PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS CEATEC...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CEATEC - CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS, AMBIENTAIS E DE TECNOLOGIAS
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS DE PROTEÇÃO PERMANENTE (APP´s). CONFLITOS DAS GESTÕES
URBANíSTICA E AMBIENTAL
JOÃO LUIZ PORTOLAN GALVÃO MINNICELLI
CAMPINAS 2008
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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS DE PROTEÇÃO PERMANENTE (APP´s). CONFLITOS DAS GESTÕES
URBANíSTICA E AMBIENTAL
Dissertação apresentada como exigência para obtenção do Título de Mestre em Urbanismo ao Programa de Pós-Graduação na área de Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Orientadora: Profa. Dra. Raquel Rolnik
PUC - CAMPINAS 2008
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Ficha Catalográfica
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas e Informação - SBI - PUC-Campinas
t711.4 Minnicelli, João Luiz Portolan Galvão. M665r Regularização fundiária em áreas de proteção permanente (APP’s) : conflitos das gestões urbanística e ambiental / João Luiz Portolan Galvão Minnicelli. - Campinas: PUC-Campinas, 2008. 200p. Orientadora: Raquel Rolnik. Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologias, Pós-Graduação em Urbanismo. Inclui bibliografia. 1. Urbanização. 2. Política habitacional. 3. Ambientalismo. 4. Favelas. 5. Posse de terra. 6. Usucapião. I. Rolnik, Raquel. II. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de Ciências Exatas, Ambientais e de Tecnologias. Pós- Graduação em Urbanismo. III. Título.
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Dedico
A Luís Frederico e Luís Felipe, meus filhos, por tudo o que sempre significaram
Ao Douglas Carvalho Portela,
pelo companheirismo, incentivo e colaboração na checagem final
Ao Dr. Sérgio de Andrade Sant´Anna, prodigiosa inteligência, engenheiro civil, historiador,
filólogo, jurista, por sua amizade e pela gentileza da revisão final e À Sylvia Borgerth Lafond Lemos,
cujas virtudes a fazem permanentemente linda e jovem
À Dra. Daisy Brochado Saraiva, dentista, humanista e
à Zulmira Justino, incorrigível na bondade,
ambas Doutoras em amor e dedicação às pessoas
À Profa. Dra. Raquel Rolnik razão pela qual procurei o mestrado em urbanismo da PUC-
Campinas, pela urbanista notável que é,
pelas aulas mais agradáveis que já tive, e por ter aceito me dar a honra de tê-la como Orientadora
In memoriam de
Georgina Portolan Galvão (minha avó), João Piragibe Galvão (meu avô),
Paulo Augusto R. B. Baptista Pereira, Prof. Dr. Haroldo Teixeira Valladão,
Prof. e Ministro João Leitão de Abreu com os quais tive o privilégio de conviver
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AGRADECIMENTOS Leda Roxana Valverde Barbato e Cíntia Teixeira Zaparoli, que tanto contribuíram me orientando pelo caminho (repleto de novidades) do urbanismo e abrindo as portas oficiais para a pesquisa Profissionais da SEHAB/Campinas e da COHAB-Campinas, compreensivos e receptivos, que franquearam documentos e arquivos Professores Dr. Nelson Saule Jr e Dra. Laura Machado de Mello Bueno, que me orientaram na qualificação e demais Professores do Mestrado da PUC-Campinas, que contribuíram nos caminhos das descobertas terminológicas que configuraram grande desafio Regina M. Moraes Torres, pelas inúmeras provas de confiança e carinho Maria Aparecida Medeiros, amiga e autora, comigo, do nosso capo lavoro: nossos filhos Priscila Portolan Viegas, Hilda Minnicelli, Mirthes T. Minnicelli e Suzana Minnicelli pelo carinho familiar Maria Aparecida de Oliveira e Benedita Lizionete de Faria, pela amizade e pelos tantos cuidados comigo e meus filhos Dra. Akiko Oyafuso, Dra. Alexandra Lebelson Szafir, Dra. Almira Maria Garcia, Ana Lúcia de Godoy Gonçalves, Profa. Beatriz D. Corrêa Leite, Dra. Carla Vieira Stella, Cristina Mattoso, Dra. Deise Cariani Carmona, Lisete Elias, Dra. Luciana Rangel Nogueira, Profa. Maria Amélia D. F. D’Azevedo Leite(Mel), Maria Goreti Pinheiro Sampaio, Maritha Koy, Regina Gambarotto, Renata Bertelli, Dra. Rosali Medeiros, Silvia de Fátima Barreto Rangel Luz, Dra. Suzy Hungria Nucci Bento (autora da versão do resumo para a língua inglesa), Dra. Tereza N. R. Dóro e Yolanda Martinelli, presentes que a vida me deu, pela amizade e pelo carinho Antonio Viviani (Itália),Ari Sardelli de Camargo Barbosa, Dr. Cláudio Magalhães, Didier Alejandro Bala, Dr. Eugênio Alati, Dr. Fortunato A. Badan Palhares, Dr. João Luiz Horta Neto, Dr. José Carlos Cosenzo, Dr.Luiz Antonio Silva Ramos, Luiz Apolônio, Dr. Moacir Caparroz Castilho, Dr. Nivaldo Dóro, Dr. Pedro Gomes Filho , Dr. Pedro Pessotto Neto, Dr. Ricardo J. Negrão Nogueira, Dr. Ricardo de Lima, Dr. Rover Rondinelli Ribeiro e Tony Gandra, meus irmãos de coração, pelas indescritíveis provas de amizade Colegas do Setor de Relações Públicas da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, especialmente Maria Irene de Bojano e Maria Evelina Pereira Quartim Barbosa, por terem me proporcionado muitos cursos extra-curriculares e pelo incentivo à dedicação aos estudos no início de minha vida profissional; Paula Cristina de Almeida, Secretária do Mestrado em Urbanismo da PUC-Campinas e Patrícia Gomes de Paula Beluci, da La Pietra, pelas colaborações pessoais; Aos meus afilhados Sérgio Masirevic Jr., Isabel Pintas Marques Horta, Luiz Matheus Godoy Betti e Patrícia Burgareli, bem como às crianças dos abrigos de Campinas, por me permitirem o agradável exercício de uma espécie de “segunda paternidade”. In memoriam de Conceição Galvão, Alcyr Fernandes, Emílio Sacomani, Rogelio, Roberto Lavieri e Luiz Antonio Coriolano, amigos que trago permanentemente comigo Aos meus alunos e ex-alunos e a todos os que de alguma forma contribuíram para que esta pesquisa pudesse realizar-se.
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RESUMO MINNICELLI, João Luiz P. G.; REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREAS DE
PROTEÇÃO PERMANENTE (APP´s): Conflitos das gestões urbanística e
ambiental. Dissertação (Mestrado em Urbanismo), 2008, 240f. – Pós
Graduação em Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Campinas.
Pesquisa de Mestrado destinada a averiguar a gênese e a motivação dos
conflitos que surgem entre urbanistas e ambientalistas nos casos em que se
pretende regular e regularizar situações de moradia em assentamentos
irregulares já consolidados, quando tais moradias se situam em Áreas de
Proteção Permanente (APP´s) que são espaços ambientais especialmente
protegidos. A regularização se dá por meio do instrumento da “regularização
fundiária” cujas origem e evolução também aqui se pesquisa. Estudam-se
igualmente os casos de regularização fundiária de áreas de moradia situadas
em área de APP em Campinas promovidas pela municipalidade local para se
averiguar a forma como tais regularizações foram concebidas, realizadas e
posteriormente avaliadas.
Termos de indexação: regularização fundiária; segurança da posse; área de
proteção permanente; estatuto da cidade; parcelamento do solo urbano;
ambiente; sustentabilidade; plano diretor; favela; usucapião; concessão de uso
especial para fins de moradia; direito à moradia.
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ABSTRACT
Master´s research with the scope of looking into the origin and the
motivation of conflicts that arise between urban planners and environmentalists
when the objective is to regulate and legalize situations of dwellings in irregular
settlements that have already been established, being those dwellings located
in “Areas of Permanent Protection” (APPs). These are environmental locations
that are especially protected.
This normatization is carried out by means of “land legalization”,
the beginnings and evolution of which are hereby also researched. Cases of
land legalization of inhabited areas located in APPs of Campinas have also
been studied; said legalizations have been sponsored by the local municipal
government.
The objective of the study was verifying the conditions under
which said legalizations were conceived, effected and then evaluated.
INDEX TERMS – land legalization, land tenure, areas of permanent protection,
city code, urban development, environment, susteinability, town (or city)
planning, slum, acquiring land prescription, dwelling wright.
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LISTA DE SIGLAS
APA – Área de Preservação Ambiental
APP – Área de Preservação Permanente
BNH – Banco Nacional da Habitação
CC – Código Civil Brasileiro
CF - Constituição Federal
COHAB – Companhia de Habitação Popular de Campinas
CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente
EC – Estatuto da Cidade
ETEP – Espaço Territorial Especialmente Protegido
GRAPROHAB – Grupo de Análise e Aprovação de Projetos
Habitacionais do Estado de São Paulo
PD - Plano Diretor
PMC – Prefeitura Municipal de Campinas SEHAB – Secretaria Municipal de Habitação de Campinas SFH – Sistema Financeiro da Habitação
SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação
UC – Unidade de Conservação
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SUMÁRIO
1 – OBSERVAÇÃO INICIAL 02 2 – INTRODUÇÃO 04 3 – CONCEITOS INICIAIS 09\ 3.1 - Regularização Fundiária – Evolução 09 3.1.1 – Conceituação 20 3.1.2 – Conceituação de “Regularização Fundiária de Interesse Social” 23 3.1.3 – Regularização Fundiária – Diversas Dimensões 24 3.1.4 – Regularização Fundiária Plena 32 3.2 – Áreas de Preservação Permanente – App´S (Áreas “Non Aedificandi”) 36 4 – ALGUNS ASPECTOS JURÍDICOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA 45 4.1 – Explicando “Propriedade” 45 4.2 – Usucapião 47 4.3 – Permissão de Uso e Concessão de Uso 48
4.4 – HIS - Habitação de Interesse Social e ZHEIS - Zona Especial de Habitação de Interesse Social 49
4.5 – “Direito de Permanência” (ou de “Não Remoção”) e Segurança na Posse 51 4.6 – Área Urbana Consolidada 53 4.7 – Bacia Hidrográfica 54 4.8 – Recuperação de Danos Urbano-Ambientais 56 4.9 – Aspectos básicos da legislação 57 4.9.1 – Código Florestal 58 4.9.2 – Constituição Federal de 1988 59 4.9.3 – Estatuto da Cidade 60 4.9.4 – Constituição Estadual Paulista 63 4.9.5 – Resolução Conama 369/06 65 5 – ESTUDO DE CASOS 68 5.1 – Apresentando Campinas 68 5.2 – Ribeirão das Anhumas e seu Contexto 69 5.2.1 – Bacia do P.C.J. (Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí) 69 5.2.2 – Bacia do Rio Piracicaba 73 5.2.3 – Bacia do Rio Atibaia 75 5.2.4 – Bacia do Ribeirão das Anhumas e sua formação 75 5.2.5 – Necessidade de proteção do recurso hídrico 80 5.3 – As ocupações pesquisadas e a região em que se encontram 88 5.4 – Histórico dos Núcleos Residenciais - Impacto humano das ocupações 90 5.5 – A regularização fundiária dos núcleos residenciais pesquisados 92 5.5.1 – “Núcleo Residencial Guaraçaí” 101 5.5.2 – “Núcleo Residencial Vila Nogueira” 119 5.5.3 – “Núcleo Residencial do Parque São Quirino” 134 5.5.4 – “Núcleo Residencial Dom Bosco” 156 5.5.5 – “Núcleo Residencial Gênesis” 163 6 – CONFLITOS 173 7 – CONCLUSÕES – ANÁLISE CRÍTICA DAS SITUAÇÕES PESQUISADAS 206
7.1 – Conciliação das agendas – Compatibilizando direito ao ambiente e direito à moradia 218
7.2 – Regularização em área de APP – O direito à regularização e seus limites 221 7.3 – Regularização curativa e atuação preventiva 226 REFERÊNCIAS 234
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1. – OBSERVAÇÃO INICIAL
Em abril de 2006 ouvi pela primeira vez a expressão “regularização
fundiária” e era tanta minha desinformação a respeito do tema, que sequer imaginei a
quê exatamente essa expressão aludia, embora a designação “fundiária” me
permitisse intuir tratar-se de assunto ligado ao solo. Em maio de 2006, participando de
um debate sobre regularização fundiária organizado pela municipalidade de
Campinas, ao ouvir uma palestrante mencionar “ZEIS”, que eu desconhecia, percebi
que havia muito a estudar.
Embora me considerasse bem informado em assuntos jurídicos, nada
tinha ouvido sobre regularização fundiária. E se considerarmos que esta questão
envolve muitos aspectos jurídicos, constatei aí a verdadeira dimensão da minha
desinformação. E comprovou, ao menos sob minha ótica, a exatidão da afirmação que
posteriormente ouvi da Profa. Raquel Rolnik de que a periferia é quase invisível aos
olhos da sociedade, que prefere fingir que ela não existe.
Se eu mesmo não sabia da existência de um movimento em favor da
regularização fundiária (e ele existe pelo menos desde 1983) é possível perceber o
quanto é necessário caminhar no sentido de dar corpo, voz e visibilidade a um tipo de
procedimento que visa apenas atuar em favor da sociedade melhorando questões
urbanísticas e reconhecer o direito de famílias brasileiras que um dia se viram na
contingência de ocupar determinada área para garantir abrigo.
Para isto é preciso considerar que quando a ocupação acontece em
área de proteção ambiental, a regularização fundiária atua também em favor do
próprio ambiente que foi de alguma forma agredido.
Os locais escolhidos pela população de baixa ou nenhuma renda para
fixação de moradia que constituem agrupamentos de abrigos precários, toscos,
elaborados com material improvisado, com arruamento desordenado ou mesmo sem
arruamento, com passagens estreitas, vias tortuosas, sem planejamento adequado,
desprovidos de higiene e de condições mínimas de habitabilidade costumam ser
chamados “favelas” ou “invasões”.
Ao longo deste trabalho será utilizada preferencialmente a denominação
“núcleo” para referir cada uma das áreas que serão objeto de estudo. Se utilizarão
também, excepcionalmente, as designações “favela” e “invasão” mas desde logo é
preciso advertir que esta última não condiz adequadamente com a realidade jurídico-
urbanística não apenas em razão da conotação pejorativa que ela encontra no meio
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social (abrangendo o científico), como também pela roupagem de ilicitude que a
palavra “invasão” possui.
O objetivo é pesquisar o tema “regularização fundiária em áreas de APP”. Assim, embora existentes outros núcleos residenciais carecedores de
regularização fundiária nas proximidades dos núcleos residenciais que aqui serão
estudados, não serão eles pesquisados por não se encontrarem em áreas de APP.
É preciso criar uma “cultura do possível” em relação à regularização
fundiária em áreas de APP. Em urbanismo e em ambientalismo, o “não pode” é quase
onipresente. São duas áreas em que a sociedade criou leis que miram um ideal de
ordem e de preservação impossíveis de atingir pela maioria da população brasileira.
Há razão no argumento de MARTINS (2006) de que: As normas urbanísticas e ambientais, regulando o que ‘pode’ e o que ‘não pode’, acabam por via do ‘não pode’ dificultando o acesso à cidade e relegando à informalidade grande parte da população. Nestes termos põem em evidência embates entre os direitos sociais e as normas de direito administrativo, confrontam direito à cidade e direito urbanístico e ambiental.
A “nota de corte” da legalidade em questões urbanísticas e ambientais
está muito acima das possibilidades do brasileiro médio.
Somente uns poucos conseguem colocar-se de acordo com o padrão
ideal que leis urbanísticas e ambientais visam atingir. Antes das recentes alterações
legais (que foram muitas) quase nada era possível ser feito daquilo que significasse
dar uma solução a verdadeiros dramas pessoais e familiares de tanta gente sem
moradia regularizada. Quase tudo o que se pretendia fazer em favor de regularização
fundiária ambiental e urbanisticamente sustentável era proibido por algum tipo de lei
ou norma inferior.
Era fundamental, então, encontrar “caminhos de legalidade” já que
fechar os olhos para essa impossibilidade de atingimento do ideal é que tem
contribuído para causar o atual expressivo passivo de irregularidade. Importava criar
uma “alternativa legal” que permitisse compatibilizar os múltiplos interesses em jogo
neste litígio aberto entre ambiente e moradia social.
Há ainda muito a ser feito no terreno da legislação e da formação de
uma cultura de regularização fundiária.
É com este debate que esta pesquisa pretende de alguma forma
contribuir. Se ela for utilizada para ajudar a ao menos tentar resolver problemas de
moradia e ambientais, já terá servido ao propósito.
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2 – INTRODUÇÃO O Estado de São Paulo tem apresentado grande expansão urbana e
industrial, especialmente nas últimas 6 décadas. No contexto brasileiro é o Estado
Federado que, sob o aspecto econômico, mais intensa e aceleradamente cresceu.
Este processo de intensa urbanização se deu de modo indiferente às
limitações e capacidade dos ecossistemas e recursos hídricos existentes onde o
progresso acontecia, o que gerou grande impacto ao meio ambiente e
comprometimento de diversidade biológica. Restam hoje poucas áreas de preservação
ambiental e a vegetação nativa foi severamente devastada. A Mata Atlântica, principal
ecossistema paulista, por exemplo, viu-se reduzida para cerca de 7% de sua
composição original.1
A preservação do meio ambiente tem sido, mais recentemente, neste
início de século XXI, intensa preocupação da raça humana. Evitar agressões ao
ambiente (mares, rios, lagos, mananciais em geral, ar, solo) constitui atualmente
obrigação de todo ser humano envolvido com qualquer tipo de atividade. A
preservação deveria ser, também uma obstinada busca por equilíbrio efetivo entre os
aspectos econômicos, ambientais e sociais do desenvolvimento.
Historicamente a deterioração das bacias hidrográficas, por exemplo, e
da qualidade de vida da população são resultados do processo de
extração/uso/consumo de recursos ambientais, a conseqüente geração de resíduos e
relações socioeconômicas desiguais.
Paralelamente ao crescimento desatento com a capacidade do
ambiente de auto-regenerar-se das agressões que ocorreriam, outro fenômeno
acontecia, mas de caráter social, efeito desse mesmo crescimento: enquanto boa
parte da população conseguia erigir sua moradia em locais adequados e dentro da
legalidade, outra parte promovia uma busca desesperada de uma alternativa de
moradia que acabou se dando no campo do mercado informal.
A moradia é, evidentemente, uma necessidade humana primária
indispensável. Sem ela não há qualidade de vida possível. O trabalhador precisa
abrigar-se depois da jornada de trabalho, já que não “desaparece” depois dela para
“ressurgir” no ambiente de trabalho no dia seguinte. Para algum lugar precisa dirigir-se
para renovar suas forças e recuperar sua capacidade de trabalho para a jornada
seguinte. E construir a moradia, base essencial da reprodução da força de trabalho, é
dos itens mais custosos do orçamento de qualquer família.
1 Dado existente no seguinte site, acessado em abril de 2008 http://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/biomas/bioma_mata_atl/bioma_mata_atl_ameacas/index.cfm
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É exatamente o que prega Maricato (1988) afirmando que a habitação é
uma mercadoria especial, de produção e distribuição complexas. É a mais cara dentre
as mercadorias de consumo privado (roupas, sapatos, alimentos, móveis etc.).
Segundo ela, nem todo mundo pode ter automóvel, também uma mercadoria cara, de
consumo privado; mas todo mundo precisa morar de alguma forma, em algum lugar.
Exatamente por isto os salários precisariam ser suficientes para que as
pessoas pudessem, dentre todas as suas prioridades, arcar com a expressiva despesa
da construção da moradia ou o sistema de crédito precisaria funcionar a contento para
que o acesso à moradia fosse facilitado. Mas nem uma coisa nem outra aconteceu.
A polaridade do sistema entre capital e trabalho não pode compreender
apenas a reprodução do capital mas também a reprodução da força de trabalho;
quando salários pagos não são suficientes para a edificação da moradia, isto precisa
significar que salários não cobrem o custo da reprodução da força de trabalho.
Família que, com renda insuficiente, precisa enfrentar despesas com
alimentação, transporte e moradia além de todas as demais, termina priorizando seus
gastos com alimentação e transporte, indispensáveis à manutenção de sua fonte de
renda. O resultado disto é a auto-construção. Construção com recursos próprios na
medida do possível. É imperioso, nestas situações, o encontro de uma solução alternativa para a questão fundamental da moradia.
Essa alternativa nem sempre é digna. “Os pobres encontram as
seguintes saídas para essa necessidade: ocupação de áreas abandonadas ou, no
momento, sem maior valor imobiliário; morros, mangues, terrenos de marinha, aluguel
de habitações precárias e baratas, mais próximas do local de trabalho; cortiços e
habitações similares; compra de lotes baratos nas periferias distantes para a
construção de barraco ou casa própria.”2
Essa alternativa produz custos sociais importantes: “Via de regra a
população muito pobre, dada à insegurança de seus rendimentos, prefere ter um lote
onde possa construir sua moradia, ao longo de vários anos, com suas próprias mãos e
freqüentemente em regime de mutirão”.3 E não são poucas as dificuldades que essas
populações precisam vencer. “Construíram seus barracos em íngremes encostas, em
mangues e sobre palafitas, praticamente sem contar com nenhuma infra-estrutura,
carregando sobre os ombros ou na cabeça todo o material de construção. Tal esforço
2 Item 44 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral. 3 Item 40 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.
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exigiu, sem dúvida, muita criatividade na solução dos difíceis problemas
encontrados.”4
Não é possível desvincular então o fenômeno a auto-construção (ou
construção informal) assim como todas as suas conseqüências diretas dentre as quais
avulta o avanço sobre espaços ambientalmente protegidos, do fenômeno da
desigualdade das relações entre capital, trabalho e salário.
Por vezes a família se vê mesmo na contingência de fixar residência em
áreas que estejam fora do mercado formal. Áreas em que não haja disputa ou nas
quais a disputa se arrasta há muito tempo, por se tratar de área ou imóvel contestado
ou condominial. Nestas situações a moradia está então fixada em local do qual ela, em
condições normais, jamais conseguirá a propriedade, por se tratar de área invadida
(pública ou particular).
Uma das áreas que estão fora do mercado é exatamente aquela
declarada como sendo de “preservação permanente”. Hoje ela apenas integra o
mercado quando faça parte de um empreendimento fechado, hipótese em que uma
área de APP é fator de substancial valorização do empreendimento. Em se tratando
de empreendimento aberto, no entanto, ela é, para o proprietário, um estorvo; para o
empreendedor, uma dificuldade a mais para comercialização do empreendimento
(ninguém deseja perto da própria casa uma área “ocupável” por moradias de baixo
padrão); para a vizinhança, uma fonte de preocupações. Ou seja: elas só exercem
algum nível de atração para aqueles casos que esta pesquisa levanta.
Tais áreas, mercê de sua grande importância ambiental, são
designadas pela lei como “APP´s” (Áreas de Preservação Permanente), situação em
que se acham as margens de rios, a vizinhança de nascentes, o topo de morros e
outros locais especialmente protegidos.
Todo loteador é obrigado a doar uma parte da gleba loteável para o
Poder Público poder utilizá-la como área institucional (instalação de escola, creche,
posto de saúde, centro esportivo público, etc) ou como área de uso comum de todos
(praça, por exemplo). Como as áreas em APP não têm atrativo algum para quem
pretende lotear uma gleba (já que nelas não se pode legalmente construir), o loteador
que, dentro da gleba, possua uma parcela do imóvel em área de APP, prefere sempre
doar ao Poder Público exatamente essa área em APP para compor uma parte da área
que precisa ser doada.
Como o Poder Público donatário dessas áreas usualmente não possui
condições orçamentárias para cercá-las e nelas instalar um sistema de vigilância para
4 Item 55 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.
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evitar invasões, preservando assim sua futura destinação pública, elas se tornam
então altamente atraentes para quem pretende fixar residência em caráter informal.
Normalmente nelas se formam verdadeiros aglomerados de moradia
que com o tempo por vezes se solidificam. Se concretizam até mesmo a ponto de
inviabilizar a volta à situação sócio-ambiental anterior.
E com o tempo, petrificada a situação de um aglomerado habitacional
informal é, por vezes, lícito anseio das populações moradoras dessas áreas obter a
titularidade dessa posse, de modo a dar a ela algum valor jurídico que seja
transformável em valor de mercado e, como tal, ser transacionável, ser negociável.
Mas tais aglomerados geram quase sempre, fixados ou não em áreas
ambientalmente sensíveis, problemas ambientais às vezes severos que precisam ser
enfrentados. Em geral o despejo de dejetos e de lixo produzidos nessas moradias se
dá nas proximidades, no próprio ambiente ocupado. Havendo um manancial por perto
(como se dá nos casos aqui estudados) é ali mesmo que esses produtos são
lançados. E o que já em si é um problema ambiental, sendo despejado no rio causa
impacto ainda mais expressivo.
Essas moradias que formam pequenos, médios ou grandes
aglomerados, quase sempre se situam em áreas longínquas em relação à área central
da cidade, gerando áreas esquecidas como se não fizessem parte do ambiente
urbano. A pouca ou nenhuma visibilidade desses ambientes de moradia precária pelo
restante da população que tem o problema da moradia equacionado produz
desatenção para com estas áreas. A ausência de equipamentos públicos suficientes,
inexistência de saneamento, de viário oficial, de transporte e de outros serviços de
interesse público brutalizam a vida nessas áreas, causando impactos sociais
acentuados.
Em tais áreas não há, portanto, apenas problemas de ordem ambiental,
mas urbano e social.
Apesar do grande número de áreas em que este tipo de complexo de
problemas aparece, a regularização fundiária em áreas de APP vinha sendo ignorada
ou adiada por não haver consenso sobre qual o interesse prioritário a ser protegido: se
o direito de alguns à moradia ou o direito da maioria à fruição de um ambiente
saudável e ao consumo de água de qualidade. Esta omissão, esta morosidade no
enfrentamento e na solução do problema o agrava.
A solução para essas áreas costuma ser a concentração de esforços da
população local, da sociedade, do poder público e dos demais agentes envolvidos
nestas questões urbanas para que ali se dê a um só tempo não apenas a integração
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dessas áreas ao tecido urbano, a aproximação para convivência social, como também
o saneamento ambiental.
Ao ato de reconhecer a existência dessas áreas de moradia, trazendo
essas regiões para o mapa oficial da cidade, praticando atos tendentes a integrar a
área ao complexo urbano, munindo-o de um desenho urbano adequado, de
equipamentos públicos necessários e de transportes, reconhecendo a posse,
outorgando a propriedade ou concessão de uso aos moradores, se tem designado
“Regularização Fundiária”.
Mas como regularizar essa posse, reconhecer os direitos dessas
pessoas à moradia (direito, de resto, assegurado por normas universais de direitos
humanos e por normas brasileiras) nessas áreas ambientalmente protegidas e
permitir, com a eternização da moradia, a perenização da agressão ambiental?
Surgem, evidentemente, conflitos quando se pretenda legalizar a
situação de uma moradia situada em APP. Os que defendem essa legalização o
fazem porque reconhecem o direito à moradia (ou à habitação) e sua preponderância
sobre as questões ambientais; já os que se opõem buscam dar maior relevância às
questões ambientais e afirmam que a questão da moradia pode ser resolvida de
outras formas que não contemplem, necessariamente, a mantença daquele
assentamento residencial naquela área.
Pesquisar a gênese, os mecanismos e os agentes envolvidos neste
conflito; estudar métodos de regularização e verificar como a regularização fundiária
tem sido aplicada em Campinas (especialmente aos núcleos residenciais objeto desta
pesquisa) são os objetivos deste trabalho.
Uma pesquisa desta espécie precisa levar em conta, segundo
MARTINS (2006) aspectos técnicos, urbanísticos, jurídicos, fundiários e administrativos, tanto quanto o debate teórico da questão central – assentamentos irregulares em áreas de proteção – e do enfoque dado a ela por cada um dos campos disciplinares envolvidos. Situa-se desse modo na confluência de diversos campos do conhecimento: meio ambiente urbano, formação da periferia e habitação de interesse social, legalidade, ilegalidade e a natureza do direito urbanístico e ambiental.
Fique, todavia, desde logo, a lembrança de que este estudo não se
refere a todo e qualquer tipo de regularização fundiária, mas apenas àquela
regularização fundiária de um espaço de moradia situado em área de preservação
permanente (APP).
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3 – CONCEITOS INICIAIS Estaremos lidando, aqui, com expressões como “regularização
fundiária”, “direito à moradia”, “assentamento urbano consolidado”, “concessão de uso”
“habitação de interesse social” etc e a precisa definição do quê exatamente seja cada
uma delas parece ser indispensável.
3.1 – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – EVOLUÇÃO É curiosa a origem desta expressão que, se analisada com a separação
das duas palavras que a formam, não se presta de imediato ao entendimento de seu
verdadeiro significado.
Apesar de a regularização fundiária constituir uma espécie do gênero
“loteamento”, a Lei dos Loteamentos (6.766/79) não a previu nem mesmo nas
alterações que nela foram feitas. Ela prevê indiretamente as APP´s (na medida em
que no art. 3º. menciona áreas “non aedificandi” às margens das “águas correntes e
dormentes”) mas não utiliza a expressão “regularização fundiária” em nenhuma
passagem. O conceito de regularização fundiária apareceu apenas alguns anos
depois.
O histórico da regularização fundiária é indissociável da história recente
da luta pela reforma urbana no Brasil e é marcado pela atuação da sociedade civil
organizada: movimentos sociais, entidades profissionais, sindicatos e organizações
não-governamentais.
Bandeira de movimentos populares pelo direito à moradia, sua gênese
é, aparente e paradoxalmente, institucional. Se inicia em 1982, com a estruturação de
alguns órgãos institucionais pela regularização de loteamentos clandestinos e
irregulares, dentre os quais o “Núcleo de Regularização de Loteamentos Clandestinos
e Irregulares da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro”, uma demanda das
comunidades excluídas dessa cidade.
Inspirado dentre outros profissionais pelo Procurador do Estado Dr.
Miguel Baldez, este e outro núcleo – o Núcleo de Terras – passam a atuar em favor
da regularização de tais loteamentos, favelas e ocupações na capital bem como em
assentamentos rurais em Nova Iguaçu, Paracambi, Piraí e outras regiões daquele
Estado. As próprias comunidades organizadas coletivamente decidiam as prioridades
e encaminhamentos do Núcleo de Terras.
Quando somente se falava em remoção de favelas, tais núcleos
buscavam regularizá-las. Tinham o objetivo de centralizar informações fundiárias e
buscar na Justiça (já que ainda não havia lei garantindo direito algum à regularização)
uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico da época para se concluir pela
18
possibilidade jurídica da regularização. A regularização se dava, então, por ordem
judicial.
“Regularização Fundiária” é um termo utilizado desde início dos anos 90
mas que tem sua origem legal na Lei 3532 de 06 de janeiro de 1983 do Município de
Belo Horizonte que, pioneiramente no Brasil, permitiu “regularizar favelas” desde que
“densamente ocupadas por população economicamente carente, existentes até o
levantamento planialtimétrico realizado no primeiro semestre de 1981.”5 Trata-se do
“Programa Municipal de Regularização de Favelas – PROFAVELA.”
