Onze Negras- Cabo de Santo Agostinho

– PE. Entrevista concedida para dissertação “ A trajetória Educacional de quilombolas no

Quilombo das Onze Negras do Cabo de Santo Agostinho-PE.

SILVA, Maria José de Fátima. Depoimento (jan. junho, agosto e setembro, 2011).

Entrevistadora: Maria José dos Santos, Comunidade Quilombola das Onze Negras- Cabo de

Santo Agostinho – PE. Entrevista concedida para dissertação “ A trajetória Educacional de

quilombolas no Quilombo das Onze Negras do Cabo de Santo Agostinho-PE.

103

SITES:

www.casadeculturadamulhernegra.org.br/mn_mn_t_histo01.htm#artigo

www.periodicos.capes.gov.br

www.ipea.gov.br

www. incra.gov.br

www. ibge.gov.br

www. unicef. br

www.cabo.pe.gov.br

104

ANEXOS

Anexo I – Onze Negras (capa do livro)

Foto: Maria José dos Santos.

105

Anexo II – Certidão

Foto: Maria José dos Santos

106

Anexo III – Dados da Escola

Foto: Maria José dos Santos

107

Anexo IV– Certidão de Auto-Reconhecimento

Foto: Maria José dos Santos