Conforme nos lembra Pinho (1998) foi esta lei que pela vez primeira
criou um zoneamento municipal denominado “setor especial 4”, que seria “específica
para urbanização e regularização jurídica das áreas”. O segundo município brasileiro a tratar deste assunto em regramento
municipal foi RECIFE. Conforme a mesma autora à semelhança do que aconteceu em Belo Horizonte, a lei municipal de uso e ocupação do solo urbano (lei 14511/83) criou as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS – identificando-as como áreas de ocupação espontânea e consolidada, ocupadas por população de baixa renda, onde o Poder Público deveria promover ações destinadas à sua integração à estrutura urbana.
Também Fernandes(1998) afirma ter sido dessa cidade a iniciativa
pioneira que transformou em lei a preocupação da sociedade local com o desconforto
habitacional de tantos: (...) a lei que criou o PROFAVELA de Belo Horizonte, em 1983, foi pioneira ao propor um programa social de regularização das favelas, tendo introduzido uma fórmula original: a combinação entre a identificação e demarcação de favelas como áreas residenciais para fins de moradia social – inicialmente denominadas ‘setores especiais’ – no contexto do zoneamento municipal; a definição de normas urbanísticas específicas de uso, parcelamento e ocupação do solo em tais áreas; e a criação de mecanismos político-institucionais de gestão participativa dos programas de regularização. Esta fórmula acabou se tornando um paradigma seguido por diversos outros centros.
Parece importante deixar claro, portanto, que em seu primórdio a hoje
chamada “regularização fundiária” não era mais do que erradicar (ou remover) favelas
ou conformar uma determinada área da cidade (a favela) a um mínimo de urbanismo
que o restante da cidade já observava. Daí o nome “urbanização de favelas”. Consistia
apenas em dar a essas áreas um aspecto mais regrado, obediente, aformoseado. As
demais preocupações (especialmente segurança na posse e a questão ambiental) não
estavam presentes. A emergência da época era outra. 5 conforme previsto na aludida lei.
19
Mera remoção de favela, sem maiores preocupações com as questões
sociais não solucionava problema algum (quando muito apenas transferia fisicamente
ou adiava o problema) porque focava na questão urbanística quando deveria focar a
questão social. “A política de remoção de favelas não atingiu os objetivos propostos. A
população não se adaptou às soluções oferecidas. Houve perda de renda familiar e
novos encargos com transporte e moradia. Em conseqüência muitas das famílias
removidas para os conjuntos ‘passaram as chaves’ de suas casas, retornando à favela
ou adquirindo lotes na periferia da cidade.”6
Leis urbanísticas e ambientais não permitiam a regularização de
praticamente nenhuma área. Ou as situações estavam inteiramente regulares
(conformadas às regras urbanísticas e ambientais) ou inteiramente irregulares. Não
havia regras que dialogassem com a realidade do modo de produção popular de
moradia que obedece a toda uma especificidade que a população moradora das áreas
“regulares” prefere não ver.
Para regularizar alguma coisa era preciso, portanto, desfazer o que
havia sido feito ou de algum modo adaptar às regras aquilo que havia sido produzido
informalmente. Adaptar a realidade à lei.
A moradia irregular era um grande incômodo a eliminar, especialmente
quando presente em áreas públicas, áreas verdes ou espaços ambientais legalmente
protegidos. A questão das APP´s não foi, portanto, o único campo em que o conflito do
direito à moradia se evidenciou. Era impensável permitir a continuidade de uma
moradia em qualquer dessas áreas.
Àquela época (décadas de 70, 80 e 90) as leis urbanísticas e as de
inspiração ambiental simplesmente proibiam qualquer tipo de intervenção em área de
APP. Regularização fundiária em área de APP era impossível. Configurava um
absurdo jurídico.
Foi apenas no ano 2000, com o direito à moradia constitucionalmente
entronizado e a modificação do Código Florestal três meses depois que a
regularização fundiária em área de APP passou a ser legal e juridicamente uma
possibilidade. E mesmo assim foram necessários mais 6 anos para que se elaborasse
a Resolução CONAMA prevendo os critérios para que essa intervenção para fins de
regularização fundiária em área de APP fosse inteiramente permitida.
A partir daí nasceu a regularização fundiária de assentamentos
irregulares e consolidados de moradia em áreas de APP que possui características
próprias.
6 Item 51 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.
20
Antes de toda essa reformulação legal, conseguir permanecer em área
ocupada consistia verdadeira loteria: “Aqueles que moram em áreas do poder público
ou em bens de uso comum do povo (praças, áreas destinadas a equipamentos
sociais) têm, em alguns casos, conseguido algum benefício, após muita luta e
sacrifício. Outros têm sido expulsos, sem consideração.” 7
Existem dois históricos, portanto:
• o da regularização fundiária (com seus marcos em 1983, 1988, 1992, 2000 e
2001) e
• o da regularização fundiária em área de APP (com marcos comuns em 1992,
2000, 2001 e marco exclusivo em 2006) que somente no ano de 2001 (com o
Estatuto da Cidade) se tornou uma possibilidade jurídica para todo o país.
Durante cerca de 18 anos (1983 a 2001) só existiu como possibilidade
legal aquela regularização fundiária que não ensejasse qualquer intervenção em área
de APP.
Desde os anos 70, contudo, as ocupações para moradia em áreas de
APP se têm realizado, a despeito da (então) impossibilidade de regularização. Do ano
2000 em diante a regularização fundiária sustentável tem sido realizada no Brasil
inteiro. Conviveu-se, portanto, por praticamente 30 anos com essa realidade da
existência de assentamentos irregulares de moradia popular, consolidados, sem que a
Lei sequer se preocupasse em olhar de frente para ela, confrontando-a.
Três décadas praticamente perdidas nas quais, se a regularização
fundiária dessas áreas tivesse sido prioritária, talvez hoje já pudéssemos contar com
um acúmulo tal de conhecimento sedimentado que nos permitisse estar atuando há
bastante tempo na prevenção de novas situações.
Antes da Constituição Federal de 1988 predominava, nos meios
jurídicos e nas administrações municipais a visão legalista segundo a qual um imóvel,
para ser regularizado, carece adaptar-se integralmente às regras urbanísticas
(posturas) da localidade em que se encontra. Um imóvel construído em terreno
invadido sofreria dos defeitos congênitos próprios de quem não tem direito a
reivindicar. Quem construía em área ocupada precisava torcer para que os
proprietários do imóvel (quando se tratava de área privada) ou a administração pública
(quando se tratava de área pública) fossem tolerantes e condescendentes. Era a única
forma de não se verem expulsos da área, perdendo todo o investimento feito na
construção.
7 Item 41 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.
21
Essa situação é lembrada por Pinho (1998): Apesar desses assentamentos habitacionais existirem há várias décadas, só no início dos anos 80 as administrações públicas, notadamente as municipais, passaram a elaborar e executar políticas voltadas à sua regularização. Já no final da década de 70, no plano federal, dois elementos parecem relevantes ao interesse público que então se avizinha: primeiro, o PROMORAR – programa governamental destinado a promover a oferta de moradia para a população de baixo poder aquisitivo – começa a prever alocação de recursos para urbanização de favelas. Depois a legislação de parcelamento do solo (Lei Federal 6766/79) é promulgada, trazendo em seu bojo, ao mesmo tempo em que determinava um tamanho mínimo para lotes na cidade, a possibilidade de lotes menores com padrão denominado de urbanização de interesse social.
A palavra “regularização”, não tinha, juridicamente, nenhuma relação
com a regularização fundiária de hoje porque significava a adequação dos imóveis às
leis urbanísticas que regulam o direito à edificação e seus limites ou significava
regularização dominial.
A “regularização” dominial tem lugar nos casos de Usucapião, que
reconhece a posse e declara a propriedade transformando o possuidor em
proprietário. A rigor jurídico, no entanto, salvo a situação de usucapião vintenário, não
havia como regularizar dominialmente uma posse de área com vício de origem
patrimonial. Posseiro era considerado apenas esbulhador e assim tratado. Era tratado
como autor de ilícitos civil e penal tanto o posseiro de área pública quanto o de área
privada (no caso da área privada, quando houvesse contestação).
O único que permanecia no imóvel sem maiores dificuldades (situação
que ainda é assim até hoje) era o posseiro de área privada quando não houvesse
contestação porque este, conforme o tempo passava, ia pouco a pouco adquirindo a
propriedade do bem por meio da usucapião.
Mas regularizar documentalmente a posse de uma área pública ou de
uma área particular nos casos de contestação era impensável. O detentor da posse
sabia da precariedade desta e que mais dia menos dia haveria de precisar deixar o
imóvel mesmo tendo construído sobre ele. Não havia chance de nele permanecer.
Não havia segurança na posse.
Hoje ainda é assim em relação ao imóvel particular nos casos em que
há contestação do proprietário em relação ao invasor, especialmente se aquele agir
logo, embora em casos de regularização fundiária haja, como se verá, possibilidade de
desapropriação do imóvel para entrega aos moradores, pagando-se o proprietário. A
regularização documental, dominial, tem caráter personalístico, o que significa que não
se refere ao imóvel mas à pessoa do proprietário.
22
A regularização urbanística (regularizar imóveis “normais” que tinham
desatendido um ou outro aspecto da legislação urbanística) era possível mas não
questionava questões patrimoniais. A regularização urbanística tem caráter material, o
que significa que o objeto da regularização é o imóvel e não a pessoa de seu
proprietário. Essa a essência das “leis de anistia” da época. O que tais leis curavam
era a irregularidade da construção com as posturas municipais (construção
clandestina, que é aquela produzida sem licença, ou construção em desacordo com a
licença obtida) mas jamais a do título de domínio, que era resolvida em outras
instâncias.
Poucas municipalidades tinham preocupação com uma regularização
dominial até porque este assunto não costuma mesmo interessar ao poder público que
não precisa saber quem é que está pagando o tributo incidente sobre o bem, desde
que esteja sendo pago. Já um imóvel construído sem licença ou em desacordo com
esta não existe ou existe apenas “em parte” para a municipalidade; estando invadido e
não regularizado, não contribui para a cidade e para a economia. Mas esta noção de
que o imóvel poderia, se regularizado, estar contribuindo para o conjunto da cidade
não existia ou parecia não importar.
A preocupação quanto à regularização dos imóveis de posse irregular
(ocupações de áreas públicas e privadas) é bem recente e nasceu com uma
concepção de “urbanização”. Sensibiliza a sociedade somente a partir do final dos
anos 70 e amadurece legislativamente apenas na década de 80 e não nasce com
intenções tributárias (arrecadatórias).
A situação da irregularidade assumiu proporções de tal ordem que a
sociedade brasileira passou a viver de impasses e a conviver com índices altíssimos
de irregularidade de posse.
A partir daí a “não regularização” deixou de ser uma opção viável. A
regularização foi, em outras palavras, ao tempo em que surgiram as primeiras leis que
a possibilitaram, inevitável.
Ou seja: a regularização fundiária é, mais que necessidade, uma
imposição feita à sociedade pelos fatos.
Hoje a regularização fundiária aparece no Estatuto da Cidade como
“diretriz geral” e como “instrumento” e é igualmente prevista em outras passagens
desse texto legal. Assim,
• o inciso XIV do art. 2º. do Estatuto a considera uma dentre muitas “diretrizes gerais” da política urbana
• a letra “q” do inc. V do art. 4º. do Estatuto o chama de “instrumento” para atingimento dos objetivos dessa Lei
23
• o inc. I do art. 26 a prevê como uma das situações (aliás, a principal) nas quais a administração pública poderá lançar mão do direito de preempção (preferência na aquisição de um imóvel)
• o inc. III do art. 35 igualmente a prevê como uma das situações em que a administração pública poderá lançar mão do instrumento da transferência do potencial construtivo ou do direito de construir.
Mais recentemente, a Resolução 369 do CONAMA trouxe toda uma
regulamentação a respeito da regularização fundiária em áreas de APP, conforme
veremos.
Assim regularização fundiária entrou definitivamente nas agendas
municipais e estaduais de política urbana; os entes federados estão desenvolvendo
amplamente programas dessa espécie.
MOVIMENTOS POPULARES Mas para se chegar à formulação constitucional desse direito e à sua
decomposição pelos diversos instrumentos legais posteriores (Estatuto, Resolução,
Leis Estaduais e Municipais, etc.), muitas lutas populares foram, evidentemente,
necessárias.
Os movimentos populares pela reforma urbana parecem ter tido origem
nos assuntos do campo. Na seqüência de uma a primeira reunião de lavradores para
tratar das bases da proposta de reforma agrária, em 1961, se esboça, em 1963,
segundo Maricato (1988) uma proposta de reforma urbana que ficou praticamente
restrita a um conjunto de pessoas e entidades de profissionais. Sem contar com
respaldo popular, o movimento desapareceu durante os temos de exceção política.
A década de 70, caracterizada por forte concentração urbana (migração
campo–cidade acentuada devido ao crescimento decorrente do período do sucesso
dos planos econômicos de 1967 a 1973), consolidou os processos de metropolização
das principais capitais do país, especialmente do sudeste e sul.
Nessa mesma década registrou-se pela primeira vez na história do
Brasil um decréscimo da população rural que caiu, em números absolutos, mais de 2
milhões de habitantes em relação ao total registrado no censo de 1960. Mais de 16
milhões de pessoas migraram, nesse período, do campo para a cidade.8
Apesar da amplidão das necessidades e das lutas urbanas, o debate da
questão urbana no Brasil parecia, nos anos 70, segundo Maricato (1988), sempre
atrasado e relegado a plano político secundário em relação às demais lutas políticas
operária e camponesa, o que a condenava à “diluição e indefinição”.
8 Sinopse do Censo Demográfico, FIBGE, 1981.
24
No final dos anos 70 e início dos anos 80, a população favelada vinha
crescendo mais rapidamente do que o total da população urbana; a prática de
ocupação de terras torna-se atividade organizada, massiva e multiplica-se a cada ano;
é indiscriminada a abertura de loteamentos irregulares e, talvez pela existência dessas
alternativas, não se falava em crise habitacional.
Mas em 1980 a CNBB, por ocasião de sua 18ª Assembléia Geral,
analisando a situação do solo no campo alertava: “uma grande parte dos lavradores
migrou para as grandes cidades à procura de uma oportunidade de trabalho, indo
engrossar a massa marginalizada que vive em condições subumanas nas favelas,
invasões e alagados, em loteamentos clandestinos, cortiços e nas senzalas modernas
dos canteiros de obras da construção civil.”
Em seguida, em 1982, a mesma instituição, referenciando o solo urbano
já aludia (no documento ‘Solo Urbano e Ação Pastoral’ de sua 20ª. Assembléia Geral)
a que: “O Estado não exerce controle efetivo do desenvolvimento urbano, o que
proporciona irregularidades e clandestinidade na construção das cidades. O Estado
tolera gigantesca desorganização no tecido urbano, cuja correção exigirá
elevadíssimos custos pecuniários e sociais”. (parágrafo 42).
Mesmo assim, enquanto existiram as opções de favela, cortiços,
loteamentos clandestinos e irregulares, nenhuma “crise habitacional” eclodiu.
Todavia a Lei Federal 6.766/79 (“Lei Lehmann”), que trata dos
loteamentos irregulares ou clandestinos, foi fator de diminuição sensível da abertura
de novas loteamentos. E estes loteamentos, que constituíram, durante muitos anos
(acentuadamente a partir de 1940), uma alternativa importante de acesso à precária
casa própria por trabalhadores de classes populares, deixaram de existir como opção.
Segundo Maricato (1988) “a porta do pequeno lote na periferia desurbanizada foi
fechada e nenhuma outra foi aberta.”
Em 1983 o assunto começa a ocupar espaço na imprensa e quando a
dificuldade de acesso à moradia atinge a classe média, há uma clara consciência
social sobre ela, o que decorre, ainda segundo Maricato(1988) da crise econômica dos
anos 80 (com a recessão da construção e indisponibilidade de financiamentos
habitacionais) e da disputa da classe média por locações antes destinadas à
população de menor renda (até 5 salários mínimos).
A partir de então emerge a questão urbana e esta conjuntura permite a
configuração de condições básicas para o ressurgimento da bandeira pela Reforma
Urbana. De 1963 a 1983, portanto, foram 20 anos de represamento de conflitos
urbanos em que a questão não encontrava espaço democrático para o debate.
25
Uma nova proposta da reforma urbana é produzida em 1987 e com ela
a possibilidade de apresentação de emendas de iniciativa popular (com pelo menos 30
mil assinaturas de eleitores de todo o país) à Assembléia Nacional Constituinte. Dentre
as 122 emendas populares apresentadas estava a que previa profundas modificações
na estrutura urbana, assinada por seis entidades nacionais (Articulação Nacional do
Solo Urbano, Federação Nacional de Arquitetos, Federação Nacional de Engenheiros,
Coordenação Nacional de Associações de Mutuários do BNH, Movimento em Defesa
do Favelado e Instituto dos Arquitetos do Brasil) e apoiada por 48 entidades estaduais
ou locais.
Esta Emenda Popular contou com cerca de 200.000 assinaturas e
contribuiu para a incorporação do capítulo da política urbana na Constituição e seu
conteúdo pode assim ser resumido:
• direito de propriedade e uso do solo: facilidade para desapropriação de grandes propriedades ociosas (com títulos da dívida pública, pagáveis em 20 anos); coibição de lucros especulativos (imposto progressivo, imposto sobre valorização imobiliária); usucapião especial urbano, discriminação das terras públicas, concessão de direito real de uso (mecanismos de regularização fundiária, embora esta expressão não apareça na Constituição); maior controle do uso do solo pelo Estado (urbanização compulsória, proteção urbanística e prevenção ambiental).
• Política habitacional: fixação de responsabilidades do Estado na promoção pública da habitação; eliminação de agentes privados nos programas habitacionais populares; equivalência salarial nos reajustes de aluguéis e prestações da casa própria.
• Serviços públicos: eliminação do lucro privado na exploração dos serviços públicos; tarifas compatíveis com salário mínimo;
• Gestão das cidades: participação popular na elaboração de planos urbanos; iniciativa popular para apresentação de projetos e para o veto a projetos legislativos apresentados.
Como se vê, o Direito à Moradia não esteve inicialmente previsto e
precisou ainda amadurecer por 12 anos para ingressar no texto constitucional.
Em outubro de 1988 se realiza o "Seminário Nacional pela Reforma
Urbana – Avaliação e Perspectivas", para avaliar as conquistas advindas da
Constituição e elaborar referenciais para o processo de elaboração das Constituições
Estaduais e Leis Orgânicas Municipais que se avizinhava. Setores das universidades,
ANPUR, órgãos municipais, movimentos populares, ONG´s, órgãos profissionais de
Arquitetos e de Engenheiros se articulam e concluem que as conquistas urbanas já
previstas na Constituição Federal eram ainda tímidas, principalmente porque a função
social da propriedade estava condicionada aos planos diretores.
Este é considerado o marco fundador e primeira reunião do Fórum
Nacional de Reforma Urbana (FNRU) no qual as diversas organizações da sociedade
26
civil se articularam nacionalmente para atuar pela aprovação de importantes marcos
legais e institucionais como o Estatuto da Cidade, o Fundo de Habitação de Interesse
Social e o Conselho Nacional das Cidades e contribuir na construção da uma política
nacional de desenvolvimento urbano democrática e participativa.
Já em outubro de 1989 se reúne o 2º. FNRU, elaborando a carta de
princípios para orientar a elaboração das emendas populares, nas cidades, para a
formulação dos novos planos diretores.
O Fórum se descentraliza e articulam-se fóruns estaduais (regionais) e
municipais (locais) para influir nas discussões das Constituições Estaduais, Leis
Orgânicas e Planos Diretores. As leis orgânicas das principais capitais do país
contaram com emendas populares desses “fori”.
Os conflitos renascem em 1990 com a discussão no Congresso sobre o
PL 775/83 (Desenvolvimento Urbano) que 11 anos depois se converteria no Estatuto
da Cidade. O Fórum participou ativamente da discussão do projeto, elaborando
emendas.
Em 1991 o Fórum participa da preparação da ECO/92 que se realizará
no Rio de Janeiro. Realiza-se o 3º. FNRU que resolve organizar, em paralelo à ECO –
92, em parceria com redes internacionais, o Fórum Internacional pela Reforma
Urbana, dentro das atividades programadas pelo Fórum Global (da sociedade civil).
O 4º Fórum se realiza na véspera da Rio-92, quando se politizam as questões urbanas em relação às questões ambientais, defendendo a articulação
entre meio ambiente e questões urbanas. Elabora-se um documento básico
denominado "Nossas propostas para o Meio Ambiente nas Cidades", aprovado
pelas entidades brasileiras e submetido às entidades internacionais, quando se
transforma no Tratado por "Vilas, Povoados, Cidades Justas, Democráticas e Sustentáveis".
No processo de preparação da Conferência Internacional Habitat II (de
1996), nova mobilização acontece com a "Conferência Brasileira pelo Direito à
Moradia e à Cidade".
Concentram-se as forças dos movimentos em 1998 pela aprovação da
Lei de Desenvolvimento Urbano – Estatuto da Cidade - e do Fundo Nacional de
Moradia Popular pois se percebem condições concretas de aprovação, o que
efetivamente ocorre em 2000.
O Estatuto da Cidade, primeira Lei Federal a tratar do tema da
regularização fundiária utilizando esta expressão, foi outra conquista desses
movimentos.
27
O Conselho das Cidades (ConCidades), criado em 2004, outro embate
vitorioso, é um órgão colegiado de natureza deliberativa e consultiva, integrante da
estrutura do Ministério das Cidades, constituído por 86 titulares – 49 representantes de
segmentos da sociedade civil (envolvendo o setor produtivo, organizações sociais,
OnG’s, entidades profissionais, acadêmicas e de pesquisa e entidades sindicais) e 37
dos poderes públicos federal, estadual e municipal – com mandato de dois anos e tem
por finalidade estudar e propor diretrizes para a formulação e implementação de uma
Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.
A liderança da sociedade civil demonstrou competência ao focar com
precisão seus objetivos no campo da reforma urbana, identificar com clareza os
entraves (especialmente os legais) que obstavam esses objetivos e na formulação de
estratégias para alcançá-los. Talvez tenha sido o mais bem-sucedido movimento
social brasileiro, pela eficácia demonstrada ao atingir seus objetivos (ao menos os
principais) em um espaço temporal bastante curto.
Essa competência foi demonstrada com a estruturação de um
movimento que:
• contou com ampla base social (apoio popular) vinculada às lutas urbanas: mutuários, inquilinos, posseiros, favelados, arquitetos, geógrafos, engenheiros, advogados etc.
• resumiu as principais aspirações dessa parcela expressiva da população urbana;
• suscitou o debate dessas questões • estimulou um certo acúmulo de proposições e reflexões, realizadas por aquelas
entidades
Alguns entraves identificados por esse movimento como “adversários”
das cidades foram:
• A propriedade privada praticada de forma individualista, algo selvagem, desconsiderando os interesses sócio-urbanos e ambientais locais. Era necessário “domesticar” a propriedade para torná-la dócil à cidade.
• A inexistência de um “direito à cidade” minimamente dedutível que permitisse a todos (e não apenas a alguns) a fruição dos benefícios que a vida urbana permite e a efetiva distribuição democrática dos serviços públicos (educação, saúde, transporte, etc).
• A inexistência de um direito à participação na governança da cidade que permitisse às classes populares corrigir distorções da democracia.
• sistema legislativo engendrado para priorizar o interesse daquela propriedade e tratar a legalidade e a gestão urbana como privilégios de poucos.
Daí porque o movimento teve, desde seu início, os seguintes princípios
básicos:
• “Direito à Cidade e à Cidadania”, universalização do acesso aos equipamentos e serviços urbanos, a condições de vida urbana digna e ao usufruto de um
28
espaço e da participação ampla dos habitantes das cidades na condução de seus destinos.
• Gestão Democrática da Cidade entendida como forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades submetidas ao controle e participação social, destacando-se como prioritária a participação popular.
• Função Social da Cidade e da Propriedade entendida como a prevalência do interesse comum sobre o direito individual de propriedade, que implica no uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano.
Note-se que dentre eles não estava a regularização fundiária que surgiu
posteriormente como decorrência do primeiro desses objetivos do movimento.
De 1986 (aproximadamente) até 2006 (resolução CONAMA), em vinte anos de atividade do Movimento Popular pelo Direito à Moradia, um a um foram
removidos os obstáculos à regularização fundiária em áreas de APP. Como esta
possui três bases (propriedade alheia, moradia própria e ambiente de todos) três
alterações legais foram decisivas:
• Na Constituição Federal: Introdução da função social da propriedade, da usucapião (áreas privadas) e da concessão de uso (áreas públicas) e do direito à moradia na constituição federal
• No Estatuto da Cidade e em todo um conjunto de leis: usucapião (em todas as suas hipóteses) e concessão de uso especial para fins de moradia (áreas públicas)
• Fixação, por resolução, das hipóteses em que a regularização fundiária em áreas de APP é juridicamente possível.
Tantas e tão profundas alterações tornam admirável o movimento
popular pelo direito à moradia. Um movimento eficaz porque contava com causa justa,
apoio popular e articulação. O apoio político para essas alterações foi apenas
conseqüência. Todas foram conquistas da luta social e não fruto de um trabalho
meramente técnico. Os apoios, as pactuações, foram construídos e conquistados.
3.1.1 – CONCEITUAÇÃO Para Pinho (1998), na definição de regularização predomina o caráter
patrimonialista: regularização jurídica para “legalização” da posse e acesso ao
“domínio” (propriedade). O termo “fundiário”, do latim fundus, é utilizado como adjetivo relativo a terrenos. Assim, regularização fundiária é o processo destinado a tornar terrenos regulares para o cumprimento de determinado fim. No caso das áreas ocupadas por favelas, admitindo-se como fim a manutenção do uso para moradia, o processo de regularização fundiária compreende um conjunto de ações voltadas à regularização do domínio da terra em favor das famílias ocupantes. Tais ações são necessariamente associadas à regularização urbanística das áreas, de forma a corrigir situações de degradação e a introduzir parâmetros formais de regulação do uso e da ocupação do solo. Trata-se, pois, da consolidação – através de um instrumento formal – das situações
29
de posse das famílias sobre a área e a incorporação dos assentamentos à estrutura urbana regulada.
Já Saule (2004) vê a regularização com olhos mais ambiciosos. Tem,
para ele, uma acepção abrangente, por referir-se não apenas a questões patrimoniais,
como ambientais, urbanísticas e sociais:
é o processo de intervenção pública sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar, para fins de habitação, a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária.
Esta designação, no entanto, não parece muito adequada para o objeto
que se pretende conceituar, pois o adjetivo “fundiário” termina por restringir por demais
o substantivo “regularização”, conforme mais adiante se verá.
Não é possível, todavia, desconsiderar que regularização fundiária é
parcelamento de solo. Diferenciado, mas é ! Feito como “regularização legal” de algo
que já foi de fato realizado, mas que carece de algum “rearranjo” para poder ser
incorporado (em um sentido de “ser recepcionado”) à cidade (dimensão urbana), à
cidadania (dimensão social), ao ambiente (dimensão ambiental) e à legalidade
(dimensão administrativa, regularização do loteamento).
É preciso, contudo, discriminar:
• regularização fundiária de assentamento existente em área que não afronte a
legalidade ambiental e
• regularização fundiária de assentamento existente em área de APP.
Esta última precisa previamente encontrar soluções para a questão
sócio-ambiental (ambiental no sentido de natureza) enquanto aquela se compraz com
soluções sócio-urbanísticas.
Parece evidente que mesmo o assentamento informal de moradia
emerso em área que não pertença a nenhuma APP não prescinde por inteiro de
cuidados ambientais se tomarmos a palavra “ambiente” em sua acepção mais ampla,
que inclui o ambiente urbano, construído.
Assim, uma regularização de assentamento erigido em espaço que
originalmente deveria ter sido preservado para constituir uma praça pública e que está
bem longe de qualquer área de APP precisará enfrentar questões ambientais (emissão
de ruídos, tratamento de esgotos, saneamento, destinação de resíduos) mas que são
de natureza diversa daquela regularização de um assentamento nascido e criado em
área de APP.
30
Como sabemos que tanto o esgoto daquele assentamento de moradia
distante da APP como aquele que está totalmente ou em parte dentro de uma área de
APP serão fatalmente lançados no córrego, ribeirão, rio ou lado mais próximo, e que
tanto o esgoto de um quanto o esgoto de outro precisarão evidentemente ser tratados,
quando falamos de “regularização ambiental de moradia em APP” não estamos falando em encontrar soluções para o esgoto. Nem falamos de destinação de
resíduos, pois tanto o lixo de um quanto o lixo de outro, para não poluir, precisarão ser
recolhidos.
Quando falamos de “regularização de moradia em área de APP”,
portanto, estamos falando da APP e não do córrego, ribeirão, rio ou lago em cujas margens ela se encontra.
É importantíssimo, portanto, para entender os motivos todos da
controvérsia entre ambientalistas e urbanistas quanto a regularizar-se ou não
determinado assento que está no todo ou em parte em APP, ter clareza na distinção entre o objeto protegido e o elemento protetor. Diferençar bem o rio e a APP que
visa protegê-lo.
Teoricamente a existência de moradias em áreas de APP não é que
poluam o corpo d´água (pois as moradias que estão fora da APP também poluem),
mas que impedem (ou dificultam) que a APP continue a prestar, para os elementos
ecológicos que estão próximos dela, os “7 (sete) serviços ambientais” que os estudos
técnicos afirmam que ela presta e que são, como consta da própria lei 4771 (inc. II do
§ 2º. do art. 1º.):
• preservar os recursos hídricos • preservar a paisagem • preservar a estabilidade geológica • preservar a biodiversidade • preservar o fluxo gênico da fauna e flora • proteger o solo e • assegurar o bem-estar das populações humanas.
“Regularização fundiária de área em APP” pode, portanto, ser
conceituada como o procedimento público de recepção (integração) à cidade, à legalidade e à regularidade ambiental, de um parcelamento informal (clandestino ou irregular) de solo para fins de moradia de baixa renda, já consolidado, situado no todo ou em parte em área com algum tipo de restrição legal de caráter ambiental, para garantir a posse, estimular o exercício da cidadania, individualizar lotes, reconhecer a propriedade ou conceder o uso, com foco especial na recuperação da área de APP para que ela possa, tanto quanto possível, continuar ou voltar a exercer suas funções e serviços ambientais.
31
3.1.2 – CONCEITUAÇÃO DE “REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL” A expressão “regularização fundiária de interesse social” soa
pleonástica, em primeiro momento, posto não parecer existir uma regularização
fundiária despida de interesse social. Esse interesse parece ser ínsito a toda
regularização desta espécie.
Utilizam-se as expressões “zona especial de interesse social” e
“habitação de interesse social” para estabelecer a diferença de tratamento legal que
pode e deve ser dada a este tipo específico de zona ou de habitação em relação à
zona e habitação em geral. A legislação precisa mesmo ser mais flexível –
diferenciada – nos casos das zonas e habitações de interesse social exatamente por
dizerem estas respeito à zona ou habitação que atende aos interesses das classes
menos favorecidas da sociedade (classes populares) e que de outra forma não teriam
como atender às exigências de uma legislação urbanística geral.
Ou seja: embora o tema “habitação” possa ter conotação única e todos
os membros da sociedade careçam de habitação como requisito primordial para que
posteriormente cada um possa assumir seus compromissos com a busca individual da
felicidade, há habitações e habitações. A sociedade cunhou, para melhor atender os
interesses habitacionais de uma determinada parte da população, a expressão
“habitação de interesse social” que diz respeito àquela habitação destinada a classes
populares. Assim, conquanto o assunto “habitação” tenha sintonia com o interesse
público que consiste, neste particular, em a sociedade empenhar-se por criar
mecanismos que favoreçam cada família a conquistar uma habitação, um abrigo, a
expressão “habitação de interesse social” tem sentido porque se refere a um tipo
específico de habitação: aquela que atende aos interesses de uma determinada classe
de pessoas.
Desta forma, quando falamos em mecanismos econômicos, por
exemplo, que favoreçam o incremento da construção civil, para atender às
necessidades de abrigo de famílias de classes média e alta, estamos falando em
interesse público. Mas não há apenas interesse público no fomento à criação de
mecanismos que favoreçam a construção de unidades habitacionais para atender às
classes populares: aqui se evidencia também o interesse social.
O mesmo acabou acontecendo quando se fala hoje em regularização
fundiária. Não existem dois ou mais tipos de regularização fundiária. A regularização é
uma só. Sendo todavia apenas uma e tendo ela sempre uma conotação nítida de
interesse público, há regularizações que não se destinam a classes populares. Há
32
municipalidades que utilizam, hoje, a mesma legislação da regularização fundiária
para regularizar áreas de distritos industriais ou de distritos sanitários. Então, quem se
refere àquela regularização que alcança sobretudo os interesses de uma categoria
frágil, vulnerável, como é a classe popular, se está referindo a uma “regularização
fundiária de interesse social”.
Hoje encontramos até mesmo em Lei Federal a conceituação de
“regularização fundiária de interesse social”:
Dec. Lei 9760 de 1946 Art. 18-A (...) § 1o Considera-se regularização fundiária de interesse social aquela destinada a atender a famílias com renda familiar mensal não superior a 5 (cinco) salários mínimos. (Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007)
Todavia, a despeito da conceituação legal – por demais simplista, por
levar em conta apenas um determinado aspecto objetivo – desse tipo de conduta
solidária da sociedade para com os ocupantes de áreas para fins de moradia, essa
delimitação dos elementos da regularização fundiária ainda está acontecendo. Se a
própria designação “regularização fundiária” carece de precisão terminológica, a
conceituação de “regularização fundiária de interesse social” está longe de ser
afirmada em todas as suas nuanças. Há ainda um extenso caminho de evolução
conceitual a trilhar.
3.1.3 – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA – DIVERSAS DIMENSÕES Assim como outros institutos de direito urbanístico, a regularização
fundiária se iniciou com uma determinada finalidade para posteriormente assumir
importância crescente até se chegar à regularização fundiária plena, abrangente de
soluções sociais, urbanísticas, econômicas e ambientais. Resultado desse progressivo
incremento de outras dimensões àquilo que inicialmente se pensava (regularização de
favela, por exemplo) é que hoje se encontram na literatura especializada sobre o
assunto regularização fundiária diversas “espécies” de regularização. Elas costumam
ser estudadas nas suas mais variadas dimensões, separadamente.
A regularização fundiária “tradicional” (feita à época em que as
preocupações ambientais ainda não haviam incorporado e dominado as agendas
administrativas e políticas do mundo todo) podia ser elaborada sob os enfoques a
seguir, conforme a ênfase para este ou aquele dos múltiplos aspectos envolvidos na
questão.
33
DIMENSÃO ESSENCIAL (OU DIGNITÁRIA) Diz respeito à dignidade mínima constitucionalmente assegurada a todo
cidadão. Ao reconhecer-se a existência de um assentamento precário e informal,
enquanto a questão da continuação ou não do grupamento naquele local é objeto de
debate, importa reconhecer a condição humana dos ocupantes e lhes fornecer água e
luz, minimamente. A água pode provir de caminhões pipa e a luz pode limitar-se a
alguns pontos estratégicos da área ocupada.
É necessário ficar esclarecido que essas medidas são meramente
paliativas e tomadas a título precário, para durar apenas o tempo de discussão da
permanência ou não do grupo naquela área e que não representam reconhecimento
de qualquer direito dos ocupantes de permanecer no local.
Estas providências são necessárias apenas para o período em que a
ocupação não se torna sedimentada, consolidada porque caso essa consolidação
aconteça, não restará mais que reconhecer a situação como tal e instalar em caráter
definitivo aqueles serviços (água e luz) que são evidentemente o mínimo exigível.
Não deve haver nenhuma ocupação desprovida desses serviços
públicos – mesmo que a título precário. Não se trata, aqui, de preocupação social, que
precisará ser objeto de todo um cuidado posterior, com cadastramento das famílias,
identificação de necessidades, atendimento o mais possível à demanda ensejada por
essas necessidades, geração de renda, etc. Trata-se apenas de garantir que os
ocupantes dessas áreas não se vejam privados das condições mínimas de vida digna
às quais todo ser humano, em qualquer condição pessoal ou social e em qualquer
situação que seja, tem direito.
DIMENSÃO DE SEGURANÇA NA POSSE Neste modelo o que se pretende quase que unicamente é garantir aos
ocupantes dos lotes a permanência no local em que se encontram. Este tipo de
providência tranqüiliza os moradores e permite que progressivamente outras medidas
sejam posteriormente tomadas no objetivo último de garantir o domínio desses
moradores sobre seus lotes.
Isto é mais fácil quando a área ocupada é pública, pois as providências
(que costumam ser as “permissões de uso”) cabem apenas ao ente público. Algumas
municipalidades chegaram, nos anos 70 e 80 (e Campinas assim também procedeu) a
expedir decretos de “permissão de uso coletivo” em caráter emergencial, apenas para
outorgar aos moradores mínimas garantias de não remoção da área ocupada.
A permissão de uso que visa apenas dar alguma garantia jurídica à
comunidade tem caráter precário e é feita para permitir-se à municipalidade maior
34
prazo para, mais detidamente, estudar as medidas necessárias para uma
regularização mais completa. A idéia de “segurança na posse” posteriormente assumiu
relevância maior e evoluiu como conceito para abranger procedimentos mais
complexos que atingem até mesmo a “segurança no domínio”.
DIMENSÃO URBANÍSTICA Antes de aparecerem as primeiras leis que tratavam ou de programas
de “regularização de favelas” (primórdios do que hoje se conhece por regularização
fundiária) ou da regularização fundiária tal como hoje a conhecemos, a
“regularização”, que deste procedimento resultava, ou tinha foco em resolver questões
ligadas à estética, segurança e conforto, bem como à integração da área ao
arruamento da cidade, circulabilidade, arejamento dos espaços ocupados pelas
habitações, eliminação de riscos e instalação de equipamentos públicos, dentre outros
melhoramentos, ou visava apenas garantia na posse com outorga de direitos básicos.
Mas sempre melhoramentos urbanísticos que tinham, claro, inspiração social.
Já ficou dito que ao final dos anos 70, quando se começou a pensar em
melhorar a qualidade de vida dos habitantes de favelas, não se levavam em conta
aspectos ambientais. Por preocupações meramente sociais é que se pensava nas
questões urbanísticas e se visava dar à área atendida uma aparência aceitável de
“cidade” para que as pessoas pudessem continuar ali vivendo em condições menos
indignas.
Quando a regularização se faz com caráter meramente urbanista o que
se busca basicamente é dar ao local, normalmente tomado por caminhos e ruas
estreitos e sinuosos, uma “conformação mais adequada”, um assemelhamento à
cidade, com arruamentos, alargamentos e transitabilidade com escoamento de águas
pluviais; nos casos em que a regularização tem sobretudo este enfoque, a
preocupação maior não é solucionar qualquer problema social, ambiental ou
patrimonialista; é sobretudo dar à área mínima conformação às normas urbanísticas
vigentes naquela comunidade, embora amaciadas e mais palatáveis.
Interessante, contudo, a construção jurídica feita por Staurenghi (2000)
a partir da análise do art. 2º. Estatuto da Cidade. Para ela o objetivo de “conformar às
regras urbanas o espaço a ser regularizado” é muito modesto. O objetivo da regularização fundiária, no que toca ao Estatuto da Cidade, deve ser o de adequar os assentamentos ilegais de população de baixa renda ao modelo de ambiente urbano sustentável, definido como aquele que gera direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte, os serviços públicos, trabalho e lazer para a presente e as futuras gerações (Estatuto da Cidade, art. 2º., inciso I). (...)
35
Da mesma forma, a regularização deverá • corrigir as distorções do crescimento urbano • corrigir os efeitos negativos do crescimento urbano sobre o meio ambiente (art. 2o., inciso IV), • evitar o uso excessivo ou inadequado em relação à infra-estrutura urbana (art. 2o., inciso VI), • garantir a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população (art. 2o., inciso V), • zelar pela proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (art. 2o., inciso XII).
A ser realmente assim, como parece ser, a regularização fundiária
atingirá objetivos muito mais saudáveis para o conjunto da comunidade urbana.
DIMENSÃO SOCIAL Já na regularização fundiária que tenha olhos postos primariamente em
questões sociais, se mantêm as condições originais morfológicas daquele espaço de
moradias, mas se procede ao fornecimento mínimo de água (mesmo que
improvisadamente) e luz (ainda que apenas em determinados pontos) e à instalação
de equipamentos sociais importantes como escola, centro de saúde, creche, etc; se
busca garantir renda para as famílias envolvidas, de modo a permitir progresso social
para os ocupantes da área; não envolve necessariamente questões urbanísticas,
documentais ou ambientais.
DIMENSÃO ADMINISTRATIVA Nada impede que em alguns casos a municipalidade promova desde
logo, enquanto se aguarda o início ou o desenvolvimento de todo o procedimento (por
vezes moroso) da regularização fundiária à regularização administrativa, que consiste
em reconhecer aos moradores o direito que todos temos a “um endereço”. Nomear as
ruas, mesmo que provisoriamente, transformando aquele endereço de fato em
endereço de direito, fornecer um CEP, já são atitudes de respeito do poder público
aos ocupantes da área. Trata-se de providência rara que poderia ser largamente
utilizada como instrumento de encaminhamento à regularização.
DIMENSÃO LEGAL Aspectos ligados à legalidade estão evidentemente sempre presentes
também quando se regulariza o aspecto urbanístico (com remodelação do
assentamento e fornecimento de serviços públicos) e quando se regulariza a questão
36
fundiária com a outorga de escrituras ou de concessão de uso especial para fins de
moradia.
Mas na dimensão especificamente “legal” o que se busca é resolver a
questão da existência legal do “loteamento” junto ao cartório competente para que
aquela área inteira (que tem um número de registro em cartório que a identifica como
área inteira) possa ser legalmente fracionada (embora de fato já esteja) para que
possam ser abertas tantas matrículas (registros) quantos lotes individuais existam
naquela área, individualizando esses lotes perante o cartório para que possam ser
objeto de propriedade para seus moradores. É a única forma legal de transformar cada
família em proprietária de seu lote individual e seus pósteros em herdeiros.
DIMENSÃO FUNDIÁRIA
Também chamada de regularização fundiária jurídica, dominial ou
patrimonial, a preocupação, aqui, já tem caráter bem diverso, por buscar
especialmente respeitar o direito dessas pessoas à propriedade com outorga de
escrituras públicas de propriedade ou de concessões (não meras permissões) de
direito real de uso (conforme se trate de área privada ou pública, respectivamente)
sem levar em excessiva conta os demais aspectos sociais e urbanísticos da questão;
a preocupação aqui é precipuamente dominial para garantir definitivamente a posse,
elemento que é da propriedade; preocupação marcadamente ligada, portanto, a
princípios de segurança da posse.
Mas é equívoco confundir “segurança na posse” de um imóvel com
“direito ao domínio” deste mesmo bem. Aquela diz respeito ao direito de não ser
compelido a abandonar o imóvel, que equivale ao Direito de somente ser alijado da
posse havendo outra opção de destinação. Direito de ser mantido na posse do imóvel
ocupado. Mas este direito não envolve necessariamente o direito à propriedade
(domínio) deste bem, que é algo que se deve resolver posteriormente àquela questão
ligada à posse. É de boa cautela que primeiro se resolvam questões de posse para
depois se tentar equacionar a questão da propriedade.
Encarando-se a moradia como um direito, o risco da retirada forçada
dos possuidores de uma determinada área, especialmente quando de há muito
ocupada e consolidada, deveria ser mínimo, salvo evidentemente situações de risco
pessoal ou ambiental grave. O direito à permanência no local ocupado é importante
mas o direito à propriedade é o objetivo final da regularização fundiária. O direito a
receber documento de propriedade ou de concessão deve consistir no objetivo último
e mais importante do trabalho de regularização fundiária.
37
DIMENSÃO AMBIENTAL Aqui é preciso distinguir entre assentamentos que estão no todo ou em
parte em área de APP e que apresentam, por isto mesmo, implicações ambientais,
daqueles assentamentos que estão fora desses espaços ambientais especialmente
protegidos.
Em ambos a preocupação ambiental estará presente, uma vez que
tanto um assentamento quanto outro serão inevitavelmente fontes poluidoras (lixo,
esgoto e outros resíduos).
O problema é que quando falamos em “dimensão ambiental” logo que
pensa em assentamento que está em área de APP porque não costumamos
reconhecer o ambiente construído como parte do “ambiente” como ele efetivamente é.
Assim, apesar de na regularização fundiária de assentamentos postados fora de áreas
de APP estar necessariamente presente a preocupação com a destinação de lixo e de
esgoto (por exemplo) e isto configurar evidentemente um aspecto “ambiental” dessa
regularização, não costumamos denominar essa dimensão de “ambiental”.
A “dimensão ambiental” somente aparece, portanto, na literatura, como
aquela em que a regularização fundiária é de assentamento que está em área de APP
o que é uma impropriedade, já que por exemplo a mesma questão deverá estar
presente quando se pense em regularização de uma área destinada a ser “área verde”
de um condomínio, que terminou ocupada para fins de moradia.
Foi ao final dos anos 90 que se passou a falar na dimensão ambiental
no contexto da regularização. E como ela não é a dimensão última a enfrentar, mas
aquela que deve ser por vezes equacionada antes mesmo ou contemporaneamente
com a questão urbanística, hoje a questão ambiental, na regularização fundiária,
costuma ser um dos pontos iniciais ou intermediários do processo de intervenção.
Dependendo da área, é necessário priorizar a questão ambiental de modo a atendê-la
antes mesmo de se abordar questões urbanísticas.
Perceba-se, pelo texto a seguir transcrito, como no final dos anos 80 e
mesmo em meados dos anos 90 a questão ambiental não era, ainda, suficientemente
amadurecida para ser colocada como requisito necessário para a regularização
fundiária. É um texto de Pinho(1998): As legislações de interesse social para áreas ocupadas trazem como princípio básico para as intervenções de regularização urbanística e jurídica a garantia de que estas se efetivem respeitando as características e tipicidade das ocupações. Por “característica” e “tipicidade” entende-se o conjunto de elementos de natureza urbanística surgido com o processo de ocupação e de consolidação da população na área. Diz respeito à forma utilizada na ocupação dos ´lotes` e suas dimensões, à formação do sistema viário e demais áreas de convívio público. Assim, o processo de regularização
38
fundiária (jurídica e urbanística) deverá observar, tanto quanto possível, as características da ocupação espontânea dos assentamentos, razão pela qual constam das leis de interesse social dispositivos excluindo a aplicação nessas áreas de outras normas municipais que porventura lhe sejam conflitantes. É norma especial e, assim, prevalente sobre demais normas gerais do município, salvo no caso de a lei orgânica e do plano diretor por serem hierarquicamente superiores.
Diante da nova realidade jurídico-legal brasileira, estabelecida pela
Constituição Federal de 1988, a regularização fundiária não pode limitar-se à
regularidade do título de domínio nem à questão urbanística porque o direito de
propriedade é garantido apenas quando atende a sua função social (art. 5o., incisos
XXII e XXIII da Constituição Federal). E “atender à função social” consiste hoje em
integrar no processo os aspectos urbanísticos, sociais e ambientais.
Se o Poder Público, com a regularização, irá transformar um posseiro
em um proprietário, cumpre lembrar-se de que proprietários têm compromissos com a
cidade e com a sociedade decorrentes do fato de a propriedade urbana precisar
cumprir funções sócio-ambientais. Logo, a regularização fundiária não pode,
legalmente, desprezar preocupações ambientais que a todas as propriedades
(inclusive às decorrentes de regularização) são impostas pelas leis brasileiras.
Oliveira e Staurenghi têm a mesma visão em relação a esta
interpretação das leis aplicáveis a este tema: É ínsito ao direito de propriedade o ser ele exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam protegidos os elementos ligados à flora, à fauna, às belezas naturais, ao equilíbrio ecológico e aos patrimônios histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (Código Civil, art. 1228, parágrafo 1o.).
O processo de regularização fundiária precisa ter por objeto transformar
o possuidor em “dominus”. Há de enfrentar,então, não só os problemas ligados ao
título de domínio, como todos os aspectos diretamente ligados à propriedade
juridicamente considerada, o que compreende os aspectos sociais, econômicos e
urbanísticos, sem descurar dos ambientais.
Sendo a questão ambiental um dos elementos da “regularização
fundiária sustentável”, as mesmas dificuldades com as quais depara quem pretenda
conceituar “ambiente”, migram para o conceito dessa regularização. Não basta então
afirmar que o direito a um ambiente saudável é universal, indivisível em suas
dimensões e atemporal. É preciso ainda reconhecer que esse direito está em
movimento; não é, ainda, senão opus incertum, circunstância que contamina, por
contato, a noção de regularização fundiária ambientalmente sustentável, produzindo
imprecisões que dificultam a regularização.
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Uma propriedade urbana nascida de uma regularização fundiária é uma
propriedade igual a qualquer outra e precisa igualmente atender àqueles requisitos
preservadores dos interesses do ambiente.
O problema é saber em quê consiste essa preservação. Não significa
apenas tratar esgoto e destinar lixo e outros resíduos. É muito mais que isto.
Consiste especialmente em encontrar soluções efetivas para que a APP não seja
privada nem no todo nem em parte do exercício de seus serviços ambientais.
E isto se pode conseguir com:
• remoções (e reassentamento preferencialmente na mesma gleba) que sejam indispensáveis para que a APP esteja “livre para funcionar, cumprindo suas funções”.
• Recuperação das as áreas de vegetação e de matas (mesmo as ciliares) quando ambiente ainda existe e pode ser recuperado - recuperação
• reposição no próprio local (quando irremediavelmente perdidas) – mitigação • reposição em área próxima se a conformação do assentamento não permitir
que se faça no mesmo local. - compensação
Repor a vegetação da APP para futura utilização como área de lazer
pelas famílias, com baixo impacto ambiental, por exemplo, é também outra medida
que parece importante.
É evidente que estamos falando de situações em que isto seja possível.
Há locais, como se vê por exemplo em determinados espaços da Grande São Paulo,
em que o córrego foi canalizado e as casas foram construídas sem distanciamento
algum de suas margens, quando não por sobre o córrego mesmo, sem que se possa
até minimamente identificar, visualmente, por onde é que passa o córrego. Ele
desapareceu. Nesses locais é preciso reconhecer a realidade: a APP deixou de existir
e de exercer suas funções há várias décadas e pode ser altamente questionável se é
realmente importante fazer as moradias recuarem em relação ao leito desse curso
d´água.
Em casos tais, que são extremos e felizmente não tão comuns, a
solução haverá de ser permitir recuos diferenciados para que a regularização possa
ser feita. Mas solução desta espécie precisa configurar a exceção.
Como tais casos são muito diferenciados e constituem realidade em
algumas poucas municipalidades, avulta ainda mais em importância reconhecer-se o
predomínio do interesse local.
É caso típico de “peculiar interesse” daquele determinado município
(salvo, evidentemente, nos casos em que o córrego alcança outros municípios, caso
em que o licenciamento estadual precisará ser feito), razão pela qual é preciso
avançar para o licenciamento municipal com os cuidados que a lei atual já exige e que
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consistem em conselho de meio ambiente com poder deliberativo e plano diretor (§ 2º.
do art. 4º. do Código Florestal).
O único reparo que se faz é que por se tratar de problema urbano e
ambiental contemporaneamente, a lei federal deveria exigir “conselho paritário urbano
e de meio ambiente” permitindo assim que ambas as perspectivas (a ambiental e a
urbana) estejam garantidas nessas discussões de regularizar ou não essas áreas.
3.1.4 – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA PLENA Regularização fundiária não se faz sem critérios. Não basta, como já se
fez na municipalidade de Campinas, dar às pessoas que moram nessas áreas uma
“permissão” de uso, uma “garantia de permanência” que em nada modifica a essência
do problema que se expressa na tríade 1- desconformidade urbana, 2- invisibilidade
social e 3- degradação ambiental.
A modalidade “plena” (ou “integral”) envolve, por óbvio, o mais possível,
todos estes aspectos. Com ou sem primazia a qualquer deles, mas os envolve a
todos.
Note-se que quando se falava, por volta do ano 2000, em “regularização
fundiária plena” não se previa, ainda, o equacionamento das questões ambientais. As
preocupações sociais, urbanísticas e legais prevaleciam. Com a força invencível das
questões ambientais que se tornaram prioridade das prioridades, essa questão
terminou sendo incorporada definitivamente à discussão sobre regularização fundiária,
de modo permanente.
O principal problema da regularização fundiária tal como vem sendo
realizada no Brasil é que, detonado o processo de regularização, se enfrentam – e se
resolvem na maior parte dos casos – os problemas urbanísticos da área que se
pretende regularizar; em seguida se enfrentam e por vezes se conseguem resolver os
problemas de ordem ambiental daquela área; mas quando se chega ao final, no
momento de entregar aos moradores o título de propriedade ou o documento –
qualquer que seja – que signifique de alguma forma a titulação do bem para que eles
se possam sentir seguros quanto à posse ou garantidos quanto à propriedade, a
regularização empaca.
Com sua habitual capacidade analítica, Fernandes (1998) constata,
depois de pesquisar a forma como a regularização tem sido feita no que toca à
legalização, que (...) Com todas suas limitações, tais programas têm sido mais bem sucedidos no que se refere às políticas de urbanização no que diz respeito às políticas de legalização (...).
41
São poucas as regularizações fundiárias que realmente chegam, no
final, a ponto de dar aos possuidores uma garantia de propriedade (se a área ocupada
é particular) ou de concessionário (se é área pública).
Problemas complexos de ordem jurídica costumam antepor-se entre o
ocupante e o documento, impedindo a fruição dos direitos constitucionalmente a ele
assegurados.
A partir desta constatação, operadores de regularização fundiária de
diversas áreas começaram a manifestar-se no sentido de que “regularização fundiária”
que se preze, precisa ser plena. Ou é tudo ou não valeu por inteiro todo o esforço
desenvolvido pela sociedade para que aquela regularização fundiária acontecesse. À
tarefa de, com obstinação, acompanhar a regularização até que ela documentalmente
se expresse em benefícios efetivos para os moradores, se tem costumado chamar
“regularização fundiária plena.”
Esta tem, portanto, por pressuposto, que a regularização fundiária deva
sempre ser buscada no seu contexto inteiro atingindo não apenas suas dimensões
social, urbanística e ambiental, mas igualmente fundiária.
Falar, portanto, em regularização fundiária plena é utilizar uma
expressão até certo ponto pleonástica, já que não se concebe, hoje em dia, uma
regularização fundiária que não seja “plena”. O termo regularização fundiária, tenha ou não a área a ser regularizada comprometimentos ambientais, já abrange,
mesmo, essa “integralidade”, essa inteireza reclamada pelos que a defendem.
A regularização fundiária apresenta, portanto, necessariamente as
dimensões:
• Urbanística – rearranjo espacial, remodelação, afastamento dos riscos
• Social – instalação de serviços mínimos e de equipamentos públicos e sociais.
• Ambiental – saneamento, afastamento e tratamento de esgotos, destinação de
lixo e outros resíduos, recuperação ambiental com medidas de efetiva proteção
à APP.
• Administrativa – reconhecimento da existência física das moradias, com
nomeação do arruamento, objetivando reconhecer o endereço dessas
pessoas.
• Legal - regularização documental do fracionamento de solo perante o cartório
competente, individualizando legalmente os lotes.
• Fundiária – jurídica, documental, com outorga de título dominial (escrituras ou
concessão de uso especial para fins de moradia).
42
Se antigamente a regularização fundiária abrangia apenas um ou outro
dos múltiplos aspectos que hoje a informam, atualmente ela assume uma
complexidade maior, ante a maximização das exigências da própria sociedade para
que ela se materialize.
Se antes as questões urbanísticas não eram prioritárias, ou as questões
sociais ou ambientais poderiam, em uma regularização, em nome da economia de
recursos, ser considerada de menor essencialidade em uma regularização fundiária,
hoje esta atividade não se contenta com o olhar centrado em apenas um ou dois deste
múltiplos aspectos.
De um lado exigências de cidadania assim determinam e de outro
deveres do administrador – especialmente os atinentes ao exercício das atividades de
administração pública com observância dos critérios de legalidade e moralidade, que
informam a probidade – também o exigem.
A regularização fundiária, que antes tinha algum sentido mesmo quando
na sua formulação simplificada, precisa atualmente conter uma preocupação
“urbanística, social e ambientalmente sustentável”. Para que a regularização fundiária
aconteça com critério, equilíbrio e responsabilidade, é preciso atentar para suas
dimensões de sociais, urbanísticas e ambientais, culminando com a dimensão da
propriedade.
Este também o entendimento de Staurenghi (2003): (...) o processo de regularização fundiária deve enfrentar não só as irregularidades do título de domínio, mas todos os aspectos que qualificam a propriedade, atendidos especialmente os aspectos ambientais, urbanísticos e sociais.
O ponto final de uma regularização fundiária precisa ser a entrega do
título dominial, que pode ser tanto a escritura definitiva – se a área for privada – ou a
concessão do direito real de uso, caso seja pública. Depois, apenas providências de
pós-regularização, avaliação e controle.
Do até aqui exposto se percebe que a designação “regularização
fundiária” não é muito feliz, por não referir de modo abrangente a todo um complexo
de soluções que pode e deve ser elaborado quando se pretender integrar efetivamente
à cidade um assentamento informal e consolidado de moradias. Por quê referir apenas
ao aspecto “fundiário” de uma regularização que tem hoje muito maior abrangência?
O lado “fundiário” da regularização é apenas um dos múltiplos aspectos
de uma regularização que visava precipuamente integrar urbanisticamente uma área à
cidade e, na questão fundiária (documental, jurídico-administrativa), fornecer aos
43
possuidores da área um documento que lhe permitisse negociá-la ou dá-la, por
exemplo, em garantia de pagamento de mútuos, como é lícito fazer a quem é
proprietário de um imóvel.
Hoje se toma a parte pelo todo, falando-se em “regularização fundiária”
para designar uma regularização que abranja aqueles aspectos todos e que atinja à
sua destinação de resolver documentalmente a situação.
Vingou a expressão “regularização fundiária” (hoje largamente utilizada
nos meios em que ela opera e efetivamente consagrada até mesmo em textos legais)
talvez porque a dimensão fundiária seja naturalmente a última a ser efetivada, pois as
dimensões urbanísticas e ambientais têm necessariamente precedência lógica. Falar
em regularização “fundiária” é falar no objetivo último a atingir.
A exemplo de quem, querendo descer em um ponto intermediário do
trajeto, se utiliza do ônibus que traz o nome do ponto final, também quem começa um
projeto de regularização, mesmo procurando realizá-lo apenas em parte, precisa
referir-se ao nome do “ponto final” da regularização: a solução fundiária.
Regularização “fundiária”, “urbanística”, “jurídica”, “ambiental”, “plena”,
“integral”, “de interesse social” e tantas outras expressões nos dão a idéia da
multiplicidade de dimensões que envolve o ato de regularizar a habitação informal,
irregular, em área consolidada.
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3.2 – ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – APP´S (FAIXAS E ÁREAS “NON AEDIFICANDI”)
(...)a função das APP´s é preservar a área que protege o caminho que a água percorre.9
Áreas de Preservação Permanente (APP) são áreas definidas como
protegidas pelo Código Florestal e por resoluções do CONAMA e estão localizadas em
• faixas marginais de cursos d’águas, tanques, represas e lagos naturais; • ao redor de nascentes; • em topo de morros, e • em declividades maiores que 30 % entre outras situações.
Há APP´s protetoras de mananciais e APP´s de outra natureza, que
protegem ambientes especiais não necessariamente ligados a águas.
Esta pesquisa refere-se exclusivamente às APP´s ambientais que protegem águas nascentes, correntes ou dormentes.
Um exemplo de APP, apenas com caráter ilustrativo, é visto abaixo.10
Imagem 01 - Neste exemplo, o que está sendo levado em consideração é a vegetação natural situada nos limites dos corpos d’água. O esquema mostra a área de preservação permanente de 50m ao redor da nascente, 30m ao longo do ribeirão com menos de 10m de largura e 50m ao redor do lago.
Mais tecnicamente definidas, APP´s ambientais são espaços territoriais
que exercem funções essenciais à proteção de ecossistemas, que observam rígidas
normas de proteção ambiental, nas quais a intervenção humana e as atividades
econômicas devem ser mínimas. De preferência as áreas de APP´s devem observar o
9 Dionete Santin, 1999. 10 Ilustração retirada do site http://www.iema.es.gov.br/default.asp?pagina=3886%20 acessado em 27/03/08
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princípio da intocabilidade mantendo-se íntegras para bem exercer suas múltiplas
funções ambientais. Essas áreas prestam “serviços ambientais” fundamentais para todos os
seres vivos e para sua qualidade de vida, como produção e qualidade da água,
controle de erosão, deslizamentos e assoreamentos, proteção de vales, da
diversidade biológica, dos micro-climas, das paisagens, entre outros.
Segundo a própria lei, a APP é importante para a saúde do meio
ambiente, “possuindo a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a
paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico da fauna e flora,
proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.
Apesar dessas áreas serem protegidas por instrumentos legais, é
comum verificar-se sua ocupação irregular com agropecuária, moradia ou outros usos
urbanos.
As APP´s não chegam tecnicamente a configurar uma Unidade de Conservação já que a própria idéia dessas Unidades é a delimitação geográfica de
uma determinada área, tornando-a única e personalizada e sob única gestão, o que
não se conseguiria fazer com todos os rios, córregos, mares, lagos e nascentes
brasileiros. Assim, embora protegidos, os rios, ribeirões, córregos, lagos, encostas,
topos de morro, etc configuram APP´s e não Unidades de Conservação. Por não
serem Unidades de Conservação, não são sequer mencionadas na Lei que criou
essas unidades e o SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
Área de APP também não configura “Reserva Legal”. As propriedades
devem diferenciar e proteger suas APP´s e Reservas Legais. O art. 3º da Resolução
369/2006 exige a comprovação da averbação da área de reserva legal como pré-
requisito para eventual autorização de intervenção em APP. Se uma propriedade
precisa compensar uma determinada Reserva Legal que tenha sofrido alguma
intervenção, a área de APP não pode ser utilizada para essa compensação. Essas
duas modalidades de áreas protegidas possuem origens e funções ambientais
distintas, não se sobrepondo para fins de compensação.
Vem de Bueno (2004) uma idéia da razão de ser da existência das
APP´s quando estas protegem mananciais: “As áreas de proteção dos mananciais têm
sido definidas para proteger, através do controle do uso e da ocupação do solo (...)
para recarga de fontes de água para abastecimento público.”
A APP coberta com vegetação nativa melhora, segundo a lei, as
condições de vida da população, contribuindo com mais área verde e de lazer, maior
permeabilidade, infiltração da água e favorece a amenização da temperatura
ambiente. Mas mesmo a não coberta com vegetação é protegida pelo Código Florestal
46
(inc.II, § 2º. art.1º.). Não deixam elas, este o entendimento da lei, de cumprir algumas
de suas funções ambientais pelo só fato de não abrigarem vegetação.
A legislação evoluiu muito. Inicialmente se ignorava a existência dessas
áreas. Atualmente a proteção dessas áreas é declarada e buscada.
As APP´s não eram, antes do Código Florestal reconhecidas como
espaços ambientais importantes; eram simplesmente incorporadas ao restante da
propriedade e seu uso seguia o mesmo destino da propriedade toda.
Em 1934 Vargas aprova, por Decreto Federal com força de Lei (Decreto
Federal 23.793, de 23 de janeiro de 1934) a primeira versão do Código Florestal que,
referindo-se aos espaços marginais aos rios, embora os definisse como “florestas
protetoras” e as declarasse como áreas de “conservação perene”, não fixava metragem marginal alguma como ““non aedificandi”. O critério único era a
existência ou não de floresta (que hoje chamamos “mata ciliar”). A proteção incidia
apenas sobre a floresta e não sobre as margens.
Este é o texto desse Decreto no que toca às hoje chamadas “APP´s”: Art. 4º Serão consideradas florestas protetoras as que, por sua localização, servirem conjunta ou separadamente para qualquer dos fins seguintes: a) conservar o regime das águas; b) evitar a erosão das terras pela ação dos agentes naturais; c) fixar dunas; d) auxiliar a defesa das fronteiras, de modo julgado necessário pelas autoridades militares; e) assegurar condições de salubridade publica; f) proteger sítios que por sua beleza mereçam ser conservados; g) asilar espécimes raros de fauna indígena. (...) Art. 8º Consideram-se de conservação perene, e são inalienáveis, salvo se o adquirente se obrigar, por si, seus herdeiros e sucessores, a mantê-las sob o regime legal respectivo, as florestas protetoras e as remanescentes.
Em 10 de julho do mesmo ano é decretado o “Código das Águas”
(Decreto Nº 24.643, de 10 de julho de 1934, Decreto do Governo Provisório com força
de Lei). Este código:
- não possui qualquer disposição a respeito de proteção, preservação ou conservação
das águas;
- cuida de mares, rios, lagos, lagoas, águas pluviais, subterrâneas, poços, aquedutos,
força hidráulica (hidroelétricas), quedas d´água,etc;
- tem caráter visivelmente patrimonialista e de exploração econômica dessas águas,
prevendo concessões e permissões;
- regula a partição de poderes dos entes federados (união, estados e municípios)
- traz detalhada definição de domínios
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- prevê inclusive a dominialidade privada de determinadas águas
- traz detalhada normatização de direitos de vizinhança
- prevê nos artigos 11 § 2º. , 12, 80, 196, normatização em relação às margens das
águas, mas apenas com caráter econômico, patrimonial ou de facilitação de acesso
para serviços.
- não traz nenhuma palavra a respeito de restrições, com fins protecionistas, ao uso
das margens do elemento físico.
Antes da década de 60, portanto, quando entrou em vigor o Código
Florestal estabelecendo a faixa de 5 metros, cada município fixava a faixa de proteção que melhor aprouvesse não à sua idéia de proteção ambiental (noção
quase inexistente à época) mas às necessidades locais de exploração e produção.
Em 1965, o novo Código Florestal (lei 4771) definiu essas distâncias em
relação às margens dos córregos e rios, sem definir os critérios de distâncias para
tanques e represamentos artificiais, nascentes e topo de morro.
Para cursos d’água com até 10m de largura, a faixa mínima prevista em
cada lado da margem, era de 5 metros.
A generalização da faixa para todo o país em 5 metros já foi um avanço
(pois não se pode prescindir de critérios para edificação à margem de cursos d’água)
mas ainda não se baseava em critérios preservacionistas.
O critério àquele tempo era urbanístico. A sociedade reputava caríssimo
recuperar a degradação provocada pelo povoamento dessas margens. Mas fiel à
tradição de inexistência de faixa alguma, o mesmo Código Florestal permitia a
desconsideração dessa faixa, conforme o caso. Bueno (2004) traz à nossa lembrança
que “O código Florestal prevê a possibilidade de supressão dessas faixas para ações
de interesse público ou social através de prévia autorização.”
Com a edição da Lei Federal 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que
dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, o legislador já entendia que esta faixa de
apenas 5m não era suficiente para cumprir o objetivo proposto e agregou uma faixa de
10 metros como “non aedificandi”, estendendo a uma faixa total de 15 metros nas
áreas urbanas: (“Art 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes
requisitos: (...) III - ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de
domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma
faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências
da legislação específica;”).
Mas o critério dos “15 metros” continuou não sendo a proteção
ambiental. A Lei 6.766 visava ordenação de território apenas, como se percebe pela
inexistência nela de qualquer outra disposição que implicasse em proteção ambiental.
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A lei 7.511, de 7 de julho de 1986, alterou o Código Florestal para
aumentar a faixa mínima de preservação permanente de 15 para 30 metros de largura
para cursos d’água de até 10 m de largura. Esta última alteração é efetivamente
marcada pela idéia de proteção ambiental, denotada pela extensão fixada. Não se
sabem, contudo, os critérios que foram utilizados para se chegar à faixa de 30 metros,
nem os estudos em que essa fixação se baseou.
Em 1989 a lei 7.511 foi revogada pela Lei 7.803/89 que manteve a faixa
de 30 metros afirmando, na exposição de motivos (projeto de lei 2.114/89 e
mensagem do executivo 167/89, assinada pelo Ministro do Interior) que se baseava
em “estudos realizados no âmbito do ‘Programa Nossa Natureza’ criado pelo Decreto
96.944 de 12/10/1988, que indicaram a necessidade de se proceder à revisão dos
artigos (do Código Florestal)”.
A Resolução CONAMA nº 4, de 18 de setembro de 1985, revogada pela
Resolução 303, de 20.3.2002, enquadrou as Áreas de Preservação Permanente como
Reservas Ecológicas e definiu critérios e parâmetros para as lagoas, lagos ou
reservatórios de água naturais ou artificiais; de nascentes; topos de morro, montes e
montanhas; bordas de chapadas e declarou como de preservação permanente as
encostas com declividade superior a 100% ou 45°.
A resolução 369/06 do CONAMA reduziu, para efeito de regularização fundiária, a faixa de preservação para 15 metros(letra “a” do inc. IV do art. 9º) desde que obviamente observadas as demais regras para essa regularização previstas na própria resolução. Existem hoje, portanto, duas faixas mínimas: uma de 30 metros para as situações que não sejam de regularização fundiária (lei 7.511) e outra, de 15 metros, para a regularização (resolução 369). A sociedade vê as APP´s sob três óticas. A ecológica, que trata da
necessidade de preservar os serviços ambientais, mas que, via de regra, não
sensibiliza os proprietários rurais; a da qualidade da água, já que desempenham um
papel fundamental para a manutenção do regime hidrológico; e a da segurança, pois
nas grandes cidades as APP´s são sinônimos de várzeas que alagam e de encostas
que desmoronam nos períodos de chuva.
APP´s constituem, portanto, a faixa "non aedificandi" (na qual não é
lícito construir) ao longo de lagos, rios, cursos d'água, nascentes e matas (bem como
manguezais, lagoas e lagunas, áreas estuárias, vegetação de restinga quando
fixadoras de dunas, costões rochosos e as cavidades naturais subterrâneas, cavernas
etc) que varia de 30m a 50m, e que visa preservar a integridade destes elementos.
São aquelas faixas em que o manancial todo (que inclui as águas, as florestas e
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demais formas de vegetação natural ali existente) não pode sofrer qualquer tipo de
degradação.
Essa metragem estabelecida de forma objetiva valendo indistintamente e com caráter geral para todos os rios, ribeirões, córregos, lagos e outros elementos naturais do país (que tem suscitado acerbas críticas) é de discutível validade.
Não se discute, evidentemente, a utilidade das APP´s, mas seu
estabelecimento com critérios objetivos indistintos para todas as situações.
Há uma idéia preconcebida de que as normas nacionais “protegem as
APP´s”. Mas essa proteção é discutível na medida em que se avalia a multiplicidade
de situações que tais normas visam prever e que efetivamente não prevêem.
Ao analisar bacias de drenagem e APP´s, Coelho Neto (2007)
demonstrou com clareza o quanto são dinâmicos os processos hidrológicos e
geomorfológicos modeladores da superfície terrestre e que a interação desses
processos com biota e solo criam uma tal variedade de situações, por sua vez de tal
forma mutáveis, que se torna inviável estabelecer, por norma nacional, um regramento
único válido para todo o país.
Por exemplo:
• Há APP´s em áreas rurais e em áreas urbanas. Estas são em muitos aspectos diferentes daquelas, mas a regra que vale para ambas é uma só.
• Há APP´s em rios largos e em córregos diminutos, mas as regras que se aplicam a ambos são as mesmas, com variação apenas de metragem da faixa.
• Há APP´s cobertas com vegetação (ecossistemas ciliados) e APP´s desprovidas até mesmo de grama, mas a lei é a mesma para ambas.
• Há APP´s em áreas urbanas que estão ocupadas para fins de moradia e APP´s em áreas urbanas que não estão ocupadas e que apesar disto a lei é a mesma para as duas situações que são inteiramente diversas;
• Há APP´s em áreas urbanas que estão ocupadas para fins de moradia de modo consolidado, de tal forma que torna inviável qualquer tentativa de remoção de moradores, permitindo quando muito apenas uma intervenção urbanística ou fundiária (desconsiderando o aspecto ambiental) e ao mesmo tempo há APP´s em áreas urbanas, com ocupação para fins de moradia ainda não consolidada e onde é possível uma intervenção mais acurada, levando em conta diversas dimensões de regularização. As normas de regularização, federais que são, exigentes de uma solução ambiental, impedem a regularização da primeira situação mesmo em se sabendo que para a cidade a regularização configuraria inegável ganho urbano e social.
• Há determinados trechos de rios cercados com florestas por ambos os lados ou em apenas um dos lados e se torna desnecessária a aplicação de regra de APP em uma situação na qual já se aplicam leis protetoras de florestas. Nestas situações a APP nem existe (coberta que está pela floresta) mas a norma que a protege se aplica da mesma forma.
• Há áreas geológicas estabilizadas e áreas geológicas fragílimas, submetidas a constantes e vorazes voçorocas, causadoras de processos de intensa erosão, que se alimentam da beira dos rios, levando áreas de APP, áreas de moradia,
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áreas industriais, áreas de lazer, etc. e nas quais uma regra protetora de APP é inteiramente inútil.
• A instabilidade faz parte do próprio conceito de “duna” (monte de areia móvel, formada geralmente pela ação do vento) e a duna é cercada por APP´s que a acompanham conforme ela muda de posição. Uma casa que está fora de uma área APP de duna pode repentinamente estar dentro da faixa para depois tornar a estar fora dela, sem que a casa jamais tenha saído do lugar.
• Há em alguns locais (como no Rio Araguaia, por exemplo) um complexo sistema de canais aqüíferos entrelaçados, onde há amplo domínio fluvial dinâmico, criando igualmente uma infinidade de áreas de APP entrelaçadas que legalmente praticamente inviabilizam qualquer tipo de uso humano, mas que na prática acomodam grupamentos de moradias ou mesmo vilarejos perfeitamente sustentáveis.
Ou seja: há áreas em que a aplicação das regras federais de proteção
ambiental (como as faixas de APP) é fácil. Mas há outras nas quais consiste, como
lembra Coelho Neto (2007), verdadeiro “desafio encontrar justificativa técnica de respaldo para essas larguras estabelecidas pelo CONAMA.”
A mesma autora proscreve as tentativas de legislar uniformemente e definir APP´s em situações dinâmicas.
É preciso, de um lado, reconhecer nossa impossibilidade prática –
verdadeira impotência – de prever por norma federal as mais diversas peculiaridades
regionais e locais, e de outro delegar para Estados e para municípios a competência
para legislar nessas situações, liberando municípios da desnecessária tutela federal
que apenas agrava a dependência e fortalece esferas de controle político.
Por outro aspecto, é importante questionar para quê serve a suposta
proteção legal federal das APP´s, quando se constata:
• Que determinadas APP´s urbanas ocupadas há décadas por moradias já se incorporaram definitivamente ao ambiente urbano construído e não exercem mais as funções que a lei afirma que ela deva exercer, nem as voltariam a exercer caso se desse a retirada de moradores para recuperação do espaço ambiental; a retirada dos moradores dessas áreas não garante, na prática, uma recuperação ambiental minimamente aceitável
• A pouca serventia da APP (exceto o exercício limitado de suas demais funções ambientais) quando o manancial já esteja poluído por diversas fontes
• Que a degradação do ambiente do manancial pode provir de situações nada ligadas à atividade humana, como erosões a montante, ou em áreas mais íngremes, que detonam grandes deslizamentos que fornecem grande carga de sedimentos produzindo assoreamento a jusante
• Que quando a degradação dos aqüíferos locais acontece por atividade humana, em geral é de iniciativa da cidade toda e não apenas das moradias em áreas de APP ou próximas (lixo, rejeitos humanos poluidores); ou provém do exercício de atividades econômicas importantes para a cidade, como extração de argila, areia ou minérios
• Que o café mudou completamente a hidrologia do Vale do Paraíba assim como no passado as atividades agrícolas avançaram sobre a mata atlântica e atualmente as atividades agropastoris estão alterando significativamente o
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ambiente amazônico. A moradia não pode, portanto, ser acoimada de grande vilã do ambiente presente nas APP´s já que não é necessariamente o uso de moradia que desprotege o ambiente existente nas APP´s
• Que as cidades muita vez crescem junto aos canais; entre vazante e cheia a cidade se espraia a partir dali e que o tipo de uso dessas áreas se incorpora à cultura local
• Os diferentes significados que têm os aqüíferos nas estruturas urbanas e nos usos locais configurando, em alguns casos, elemento fundamental da constituição histórico-cultural e integrador da vida local
• É possível que determinados empreendimentos tenham indiscutível qualidade urbanístico-ambiental e paisagística, mesmo ocupando em parte área de APP
• Que cidades não são personas independentes que vivem sós e isoladas; cidades atualmente são redes e que as regras não podem levar em conta apenas determinada situação de um bioma na sua relação isolada com uma determinada cidade.
É preciso reconhecer, com Rolnik (2007) que o marco regulatório
brasileiro sobre APP´s “está subdesenvolvido em relação à sua própria complexidade
e natureza porque a lei cria uma padronagem que não serve nos mais diversos
corpos.”
O novo marco regulatório que precisa nascer deve partir da
necessidade de dialogar com o conhecimento científico e com a realidade; de
enfrentar a diversidade; de gerir diferentes situações, diferentes formas de ocupação e
diferentes biomas; de delegar capacidade normativa para municípios ou Estados,
vencendo o mito segundo o qual municípios são por demais frágeis e desestruturados
para exercer funções desta magnitude. O ente local não será fortalecido na
capacidade de gerir por inteiro seu território enquanto existir tutela federal impediente
do exercício sadio da liberdade de gestão.
A velocidade das transformações ambientais tem sido cada vez maior; é
preciso enfrentar problemas magnos; mas ainda nos apegamos à pequenez das
APP´s na tentativa de protegê-las de moradias. Talvez porque sejam mais visíveis ou
mais próximas que os demais ETEP´s.
Um último aspecto ligado às APP´s convém analisar e diz respeito ao
próprio título desta dissertação. Ali se expressou APP´s como “Áreas de Proteção
Permanente”, embora se saiba que o Código Florestal as designa como “Áreas de
Preservação Permanente”.
Em considerando que “preservar” consiste em “garantir a integridade e
a perenidade de algo” e que “proteger” consiste em “ter cuidado”, “abrigar”, “defender”
e “resguardar”, referenciando portanto a idéia de uma conduta que visa impedir
agressões, ofensas ou agravos, se notará que o vocábulo “proteção” admite a
possibilidade de algum tipo de atividade humana não degradante.
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Preservar tem, em questões ambientais, uma acepção de
“intocabilidade”, exatamente como o afirmam as compilações vernaculares (garantir
integridade e perenidade): manter algo exatamente como está, para que perdure o
mais possível. Embora nos dois casos se esteja a falar em “defender” algo, a diferença
do “preservar” para o “proteger” está no nível de defesa. Naquele, intocabilidade,
ausência inteira de qualquer atividade humana possível. Neste, possibilidade de algum
nível de manejo.
Assim, quando se analisam as leis atuais que permitem (ainda que em
casos excepcionais) o manejo, a atividade humana (incluindo moradia) e mesmo a
retirada de vegetação em áreas que deveriam ser de “preservação”, é forçoso concluir
que essas são, atualmente, “áreas de proteção” (nas quais se admite algum nível de
atividade humana, desde que posta o mais possível a salvo de agressões) do que
propriamente de “preservação”. Daí ter-se escolhido a designação “proteção” para o
título da dissertação: sua maior adequação à idéia que hoje se deve ter das “APP´s”,
segundo o nível de defesa que atualmente lhes dão as leis ambientais brasileiras.
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4 – ALGUNS ASPECTOS JURÍDICOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA Regularizar comporta necessariamente resolver as questões social,
urbanística, ambiental, administrativa e patrimonial permitindo que o habitante do
assentamento irregular de moradia possa tornar-se “dono” do imóvel e, com isto,
tornar sua propriedade visível aos olhos da lei e integrar-se à vida social, econômica e
tributária, favorecendo-o e favorecendo a cidade. Para entender o que “ser dono”, “ser
autorizado”, ter “direito de permanência” e tudo o mais que está no entorno dessas
questões significa é preciso lançar mão de alguns conceitos jurídicos.
4.1 – EXPLICANDO “PROPRIEDADE” Para o Direito Civil Brasileiro de início do século XX, que reflete o
pensamento dominante para a época das grandes fazendas cafeeiras, dos latifúndios
e das amplas porções até então ainda inexploradas de terras, a propriedade é um
direito sagrado, absoluto, inatingível, ilimitável, insubordinável a qualquer conceito ou a
outro direito.
Mas o conteúdo desse direito mudou substancialmente. É claro que a
propriedade, embora continue sendo um direito, já sofre limites importantes para o
contexto social, que refletem de forma significativa no direito à moradia social.
Quanto mais, no Brasil, se limita o direito à propriedade em geral, mais
amplitude de significado se dá ao Direito à Moradia Social, o que faz parecer que tais
direitos sejam incomponíveis.
Quatro são, tradicionalmente, os elementos da propriedade: o
proprietário pode, em relação ao bem dominado, usar, gozar, livremente dispor e
reivindicar.
A rigor, o uso da propriedade nunca foi exatamente ilimitado. Seu “uso
nocivo”, por exemplo, tem sido de há muito penalizado.
O uso que o proprietário poderia fazer de seu bem, já há tempos
limitado pelas leis urbanísticas (leis regentes do uso e da ocupação que podem ser
dados ao bem), sofre com leis mais recentes ainda mais intensa limitação.
Com a Constituição Federal de 1988 e as leis que a sucederam, houve
nítida redução do alcance de pelo menos 3 destes elementos. Assim:
• O direito de uso (que envolve o direito de não usar) está agora subordinado ao
interesse social que é prevalente. Não pode mais o proprietário, mesmo
respeitando as leis urbanísticas, dar à propriedade a destinação que entender
conveniente. Essa destinação precisa “cumprir uma função social”. Ou seja: a
relação do proprietário com o bem dominado há de dar-se sem afrontar os
interesses sobrelevantes do meio urbano em que o bem está situado. Precisa
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harmonizar-se com os demais direitos dos habitantes da cidade. Precisa
compor a paisagem urbana de direitos e não dissentir dela. Com o
parcelamento obrigatório, por exemplo, o proprietário não tem mais o direito de
não usar o bem.
• O direito de livremente dispor está igualmente bastante afetado, mais
recentemente pelo dever de vender à municipalidade em caso de esta erigir em
relação ao bem um “direito de preempção”. A preempção é um “direito de
preferência” na aquisição de um determinado bem que se estabelecia em geral
no interesse do vendedor do bem e que hoje se efetiva em favor da sociedade.
Veja-se que o direito de propriedade era de tal forma ilimitado que mesmo
depois da venda o proprietário continuava, observadas certas regras, ligado ao
bem pelo direito de preempção. É notável a evolução da preempção ao longo
do tempo, tendo passado da condição de “direito individual” para sua atual
situação de “direito difuso”. Assim, o direito de preempção, originalmente
estabelecido como um direito do vendedor do bem de recomprá-lo do
comprador no caso de este resolver vendê-lo, hoje se transformou no direito da
sociedade de adquirir com preferência o bem, em detrimento de todos os
demais interessados, quando presente o interesse social, por exemplo, de ver
mais adensada uma determinada área da cidade, impedindo meras
especulações.
• O direito de reivindicar o bem em caso de esbulho ou turbação há muito se viu
limitado nos casos em que a posse do invasor de torne antiga. A usucapião,
direito estabelecido em favor do invasor de determinado lote ou área, hoje
assume dimensões muito mais avantajadas com a criação de novas espécies
de usucapião pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, com prazos
prescricionais muito menores.
Como se vê, o direito de gozar (usufruir) o bem, recebendo, por
exemplo, os aluguéis em caso de entrega onerosa de sua posse a terceiros, foi até o
momento o menos afetado dos elementos que informam a propriedade. É Pinho (1998) quem alerta para as limitações que a interpretação
sistemática das leis brasileiras atualmente em vigor permitem dar ao conceito de
“propriedade”: “a garantia do direito de propriedade está diretamente relacionada à
compatibilidade do uso desta propriedade com os limites estabelecidos pela lei
provocando os efeitos por ela – a lei – desejados.”
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4.2 – USUCAPIÃO Como se viu, o direito de propriedade tem por elementos o “usar”, o
“gozar”, o “livre dispor” e o “reivindicar”.
Pode-se perder a propriedade voluntariamente, dispondo do bem em
caráter definitivo (por venda, doação, etc) , como se pode também perdê-lo como
“sanção” pelo não uso e por não defendê-lo de invasores.
Quem permanece por determinado período ocupando um imóvel alheio,
como seu, sem oposição, ininterruptamente, adquire o domínio desse imóvel. Torna-se
proprietário dele. Transforma-se de mero possuidor (posseiro) em caráter precário em
dono do bem. O antigo proprietário perde o imóvel definitivamente. Em linguagem
jurídica se diz que nestes casos aconteceu a “prescrição aquisitiva” do direito em
relação ao imóvel.
Ao se tornar proprietário do bem, aquele que era mero possuidor obtém
ao mesmo tempo todos os direitos inerentes à propriedade do bem: usar, gozar,
livremente dispor e reivindicar. Esse que, antes, como mero possuidor, tinha apenas o
direito de usar o bem, tem agora (como proprietário que passa a ser) todos os demais
direitos que lhe faltavam em relação a esse bem. O direito de uso está, portanto,
abrangido no direito à propriedade.
Sendo assim, não há possibilidade de alguém passar a ser, por
usucapião, dono de um bem, e não ter em relação a este mesmo bem o direito de uso,
salvo nos casos em que ele, uma vez se tornando proprietário, conceda a alguém o
direito de superfície por exemplo.
Assim como as pessoas físicas, as pessoas jurídicas têm também
direito de propriedade. E assim como os particulares, os órgãos públicos têm também
esse mesmo direito. Embora os entes públicos União, Estados, DF e municípios
tenham direito à administração dos bens de uso comum do povo, há determinados
bens de que eles são proprietários. Bens de que eles têm domínio e que, por isto
mesmo, são chamados de bens “dominiais”.
Diferentemente do particular, entretanto, os entes públicos não perdem,
por usucapião, a propriedade de seus bens dominiais.
Então, se “A” se mantém na posse de terreno de “B” (um particular) por
determinado tempo, ininterruptamente e sem oposição, se tornará dono (proprietário,
“dominus”) do bem possuído. “B” perderá a propriedade e “A” a obterá.
Já a mesma solução não acontece se “B” for um ente público (o que em
direito se chama “pessoa jurídica de direito público) pois, neste caso, o máximo que
“A” terá em relação ao imóvel será uma “concessão de uso”; jamais obterá a
propriedade.
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4.3 – PERMISSÃO DE USO E CONCESSÃO DE USO É da tradição do direito público brasileiro que os bens públicos (o que
inclui evidentemente os imóveis) não sejam passíveis de usucapião. A própria
Constituição Federal brasileira atual assim o determina expressamente em parágrafo
do art. 183. Ou seja: ainda que alguém se mantenha por muitos anos, por décadas
mesmo, ininterruptamente e sem oposição, em um imóvel de propriedade de um
Estado, da União ou de algum município, jamais poderá ingressar com ação de
usucapião em relação a esse bem. Essa impossibilidade decorre de um dos princípios
dos bens públicos: a imprescritibilidade. Ainda que um órgão público deixe de cuidar
de seus bens e permita que eles sejam invadidos, não perderá seu direito de
proprietário desse imóvel.
Esse princípio existe como decorrência da inconfiabilidade do
administrador público aos olhos do sistema administrativo. A sociedade não pode
confiar no administrador público a ponto de permitir que todas as atitudes por ele
tomadas sejam por ela convalidadas, aceitas e assumidas como válidas. Há
administradores e administradores. Por este motivo, é preciso por lei impedir que
eventual omissão de determinado administrador possa ensejar para toda a sociedade
a perda de seus bens. Daí o cuidado da Constituição Federal ao declarar
aprioristicamente imprescritíveis os bens públicos.
Segundo Saule (2006) no Brasil, a terra e o direito à propriedade foram tratados, desde o início do processo de colonização, sob a ótica estrita da especulação, ou seja, da exploração da propriedade em benefício – especialmente econômico – de seu proprietário. Associava-se, em uma só equação terra, riqueza e poder. Essa lógica de tratamento da terra era também aplicada ao patrimônio público: o Estado – reflexo da sociedade – sempre olhou suas propriedades sob a perspectiva prioritária das transações onerosas.
Até 1967 não se admitia permitir, oficialmente, por algum documento,
que alguém se mantivesse morando ou explorando comercialmente algum imóvel
público. Quando muito, a “regularização” se dava por meio da autorização de uso, o
que apenas adiava uma solução para o problema da ocupação.
E com o tempo a realidade dessas ocupações sem controle de áreas
públicas assumiu proporções alarmantes e a inteira impossibilidade prática de os
órgãos públicos retirar os invasores todos, por meios próprios ou por meio da Justiça,
fez com que durante algum tempo tais órgãos convivessem com o problema e,
posteriormente, buscassem dar pelo menos uma roupagem jurídica para essas
57
situações para lhes permitir lidar com o problema futuramente, já com alguma garantia
ou chance jurídica.
Em 1967, pelo Decreto-lei n.º 271 de 28/02, se instituiu, como direito
real resolúvel, a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, de forma
remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, para fins específicos de
urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de
interesse social, materializado por instrumento público ou particular ou, ainda, por
termo administrativo, registrável no registro imobiliário e transmissível por ato inter-
vivos ou em razão de morte (mortis causa). Não se destinava essa concessão
especialmente à regularização de situações de moradia. Buscava resolver situações
pontuais, de moradia ou não, de alguns.
Essa concessão de uso não é, portanto, exatamente a CONCESSÃO
DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA hoje prevista na Medida Provisória
2220/01. Mas foi a primeira brecha no dique da impossibilidade jurídica de
permanência das pessoas nas áreas ocupadas.
E já aqui, antes de avançar para o estudo da CONCESSÃO DE USO
ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA, convém chamar a atenção para o fato de a
“concessão de direito de uso” ter enorme semelhança com o “direito de superfície”.
Pela concessão o Estado e pelo direito de superfície o particular transferem a terceiros
seu direito de usar da parte edificada no terreno (que continua sob propriedade de
quem transfere). Notar essa semelhança ajuda muito ao entender a concessão de uso
e a concessão de uso especial para fins de moradia.
4.4 – HIS - HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL e “ZEIS” - ZONA ESPECIAL DE DE INTERESSE SOCIAL É tão significativamente alto o índice de irregularidade na construção
habitacional, que a regularização fundiária chega a ser uma medida emergencial. É
uma imposição da realidade e dos fatos.
No entanto, desde logo foi possível perceber, ao se estudarem os
entraves legais ou burocráticos que existiam para que a regularização fundiária
pudesse ser realizada em larga escala, que somente a eliminação das barreiras em
que se constituem as exigências legais normais, aplicáveis indistintamente a toda
construção para fins habitacionais na cidade (legalidade na posse, dimensões
mínimas do lote, loteamento regular, infra-estrutura básica, etc) tornaria possível atuar
a contento nessa área.
É claro que uma pessoa que tem sua vida econômico-financeira
resolvida e que trabalha por diletantismo faz parte da sociedade tanto quanto dela faz
58
parte uma pessoa desprovida de recursos. Então, falar em “interesse social” para
referir-se à categoria de pessoas pobres não parece ser uma utilização adequada do
vocábulo “social”. A despeito disto, consagrou-se nos meios institucionais, científicos e
universitários o emprego da palavra “social”, como também da palavra “popular” para
referir a pessoas de classes economicamente menos favorecidas. Daí advieram
“movimento popular”, “moradia social”, “interesse social” e tantos outros.
Pensou-se então na possibilidade de, em determinadas áreas
específicas da cidade, áreas que seriam delimitadas por lei, as exigências seriam
menos rigorosas e menos onerosas, facilitando a ação de edificações de “moradias
sociais”, “dentro da lei”. A essa “área especial” se deu o nome de “Zona Especial de
Habitação de Interesse Social” que seria, portanto, uma zona específica da cidade na
qual se construiriam, com padrões diferenciados, habitações para pessoas pobres.
Segundo Fernandes (1998) a definição de uma área como sendo de
“interesse social”, “(...) permite redefinir em parte, ou pelo menos minimizar, a dinânica
do mercado imobiliário, garantindo, assim, espaços no território da cidade para os
grupos pobres.”
Pelo país inteiro disseminou a experiência de aplicar padrões
construtivos diferenciados em determinadas áreas. Primeiro por leis municipais.
Depois até mesmo a lei federal foi alterada para abrigar a novidade.
Analisem-se aqui as diferenças:
Lei 6.766/79 Art. 2º - O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes. (...) § 5º Consideram-se infra-estrutura básica os equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, redes de esgoto sanitário e abastecimento de água potável, e de energia elétrica pública e domiciliar e as vias de circulação pavimentadas ou não.(Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) § 6º A infra-estrutura básica dos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas por lei como de interesse social (ZHIS) consistirá, no mínimo, de: (Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) I - vias de circulação; (Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) II - escoamento das águas pluviais; (Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) III - rede para o abastecimento de água potável; e(Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) IV - soluções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar.(Incluído pela Lei nº 9.785, 29.1.99) Art. 4º - Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: (...) II - os lotes terão área mínima de 125 m2 (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando
59
a legislação estadual ou municipal determinar maiores exigências, ou quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes;
Note-se que em se tratando de “ZEIS” se dispensaram as seguintes exigências que precisam ser atendidas nos casos das demais habitações:
• iluminação pública
• “rede para esgotamento sanitário” (bastando uma “solução” para este aspecto)
• “rede de iluminação domiciliar” (idem)
• dimensões mínimas do lote.
Criaram-se assim exigências especificas para tornar possível o
exercício do direito de erigir “dentro da lei”. Criou-se desta forma um padrão
diferenciado que pode ser chamado de “padrão de urbanização de interesse social”.
Isto não significa, contudo, que as leis urbanas tenham sido
“flexibilizadas” quando se trate de ZEIS. O que faz a lei é apenas criar alternativas de
legalidade para que as pessoas possam estar dentro da lei. A ZEIS não é, portanto,
flexibilização, mas apenas um diálogo que a lei abre com a realidade popular.
4.5 – “DIREITO DE PERMANÊNCIA” (OU DE NÃO REMOÇÃO) E SEGURANÇA NA POSSE Habitação não é só teto. É um lugar na cidade.
Daí a necessidade de respeitar-se a opção do local de fixação
habitacional dos moradores desses assentos habitacionais informais consolidados e
evitar-se o quanto possível a transferência compulsória dos moradores para outras
áreas menos nobres da cidade ou mesmo para áreas ainda mais degradadas do que
aquelas em que eles se encontram. Seria importante, ao se decidir pela regularização
de determinada área, fixar como compromisso primeiro dos agentes de regularização:
1. a não remoção como premissa; 2. sendo inteiramente necessária a remoção por se
tratar de área de risco ou de proteção ambiental ou ainda por razões urbanísticas, não
realizá-la caso seja de alguma forma possível remover o risco, resolver a questão da
agressão ambiental ou contornar as dificuldades urbanísticas.
Estas premissas conformam-se com o respeito às pessoas que não
tiveram alternativa senão avançar sobre as áreas ambientais para encontrar uma
forma de abrigar a si e à sua família.
Embora se trate de citação fora do vernáculo, convém reproduzir por
inteiro cada uma das frases de Heidegger, citado pelo Arq. Magaña, já que todas elas
60
demonstram de alguma forma a importância que as moradias, o entorno, os lugares,
assumem na vida de determinadas pessoas. Habitar es más que un simple estar (morar, en el sentido Heideggeriano), habitar y morar son entonces dos cosas diferentes, aunque en el lenguaje común las dos se utilicen como sinónimos. En esta visión el hombre puede morar en cualquier construcción pero no en toda construcción puede habitar, como se dijo, las construcciones pertenecen a la esfera del habitar, pero no en todas se habita. (…)en las que se da el echo del habitar son las que el hombre denomina como, "alojamiento, vivienda, casa, morada", donde encuentra descanso, adonde siempre regresa para permanecer (a un que sea por poco tiempo). (...) Este sentido del habitar (…) configura (…) perteneciendo a la comunidad de los hombre]".(…)Habitamos las cosas, lo material o lo ideal de ellas; Se habitan las cosas, los objetos, se habitan las calles, las plazas, las ciudades, el espacio, (…) por que al usarlos parte del ser reside en ellas (...) sólo se habita plenamente cuando se reside en las cosas (…) Para quien habita el entorno, lo arquitectónico-lo ingenieril-lo urbano, el espacio esta lleno de contenido. (...) cuando no existe un vinculo con los espacios o los objetos esto llega a ser no significativo es cuando se dice que el hombre solo mora. (…).
É inevitavelmente preciso compreender o espaço do local em que se
encontram os moradores desses assentamentos informais utilizando a noção de
“lugar” que, culturalmente, possa representar sentidos aglutinadores de identificação
simbólica e afetiva para o individuo; a terra natal, o lugar de convívio, a fazenda, o
bairro, a praça, a rua, a cascata, a escola, etc.
Da apreensão e compreensão até que simples dessa verdade de que o
homem está ligado não apenas ao espaço por ele escolhido para ser o abrigo seu e de
sua família como também o entorno, a vizinhança, as casas dos amigos, o empório, a
praça, o córrego, a barbearia, e que esta ligação é em grande parte responsável pela
sensação de harmonia, de conforto, de segurança, de proteção, de ordem e de
garantias diversas, desenvolveram-se duas teorias que ganharam amplo espaço no
que se pode chamar de “doutrina do urbanismo”.
Primeiramente a idéia de “segurança na posse” e posteriormente a idéia
de “direito de não remoção”. Aquela, nascida da elite do pensamento do urbanismo.
Esta, provinda dos movimentos populares de defesa do direito à moradia.
A rigor, no entanto, “segurança na posse” não tem apenas a acepção de
direito de ver respeitada sua posse e, portanto, de não ser removido do espaço
escolhido para moradia. Trata-se de conceito mais abrangente, que envolve a idéia de,
sob aspecto prático, ao final do procedimento de regularização fundiária, caminhar-se
resolutamente em direção ao objetivo de transformar a mera posse em efetiva
propriedade ou em algo que possa merecer praticamente o mesmo “status” de
61
proteção jurídica como é, por exemplo, o caso da concessão de uso especial para fins
de moradia. Caminhar para a legalização. Isto sim configuraria bem e precisamente o
que se espera de uma efetiva “segurança da posse”.
Já os movimentos sociais populares, mais preocupados com aspectos
práticos dos problemas que diuturnamente enfrentam (dentre os quais o da
verdadeira “Espada de Dâmocles” que configura o permanente perigo de remoção
pura e simples, sem alternativa de moradia, do local em que suas moradias se
encontram) cunharam a expressão “direito de não remoção” que pode, por outra forma
ou ótica, ser também chamado de “direito de permanência”.
Estas expressões dizem mais claramente e com maior precisão a quê
se prestam. Dizem respeito ao direito que tais pessoas, moradores dessas áreas, têm
de, uma vez equacionada a questão de risco ou uma vez solucionada a questão
ambiental ou resolvida a questão urbana, permanecer no local em que se encontram e
ter o mérito de receber a titulação dessas áreas, sejam elas públicas ou privadas. Isto
porque algumas remoções que se fizeram ou que ainda hoje se fazem, levam em
conta apenas o interesse egoísta ou mesquinho do proprietário da terra que é, por
vezes, o próprio poder público.
Razões de ordem urbanística, ligadas sobretudo ao interesse primeiro
dos moradores dessas áreas é que devem prevalecer quando se pensa em remoção.
• Remove-se para evitar riscos que não possam ser por outra forma
solucionados.
• Remove-se para melhorar a qualidade de vida para o morador e se possível
para todos os demais moradores.
• Remove-se para amplificar a circulação de pessoas e de veículos.
Mas sempre com os olhos postos no direito à moradia e na
melhoria urbanística sobretudo para a população daquele determinado núcleo em que
a intervenção precise ser realizada.
4.6 – ÁREA URBANA CONSOLIDADA Quando se vai dedicar à regularização fundiária o poder público precisa
definir alguns critérios que diferenciarão umas áreas elegíveis para a intervenção, de
outras em que a regularização não se dará, pelo menos naquele determinado
momento.
Um dos critérios, obviamente, é a catalogação daquela área como
“consolidada” a ponto de não ser econômica e socialmente recomendável a remoção
de famílias. Uma irregularidade consolidada é aquela em que já se deu uma
estabilidade de situação que recomenda que o tratamento seja o mesmo que se dá às
62
demais situações legais. Assim, quando uma determinada área urbana já vive uma
vida de comunidade em que as relações humanas estão assentadas e as relações do
grupo com o local e o entorno (o espaço) têm um entrosamento que não deva ser
rompido, já se pode reconhecer a ligação desse grupo com a cidade; a comunidade
local já é vista pelo restante da cidade como uma parte dela e não resta mais que
oficialmente incorporá-la à cidade.
Incorporar legalmente à cidade uma área consolidada como urbana é,
pois, reconhecê-la oficialmente como sendo aquilo que efetiva e concretamente ela já
é: uma parte da cidade.
Embora isto pareça simples, não são poucos os embates jurídicos que
essa definição permite. O proprietário da área, que não pretende que sua área seja
definitivamente entregue àqueles que ele considera invasores, bate-se pelo não
reconhecimento daquela situação como consolidada. E mesmo de município para
município variam as definições sobre o quê efetivamente se deve considerar como
uma “área consolidada”. São tantas as discussões a este respeito que em 2002 o
CONAMA resolveu conceituar legalmente11 o que é que, a partir dali, poderia
merecer a designação de “área urbana consolidada”. E para a resolução, uma área
consolidada é aquela legalmente definida pelo poder público (é preciso, pois, que a
municipalidade afirme por lei essa consolidação), densidade demográfica superior a
cinco mil habitantes por km2 (altamente povoada, portanto) e ainda que conte com
pelo menos 4 das 6 seguintes infra-estruturas urbanas:
• malha viária com canalização de águas pluviais; • rede de abastecimento de água • rede de esgoto • distribuição de energia elétrica e iluminação pública • recolhimento de resíduos sólidos urbanos • tratamento de resíduos sólidos urbanos.
Para se ter por “consolidada” uma área urbana é necessária a
convergência de três fatores mínimos:
• Definição por lei • Alta densidade demográfica e • Existência de pelo menos 4 itens que permitem dar à área um aspecto urbano.
4.7 – BACIA HIDROGRÁFICA O planejamento ambiental tem como objetivo organizar uma
determinada área visando um melhor desempenho, considerando sua vocação
natural. Esse ordenamento pode ser realizado através da organização dos espaços
11 Resolução 302 de 20/03/2002 que trata de APP dos reservatórios artificiais.
63
em bacias hidrográficas, consideradas unidades territoriais para implementação da
Política Nacional de Recursos Hídricos.
Bacia Hidrográfica é a área total, inteira, completa, de onde promana
toda e qualquer água que alimenta determinada unidade fluvial ou lacustre. É também
a unidade territorial administrativamente utilizada para implementação da Política de
Educação Ambiental, por meio dos Comitês de Bacias Hidrográficas.
Bacia hidrográfica é, por outras palavras, o “conjunto de terras por onde
todas as águas pluviais, dos rios e seus afluentes correm”. 12 Estas águas tomam a
direção do rio principal, que determina seu nome. Para Coelho Neto (2007) bacia é a
“área que drena fluxos líquidos, sólidos e solúveis para uma saída comum.”
Um exemplo interessante para compreender melhor o que é uma bacia
hidrográfica é olharmos nossa mão: nossos dedos seriam os rios (que correm da
ponta de nossos dedos para a palma da mão) e que se vão encontrar na palma da
mão, ou seja, no rio principal, no lago ou no oceano. A mão, tomada por inteiro,
configuraria uma bacia. Assim, se determinada água não alimenta um determinado rio,
não pertence à bacia deste rio. Apenas as águas que alimentam este rio pertencem à
sua bacia.
As bacias estão divididas pelas montanhas (divisores de água) e se
interligam por vales (já que, evidentemente, as águas buscam sempre os pontos mais
baixos do relevo), onde as águas se encontram formando córregos, ribeirões e rios. A
título de exemplo podemos citar as águas que correm para o Ribeirão das Anhumas,
formando a “Bacia do Ribeirão das Anhumas”; tais águas correm depois para o rio
Atibaia, formando assim a “Bacia do Rio Atibaia” e depois correm para o Piracicaba,
quando todas as sub-bacias se tornam a “Bacia do Piracicaba”. Assim, chegamos à
“Bacia do PCJ”, que vai depois formar a “Bacia do Tietê” e a do Rio Paraná para
chegarmos enfim ao oceano, que é a maior bacia do mundo.
O maior desafio ambiental de toda e qualquer bacia é o lançamento de
efluentes urbanos e industriais.
Mas em se tratando de regularização fundiária um desafio importante
consiste em conseguir fazer harmonizar, quando sobrepostos, os mapas político-
administrativos e hidrográficos. O homem criou e cria unidades políticas e
administrativas rebeldes aos desenhos da natureza, o que inclui evidentemente o
desenho das bacias. (...) a compartimentação geográfica e a compartimentação político-administrativa não coincidem, criando alguns impasses de competência e dificultando a ação regulatória e de fiscalização. Por
12 definição e explicações encontráveis em http://www.gazetadelimeira.com.br/gazetinha/noticias.php?codigo=52
64
exemplo: a área de mananciais do município de São Paulo encontra-se em duas diferentes sub-bacias: COTIA-GUARAPIRANGA e BILLINGS-TAMANDUATEÍ. Assim, se a articulação de políticas públicas entre os três níveis de governo é normalmente complexa, por conta das competências concorrentes, no caso da gestão de bacias hidrográficas é ainda mais complexa, já que os limites de bacias não coincidem com os limites de municípios ou de Estados, exigindo um diálogo ainda mais difícil para que os diferentes níveis de governo exerçam suas atribuições de forma harmônica. Martins(2006)
4.8 – RECUPERAÇÃO DE DANOS URBANO-AMBIENTAIS Por vezes o empreendedor imobiliário realiza uma atividade sem obter
previamente a necessária licença urbanística ou ambiental para, depois, já causado o
dano ambiental ou urbanístico, buscar junto ao Poder Público aquelas licenças. É o
que se costuma denominar “licença a posteriori”.
Uma vez realizada uma atividade causadora de algum nível de
degradação ambiental ou urbanística, qualquer providência pública tendente à
regularização da área para colocá-la conforme às exigências normativas precisa ser
condicionada à minimização dos danos causados. Configura-se uma troca: dá-se a
autorização desde que antes o empreendedor realize alguma atividade de
recuperação dos prejuízos ambientais já perpetrados.
Fala-se muito em “recuperação” de dano ambiental e a doutrina silencia
quanto à possibilidade de a “recuperação” se dar também quanto aos danos urbanos
causados.
Assim como quem causa dano ambiental sem previa licença precisará
realizar atividades recuperadoras do ambiente como condição necessária para obter
posteriormente a licença que deveria ter sido obtida previamente e não o foi, também
é possível pensar em exigir-se o mesmo de quem causa prejuízos urbanísticos sem
obter previamente a necessária licença.
“Recuperação” de prejuízos é gênero que abrange as seguintes
espécies:
• MITIGAÇÃO – que consiste em recuperar parcialmente no mesmo local;
• REPARAÇÃO – recupera integralmente no mesmo local
• COMPENSAÇÃO – recupera integral ou parcialmente em outro local
• INDENIZAÇÃO – não recupera, em razão de alguma impossibilidade concreta
de fazê-lo, mas ressarce (indeniza) em dinheiro ou outro meio o prejuízo
causado.
65
É necessário, contudo, ter cuidado com “recuperações” ou outros
tentativas semelhantes de reconstrução do status quo que por vezes são incapazes de
causar um bem equivalente ao mal sofrido pelo elemento natural.
Embora a situação de uma floresta tropical seja bastante diversa de
uma mera “APP”, é importante demonstrar que a compensação (que pode se
relacionar com uma perda em floresta ou uma perda em APP) pode não gerar
benefício equivalente ao prejuízo que se busca “recuperar”.
Por tal motivo, reproduz-se aqui pesquisa realizada pela Universidade
de East Anglia e do museu Emílio Goeldi, de Belém (PA)13, divulgada em outubro de
2007 revelndo que o reflorestamento de florestas tropicais pode ser inútil na tentativa
de conservar a biodiversidade dessas áreas. No estudo analisaram-se quinze áreas de
floresta no nordeste da Amazônia brasileira. Recolheram-se informações sobre
animais e plantas em cinco florestas primárias (mata virgem), cinco secundárias (que
crescem sobre áreas antes desmatadas) e cinco florestas de reflorestamento com
árvores de eucalipto. Os resultados revelam que pelo menos 25% das espécies
analisadas não foram encontradas fora da mata virgem. Carlos Peres, pesquisador
que liderou o estudo, afirma que a pesquisa deixa claro que é muito melhor preservar
as florestas primárias do que realizar o reflorestamento das regiões devastadas. Além
disto, a pesquisa também indica que as florestas de reflorestamento não são tão
eficientes na absorção de dióxido de carbono da atmosfera, em comparação com as
florestas primárias.
Embora o estudo se refira a florestas primárias e as situações de
regularização fundiária em áreas de APP quase nunca atinjam tais corpos vegetais,
fato é que por vezes as moradias em áreas de APP devastam pequenas florestas
nativas intocadas que não têm o porte nem a expressão de uma floresta primária mas
que, quando devastadas, são de recuperação igualmente inviável à condição anterior.
O Código Florestal, prevê a possibilidade de, mediante autorização e
observadas inúmeras condições, se fazerem remoções vegetais mas, apesar de
prever mecanismos de compensação, não foi suficientemente técnico, causando
impasses para a aplicação das regras.
4.9 – ASPECTOS BÁSICOS DA LEGISLAÇÃO A legislação ambiental e urbanística brasileira foi progressivamente se
dando conta da necessidade de regular mais de perto de um lado a proteção ao
ambiente e de outro salvaguardas à moradia; e se viu em determinado momento
13 os dados constam de http://www.ambientebrasil.com.br/noticias/index.php3?action=ler&id=34679
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vivendo o dilema de precisar regular (decidir, portanto) as questões em que a moradia
protegida ameaçasse o ambiente protegido; ou por outra, situações em que a proteção
ao ambiente fosse colocada em risco exatamente pela moradia que a lei também
protege. Hoje inúmeras leis visam preservar a saúde do ambiente (em geral e urbano).
Desde a Constituição Federal, Código Florestal, Lei de Crimes Ambientais, Lei da
Política Nacional de Meio Ambiente, entre outras, a legislação é extensa, bastante
complexa, gerando dificuldades de interpretação, impasses, conflitos, incertezas
quanto a qual lei aplicar quando houver divergência de normas, e o mais nocivo dos
pecados: sobreposição de gestões. E há extensa legislação protegendo igualmente a
moradia. Qual delas há de prevalecer em situações de conflito?
Aqui estão alguns dos principais instrumentos legais ambientais,
urbanos e de proteção à moradia.
4.9.1 – CÓDIGO FLORESTAL É uma das leis mais importantes que disciplina o uso e ocupação do
solo das Áreas de Preservação Permanente (APP). O artigo 1º da versão atual do
Código Florestal declara que as florestas existentes no território nacional e as demais
formas de vegetação “são bens de interesse comum a todos os habitantes do País,
exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral
e especificamente esta lei estabelecem”.
Isto fez com que Machado(2004) concluísse que “O Código Florestal
(de 1965) antecipou a noção de interesse difuso, e foi precursor da Constituição
Federal quando conceituou meio ambiente como bem de uso comum do povo”.
O Código Florestal foi editado em sua primeira versão durante o Estado
Novo de Vargas (Decreto Federal 23.793, de 23 de janeiro de 1934), e já trazia alguns
conceitos de preservação de áreas marginais a cursos d’água, embora não fixasse distâncias mínimas a serem preservadas.
Eis o texto desse Decreto no que toca às hoje chamadas “APP´s”: Art. 4º Serão consideradas florestas protetoras as que, por sua localização, servirem conjunta ou separadamente para qualquer dos fins seguintes: a) conservar o regime das águas; b) evitar a erosão das terras pela ação dos agentes naturais; c) fixar dunas; d) auxiliar a defesa das fronteiras, de modo julgado necessário pelas autoridades militares; e) assegurar condições de salubridade publica; f) proteger sítios que por sua beleza mereçam ser conservados; g) asilar espécimes raros de fauna indígena. (...) Art. 8º Consideram-se de conservação perene, e são inalienáveis, salvo se o adquirente se obrigar, por si, seus herdeiros e sucessores,
67
a mantê-las sob o regime legal respectivo, as florestas protetoras e as remanescentes.
O que hoje chamamos APP´s (áreas de preservação permanente)
foram primeiramente designadas como “florestas protetoras” e eram declaradas de
“conservação perene”. Praticamente a mesma idéia das “Áreas de Preservação
Permanente” de hoje. E as funções ambientais dessas tais “florestas protetoras” eram
basicamente as mesmas de hoje. Apenas descrevemos atualmente nas leis mais
funções dessas APP´s porque o desenvolvimento da ciência ambiental permitiu a
descoberta dessas funções que as APP´s sempre cumpriram.
4.9.2 – CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Em 1988 houve o advento de uma nova matriz legal no Brasil. Após
elaborada por uma assembléia constituinte inevitavelmente crivada por pressões de
toda espécie, foi promulgada a nova Constituição Federal.
Para aquilo que interessa a esta pesquisa, daquilo que está no texto
constitucional somente os direitos ao ambiente e à moradia interessam.
Curioso que até a Constituição de 1988 a divisão político-administrativa
chamada “município” não era expressamente mencionada como parte integrante da
Federação, embora muitos entendessem que a Federação brasileira também os
compreendia. A Constituição esclarece agora definitivamente este ponto, inserindo,
expressamente no seu artigo primeiro e também no artigo 18, o Município como ente
federativo autônomo.
A autonomia se expressa no art. 29: o Município se rege por Lei
Orgânica própria, promulgada pela Câmara Municipal. Romperam-se, assim, as
rédeas de interferência do legislador estadual em assuntos de organização específica
do Município, a quem está garantida independência administrativa, legislativa e
financeira em relação a qualquer autoridade estadual ou federal no desempenho de
suas atribuições exclusivas (questões de seu “peculiar interesse”).
A Constituição Federal previu a proteção ao ambiente em diversos
dispositivos. Agindo diferentemente do que fez em relação a todos os demais
importantes direitos de cidadania, que foram elencados agrupadamente em um
determinado artigo (5º.) o constituinte decidiu tratar do assunto em capítulo específico
(VI, art.225) o que diz da seriedade e da importância com que o assunto foi tratado.
A questão ambiental, nas suas mais diversas conotações, está tratada
nos seguintes dispositivos:
• Art. 5º. LXXIII – direito à petição para proteção jurisdicional de questões ambientais
68
• Art. 23, VI – União tem o dever de proteção do ambiente • Art. 24, VI – União e Estados membros têm competência concorrente para
legislar sobre ambiente • Art. 129, III – Ministério Público tem obrigação institucional de proteger o
ambiente • Art. 174, § 3º. – atividades garimpeiras não podem abalar o ambiente • Art. 186, II – função sócio-ambiental da propriedade • Art. 200, VIII – Sistema Único de Saúde e o meio ambiente do trabalho • Art. 220 – comunicação social não pode defender práticas ambientais nocivas • Art. 225 – todo um capítulo dedicado à proteção ambiental em todas as suas
nuanças.
O legislador constitucional foi, portanto, bastante devotado à causa
ambiental e muito minudente e cauteloso ao prever sua proteção.
Já com o Direito à Moradia foi diferente. Apesar de toda a articulação,
pressão e negociação dos movimentos populares, não foi de imediato que o Direito à
Moradia foi incorporado ao texto constitucional. De início o artigo em que ele hoje está
colocado não o previa nem como direito social nem como qualquer outro.
Sua previsão veio sob a forma de Emenda (a de número 26), apenas 12
anos depois da promulgação da Constituição Federal.
Mas se veio tarde ou se ficou tratado em apenas uma palavra dentre
muitas de um determinado artigo, é forçoso reconhecer que veio com força.
O ambientalismo deve ter vivido no ano 2000 seus piores pesadelos.
Foi nesse ano que aconteceu a emenda do direito à moradia e, três meses depois, a
alteração do Código Florestal flexibilizando a alteração ou supressão vegetal de áreas
de APP. A Resolução 369 do CONAMA apenas explicitou, seis anos depois, que uma
das possibilidades de intervenção na APP seria por meio de regularização fundiária.
Mas a previsão de intervenção se deu mesmo no ano 2000. Além disto foi no mesmo
ano, no segundo semestre, que a esquerda preparou para o então candidato “Lula” à
Presidência da República o “projeto moradia”, quando já se sabia da força com que tal
candidatura se vinha impondo, o que terminou por ser confirmado 2 anos depois.
Foram dois severos baques normativos para os que julgavam intocáveis
esses espaços. Na verdade, porém, a intocabilidade não passava de uma previsão
legal porque, na realidade, as APP´s já vinham sendo ocupadas há pelo menos 3
décadas.
4.9.3 – O ESTATUTO DA CIDADE (Lei 10.257 de 10/07/01, Projeto de Lei Nº 5788/90)
A primeira tentativa de aprovar uma Lei de Desenvolvimento Urbano
surge no âmbito da Comissão Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU, em
69
1977, que considerava que as administrações municipais não dispunham de um
instrumental urbanístico para enfrentar eficientemente a especulação imobiliária e
democratizar a fruição dos serviços públicos urbanos. Mas não foi bem sucedido.
Com a nova Constituição Federal (1988) na qual os setores
conservadores haviam conquistado a não auto-aplicabilidade da “função social da
propriedade” fazendo-a depender de lei Federal e de Plano Diretor, tornou-se
necessário regulamentar o artigo 182 e 183 da Constituição. No Senado se inicia um
projeto (do então Senador Pompeu de Souza) denominado “Estatuto da Cidade” que
terminou aprovado em 1990.
Os prefeitos eleitos no final da década de 80 pleiteavam instrumentos
capazes de permitir uma gestão direcionada ao atendimento às demandas da
população e enfrentamento da especulação imobiliária. Alguns municípios já
utilizavam certos instrumentos legais (como o imposto sobre a propriedade predial
urbana progressivo no tempo) mas enfrentavam grandes dificuldades jurídicas para
aplicá-los, para o quê contribuía a posição conservadora do Supremo Tribunal Federal
ao julgar inconstitucional a Lei Municipal de São Paulo que dispunha sobre a
progressividade, em razão da ausência da lei federal de desenvolvimento urbano.
Aprovado no Senado, o projeto seguiu para a Câmara Federal, onde
tomou o nº PL 5788/90. Seus princípios eram:
• função social da propriedade (definição) • direito a cidades sustentáveis, terra urbana, moradia, saneamento básico, infra-
estrutura, transporte, serviços públicos, trabalho e lazer para as presentes e futuras gerações;
• gestão democrática da cidade, resgatando os instrumentos constitucionais e acrescentando os conselhos de participação, orçamento participativo, audiências públicas e tribunas populares
• regularização fundiária (usucapião e concessão de uso especial para fins de moradia)
• recuperação, para a comunidade, da valorização imobiliária decorrente de investimentos do Poder Público
• justa distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização • cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da
sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social
O Fórum Nacional pela Reforma Urbana pressiona, mobiliza e negocia
desde 1990 pela visão dos movimentos populares e do lado empresarial o mesmo
acontece com a CBIC – Câmara Brasileira da Indústria da Construção na elaboração
de emendas. Mas a Câmara dos Deputados demonstrou grande reação ao projeto. Na
Comissão de Finanças (relator Luis Roberto Ponte, deputado pelo PMDB do Rio
Grande do Sul, empresário ligado à Câmara Brasileira da Indústria da Construção
Civil) tramitou por 5 anos. Nas comissões de Meio Ambiente e do Consumidor outros
70
dois anos foram necessários e no final de 1998 a comissão de Desenvolvimento
Urbano e Interior a analisou. Até ser votada em plenário foram muitos anos de
tramitação.
Aprovado o Estatuto da Cidade (denominação oficial da lei 10.257 de
10/07/01) regulamentando o desenvolvimento urbano, uma das mais importantes e
inovadoras que entraram em vigor recentemente no Brasil.
É preciso chamar a atenção para o fato de que apesar do nome, o
“Estatuto da Cidade” não é uma “lei mais importante” que as demais leis. Um Estatuto,
salvo quando elaborado na forma de Lei Complementar, tem o mesmo “status” de uma
lei normal. Não é hierarquicamente superior às demais leis.
Seus principais méritos estão:
• na imposição aos municípios da elaboração de planos diretores
obrigatoriamente participativos (para municípios com população superior a 20
mil pessoas ou em outras situações especiais), traçando as diretrizes para
áreas básicas, como ocupação do solo, habitação, meio ambiente e prioridades
de investimentos econômicos. Temos hoje quase 21.700 cidades pensando e
planejando o seu futuro urbano.
• definição de diversos instrumentos urbanísticos que objetivam o combate à
especulação imobiliária e o incentivo à regularização fundiária.
• Na modificação radical do conceito de “propriedade”, que abandonou sua ótica
egoísta voltando-a ao atendimento dos interesses coletivos, expressos na
“função social da propriedade”. O proprietário não pode mais utilizar sua
propriedade em função apenas de seus próprios interesses invididuais. Eles
que antes deviam observar apenas os direitos de vizinhança e as posturas
municipais, agora têm o dever de utilizá-la (dificultando que os imóveis sejam
mantidos ociosos, o que combate a especulação imobiliária e a existência de
vazios urbanos já que a sociedade precisa dessas áreas para poder atender às
necessidades do conjunto da população).
• Desvinculação do “direito à propriedade” em relação ao “direito à edificação”.
• Tratar a regularização fundiária como prioritária, cercando-a de cuidados legais
especiais de modo a permitir sua efetivação concreta desde que o
administrador público assim o deseje.
• Reforçar a autonomia municipal criando ferramentas aplicáveis pelo município
que possibilitam uma intervenção mais abrangente e efetiva do Poder Público
no planejamento e desenvolvimento urbano.
O grande desafio está em implementá-lo como ferramenta concreta de
modificação dos costumes predatórios na relação do homem com a propriedade e com
71
a cidade, pois ele tende a favorecer a ocupação ordenada e democrática dos espaços
das cidades. Para isso a sociedade deve conscientizar-se, e manter-se vigilante,
fiscalizando a efetiva utilização dos novos instrumentos pelo município embora se
saiba que os primeiros efeitos da implantação do Plano Diretor só começarão a fazer-
se sentir em prazo de cinco a dez anos. Bem utilizado, o Estatuto poderá tornar-se
importante ferramenta para corrigir algumas das mais graves mazelas urbanas
brasileiras.
Para Martins (2006) se há de difundir o Estatuto porque “Conhecer o
Estatuto da Cidade vai além conhecer o que ele regula, enquanto direitos, e os
instrumentos que ele apresenta, mas inclui também considerar o que pode ser
implementado a partir de suas disposições enquanto Política Urbana para o conjunto
do país e para cada cidade em sua especificidade de modo participativo e
descentralizado.”
4.9.4 – A CONSTITUIÇÃO ESTADUAL PAULISTA Inserida no contexto das inovações ou alterações legislativas que foram
feitas ao longo das duas últimas décadas para reformular a Política Urbana e permitir
a concreta efetivação do “direito à moradia”, a alteração da Constituição Paulista se
fazia necessário para retirar dela a proibição de alteração da destinação de áreas
verdes ou institucionais nos loteamentos.
Como se sabe, quando um loteamento é autorizado, determinados
espaços desses loteamentos se transformam em ruas, praças (áreas públicas) que ou
se destinam a “área verde” (para transformar em parque ou assemelhados) ou a “área
de interesse institucional” na qual se instalam creches, escolas, postos de saúde,
distritos policiais ou outros equipamentos públicos.
A redação primeira do art. 180 da Constituição proibia expressamente a
alteração de destinação (desafetação) dessas áreas para o fim de permitir outro tipo
de uso de tais áreas. Visava-se com isto impedir que, a critério de autoridades locais
movidas algumas vezes apenas por interesses políticos, a população moradora
desses loteamentos se visse privada desses espaços de lazer ou de equipamentos
públicos importantes.
Com o impedimento legal os registros de imóveis não podiam registrar,
as prefeituras estavam inibidas de fazer projetos e o Estado não podia repassar
recursos. Por conta disso, o Ministério Público – agindo corretamente até então –
tomava posição de defesa da Constituição do Estado.
A nova redação do inc. VII do art. 180 da Constituição do Estado de São
Paulo lhe foi dada pela Emenda 23 de 31/01/07
72
Artigo 180 – (...) VII - as áreas definidas em projetos de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão ter sua destinação, fim e objetivos originais alterados, exceto quando a alteração da destinação tiver como finalidade a regularização de: a) loteamentos, cujas áreas verdes ou institucionais estejam total ou parcialmente ocupadas por núcleos habitacionais de interesse social, destinados à população de baixa renda e cuja situação esteja consolidada; (...) §1º - As exceções contempladas nas alíneas "a" e "b" do inciso VII deste artigo serão admitidas desde que a situação das áreas objeto de regularização esteja consolidada até dezembro de 2004, e mediante a realização de compensação, que se dará com a disponibilização de outras áreas livres ou que contenham equipamentos públicos já implantados nas proximidades das áreas objeto de compensação. §2º - A compensação de que trata o parágrafo anterior poderá ser dispensada, por ato fundamentado da autoridade competente, desde que nas proximidades já existam outras áreas com as mesmas finalidades que atendam as necessidades da população local. (NR)
Torna-se expresso, portanto, que se possa desafetar áreas de uso
público ocupadas, para assim liberar a regularização fundiária de interesse social e
possibilitar aos moradores a aquisição de propriedade dessas áreas ou, ao menos, a
obtenção da Concessão de Direito Real de Uso para posterior registro de seus títulos.
A medida favorece diretamente a população de baixa renda e
moradores de áreas irregulares estabelecidos até 2004 (limitação temporal imposta
pela emenda para evitar benefício àqueles que, sabendo da alteração pretendida,
houvessem invadido essas áreas durante a tramitação do projeto).
Trazem-se agora os imóveis para a condição de legalidade. É mais
importante legalizar do que construir novos imóveis. Em dez ou quinze anos, esse
investimento retorna para a sociedade apenas com o pagamento de tributos gerados
por esse imóvel legalizado.
Há limites, todavia. A alteração da destinação poderá se dar desde que
seja realizada uma compensação das áreas públicas ocupadas por moradia, por
outros espaços ou que contenham equipamentos, como escolas, postos de saúde,
creches, implantados nas proximidades dos locais objeto de compensação.
Tal compensação poderá ser dispensada, desde que nas proximidades
do assentamento já existam áreas públicas, que atendam às necessidades da
população local por serviços públicos essenciais.
O processo de regularização fundiária dessas áreas públicas requer
• verificação do projeto de loteamento • levantamento da situação real
73
• o estudo sobre o atendimento das demandas dos moradores por equipamentos públicos implantados inclusive nas imediações do assentamento.
• desafetação de tais espaços. Para tanto deverá elaborar um projeto de lei, que será enviado à Câmara Municipal para aprovação e que permitirá a regularização para fins de moradia.
• registro do loteamento e do núcleo habitacional no Cartório de Registro de Imóveis.
• concessão ou venda dos imóveis, utilizando-se (a prefeitura) ou de concessão, pela qual a família terá um título que garantirá a posse, mas não a propriedade do imóvel; ou de venda, pela qual a família obtém a propriedade definitiva de seu imóvel.
• registro da propriedade de cada lote em nome do morador, no Cartório de Registro de Imóveis.
4.9.5 – A RESOLUÇÃO CONAMA 369 Apesar da enorme força política e do apoio institucional e popular do
movimento ambientalista, a mudança do texto constitucional brasileiro para prever a
moradia como “direito social” provocou naquele movimento severas baixas.
Embora a proteção à natureza continuasse a gozar de prestígio
constitucional, a partir daquela alteração aquela proteção passou a enfrentar algumas
dificuldades pois os assentamentos de moradia em áreas de APP passaram a
configurar um direito constitucional tanto quanto a proteção ao ambiente já
anteriormente configurava. A moradia, que costumava ameaçar as APP´s, até então
não era páreo – no campo jurídico – para o ambiente. Inversamente proporcional se
davam as coisas no plano fático, em que a moradia nadava de braçada.
A alteração na Constituição Federal veio, assim, a colocar em pé de
igualdade – no plano jurídico – tanto o direito ao ambiente livre de degrados de
qualquer espécie, quanto o direito à moradia.
Resultado prático: a moradia, que no terreno dos fatos já era mais forte
do que o ambiente, fortalecida agora na questão jurídica, venceu a disputa.
Foi o momento certo para os ambientalistas correrem à normatização
federal e, por resolução do CONAMA, estabelecerem pelo menos alguns critérios para
que o reconhecimento do direito à moradia não aquilo que ambientalistas
consideravam ainda maior devastação ambiental pelo país afora.
Em 26 de maio de 2000 a Medida Provisória 1956 que vinha sendo
sucessivamente re-editada pelo Governo Federal, foi re-editada novamente mas com
alterações. Dentre elas avultada uma grande novidade: a possibilidade de, em
algumas situações muito particulares, excepcionais mesmo, e desde que atendidos
inúmeros requisitos, ser suprimida vegetação de APP, mediante autorização do órgão
estadual competente.
74
Essa mesma medida provisória determinou que Resolução do
CONAMA é que deveria prever quais as situações concretas em que a supressão
poderia ser feita.
Essa alteração do até então inflexível e duramente criticado Código
Florestal é um marco importantíssimo da regularização fundiária em área de APP
porque foi fruto de um movimento urbanista bastante combativo e organizado que
forçou ambientalistas a reposicionar-se, avaliar melhor a situação e... ceder.
E foi exatamente a Resolução 369/06, feita por um órgão ambiental e
não urbanista que terminou prevendo a regularização fundiária em APP como uma das
situações passíveis de supressão da vegetação dessa APP.
Se a entronização do Direito à Moradia na Constituição Federal foi o
marco mais importante para a permissão da regularização fundiária em geral, a
Medida Provisória 1956/50 deve ser comemorada como o marco permissivo mais
importante para a regularização fundiária em área de APP.
Assim, as Áreas de Preservação Permanente que historicamente foram
e continuam sendo sacrificadas, especialmente no meio urbano, onde dão lugar a
estradas, favelas, avenidas e até mesmo a bairros, continuaram “protegidas” por lei,
embora permitidas algumas incursões do meio ambiente urbano por sobre elas.
A Resolução 369/06 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama)
de maio de 2006 teve, pois, seu nascedouro, na Medida Provisória 1956/50 de 2000 e
trouxe alguns avanços.
Primeiro: só admite descaracterização de APP em
• “casos excepcionais” e • que sejam “de utilidade pública” ou “de interesse social” e • que tenham baixo impacto ambiental e • apenas quando não haja outra alternativa e • obtenção de autorização do órgão ambiental estadual. e • em se tratando de regularização fundiária, será ainda necessário atender os
seguintes requisitos: o a regularização precisará ser sustentável; e o a intervenção na APP somente será possível se o assentamento de
moradia estiver consolidado; e o essa consolidação precisa ter acontecido até 10 de julho de 2001
(limitação temporal para evitar que ocupações mais recentes possam ser legalizadas) e
o a área precisa ter sido ocupada por famílias de baixa renda; e o a ocupação precisará ser em área urbana; e o essa área urbana precisará estar declarada como ZEIS no Plano Diretor
ou outra lei municipal; e o a densidade habitacional da área em questão precisa ser superior a 50
hab/hectare; e o estar a área fixada em um tipo específico de APP previsto na resolução
(o que proibe a regularização fundiária para determinados tipos de APP); e
75
o o município deverá apresentar um “Plano de regularização fundiária sustentável” (altamente detalhado); e
o a área não pode ser de risco; e o a gestão precisará ser democrática; e o precisará ficar garantido o monitoramento ambiental da área; e
finalmente o deverá ser garantida a não ocupação do restante da APP.
São ao todo 20 requisitos para que uma regularização fundiária em área
de APP se dê de acordo com a legislação aplicável. Parece haver mais do que
suficientes garantias de que a regularização fundiária precisará ser feita dentro de
critérios protetivos do ambiente.
Segundo: clarificou o ambiente jurídico. Embora não houvesse, alguns
Estados e Municípios acreditavam haver um vácuo legislativo a respeito de APP´s e
elaboravam leis mais ou menos permissivas. A resolução é, neste sentido, uma
resposta a essas legislações. A clareza da lei dificulta posteriores acessos ao Poder
Judiciário buscando favores que as leis omissas sugerem.
76
5. – ESTUDO DE CASOS Aqui se inicia propriamente o relato da pesquisa de alguns dos casos de
regularização fundiária em área de APP realizados em Campinas.
Busca-se pesquisar se tudo o que até aqui ficou dito a respeito de
regularização fundiária realmente ocorreu em Campinas.
5.1 – APRESENTANDO CAMPINAS Município brasileiro do Estado de São Paulo, Campinas se localiza ao
noroeste da capital do estado, distando dela cerca de 90 quilômetros. Possui área de
795,697 km² (algumas fontes informam 794 km2). No censo 2000 do IBGE apontou-se
para 980.204 habitantes. Sua população estimada a partir de 2004 é de
aproximadamente 1.059.420 ou 1.029.898 (2005 estimativa da Fundação Seade) com
mais de 98% vivendo em área urbana.
É sede de Região Metropolitana criada em 2000, que abrange 19
cidades totalizando população de aproximadamente 3,2 milhões. É a terceira maior
cidade do Estado em termos populacionais, depois de São Paulo (10.927.985 hab. -
2006 est.) e Guarulhos (1.283.253 hab. - 2006 est.). O povoamento se inicia por volta
de 1739 e em 1842, contando então pouco mais de 2.100 habitantes, se eleva a
“cidade” com o nome de Campinas.
Campinas teve sempre uma vocação agrária. A cidade viveu,
economicamente, ciclos de produção de cana de açúcar (século XIX) e,
posteriormente, cafeeira (início do século XX) geraram economias que ajudaram a
formar a cidade tal como ela tradicionalmente foi sempre vista: uma cidade de
características marcadamente rurais com amplas fazendas a seu redor.
Com a crise da economia cafeeira, a partir da década de 1930, a cidade
"agrária" de Campinas assumiu uma fisionomia mais industrial e de serviços. Chegam
imigrantes procedentes das mais diversas regiões do estado, do País e do mundo,
especialmente italianos, atraídos pela instalação de um novo parque produtivo
composto de fábricas, agroindústrias e atividades as mais diversas.
Em 1950 havia cortiços, construções baratas, mas não havia favelas.
Os pobres se organizam, encontram soluções alternativas de moradia mas é talvez o
fato de a quantidade de famílias sem moradia ser ainda relativamente pequeno que
determina a invisibilidade do problema de moradia. Também o fato de boa parte das
industrias criarem, quando de sua instalação, vilas de moradia para seus operários
(bem próximas às indústrias) joga um papel importante para que o drama social da
falta de moradia ainda não apareça como algo capaz de modificar agendas públicas.
77
A industrialização que começa então a acontecer é que vai ser o
atrativo principal para que grandes contingentes populacionais busquem Campinas. O
território da cidade (área urbanizada) aumentava 15 vezes e sua população, cerca de
5 vezes.14
Foi entre as décadas de 1970/1980, que os fluxos migratórios internos
levaram a população a praticamente duplicar de tamanho.
Desde 1998, a cidade vem assistindo a uma mudança acentuada na
sua base econômica: perde importância o setor industrial (com a migração de fábricas
para cidades vizinhas ou outras regiões do país - em parte por causa da violência e
dos altos impostos), e ganha destaque o setor de serviços (comércio, pesquisa,
serviços de alta tecnologia e empresas na área de logística) .
5.2 – RIBEIRÃO DAS ANHUMAS E SEU CONTEXTO 15
Desde o início dos estudos pareceu claro que a pesquisa sobre a
regularização dos múltiplos assentamentos de moradia irregulares que se instalaram à
margem esquerda do Ribeirão das Anhumas em Campinas (em área de APP,
portanto) não se faria completa sem que se estudasse a conformação desse mesmo
ribeirão, sua importância, a situação de suas APP´s, sua morfologia e outros
elementos que a pesquisa revelasse importantes. O Ribeirão está situado na chamada
“Bacia do PCJ”, razão pela qual o estudo se inicia por ela.
5.2.1 – BACIA DO PCJ O Estado de São Paulo é dividido em 22 bacias hidrográficas. A de
número 5, situada na porção centro-oriental do Estado tem o nome de “Piracicaba,
Capivari e Jundiaí”, tecnicamente conhecida por “Bacia do PCJ”.
A localização da “Bacia do PCJ” no contexto do Estado é vista aqui nas
imagens 2 a 4:
14 Conforme http://www.campinas.sp.gov.br/campinas/campinas/origens/ 15 os mapas reproduzidos neste capítulo se encontram disponíveis em http://www.cori.unicamp.br/foruns/agro/evento12/jose.ppt#1
78
AS BACIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO E A DO PCJ
(imagens 02 e 03)
LOCALIZAÇÃO DAS BACIAS PCJLOCALIZAÇÃO DAS BACIAS PCJ
BACIAS HIDROGRÁFICAS PCJBACIAS HIDROGRÁFICAS PCJ
A BACIA DO PCJ
(imagem 04)
mapa indicando a qualidade das águas que formam a “Bacia do Rio Piracicaba”, onde “Classe 1” indica excelente qualidade e evidentemente “Classe 4” a quase ausência de qualidade.À direita do mapa estão as montanhas que formam a divisa entre os estados de São Paulo e Minas Gerais e onde, portanto, estão as nascentes dos rios que posteriormente formarão o “Rio Piracicaba”. À esquerda do mapa temos as áreas a JUSANTE da bacia, que posteriormente formarão o Rio Tietê (imagem encontrável no site http://www.saisp.br/site/piracicaba.html acessado em 25/07/07)
79
Dados gerais da bacia hidrográfica do PCJ :
• abrange 60 municípios paulistas e 4 municípios mineiros. • Atinge aproximadamente 5 milhões de habitantes no Estado de São Paulo e
aproximadamente 70 mil habitantes no Estado de Minas Gerais. • Tem área total de 15.320 km2 • Isto corresponde a 6,2% do território total do Estado de São Paulo • Do total da bacia do PCJ o Rio Piracicaba é o que abrange maior área: 12.600
km2, que significa 82,2% da área total da bacia • Seguem-se a bacia do Capivari que tem 10,2% da área total da bacia (o que
significa 1.570 km2) e a bacia do Jundiaí c com seus 1.,150 km2 atinge 7,6% do total da bacia.
• É uma das regiões mais ricas do Brasil, possuindo condições sócio-econômicas quase comparáveis às de Primeiro Mundo. A área é responsável por aproximadamente 10% do Produto Interno Bruto brasileiro.
• Esgotos sanitários em operação abrangem 85% da população urbana, com coleta.
• Desses 85% coletados, apenas aproximadamente 35% do esgoto urbano da bacia é tratado, o que gera enorme carga poluidora.
• Criados e instalados segundo a Lei Estadual (SP) nº 7.663/91 e Lei Federal nº 9.433/97 os comitês das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí têm tido regular funcionamento.
A análise do mapa da bacia do PCJ revela situações mais que
previsíveis:
a- quanto mais próximo das nascentes, melhor, evidentemente, a qualidade das
águas;
b- logo após ultrapassar os limites da cidade de Jundiaí, o “Rio Jundiaí” degrada
intensamente sua qualidade, recobrando-a em parte somente após transpor as
turbulências saneadoras situadas próximas à cidade de Indaiatuba;
c- logo após deixar para trás a cidade de Atibaia, o “Rio Atibaia” igualmente
degrada bastante;
d- o mesmo acontece com o Rio Camanducaia logo após passar por Amparo;
e- o mesmo se dá com o Rio Jaguari após deixar para trás a cidade de Pedreira.
f- logo após deixar a cidade de Bragança Paulista para trás, o “Rio Jaguari” sofre
desmesurada degradação, passando da classe 1 para a classe 3 diretamente, sem a
escala da classe 2;
g- o mesmo acontece com o “Rio Atibaia” logo após transpostos os limites das
cidades de Campinas e Paulínia (violenta degradação, passando da classe 1 para a 3,
sem escala intermediária).
h- Impressiona também a agressão em sua qualidade que sofre o Rio Capivari
logo depois de banhar o limite urbano da cidade de Campinas.
i- Não é toda a verdade que “as ocupações humanas para fins de moradia, na
beira de córregos, poluem”; a verdade inteira é que a cidade inteira polui os cursos
80
d´água e não apenas as áreas invadidas para fins de moradia. Estas não poluem mais
que as demais atividades humanas industriais, comerciais, agrícolas e de serviços
realizadas no espaço urbano.
5.2.2– BACIA DO RIO PIRACICABA Dos rios que formam a bacia do PCJ, o que mais de perto interessa a
este trabalho é o Rio Piracicaba, que é formado, dentre outros, pelo Rio Atibaia. Seus
outros principais tributários são os rios Camanducaia e Jaguari.
Como se vê do mapa da bacia do Piracicaba, no esquema
individualizador abaixo, ela é formada pelos rios Corumbataí, Camanducaia, Jaguari e
Atibaia.
Já na imagem seguinte encontramos detalhamento da mesma bacia,
evidenciando a grandiosidade de suas dimensões (12.400 km).
Detalhe importante para a compreensão dos fenômenos urbanos
pesquisados é a proximidade da área estudada em relação à área ocupada pela
chamada “Grande São Paulo”.
O rio Piracicaba tem grande importância econômica e ambiental para
toda a “grande Campinas” não apenas devido às suas dimensões ou à multiplicidade
de seu uso como igualmente pela ampla variedade de espécies animais e vegetais
que abriga.
81
A BACIA DO PIRACICABA
(imagens 05 e 06)
82
5.2.3– BACIA DO RIO ATIBAIA Dos rios que formam a “Bacia do Piracicaba”, o Rio Atibaia é o que
apresenta maior interesse a este trabalho, por ser alimentado, dentre outros, pelo
Ribeirão das Anhumas que corta a cidade de Campinas. Este Ribeirão é seu afluente
da margem esquerda.
A bacia do Atibaia “abrange uma região de alta densidade urbana e
industrial e, sendo o Atibaia o principal corpo aquático que corta a “Região
Metropolitana de Campinas”, de alguma forma reflete em termos de resíduos todos os
usos e ocupações do solo. Ademais, 95% da água potável de Campinas é extraída do Atibaia, que nasce próximo a Monte Verde, no distrito de Camanducaia, MG, e que
na confluência com o rio Jaguarí dá origem ao rio Piracicaba (mas já depois de
ultrapassados os limites da cidade de Campinas). (...)as águas do Atibaia são
classificadas como regulares para abastecimento publico até chegar à Região
Metropolitana de Campinas, tornando-se ruins após passar pelo município de
Campinas, situação que paulatinamente vem se agravando, mostrando que as ações
sobre a bacia por enquanto não trouxeram benefícios.” (conf. LOCATELLI)
O mesmo pesquisador chama a atenção para o equívoco da prioridade
escolhida pelas autoridades de saneamento das sucessivas administrações municipais
campineiras em relação a este importante curso d´água: a velocidade de degradação do rio Atibaia é enorme. As novas estações de tratamento ainda em construção possam reverter um pouco o quadro(...) Precisamos levar em consideração não só a potabilidade da água mas também a possibilidade de preservar a saúde do ecosistema.16
5.2.4 – BACIA DO RIBEIRÃO DAS ANHUMAS E SUA FORMAÇÃO Campinas é bem vascularizada por córregos, ribeirões e rios.
O “Ribeirão das Anhumas”, principal dos cursos d’água urbanos, nasce
no Jardim das Andorinhas, bairro da cidade e sua foz se encontra no Rio Atibaia, em
Paulínia, próximo à empresa multinacional Rhodia. Vence o canteiro central da
Avenida José de Sousa Campos, e passa próximo à Lagoa do Taquaral e à
UNICAMP, na Cidade Universitária, em Barão Geraldo.17
16 idem 17 Obtido em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ribeir%C3%A3o_das_Anhumas
83
A BACIA DO ANHUMAS
imagem 07 - BACIA DO RIBEIRÃO DAS ANHUMAS
Imagem 08 - Confluência dos córregos Proença (em primeiro plano, visto de montante a juzante) e Canal Saneamento, também denominado Orozimbo (acima, provindo da esquerda), que formam o Ribeirão das Anhumas (saindo à direita). Imagem acessível em http://www.iac.sp.gov.br/projetoanhumas/f14.htm, acessado em 02/05/2008
84
ÚLTIMO AFLUENTE DO ANHUMAS ANTES DO INÍCIO DA ÁREA DOS NÚCLEOS HABITACIONAIS DA MARGEM ESQUERDA
Imagem 09 - O ribeirão “Mato Dentro” que provém da região do Parque Monsenhor Salim. Ele é visto em sua direção jusante. É este o ponto em que ele conflui com o Ribeirão das Anhumas (que provém da esquerda, na imagem).
Dado curioso: existência da ferrovia correndo paralelamente ao Ribeirão, marcante presença no cenário e na vida das comunidades dos núcleos aqui estudados. A partir deste ponto mostrado na imagem, à direita dela, começam um pouco mais adiante os núcleos Vila Nogueira, São Quirino, Dom Bosco e Gênesis, nesta ordem. O “Núcleo Residencial Guaraçaí” está em região situada à esquerda desta imagem. Veja-se logo acima da mureta esquerda de concreto, uma base de pedras. Aqui havia uma ponte ferroviária, da qual restaram apenas suportes de pedra. A Estação Anhumas fica em região situada à direita desta imagem e o Parque Taquaral à esquerda dela. Há projeto de trazer novamente o trem, agora com interesses turísticos, da Estação Anhumas para uma futura estação “Taquaral”. Assim a “Maria Fumaça” poderia futuramente ligar uma área de lazer da Campinas (Taquaral) com o centro da cidade de Jaguariúna (já servida hoje por este ramal ferroviário). Caso isto aconteça, esta ponte precisará ser reativada exatamente neste ponto.
Imagem 10 - do passado cujo nome inspirou a denominação do “Ribeirão das Anhumas”
85
86
A bacia hidrográfica do Ribeirão das Anhumas, afluente da margem
esquerda do rio Atibaia, drena ao longo do curso dos seus principais tributários os
esgotos pluviais e domésticos de bairros de classe alta, situados nos topo dos morros,
em direção a vilas e barracos das regiões ocupadas pela população pobre. Abrange
áreas dos municípios de Campinas e Paulínia.
Grande parte do sítio urbano da cidade de Campinas está dentro de
seus divisores, além de importantes áreas industriais e de comércio deste município
paulista.
O estudo da Bacia do Ribeirão das Anhumas se justifica pela sua
extensão espacial, com 150 km2 de área, grande parte pertencente ao Município de
Campinas, e pela quantidade de habitantes na área, um total de 350 mil pessoas.
Além disso, o Ribeirão das Anhumas é responsável por parte significativa do volume
d’água poluída que chega no Rio Atibaia, sub-bacia do Rio Piracicaba.18
A bacia apresenta elevado grau de degradação ambiental,
conseqüência da falta de planejamento da ocupação da terra, o que permitiu o avanço
dos núcleos urbanos e industriais, de maneira desordenada, sobre áreas rurais e de
APP. Apenas 5% da extensão dos cursos d’água da bacia do Ribeirão das Anhumas
está coberta de mata ciliar (TORRES et al., 2006).
Como conseqüência, problemas de alagamentos em áreas densamente
ocupadas, poluição do ar, do solo e das águas, perda de diversidade biológica,
habitações em áreas de risco, dentre outros, ameaçam o ambiente e a qualidade de
vida da população (BRIGUENTI, 2005; TORRES et al., 2006).
Córregos Proença e Orozimbo Maia são dois dos principais cursos
d´água alimentadores do Ribeirão das Anhumas, que deve sua designação à
freqüência de aves com este nome, ave anseriforme (que tem forma de ganso), de
dorso preto e com um espinho na testa (ver ilustração).
Segundo Torres et al. (2006), tais córregos, situados nas áreas centrais
de Campinas, encontram-se já canalizados ou revestidos, recebendo esgoto in natura.
Recebem quase todas as águas pluviais e o esgoto domiciliar da região central da
cidade. A área drenada por estes afluentes é densamente urbanizada e
impermeabilizada (TORRES et al., 2006).
O Córrego Proença possui sua nascente no bairro Jardim Itatiaia, e
drena parte da área central da cidade e do bairro Cambuí, recebendo as águas do
sistema de drenagem e de esgoto desses bairros. No seu início, na avenida Princesa 18 conforme http://www.archive.org/details/esboco_metodologico
87
D’Oeste, o córrego encontra-se canalizado e, posteriormente, revestido parcialmente e
com vias expressas marginais. Após o cruzamento com a avenida Moraes Sales, onde
se inicia a avenida José de Souza Campos (via Norte-Sul), o córrego possui em seu
entorno, ao longo de aproximadamente 300m, uma área que foi integrada à estrutura
urbana como área verde.
O encontro do Córrego Proença com o Córrego Mato Dentro, onde se
forma o Anhumas, dá nome à bacia (TORRES et al., 2006).
Seguindo a jusante, na margem direita do Anhumas, localiza-se a foz do
Córrego Brandina, que provém da região do bairro Vila Brandina, junto à avenida
Carlos Grimaldi, área em que se localiza, dentre outros locais de grande comércio, o
Shopping Center Iguatemi.
Todos esses afluentes e o Ribeirão das Anhumas vão abastecer o rio
Atibaia importante manancial regional e formador, mais adiante, do rio Piracicaba.
88
5.2.5 – NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DO RECURSO HÍDRICO
A água é evidentemente elemento essencial à vida e à configuração dos
ecossistemas. Sem ela a vida é inviável. Mas é também o destino de boa parte da
poluição produzida pelo homem, que sempre lançou detritos nos cursos de água. Até
a Revolução Industrial isto não causava maiores conseqüências, já que os mananciais
têm considerável (mas limitado) poder de auto-limpeza, de regeneração. Com a
industrialização, porém, isto se alterou pois o volume de detritos despejados nas
águas cresceu de modo a superar aquela capacidade de auto-purificação.
É realmente necessário proteger os igarapés, córregos, ribeirões, rios,
lagos, etc. em cujas margens há formação de moradias? De que forma a poluição que
essas moradias inegavelmente produzem é capaz de agredir um curso d´água? E em
comprometendo, em quê medida essa agressão é capaz de comprometer o ambiente?
Segundo os padrões internacionais, a água é considerada escassa
quando se dispõe de menos de 1.000 m3/hab/ano. O Brasil disponibiliza uma média
de 38 mil m3 de água per capita/ano (REBOUÇAS, 1997, p.128). O Brasil sofre a má
distribuição geográfica da água em seu território: 80% da massa hídrica doce ocorre
nos setores ocupados por apenas 5% da população, enquanto 95% da população
disputam a utilização dos 20% restantes (IBGE, 1991). Estes dados já permitem
suspeitar que a água utilizável é um bem raro, que carece proteção.
A regulamentação constitucional da água se triparte em três níveis
básicos, considerando-se a água como:
• recurso natural,
• fator ambiental e
• elemento primário do saneamento básico.
Importa, quando se alude à regularização fundiária destacar todos
esses níveis.
Como recurso natural, a Constituição Federal atribui à União e aos
Estados o domínio sobre as águas (arts. 20, III e 26, I), atribuindo à primeira a
competência privativa para legislar sobre o assunto (art. 22, IV) e estruturar o sistema
nacional de gerenciamento dos recursos hídricos (art. 21, XIX). Os Estados somente
podem legislar sobre a matéria em conseqüência de uma delegação legislativa tal
como prevista no art. 22, § ún. ou com fundamento no art. 25 § 1º e art 26, incs. I e II.
Considerando a água como um fator ambiental, caberá à União, ao
Distrito Federal e aos Estados a competência concorrente para legislar sobre a sua
conservação e proteção (art. 24, VI). Os municípios têm competência administrativa
para a preservação dos corpos hídricos presentes em seu território e ainda a
89
competência legislativa em matéria ambiental, conforme o interesse local, mesmo que
de modo suplementar à competência legislativa dos demais entes federados e da
União.
A legislação federal incidente sobre as águas parte do Código das
Águas (Decreto nº 24.643/34) à Política Nacional dos Recursos Hídricos (lei 9433/97),
isto sem mencionar leis que tratam das políticas estaduais de recursos hídricos. Do
viés privatista e do controle do uso da água no aspecto quantitativo do Código para o
tratamento publicista e controle pelos aspectos quantitativo (pagamento pelo uso) e
qualitativo (controle comunitário) exigidos pela Lei Federal que traçou a Política
Nacional de Recursos Hídricos (9433/97), nota-se evidente amadurecimento e
aprimoramento da lei no sentido da preservação. Essa visão privatista da água está
ultrapassada já que a água é agora vista como um bem econômico. Acabou a
possibilidade de domínio privado das reservas hídricas.
A mesma lei reconheceu o recurso hídrico como limitado; atribuiu
prioridade ao uso humano nas hipóteses de escassez (aspecto que não tem relevo
para esta pesquisa) e instituiu uma gestão não apenas descentralizada, como também
comunitária (o que permite mas não garante controle) desses recursos, com o
envolvimento do poder público, da comunidade e dos usuários; ademais, estabeleceu
a cobrança pelo uso da água e definiu a forma de controle de qualidade dos recursos
hídricos.
A água enquanto fator ambiental, integrante do meio ambiente, tem
também regulamentação na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81) que
estabelece a tutela administrativa ambiental por parte do Poder Público nas diversas
esferas de poder. Suas metas principais são preservação, melhoria e recuperação da
qualidade ambiental propícia à vida.
Muitos ambientalistas consideram que atualmente as principais
agressões aos mananciais são:
• Despejo de grande quantidade de elementos não biodegradáveis.
• uso indiscriminado de fertilizantes químicos e agrotóxicos na agricultura, que
terminam despejados em parte nos rios.
• ocupação de áreas de mananciais hídricos pela população carente.
Os males causados pela localização de habitações muito próximas de
córregos são importantes. Toda ação que ocorre no solo de uma bacia hidrográfica
pode afetar a qualidade de sua água. Sem a participação humana a bacia é ocupada
por vegetais em sua condição natural e essa água tende a possuir boa qualidade
90
porque recebe apenas folhas e alguns resíduos de composição dos vegetais e
animais.
A ocupação desordenada do solo e seu uso inadequado são fatores que
podem ocasionar a escassez de água disponível para o consumo humano. Se a bacia
é utilizada desordenadamente para a construção de casas, implantação de indústrias,
plantações, a água passa a receber outras substâncias além daquelas que têm seus
ciclos naturais. Esgoto de casas, os resíduos tóxicos de indústrias e substâncias
químicas utilizadas em plantações, tudo isto, se não contido, se direciona para o curso
d’água.
Como não é possível afastar as espécies, é importante entender como
era a bacia e como a interação humana interferiu nas mudanças nela ocorridas. 19
Em estudos sobre a Bacia PCJ constatou-se o óbvio: haver uma relação
direta entre a quantidade de esgoto doméstico nos rios e o número de habitantes da
região em questão. Essa relação - que parece evidente! - só acontece porque a maior
parte dos esgotos domésticos é lançada in natura diretamente na rede hídrica.
Esses efluentes de origem orgânica produzem alterações
principalmente do balanço entre Carbono e Oxigênio dissolvidos no curso d’água (há
uma diminuição do oxigênio e um aumento do carbono). A pesquisa do balanço entre
estes elementos é que dá a noção de quanto o rio está poluído. Essas alterações
podem ser medidas observando-se as mudanças na quantidade de oxigênio dissolvido
e outros aspectos físico-químicos de qualidade da água como o pH , a condutividade e
a temperatura .
O ácido úrico proveniente dos esgotos e o uso de fertilizantes na terra
geram grande quantidade de nitrogênio . Jogar o esgoto sem tratamento nos rios
altera os sistemas biológicos já que o aumento da quantidade de nitrogênio faz com
que algas e bactérias se reproduzam muito rapidamente, consumindo todo o oxigênio
e transformando o ambiente de aeróbio (com oxigênio) para anaeróbio (sem oxigênio).
Essa diminuição do oxigênio nos ecossistemas aquáticos pode causar mortandade de
extensa quantidade de peixes, e outros seres que dependem do oxigênio dissolvido na
água.
Outra grave conseqüência da poluição hídrica é o aumento da emissão
de óxido nitroso (um dos componentes do efeito estufa) que pode provocar a
acidificação do solo (que fica mais pobre). A conseqüência mais rápida é a perda da
biodiversidade do local.
Já os efluentes industriais são, em sua maioria, tratados. Mas como seu
volume é bem maior, a quantidade final não tratada jogada nos rios é quase a mesma 19 Conforme o site http://hydro.cria.org.br/usos/solo
91
dos esgotos. Jogar o esgoto e resíduos industriais sem tratamento nos rios faz
também aumentar a quantidade de carbono orgânico dissolvido nas águas. O carbono
existente pode ser transformado em biomassa, isto é, em seres vivos, dependendo
também da disponibilidade de nitrogênio no sistema. Pode ser também decomposto
química ou microbiologicamente ou, quando em grande quantidade, depositado no
lodo do rio.
As alterações na biodiversidade são, portanto, conseqüências,
principalmente de: 1. maior disponibilidade de Nitrogênio e Carbono; 2. mudança do
ambiente natural dos rios de aeróbios para anaeróbios, ou seja, menor disponibilidade
de Oxigênio; e 3. aumento da quantidade de óxido nitroso, prejudicial não apenas às
espécies hídricas como também às demais espécies que dependam do solo.20
Um dos critérios que parecem importantes para regularização fundiária
em área de APP é o da proteção das águas.
É preciso lembrar, contudo, que os assentamentos irregulares de
moradia marginais dos ribeirões, córregos, rios, lagos, etc, não são os exclusivos
responsáveis pela degradação desses elementos, embora sejam por vezes vistos
como tal pela população do entorno e pela mídia em geral. É como se todo o restante
da sociedade fosse comportado e respeitoso para com os elementos naturais e a
população dessas áreas de APP fosse a grande vilã dessa disputa entre moradia e
ambiente.
Quanto maior a extensão de determinado curso d’água coberta com
matas ciliares em uma bacia, maior a sua importância. Recuperar mata ciliar significa
reduzir a fragilidade dessas APP´s. Os dados de extensão linear de matas ciliares
existentes nas bacias foram obtidos do estudo da vegetação remanescente do
município de Campinas (SANTIN, 1999; TORRES et al.,2006).
A grande extensão da degradação a que essas áreas de preservação
estão submetidas recomendam a necessidade de recuperação desses ambientes.
Todavia, a recuperação ambiental de maneira simultânea em toda área de APP é
raramente viável, sendo necessária uma análise sistemática que leve em
consideração o custo econômico da recuperação que, contraposto aos rendimentos
atuais com o uso agro-silvo-pastoril, dificulta a persuasão do proprietário da terra a
trocar o uso econômico convencional pela função ecológica das matas ciliares.
Não é passível de discussão, portanto, a necessidade de que os
recursos hídricos sejam protegidos. A questão está em saber qual o tipo de proteção
que deve ser feita. Teria sentido combater a poluição produzida por moradias e
20 sempre de acordo com http://hydro.cria.org.br/usos/esgoto
92
permitir a industrial? Ambas devem ser combatidas? Somente a industrial precisa ser
proibida?
E já que é necessária a proteção do recurso hídrico, é importante, por
conseqüência, a atenção que a lei dá à poluição, definida nos termos do seu art. 3º, III.
Como a água é incluída no rol dos recursos ambientais, a poluição hídrica está
evidentemente abrangida.
Para uma adequada proteção é necessário o estudo de toda a bacia,
como adverte Staurenghi (2000) A análise dos impactos de uma ocupação e das intervenções necessárias sobre o ecossistema requer uma análise destes impactos sobre uma região – uma sub-bacia hidrográfica, por exemplo. Esse levantamento buscará identificar os impactos presentes e futuros, definindo uma unidade de gestão que poderá conter normas específicas de urbanização, transferência de construir, etc.
A qualidade do manancial envolve o controle dos usos e das atividades
desenvolvidas em toda a bacia hidrográfica e não apenas em um rio específico. As leis
brasileiras adotam como instrumento de ação o controle da qualidade ambiental e a
repressão às atividades poluidoras.
Mas essa repressão às atividades poluidoras se aplicaria às áreas
ambientais degradadas pela presença de moradias humanas que a resolução 369/06
do CONAMA permite, observadas suas restrições, serem objeto de regularização
fundiária?
Sem dúvida que sim. Aliás, a própria Resolução estabelece como uma
de suas múltiplas exigências para que a regularização fundiária dessas áreas
aconteça, o encontro de alternativas para cessar a agressão ambiental.
É preciso relembrar, contudo, o que já ficou dito: os assentamentos
irregulares de moradia marginais dos ribeirões, córregos, rios, lagos, etc, não são
exclusivos responsáveis pela degradação desses elementos. Quando alguém
argumenta com o fato de o assentamento de moradia poluir, dá a entender que todo o
restante da sociedade seja comportado e respeitoso para com os elementos naturais e
a população dessas áreas de APP seja a grande vilã dessa disputa entre moradia e
ambiente.
O critério de proteção do manancial é inafastável. Não pode haver
regularização fundiária em área de APP sem a correspondente proteção, por mínima
que seja, do elemento hídrico. O ser humano é o intruso e como tal é necessário que
ele mesmo se veja. Algum regramento está certo que deva haver.
Mas que tipo de proteção deve acontecer?
93
Proteger por meio da proibição de qualquer tipo de edificação à margem
dos mananciais, dentro de uma largura de margem pré-fixada?
Onde houver curso de água, será que realmente importa que as
construções fiquem no mínimo a 15 metros das margens?
Nem sempre este critério pode ser o mais adequado. Os cursos d´água
variam conforme sua largura, a quantidade de água, a quantidade de material sólido
que levam consigo, a fluidez e velocidade das águas, etc. Há todo um conjunto de
elementos que dão aos mananciais uma diversidade enorme que lei nenhuma tem o
poder de prever.
Assim, fixar 15 metros de cada lado como áreas de preservação
permanente para um determinado ribeirão que tenha 20 metros de largura pode
proteger suficientemente essas APP´s mas pode ser regra inadequada e não proteger
suficientemente as APP´s de outro ribeirão das mesmas dimensões.
Por outro lado há ribeirões, rios ou córregos para os quais uma faixa de
APP de apenas 5 metros seja suficiente para permitir sua adequada proteção.
Tudo depende da situação de cada manancial.
Daí não parecer adequado fixar como regra geral, válida para o país
inteiro, uma faixa de APP fixa. Mesmo em se prevendo um tipo de APP de largura
variável (dependendo da largura do curso d´água) como as normas atuais prevêem,
ainda assim o regramento feito de forma geral, indistinta para todo o país, pode ser
excessivamente protetor para determinado manancial e ser completamente permissivo
com outro.
Melhor seria deixar esse tipo de regra aos cuidados ou do Estado-
Membro ou, mais adequado ainda, do Município, desde que ela se faça ou por Lei
(compelindo assim o parlamento local a fixar a regra e impedindo que ela se dê
apenas por ato do Executivo, que poderia subordinar a normatização a critérios por
demais políticos) ou mesmo por resolução do órgão ambiental colegiado e paritário
local.
Proteger por meio da proibição de atividades industriais nas margens
hídricas?
Veja-se o caso da Indústria Campineira de Sabão e Glicerina Ltda.,
empresa poluidora também situada à margem do ribeirão anhumas. As moradias do
“Núcleo Residencial Dom Bosco” estão em uma margem do rio e exatamente na
margem oposta se encontra essa empresa que, não por acaso, foi construída
exatamente na margem do rio.
Se a moradia e a indústria poluem e estão ambos à beira do rio e
ambos, juntamente com todos os bairros da vizinhança poluem o curso d´água, soa
94
pelo menos injusto carrear a conta da poluição apenas aos ambientes de moradia
precária. Seria dar razão aos moradores que, quando instados a deixar o local em que
moravam, afirmavam: “Eles vão remover a favela, que polui, para a indústria de sabão
(que está ainda mais próxima do rio do que a favela) poder poluir sozinha...” A
remoção de moradias não pode, portanto, justificar-se por só o argumento da proteção
ambiental. Se é justo remover uma fonte de poluição, é igualmente justo remover
todas as demais.
imagem 11 - Indústria Campineira de Sabão e Glicerina Ltda., localizada em área de preservação permanente, na margem direita do Ribeirão das Anhumas, defronte aos Núcleos Residenciais Dom Bosco e Gênesis, já próximo à rodovia Dom Pedro I (Gênesis). Data: 10/05/2003.21 Proteger por meio da coleta e tratamento de esgoto? Apenas 25% do esgoto coletado no País (em média) é tratado. Os
números do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das
Cidades mostram que o Brasil ainda tem muito a avançar em saneamento básico. O
índice médio de coleta de esgoto no País é de 69,7%, sendo que o tratamento atinge
apenas 25%. Estes números refletem diferenças regionais históricas do País: no
Sudeste, o índice de coleta é de 91,4%; na região Norte não chega a 9% das
habitações. A distribuição do desenvolvimento é desigual e a conseqüência evidente
dessa imperfeição é que as políticas públicas muitas vezes também acompanham
esse desnível. Um dos principais desafios do Brasil é a coleta e tratamento de esgoto,
em especial nas áreas mais urbanizadas. Há um grande déficit a ser atendido.
Em Campinas os trabalhos de saneamento são ambiciosos pois
pretendem atingir ainda nesta primeira década deste século o percentual de 70% de
esgoto tratado e sua devolução em forma de água limpa para os curso d’água que 21 Imagem disponível em http://www.iac.sp.gov.br/projetoanhumas/f15.htm, acessada em 25/07/07
95
irrigam a cidade, embora já se fale até em “venda do esgoto tratado” que parece ser
uma futura possibilidade geradora de recursos.
Obviamente esse percentual abrange as áreas marginais em que se
acham instalados os núcleos residenciais informais e precários (os aqui pesquisados e
outros) e o tratamento de esgoto poderá ser feito quase sem remoção de moradores
(remoção apenas das áreas de risco) e com expressivos ganhos na qualidade das
águas.
Somente a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) do Piçarrão,
tratará esgotos de 210 mil moradores, mas será superada, em dimensões, por outra
Estação, a do Ribeirão das Anhumas (que mais de perto interessa à pesquisa)
projetada para as margens da rodovia D.Pedro I. A “ETE do Anhumas” tratará o
esgoto correspondente a uma população de 50 mil pessoas.
Ainda serão construídas outras 5 estações que contribuirão para a
despoluição relacionada aos esgotos urbanos, das águas nas três bacias hidrográficas
onde está localizada a cidade de Campinas (rios Atibaia e Capivari e Ribeirão
Quilombo). A “ETE do Anhumas” será fundamental para a limpeza do Ribeirão das
Anhumas, que como visto nasce em Campinas e deságua no rio Atibaia, já no vizinho
município de Paulínia.
O tratamento de 70% dos esgotos domésticos de Campinas
representará, evidentemente, uma grande evolução para a despoluição dos rios da
região.
O tratamento de esgoto é, portanto, um aliado importantíssimo da
regularização fundiária sustentável em área de APP. Permite diminuição dos conflitos que se baseiem apenas no argumento da “proteção das águas”, embora
remanesçam as dificuldades em relação às funções ambientais (não necessariamente
ligadas ao rio) exercidas pela APP.
A par dos mecanismos que se voltam para o controle do uso e da
poluição é importante a ação educativa prevista na lei 9795/99 (institui a Política
Nacional de Educação Ambiental).
96
5.3 – AS OCUPAÇÕES PESQUISADAS E A REGIÃO EM QUE SE ENCONTRAM
espaço reservado para
a imagem geral
com letras e números
(imagem 12)
97
5.3 – AS OCUPAÇÕES PESQUISADAS E A REGIÃO EM QUE SE ENCONTRAM
A área objeto deste estudo é, se analisada em contexto mais
amplificado do que simplesmente os núcleos habitacionais situados à margem direita
(Guaraçaí) ou esquerda (os demais aqui pesquisados) do Ribeirão das Anhumas,
componente do que a Emplasa22 chama de “Unidade de Informação Territorial 2 –
(UIT-2) – Flamboyant, cuja ocupação territorial é basicamente residencial com vários
bairros apresentando casas de alto padrão e áreas menos adensadas como o Jardim
Paraíso e o Parque Nova Campinas, localizados na sua porção sul, nas proximidades
do Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim.
Na porção sudeste da UIT Taquaral está a Vila Nogueira, outro bairro
residencial horizontal, de padrão médio/alto como pode ser constatado pela ocupação
da Rua Nuno Álvares Ferreira. Já na Avenida Diogo Álvares, no Parque São Quirino,
em frente à Associação Desportiva Polícia Militar (ADPM) encontra-se grande área de habitação popular (as áreas objeto desta pesquisa), objeto de projeto de
urbanização pela prefeitura. Trata-se da Favela Núcleo Residencial Getúlio Vargas,
área de baixa renda, assim como o Núcleo Residencial Gênesis e a Vila Moscou (favela), já nas proximidades da Rodovia Dom Pedro I. Ainda no Parque São Quirino
situa-se o Bosque Chico Mendes, área de 34.000 m2 inaugurada em 1995 como local
de preservação da mata nativa e com equipamentos para esportes e lazer.
Partindo-se da lagoa do taquaral e seguindo o caminho que percorrem
as águas que dela escoam, hoje canalizadas, chegamos à Praça Arautos da Paz. Dali,
direção jusante, ainda canalizadas, as águas que provém da aludida lagoa alcançam o
ponto em que havia antigamente a ponte ferroviária que permitia à composição
ferroviária transitar da margem esquerda para a margem direita do Ribeirão das
Anhumas. É neste ponto que se dá a confluência dessas águas com as que provém
da área da Avenida Norte/Sul (José de Souza Campos), que já banharam a esta altura
a área do Núcleo Residencial Guaraçaí. Aqui se dá a junção com o Córrego Mato
Dentro, formando-se a partir daí verdadeiramente o Ribeirão das Anhumas, em cuja margem esquerda, a partir deste ponto, se encontram quatro dos cinco núcleos residenciais (favelas) estudados nesta pesquisa.
Apesar da importância social desta área, ocupada por centenas de famílias como se verá no estudo mais detalhado da situação de cada um destes
núcleos precários de moradia, ela praticamente não é mencionada nos
22conforme http://www.emplasa.sp.gov.br/portalemplasa/infometropolitana/campinas/destaques_urbanisticos/padrao_urbanistico_rmc/Campinas/Campinas_Final3.pdf
98
documentos oficiais. É uma exceção a menção que é feita no estudo da Emplasa,
acima mencionado. E mesmo assim essa menção é, como se viu, en passant.
Confirma-se, em parte, o que diversos autores afirmam, quanto à quase
invisibilidade dessas áreas para as fontes oficiais de informação. É como se tais áreas
não existissem, apesar de serem local de moradia de centenas de famílias situadas,
socialmente, abaixo da linha de pobreza. Ainda não se completaram 30 anos desde
que estes locais passaram a ser oficialmente discutidos e ser visualizados para sua
integração à cidade formal.
Os núcleos V. Nogueira, São Quirino, Dom Bosco e Gênesis ao longo
da margem esquerda do Anhumas, formam um conjunto bastante extenso de
ocupações (favelas), totalizando quase três quilômetros. É uma área longilínea,
parecendo apenas uma única favela, por não haver nada fisicamente que indique o
término de uma determinada favela e o início de outra. Delas, a mais extensa era a do
“Núcleo Residencial São Quirino”, que para efeitos práticos terminou sendo dividida
pela municipalidade em “São Quirino (6b)”, “São Quirino (6B1)” e “Dom Bosco” de tão
extensa. É que ela ocupa uma área estreita existente entre o Anhumas e a via pública
(Rua Dona Luísa de Gusmão e sua continuação, Rua Moscou) mas extensa, que
acompanha a pequena sinuosidade do ribeirão.
5.4 – HISTÓRICO DOS NÚCLEOS RESIDENCIAIS – O IMPACTO HUMANO DAS OCUPAÇÕES
“O quadro de exclusão territorial brasileiro, sempre presente, agrava-se nas décadas de 60 e 70, período de intenso crescimento das cidades – sobretudo as maiores. Nesse mesmo período, verifica-se o auge de uma concepção de planejamento urbano na qual o Estado se via como protagonista único da política urbana, capaz de promover o equilíbrio das cidades a partir de dispositivos técnicos universalizantes.”(ROLNIK, 2000)
No início da década de 1970 existem poucas construções ou habitações
na margem esquerda do Ribeirão das Anhumas de Campinas. Afinal, como todas as
demais áreas lindeiras de qualquer curso de água natural, essa faixa marginal não é
edificável. Constitui, desde 1965 (pelo Código Florestal, art. 2º.) a chamada “área de
preservação permanente” e, como tal, “non aedificandi” (áreas em que é vedada
qualquer construção). Essas áreas marginais do Anhumas ainda são parte de
fazendas e, portanto, terras privadas.
Mas estão se loteando extensas áreas dessas antigas fazendas e os
proprietários dessas áreas precisam, para cumprir obrigação legal, reservar da área a
ser loteada uma parte para “uso institucional” a ser doada à municipalidade.
99
Como as áreas “non aedificandi” também fazem parte da propriedade
que será loteada, os proprietários costumam, até por ausência de vedação legal, doar
à municipalidade para fins de utilização institucional (colocação de uma praça, um
centro de saúde, uma escola pública, etc) exatamente essas áreas “non aedificandi”,
além, é claro, de outras em que a construção é possível.
As municipalidades não têm estrutura para proteger, com cercas e
vigilância, essas áreas que lhe são doadas nos mais diversos loteamentos que são
aprovados em profusão.
Os núcleos residenciais Guaraçaí, Parque São Quirino, Vila Nogueira,
Dom Bosco e Gênesis, aqui pesquisados, vão-se formando a partir de 1970 com a
ocupação de famílias oriundas da capital e de outras cidades do interior de São Paulo.
O estudo revela esta primeira surpresa: as primeiras famílias que
ocupam essas áreas não são em sua maioria provenientes do Nordeste brasileiro
como é corriqueiro pensar. Provém das proximidades geográficas da área invadida.
Essas famílias, diante da baixa qualidade de vida dos locais em que
viviam, migravam buscando em cidades da região, como Campinas, melhores
oportunidades.
Durante toda a década de 1970 outras famílias oriundas de diversas
regiões do Brasil, tais como Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Paraná e interior de
São Paulo gradativamente começaram a ocupar a área, passando o local a ser
caracterizado como favela pela sua precariedade habitacional.
A vizinhança não gosta, reclama para a administração pública. Ninguém
gosta de “favela” perto de casa, que traz dois graves problemas ao valor desses
imóveis dos novos loteamentos que estão próximos do anhumas: deixam de valorizar
e, pior, perdem valor. Tinham elevado potencial de valorização porque provavelmente
a municipalidade criaria áreas de lazer para a população nas proximidades do ribeirão
e, com a ocupação, isto não acontecerá; e perdem valor porque favela perto de casa é
sinônimo de problemas e de violência. E mesmo a convivência com “pessoas de outra
condição social” precisa, sob ótica dos moradores “regulares”, ser evitada.
Mesmo assim os núcleos se vão formando e a condição de
precariedade própria de favelas vai se evidenciando: ausência de ruas como as
conhecemos no mundo da regularidade, amontoamento de barracos de diminutas
dimensões, convivência com animais (aracnídeos, batráquios, répteis, roedores,
insetos e peçonhentos de todo tipo), caminhos estreitos, topografia de risco e ausência
das condições mínimas para se morar com algum resquício de dignidade. Para quem
não vive a situação de favelado é incompreensível como uma pessoa ou uma família
possa viver em ambiente assim precário.
100
A área marginal do Ribeirão das Anhumas eleita por essas famílias para
fixar suas precárias moradias é altamente suscetível a enchentes. Situa-se a partir do ponto em que se forma o Anhumas: encontro do Córrego Proença com o Córrego Mato Dentro e com águas que provêm da Lagoa do Taquaral. Ali se
verifica, claramente, de longa data, a falta de prioridade do poder público em relação
às condições naturais, de infra-estrutura e com a população que reside próxima
àquelas margens. Neste curso d’água que dá nome à bacia, são registradas as mais
freqüentes e graves cheias devido ao padrão social da população atingida (TORRES
et al., 2006).
Nessa região, quando da ocorrência de chuvas intensas, há um grande
aumento no volume e na vazão do ribeirão, explicável pela contribuição dos afluentes,
que acontece pouco a montante daquele ponto. Naquele ponto não corre apenas “um
ribeirão”. Corre o resultado da soma de dois córregos. Pode-se, também, constatar
nessa área o assoreamento do Ribeirão das Anhumas, com a formação de um grande
banco de areia, o que ocasiona o alagamento de vias, residências e outras áreas
marginais (TORRES et al., 2006).
É claro que a urbanização precisa acontecer. Mas há critérios mínimos
que precisam ser observados: a urbanização não deve ser impedida, mas ser feita de
forma planejada e sustentável, aumentando-se a área permeável e expandindo a área
arborizada.23
5.5 – A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DOS NÚCLEOS RESIDENCIAIS PESQUISADOS
Cerca de 400 mil pessoas carecem, em Campinas, de programas de
regularização fundiária, segundo dados da municipalidade, que considera essa
regularização como forma de trazer esses imóveis para a luz da legalidade e de trazer
para a cidade (e até para sua economia) expressivos benefícios. Significa
recolhimento de mais tributos (os imóveis regularizados passam a pagar IPTU, por
exemplo), maior possibilidade de a família obter empréstimos e financiamentos
fornecendo o imóvel como garantia, gerando assim novos negócios e mais agilidade e
fluidez à economia, pelo giro da moeda.
A Regularização Fundiária em Campinas é decorrência lógica de todo
um sistema de atendimento às necessidades dos ocupantes de terras públicas ou
privadas, situadas ou não em áreas de proteção de mananciais.
Como em outras cidades, a regularização em Campinas não se limita às
ocupações informais. Abrange também as outras irregularidades de parcelamento do 23 Segundo João Carlos Rocha, diretor da Faculdade de Engenharia Civil da Puccamp
101
solo como loteamentos (não necessariamente de baixa renda) em áreas privadas. A base legal para a regularização fundiária em Campinas está na Lei Orgânica Municipal, que é de 31/03/90, nos seus artigos 175 e 176, e em diversas
outras leis. Artigo 175 - O Município estabelecerá critérios para regularização e urbanização, assentamentos e loteamentos irregulares. Artigo 176 - Assegurar-se-á a função social da propriedade imobiliária, mediante as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor e em suas diretrizes, especialmente no que concerne a: a) acesso à propriedade e à moradia para todos; b) regularização fundiária e urbanização específica para áreas ocupadas por população de baixa renda;
Igualmente a previa a Lei Complementar Nº 004 de 17/01/1996 que
dispunha sobre o PLANO DIRETOR do município de Campinas, bem como o NOVO PLANO DIRETOR aprovado pela Lei Complementar nº 15 de 27/12/2006 :
Art. 10 - A intervenção do Poder Executivo Municipal na propriedade imóvel terá como finalidades principais: (...) IV – promover, na forma da lei, a regularização fundiária de favelas, ocupações e loteamentos clandestinos e irregulares; (...) Art. 50 - São objetivos da Política de Habitação: IV – promover a requalificação urbanística e a regularização fundiária dos assentamentos habitacionais precários, clandestinos e irregulares, dotando–os de infra–estrutura, equipamentos públicos e serviços urbanos e erradicando riscos; (...) Art. 62 - São instrumentos da política urbana sem prejuízo de outros previstos na legislação municipal, estadual ou federal: (...) III – urbanísticos, administrativos, ambientais e de regularização fundiária: (seguem-se 21 hipóteses)
Campinas possui, diferentemente da imensa maioria dos municípios
brasileiros, uma equipe específica, multiprofissional, trabalhando exclusivamente com
regularização fundiária, o que foi possível a partir da criação de um órgão específico
para tratar desse assunto.
DECRETO Nº 14.038 DE 15 DE AGOSTO DE 2002. CRIA A COORDENADORIA ESPECIAL DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA - CERF - VINCULADA DIRETAMENTE AO GABINETE DA PREFEITA (consideranda) Art. 1º. Fica criada a Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária – CERF, órgão desprovido de personalidade jurídica e
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vinculado diretamente ao Gabinete da Prefeita, que ora recebe, por delegação e desconcentração administrativas, os poderes aqui especificados, e cuja estrutura administrativa fica definida com base neste Decreto.
A criação de um órgão próprio para regularização fundiária permitiu à
cidade elaborar uma lei específica tratando desse assunto. Trata-se da lei municipal 11.834 de 2003 regulamentada em 2004, que dispõe sobre a Regularização e
Parcelamento do Solo implantados irregularmente na cidade.
Como se percebe, os marcos da regularização fundiária em Campinas
foram 1990, 1996, 2002, 2003 e 2004. Mas isto não significa que desde a década de
80 (época das primeiras leis de regularização fundiária brasileiras) Campinas não
tenha dado nenhum tipo de atendimento às famílias que hoje são beneficiadas pela
regularização. Programas de regularização de favelas chegaram a ser realizados mas
“regularização fundiária” mesmo, tal como hoje é conhecida, somente está
acontecendo de forma sistemática e abrangente, como programa mesmo de
administração, a partir da edição daquela lei.
A regularização fundiária e urbana é uma das principais diretrizes da
política habitacional definida pela 1ª Conferência Municipal de Habitação de Campinas
que se realizou em 2002. A gestão da habitação parece fazer-se de forma
democrática, contando com participação de diversas organizações da sociedade civil e
movimentos populares, como se viu quando da realização da 2ª. Conferência, entre 31
de julho e 01 de agosto de 2004.
Com o Decreto criando a Coordenadoria Especial de Regularização
Fundiária, Campinas reuniu uma equipe de profissionais nas áreas de arquitetura e
urbanismo, engenharia, social e jurídica para o desenvolvimento de todo o processo
para regularizar mais de 230 áreas, entre ocupações irregulares, clandestinas, núcleos
e favelas. Esse trabalho envolve, dentre outros órgãos, os seguintes:
• Companhia de Habitação Popular de Campinas – Cohab • Secretaria Municipal de Habitação – Sehab • Secretaria de Planejamento • Secretaria de Assuntos Jurídicos e Cidadania • Coordenadoria Especial de Habitação Popular – Cehap • Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária (CERF) • Fundo de Apoio à População de Sub-habitação Urbana (Fundap) • Caixa Econômica Federal
Para demonstrar como se chegou à decisão de regularizar, convém
historiar a regularização fundiária das áreas aqui pesquisadas.
Ao final dos anos 80, já consolidadas as invasões (ocupações) em
diversos pontos, começaram a articular-se soluções.
103
A rigor técnico, os núcleos Vila Nogueira e São Quirino, além de Dom
Bosco e Gênesis, como são seqüência um do outro com quase nenhum espaço vago
entre os casebres (isto na época em que esses assentamentos se consolidaram com
caráter de definitividade), deveriam ser todos tratados como uma ocupação só,
gerando apenas uma regularização. Ou ao menos as situações de Vila Nogueira, São
Quirino e Dom Bosco poderiam ter tido tratamento único. A comprovar que a situação
era uma e apenas uma, a associação dos moradores que se forma em 1993 tem o
nome de Associação dos Moradores da Vila Nogueira e Parque São Quirino.
Mas como se tratam de invasões contíguas de uma área extensa que
no total alcança perto de 3 (três) km de extensão (sem contar a área do Guaraçaí),
uma regularização fundiária de tais dimensões seria impossível gerar e gerir.
Torna-se necessário então, com objetivos de praticidade, segmentar a área para que se possam enfrentar separadamente as situações de regularização de
cada uma delas. Tal opção torna o enfrentamento mais facilitado e mais rápido.
Após muitas reuniões entre os principais órgãos públicos encarregados
das questões ligadas a urbanismo, moradia e ambiente com a participação das
comunidades envolvidas, já com vista à “urbanização de favelas” se decidiu pela
observância dos seguintes critérios de intervenção naquelas áreas:
• O “Núcleo Residencial Guaraçaí” seria tratado separadamente dos demais, por
estar fisicamente distante deles; além disto, Vila Nogueira, São Quirino e Dom Bosco estavam assentados em área pública e o Guaraçaí está parte em área pública e parte em área privada, o que justificava um estudo diferenciado tanto quanto se daria com o Gênesis, assentado em área privada mas de sociedade de economia mista.
• O “Núcleo Residencial São Quirino” seria tripartido em São Quirino 6-B (sem problemas de APP), São Quirino 6-B1 (com problema de APP) e Dom Bosco (mais adiante, na direção da Rodovia Dom Pedro).
• Como estava meio isolado entre um final de rua (onde hoje é o campo de futebol) e a escola estadual, o Dom Bosco seria regularizado por primeiro, o que se deu a partir de 1986. Assim, de todas as áreas de regularização aqui pesquisadas, o primeiro núcleo atendido foi o Dom Bosco, destacado em relação à área à qual ele até então pertencia (“Núcleo Residencial São Quirino”). As intervenções visariam dar um “aspecto de cidade” aos núcleos, formando-se quadras e ruas, removendo-se assim a situação de aglomeração de moradias.
• Depois seriam regularizados os dois “São Quirino” e o Vila Nogueira. Seriam atendidos concomitantemente (embora em procedimentos administrativos separados) de modo a dar-se a toda a área marginal esquerda do ribeirão atendimento conjunto, preferencialmente uniforme.
• Dessas áreas somente as moradias de elevado risco seriam removidas. A remoção de algumas famílias seria, portanto, inevitável
• Finalmente se regularizaria o Gênesis, evitando-se remoção (até porque o núcleo não estava, como efetivamente até hoje não está) em área de APP.
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Mas justificava-se atuação preventiva, de modo a evitar que a ocupação chegasse à APP. Ele seria mantido por inteiro mas sob nova configuração espacial, no mesmo lugar em que ele estava instalado.
• Em caso de remoção a administração pública providenciaria abrigo em alguma unidade habitacional, sem garantia alguma quanto à localização
• Se respeitaria, na intervenção, a faixa “non aedificandi” de 15 metros em relação ao ribeirão
• O “Núcleo Residencial Guaraçaí” posteriormente também seria mantido por inteiro, mas sob nova configuração em outro local bem próximo daquele em que o núcleo estava instalado
Ou seja: durante a década de 80 a palavra proibida era “remoção”.
Nenhum núcleo seria por inteiro removido, exceto as situações de risco. E mesmo
assim, quem fosse removido de área de risco seria reassentado em unidades
construídas pela COHAB em outra área, mesmo que distante. Em linhas gerais esse
“acordo” foi mantido.
Em 1986 se regularizou o Dom Bosco; em 1988 e 1989 foram
assinados decretos e leis visando garantir aos moradores da Vila Nogueira e do São
Quirino sua permanência nas áreas de assentamento. Como não se contava ainda
com os instrumentos de regularização fundiária que somente em 1992 apareceriam
em Campinas, o modelo de “regularização” consistia em dar à comunidade local
alguma esperança de permanência por meio da “permissão de uso” e da “concessão
de uso”. Mas estas providências estavam longe da regularização fundiária plena que
hoje se busca realizar. Com a introdução da regularização fundiária na Lei Orgânica Municipal
de 1990, Campinas passou a tratar o assunto dos assentamentos como regularização
fundiária mesmo, embora ainda não se soubesse, à época, em quê exatamente essa
regularização deveria consistir. Não havia noção de suas múltiplas dimensões.
Em 1997 a municipalidade regularizou o Gênesis.
Atualmente as prioridades, dentre os aqui pesquisados, são Guaraçaí e
o conjunto formado por Vila Nogueira e São Quirino.
A partir de 2001 a regra observada em Campinas passa a ser “não regularizar o risco”. As enchentes seguidas dessa época, causando estragos até
então inusitados, foram os argumentos mais decisivos para que as autoridades
jogassem a toalha e para que população se convencesse da necessidade imperiosa
de remoção de moradias da margem esquerda do Anhumas. A administração pública
decide priorizar a criação, em toda a extensão do Anhumas, desde as proximidades do
Parque Taquaral até a Rodovia Dom Pedro, de um ambicioso Parque Linear. Como a
questão das áreas de risco à margem do Anhumas remanescesse, desenvolveu-se a
idéia de que Vila Nogueira e São Quirino, (reconhecidamente áreas de risco em razão
105
de sua proximidade com o Anhumas), não poderiam permanecer. Decidiu-se que
deveriam ser removidos.
Aliás, “regularização fundiária” e “risco irremediável” são expressões
incomponíveis. A regularização do risco que não possa ser removido é proscrita pela
legislação federal.
LEI FEDERAL 6.766/79 – LOTEAMENTOS Art. 3º (...) Parágrafo único. Não será permitido o parcelamento do solo: I - em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; II - em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados; III - em terreno com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes; IV - em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação;
Chega-se a permitir que a regularização fundiária aconteça, desde que haja remoção e reassentamento em outro local.
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.220 DE 4 DE SETEMBRO DE 2001 Art. 4o No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá ao possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local.
E mesmo as Leis Campineiras proíbem regularizar o risco:
LEI COMPLEMENTAR Nº 15 DE 27 DE DEZEMBRO DE 2006 PLANO DIRETOR DE CAMPINAS Art. 2º - São objetivos da política de desenvolvimento do Município: (...) VII – proteção e recuperação do meio ambiente das áreas urbanas e rurais, especialmente de áreas verdes, mananciais de abastecimento, cursos d’água, áreas de interesse social, áreas de risco ao assentamento humano e áreas de interesse histórico; Art. 36 - São diretrizes da política de meio ambiente: (...) XIX – assegurar ações de proteção e recuperação ambiental após a desocupação de imóveis em situação de risco, evitando–se a reocupação das áreas; (...) Art. 50 - São objetivos da Política de Habitação: (...) IV – promover a requalificação urbanística e a regularização fundiária dos assentamentos habitacionais precários, clandestinos e irregulares, dotando–os de infra–estrutura, equipamentos públicos e serviços urbanos e erradicando riscos;
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(...) VI – remover e reassentar as famílias que ocupam áreas de risco ou inadequadas para habitação. (...) Art. 86 - Nas ZEIS de Regularização será preservada, sempre que possível, a tipicidade da ocupação local, desde que observadas as exigências técnicas necessárias à execução da infra–estrutura e à circulação e garantidas condições adequadas de habitabilidade, ressalvados os casos de situação de risco. LEI N º 11834 DE 19 DE DEZEMBRO DE 2003 Regularização fundiária (...) Art. 9º - Os procedimentos de análise dos processos de regularização observarão: I -- as condições de estabilidade, segurança e salubridade das áreas do parcelamento; II -- o uso e ocupação em conformidade com a finalidade urbana, privilegiando-se, em especial, o de moradia; Parágrafo único -- Na regularização dos parcelamentos, sempre que possível será preservada a tipicidade da ocupação local, desde que, sanados os eventuais impedimentos e restrições, sejam garantidas as exigências técnicas necessárias à execução de infra-estrutura e circulação, ressalvados os casos de situação de risco. (...) DECRETO N.º 14.776, DE 17 DE JUNHO DE 2.004 Regulamenta a Lei Municipal n.º 11.834, de 19 de dezembro de 2003 Art. 1º - Poderão ser regularizados, desde que atendidas as exigências da Lei 11.834/03, quaisquer parcelamentos do solo implantados no Município de Campinas, independentemente da zona de uso onde se localizam, ficando excluídos os localizados nas seguintes áreas: I – em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, a menos que sejam tomadas providências para assegurar o escoamento das águas; II – em terrenos aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados; III – em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento) salvo se atendidas as exigências específicas das autoridades competentes; IV – em terrenos em que seja tecnicamente comprovado que as condições geológicas não aconselham edificações; V – nas áreas em que a degradação ambiental impeça condições sanitárias suportáveis, até sua correção; VI – em faixa de proteção de adutoras, oleodutos e de redes elétricas de alta tensão; (...)
Decidida a remoção de todos os moradores e reassentamento em outra
localidade, por volta do ano 2002 novas reuniões foram feitas com os moradores
dessas áreas e se decidiu um plano que em linhas gerais seria:
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• Em algumas etapas seriam removidos “São Quirino” e “Vila Nogueira” e seus moradores seriam remanejados no Residencial Vila Olímpia, bem distante do assentamento atual e com infra-estrutura ainda precária. Buscava-se permitir reconfiguração do local para aguardar a implantação do Parque Linear do Anhumas, projeto macro para toda a área. E para evitar novas invasões das áreas das quais as famílias seriam removidas, seriam plantadas árvores que futuramente constituiriam parte daquele parque projetado.
• Daquilo que então era conhecido como “favela da Moscou” (o São Quirino) ou como “favela da Luísa de Gusmão” (Vila Nogueira) não restaria nenhum morador. A própria comunidade acompanharia o processo de remoção das famílias das áreas de risco da Vila Nogueira e Parque São Quirino para a Vila Olímpia.
Mas havia um “plano B” da municipalidade que não aparece nos
procedimentos administrativos da própria SEHAB. Quem lê os procedimentos de
regularização fundiária das áreas aqui pesquisadas é surpreendido, ao final, com
informações até ali inimagináveis.
Como se viu, durante este período de 2004 a 2008 se vem
regularizando o GUARAÇAÍ, com vencimento de uma etapa. Restam duas, que vêm
patinando pela falta de recursos para construção das novas unidades habitacionais. E
se vem, igualmente, procedendo às remoções de V.Nogueira e S.Quirino.
A mesma motivação (falta de verba) resultou no retardamento dessas
remoções. Embora se soubesse que os reassentamentos seriam feitos na Vila
Olímpia, a precariedade daquele local é tanta que se optou para remover mais
lentamente para tornar possível “casar” essas remoções com a finalização das novas
habitações e instalação de equipamentos sociais da Vila Olímpia. Mesmo assim
muitas remoções foram feitas e centenas de moradores que antes estavam na Vila
Nogueira e no São Quirino, hoje residem no Vila Olímpia. Essa lentidão terminou sendo providencial para os moradores que
permaneceram nas áreas da Vila Nogueira e do São Quirino, beneficiados pelo “Plano
B”. O que parecia falta de sorte (não ser reassentado em uma casa ou apartamento
“decente”) parece que foi em verdade a sorte dos que resistiram.
O “Plano B” combina as idéias de “não remoção” e de “não regularização do risco” e consiste em:
• criação do Parque Linear do Anhumas • remoção de todas as famílias da Vila Nogueira e do São Quirino, mas com
realocação nas proximidades e não na Vila Olímpia. • (a novidade) incorporar ao Parque duas vilas, totalizando 210 unidades
habitacionais situadas fora do Parque mas a apenas alguns metros de seus limites. Se utilizariam, para tanto, duas “barrigas” de terra criadas pelo tipo de traçado entre a rua Moscou e o Ribeirão. Em alguns momentos o ribeirão se afasta da rua. Ribeirão e rua não são exatamente paralelos. No traçado geral são. Mas no real, há sinuosidades que geram aquelas linhas de “praia”. E nelas é que as duas vilas serão (se vingar o plano) implantadas. Elas acolheriam
108
todos os moradores que ainda não foram removidos da Vila Nogueira, todos os ainda não removidos do São Quirino e todos os remanescentes do Guaraçaí.
• Construção de centros comunitários, oficinas profissionalizantes, equipamentos de lazer (ginásios poliesportivos, piscinas, ciclovia, etc,) todas próximas ou dentro mesmo da área de APP, mas garantido o mínimo impacto.
• Edificação de centro comercial • Urbanização dos núcleos Guaraçaí e Gênesis • Recuperação ambiental da APP do Anhumas.
O Parque Linear prevê, além evidentemente da recuperação da mata
ciliar, dotar a margem esquerda do Anhumas dos seguintes equipamentos: Calçadão,
Play ground, Jardim de pedras, Pomar e quiosques, Bocha e malha, Quadra
poliesportiva, Sanitários, Centro comunitário, Ciclovia e Área de convívio.
Para realizar tal projeto de parque a municipalidade conta com recursos
do Governo Federal (pelo PAC-Programa de Aceleração do Crescimento), no valor de
R$ 37.000.000,00 (trinta e sete milhões de reais) com contra-partida municipal.
A respeito deste projeto, cumpre avaliar que: a) ele harmoniza
praticamente todos os interesses: moradores ainda não removidos, moradores do
entorno (os loteamentos formais regulares), municipalidade e COHAB, bem como
urbanistas; b) não é difícil perceber, todavia, que tão logo tomem conhecimento do
projeto (ainda não é por inteiro de conhecimento público) ambientalistas tenderão a
criticá-lo por conta da possível ofensa a espaços ambientais; c) o projeto configura um
“meio termo” entre os projetos mais antigos e os mais recentes acerca das remoções
programadas e em parte executadas; os mais antigos, pela permanência no local em
que estão; os mais jovens, pela remoção completa dos moradores do assentamento.
Pelo projeto, famílias ainda não foram removidas não serão mais e ocuparão uma
unidade habitacional dos blocos que venham a ser construídos nas tais “barrigas” de
terra próximas ao ribeirão.
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“NÚCLEO RESIDENCIAL GUARAÇAÍ”
margem direita do
Ribeirão das Anhumas
110
5.5.1 – “NÚCLEO RESIDENCIAL GUARAÇAÍ” foto aérea
111
6.5.1 – “NÚCLEO RESIDENCIAL GUARAÇAÍ” planta 1
112
imagem 13 - As obras se iniciaram no início de 2005
Imagem 14 - Panorâmica do “Núcleo Residencial Guaraçaí”. À direita na imagem, não mais que 2 metros abaixo (logo após as árvores que aqui são vistas) está o Ribeirão das Anhumas, neste ponto ainda não fortalecido pelo desaguadouro do Córrego Mato Dentro que mais adiante o incorpora (imagem seguinte). O Ribeirão provém da área em que se encontram as edificações altas, brancas, aqui visíveis.
113
Imagem 15 - Aqui havia barracos, cujos moradores foram remanejados nas unidades construídas pela Cohab-cp no próprio núcleo. No espaço se construiu a base daquilo que será o barracão para atividades cooperadas para geração de renda para os moradores. Logo abaixo de onde se vêem as árvores, está o córrego. Uma das prioridades da regularização: o saneamento. Não tem muito sentido respeitar o direito à moradia, que afeta uma coletividade, sem associar com a solução para o problema ambiental, que afeta toda a sociedade.
Imagem 16 – A principal e única rua do Guaraçaí. Ao lado direito temos o córrego. À esquerda, as casas recém construídas. Ao fundo delas estão as terras da Escola Americana. Ao fundo da imagem se situam as duas áreas em que ainda não houve intervenção (que seretapas 2 e 3)
114
Imagem 17 - A seqüência de casas já habitadas. Ao fundo delas, terras da Escola Americana. Todas as casas têm água, luz, esgoto.
Imagem 18 - Duas casas geminadas. São sobrados com equipamentos de uso comum no térreo e dormitórios no piso superior.
115
5.5.1 – “NÚCLEO RESIDENCIAL GUARAÇAÍ” Processo de regularização na SEHAB: 02099
Moradias: 125
Moradores: 500
Domínio da área: parte pública e parte privada.
O “Núcleo Residencial Guaraçaí” é o único objeto deste estudo,
destacado deste conjunto de núcleos, situado à margem direita do Anhumas.
A área em que está este núcleo tem 14.673,04 m2 e ocupa:
• Parte do espaço que deveria ter-se constituído (caso não tivesse ocorrido ocupação) em Praça do Loteamento da Vila Guararapes, com aproximadamente 5.000 m2
• Idem, loteamento Alto da Barra, com aproximadamente 5.680 m2
• Área de propriedade de Odilon G. Nascimento Filho, chamada de Gleba 7, remanescente do loteamento por ele realizado nas proximidades, área de 3.880 m2, matriculada sob número 58.108 no 1º. Cartório de Registro de Imóveis .
• Parte do leito da Rua Natividade da Serra (antes Rua 9 da Vila Guararapes) e da Av. Paulo de Góes (antes Av. 1 do Loteamento Alto da Barra).
A área pertence à macrozona 4, área de planejamento 17, Leste.
A área particular invadida é o quarteirão 3324 (em alguns
documentos quarteirão 3036).
Quando se loteou, em Campinas, em 1970, o miolo de área que se situa
entre os atuais bairros Jardim Moreira, Chácara da Barra e Jardim Alto da Barra e que
abrange a extensa área em que hoje se incrusta a chamada “Escola Americana de
Campinas” o loteador foi obrigado, por lei federal, a doar para a municipalidade uma
área para fins institucionais.
Como a Escola Americana respeitou o distanciamento mínimo de 30
metros entre o córrego e seus muros mais próximos a esse córrego, remanesceu livre
de construções uma área longilínea demarcada entre os limites do córrego e o muro
da escola. O loteador escolheu, obviamente, para ser doada, exatamente esta área, a
mais depreciada de toda a área maior que fora loteada.
Mas como essa área longilínea era maior do que a área que precisava
ser doada, parte dessa área se tornou pública e parte continuou particular. A porção
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pública é bem maior do que a privada. Por conta dessa diferença de dimensões, na
área privada terminaram cabendo não mais que 30 moradias enquanto que na área
pública quase 100 delas couberam. Mas a presença de um espaço privado entre áreas
públicas terminou sendo um enorme problema a ser enfrentando quando se resolveu
regularizar esta área inteira.
O município de Campinas deveria, tendo recebido doação da área,
demarcá-la, estabelecer com precisão qual passava a ser a área de seu domínio e
qual a que continuaria na posse dos proprietários da gleba loteada. Deveria ter então
cercado sua área e nela mantido vigilância para depois poder criar ali os serviços
institucionais de atendimento a toda a população do entorno que, com o tempo,
apresentariam demandas específicas.
Isto não foi feito, como de resto não é feito por nenhuma municipalidade
no Brasil inteiro. A área ficou então “desamparada”, “desassistida”, vaga e com toda a
aparência de ociosa. E como esta área alongada estava ali quase que pedindo para
ser invadida, os que buscavam uma área para instalar sua moradia resolveram
apossar-se dela e ali erigiram seus barracos, de forma desorganizada, sem maiores
preocupações espaciais ou formais, sem critérios técnicos. Tudo sem estabilidade,
sem arejamento nem segurança. Tudo fragilidade, tudo incerteza. Sem rua e sem
endereço.
Foi assim, com a instalação de algumas moradias precárias pelos
primeiros moradores provindos do interior dos Estados de São Paulo e Minas Gerais e
de cidades do Nordeste do país que a Campinas acorreram em busca de emprego e
melhoria na qualidade de vida que começou a se instalar, em 1970, aquilo que
posteriormente viria a chamar-se “Núcleo Residencial Guaraçaí”.
A informação de uma área em condições de ser invadida para fins de
moradia correu rapidamente e moradores de Campinas chamaram parentes e amigos
de outras cidades para virem fixar residência naquela área.
O número de moradores do local começou a crescer a partir de meados
da década de 70, resultando em um aglomerado bastante precário, com caminhos
emaranhados entre os barracos que não podem ser chamados de ruas, caminhos
estes em que até mesmo a circulação a pé é difícil ante a presença de varais para
secagem de roupas em meio a eles.
Começaram a estabelecer-se as primeiras relações sociais entre os
residentes já que todos se encontravam na mesma situação. A necessidade de todos
terem um dia resolvida sua situação de moradia condigna fez com que houvesse
117
necessidade de organização entre os moradores.
Com auxílio de políticos locais, ou aspirantes a políticos, começaram a
realizar-se as primeiras reuniões dos moradores e resolveu-se, até por
amadurecimento das relações e por orientação jurídica gratuita recebida, formalizar o
grupo de moradores na forma de uma associação de moradores, que todavia apenas
se viria mesmo a efetivar depois da remoção de boa parte dos moradores para a
região dos DIC´s, circunstância que fez com que os moradores se conscientizassem
da importância de lutar não apenas organizadamente mas sobretudo inseridos na
formalidade e na legalidade de uma associação.
Segundo a Presidente atual da Associação de Moradores, Sra. Rita
(cujo inteiro teor de entrevista com ela realizada se encontra mais adiante) o político
mais assiduamente presente ao núcleo era o atual Vereador Francisco Sellin, que no
momento se encontra no partido PSDB e atualmente é filiado ao PDT.
Terem-se organizado foi importantíssimo para aquelas pessoas, pois a
mobilização, ainda em meados dos anos 70, impediu, ao final dos embates, que
fossem frutíferas as pressões feitas pelos moradores das proximidades (consideradas
famílias de classe média) que solicitavam à municipalidade, naquela ocasião, a
erradicação da favela. A existência de uma favela nas proximidades de uma residência
erigida dentro dos padrões de legalidade deprecia em boa parte o imóvel e se não
gera violência causa pelo menos uma situação de intranqüilidade para os “não-
favelados”.
Mas os primeiros lances desta luta foram favoráveis aos moradores da
“área legal”, tanto que em razão da necessidade de se realocar os moradores deste e
de outros núcleos residenciais já então existentes, se criou um programa municipal,
que se chamou “Profilurb” (Programa Municipal de Lotes Urbanizados), com o objetivo
precípuo de construir unidades habitacionais que se prestassem a atender à demanda
e pelo menos diminuir este passivo. “A proposta do Programa era assentar as famílias
em situação de risco e de ocupações de áreas públicas, com renda de até três
salários mínimos. O lote era de aproximadamente 220m2 composto de três cômodos
com espaço para futuras ampliações”.24
Em 1980 vitoriosa (momentaneamente) a pressão feita por parte dos
moradores do entorno, a municipalidade decidiu a remoção de algumas das famílias
ali residentes, o que não constituía providência de grande porte já que na ocasião ali
havia não mais que trinta barracos.
24 Conforme documento oficial da COHAB Campinas, no processo administrativo de regularização nº 21.
118
Os moradores foram incluídos no programa PROFILURB por meio do
Departamento Municipal de Urbanização de Favelas e da Cohab/campinas,
cadastrados e depois removidos para a área do DIC I - Ouro Verde, situado na
Região Sudoeste do Município, distante 15 Km da área central da cidade. Mas nem
todos os moradores aceitaram a transferência. Três dessas famílias resistiram e
permaneceram no Guaraçaí.
O local escolhido para a nova moradia dos re-assentados era por
demais afastado do centro; faltavam infra-estrutura e equipamentos públicos para
utilização por parte destes novos moradores. Os moradores não se adaptaram à nova
realidade. Consideravam o local distante demais. E os entrelaços sociais já
consolidados no Guaraçaí, ali não se reproduziram por completo. Estes moradores
devolveram então os novos imóveis à Cohab-CPs e retornaram ao Núcleo Guaraçaí.
Foi então que, decididos a permanecer na área do Guaraçaí e
conscientizados da importância da luta com armas formais, formaram uma “Associação
de Moradores” com o apoio do movimento social denominado "Assembléia do Povo". A
partir daí, intensificaram a luta pela permanência do Núcleo, buscando diversas
melhorias na infra-estrutura local.
Logo após o retorno desses moradores à área, novas famílias vieram
agregar-se àquelas que, somadas às que não haviam saído do local, ocasionaram, por
volta de 1986 um maior adensamento da área que já então contabilizava
aproximadamente cem famílias.
Cumpre lembrar, todavia, dado curioso até, que as famílias mais
recentemente instaladas, se fixaram nas áreas mais baixas do núcleo, mais próximas
do córrego, exatamente as áreas mais expostas aos riscos de inundação e serão
justamente estas as primeiras famílias beneficiadas pela regularização, pois o critério
escolhido pela municipalidade para regularização não foi o de antiguidade no
assentamento, mas o de risco.
Esta solução causou grande incômodo para os moradores mais antigos
do assentamento que esperavam ser os primeiros beneficiados com as novas unidades
de moradia para as quais alguns moradores das áreas de risco já foram transferidos. E
trouxe ainda outro gravame: uma certa dificuldade de relacionamento entre os
moradores antigos do núcleo (que no atual estágio da regularização do “Núcleo
Residencial Guaraçaí” ainda não foram retirados dos barracos) e os mais recentes
moradores, já beneficiados exatamente porque estavam em áreas consideradas “de
risco”.
119
É que os moradores mais antigos temem que com a eventual
descontinuidade administrativa (“vai que muda o prefeito...”) se paralise a regularização
e eles acabem não sendo atendidos com uma unidade habitacional. Ocupantes só
acreditam na nova casa prometida quando se mudam pra ela.
Nos anos seguintes as únicas melhorias feitas no núcleo não foram
propriamente iniciativas da municipalidade: foram as ligações domiciliares da rede de
água (por meio da SANASA, companhia autárquica de água e esgoto de Campinas) e
os postes coletivos de energia elétrica (pela CPFL – Companhia Paulista de Força e
Luz – empresa atualmente particular, privatizada, de fornecimento de energia elétrica
na região de Campinas).
Por volta do ano 2000 aquilo que até então eram programas de
“erradicação de favelas”, ou que recebiam outros nomes em outros lugares, mas
sempre com o mesmo objetivo de trabalhar no sentido do reconhecimento do direito
dos moradores de favela à moradia condigna (projeto Singapura, etc) passam por uma
revisão conceitual e programática. Como decorrência de um trabalho metódico e bem
urdido, catalisador de esforços de múltiplos grupos de “sem terra”, “sem teto”,
“moradores de cortiços” e outros, surgem as idéias, os conceitos, as ações
institucionais e sociais ligadas àquilo que se convencionou chamar “Regularização
Fundiária”, que vem minudentemente explicitada em capítulo próprio deste trabalho.
Já em 2002, a Companhia de Habitação Popular de Campinas - Cohab-
Cp (empresa de economia mista e de caráter social, agente financeiro e promotor do
Sistema Financeiro da Habitação e responsável para aplicação da política habitacional
local, criada em 17 de fevereiro de 1.965 pela Lei 3.213, que tem como acionista
majoritária a Prefeitura Municipal de Campinas) por meio do contrato 248/02 firmado
com a Prefeitura Municipal, passou a empenhar-se, neste e em outros núcleos
prioritários, pela realização do “Projeto de Regularização Fundiária de Favelas”.
Os primeiros estudos, de novembro de 2002 (fls. 36) e maio de 2003 (fls. 31), constataram todos os “problemas normais” que um assentamento apresenta:
habitações precárias, vielas tortuosas, desordem, ausência de planejamento,
aglomeração de moradias, promiscuidade urbanística, problemas ambientais (lixo na
encosta, lançamento de esgoto in natura no ribeirão, etc). Um dos problemas
“diferenciados” deste núcleo é que muitos moradores trabalham com separação de
resíduos sólidos e utilizam suas próprias moradias para armazená-los, ante a ausência
de alternativa. E isto torna as moradias, evidentemente, insalubres.
Constatou-se também:
120
• Como há duas áreas no núcleo, uma pública e uma privada, haveria necessidade de dois projetos distintos pois elas têm “natureza jurídica distinta”; a solução ideal seria desapropriação para que a área privada se tornasse pública e permitisse a unificação de matrículas para que um projeto apenas pudesse ser elaborado, evitando-se confusões.
• 70% das casas eram de madeira
• haveria necessidade de edificação de 121 moradias para substituir as existentes mas no mesmo núcleo.
• Elevado risco de enchentes, com expressiva mancha de inundação
• As contenções de enchentes feitas pela prefeitura no ribeirão foram arrancadas, em vários trechos, pela força das águas.
• Haveria necessidade de aterro sobre a faixa de APP para aumentar a cota e eliminar os riscos de enchentes.
Inicia-se em 15/03/2004 o procedimento administrativo interno na
SEHAB para esta regularização fundiária, quando a DT/COHAB, encaminhando
projeto, solicita à CERF/SEHAB parecer a respeito.
No mesmo ano de 2004 se inicia perante a Justiça o processo 1119/04
que tramita perante a 9a. Vara Cível de Campinas buscando a USUCAPIÃO COLETIVA desta área (no que toca, evidentemente, à área privada). Mas a ação foi
mal proposta. Requer a citação de quem não é proprietário e deixa de pedir a citação
dos proprietários.
Era clara, como se vê, a disposição de regularizar o Guaraçaí. Mas uma
das principais dificuldades para a regularização fundiária desta área do “Núcleo
Residencial Guaraçaí” consiste no fato de os invasores estarem parte em área privada e parte em pública. É um entrave bastante dificultoso porque o problema de
uma área invadida precisa normalmente ser resolvido com enfrentamento abrangente.
Ou se regulariza a situação para toda aquela determinada comunidade ou não se
regulariza para ninguém. E como as situações são diferentes (estar em área pública é
uma coisa e estar em área particular é outra quando se pensa na solução final com a
outorga do direito de propriedade aos invasores) é preciso trabalhar com critérios e
prioridades sem todavia tirar os olhos do processo todo e trabalhar insistentemente
para se chegar ao final em que todos sejam atendidos em seu direito à moradia e à
propriedade, independentemente da titularidade do imóvel que foi originalmente
invadido.
O problema é que, olhando a terra no momento da ocupação, não se
consegue saber onde termina a área privada e onde começa a pública. A terra é a
mesma, sendo evidentemente idênticas, sob aspecto meramente visual, as porções
121
pública e privada de terreno. Ocupar uma área pública ou uma área particular acaba
sendo, na prática, um componente de “sorte” de quem invade. Um risco.
Em uma situação dessa em que não se sabe qual é a área pública e
qual a particular, nenhum dos invasores se apossa da área em que construirá sua
casa pensando previamente na situação dessa área ser pública ou ser privada. Este
aspecto não entra no projeto ou nas intenções de quem invade. Não faz parte do
universo de preocupações do invasor. O que ele busca, prioritariamente, é uma área
para poder erigir o abrigo seu e de sua família, que preferencialmente não gere
problemas de futura remoção forçada.
Áreas públicas causam menos problemas (já que o poder público, se
não tem interesse ou não tem condições econômicas para dar uma solução para o
invasor normalmente não retira mesmo os invasores) mas algumas áreas privadas
também não causam dificuldades (como se dá quando, por exemplo, se trata de área
de propriedade controversa). Se a área é pública ou particular, portanto, não vem ao
caso no momento da ocupação, pois a prioridade para quem invade não é
documental, mas protecional. Quem invade não vê o futuro, mas o presente.
Esta preocupação a respeito de quem exerça o domínio do bem (quem
seja o proprietário do bem) só aparece muito tempo depois de consolidada a
ocupação, quando os diversos invasores começam a manifestar interesse em tornar-
se proprietários do bem invadido.
A partir daí, importa muito saber se a área é pública ou particular, pois
disto dependerá o tipo de caminho que precisará ser trilhado para que aquele grupo
que compõe o núcleo habitacional consiga atingir a meta de ter o imóvel
definitivamente para si e sua família, garantindo assim a si e herdeiros.
Como se vê, a propriedade de determinado terreno invadido é, para
quem o invade para fins de moradia, um mero detalhe. Uma ocasionalidade. Se ele,
invasor, “tiver sorte”, a área é privada, o que lhe dá pleno direito de usucapião e outras
medidas jurídicas que permitirão acesso ao domínio com muito maior facilidade. Se a
área é pública, o invasor jamais conseguirá o domínio do bem. Quando muito
conseguirá uma “concessão de direito real” que antes das medidas jurídicas
governamentais recém tomadas não se equiparava, na prática, ao pleno direito de
propriedade e que hoje, como se verá em capítulo próprio, equivale.
Seria pelo menos estranho, quando não injusto, que o acaso
determinasse que determinada ocupação pudesse ser regularizada fundiariamente e
que outra, vizinha, não pudesse. Imagine-se a situação de alguém que, como
122
acontece no “Núcleo Residencial Guaraçaí”, invadiu uma área privada e consegue
obter, ao final de toda uma luta, que não é só dele, o domínio (a propriedade) do bem
invadido, enquanto que seu vizinho (vizinho mesmo, da moradia vizinha que se situa a
alguns metros apenas da dele) não consegue atingir o mesmo objetivo porque ocupou
área pública e “não teve a sorte” de ocupar área privada. Resultados diferentes para
duas situações que, não fosse a questão jurídica, seriam rigorosamente idênticas.A
regularização se transformaria, nestes casos, em loteria.
O projeto de regularização foi elaborado em maio de 2004 e apresenta
os seguintes pontos relevantes (fls. 64):
• Houve estudo prévio da mancha centenária de inundação, contratado à Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica – FCTH-USP
• A remodelação do local foi precedida de contatos com moradores, que preferiram que as remoções que precisassem ser feitas ocorressem com reassentamento das famílias dentro do próprio núcleo, o que foi respeitado.
• Realizou-se prévio estudo das áreas de APP, com demarcação da faixa de 15 metros e indicação precisa das edificações que precisavam ser removidas para que a faixa fosse respeitada.
• A constituição de um arruamento que permita circulação de veículos e pedestres. Esta providência é tão importante quanto o próprio saneamento da área. Aglomerado de casas emaranhadas sem critério, sem espaço para circulação de veículos não condiz com os interesses de ninguém. As casas do Guaraçaí, tal como acontece com a grande maioria dos núcleos criados sem prévia organização, não formam arruamento adequado. As “ruas” que elas formam são tortuosas. As casas não vencem o relevo do solo em que se instalam, o que faz com que não raro uma casa se situe em área mais baixa do que outra, embora sejam adjacentes uma à outra. Assim, a re-arrumação espacial das moradias é providência importantíssima que melhora a aeração das casas (o que tem implicação direta para a saúde dos moradores), permite arborização, facilita escoamento de águas pluviais, tudo isto implicando diretamente no bem estar e na auto-estima dos habitantes. Para os autores dos projetos, eliminar riscos não significa apenas risco de enchentes e de declividade. Diz respeito também ao “risco da proximidade das moradias umas das outras”.
• a remoção e o reassentamento, no próprio núcleo, das famílias que precisassem ser removidas de áreas de risco (primeiras famílias a serem atendidas).
• Eliminação das áreas de risco com levantamento da cota da área em que se re-instalarão os moradores (para respeitar-se o laudo da mancha centenária de enchentes que foi elaborado) para evitar que futuras enchentes possam atingir os moradores já reassentados. Onde não é possível eliminar o risco, a remoção e reassentamento será feito.
• Solução para os problemas ambientais observando-se a faixa de 15 metros de lançamento de esgotos, detritos e água servida diretamente no córrego em cujas margens o Guaraçaí se encontra instalado. Retirada das moradias que se encontravam dentro da faixa de 15 m
• Ante a especificidade do trabalho de expressiva maioria dos moradores desta
123
ocupação, projetou-se a construção de um galpão para armazenamento e separação de resíduos sólidos antes de serem levados para os containers deixados nas proximidades do núcleo por empresas interessadas na captação desse material já separado pelos moradores.
Em outubro de 2004 se elabora o Projeto Oficial, com Memorial
Descritivo (fls. 166) para construção de 103 unidades.
Em novembro de 2004 (fls. 198) elaboraram-se explicações a respeito
do projeto:
• Manutenção da faixa de 15 metros
• Permanência das unidades em alvenaria que se encontrem em boas condições e não ocupem área de risco
• Remoção das demais unidades e reassentamento na própria área após execução de aterro para erradicar o risco de inundação
As obras para a construção de Unidades Habitacionais foram projetadas
para serem realizadas em 3 etapas.
PRIMEIRA ETAPA – SITUAÇÕES DE RISCO DA ÁREA PÚBLICA
Em 2004 foram assinados contratos com o Governo Federal Brasileiro
(via “Programa de Subsídio Habitacional de Interesse Social” – PSHIS) para
construção de 40 Unidades Habitacionais constituindo assim a primeira etapa do
projeto de remoção e reassentamento das famílias residentes no núcleo.
O programa de regularização fundiária do “Núcleo Residencial
Guaraçaí” abrange o seguinte detalhamento:
• Não atender, no primeiro momento, ninguém que esteja em área particular, já
que as prioridades são atender moradores de área de risco e invasores de área
pública.
• 40 famílias atendidas inicialmente (primeira etapa).
• O recurso total disponibilizado pelo governo federal é resultado do
entendimento de que é necessário investir R$ 6.000,00 (seis mil reais) por
família a ser atendida.
• Tal valor é suficiente não apenas para a construção das unidades habitacionais
como para a realização de toda a infra-estrutura necessária para o total das
unidades;
124
• As Unidades constituem casas assobradadas e contam com aproximadamente
48m2 de área útil sendo 1 sala, 1 cozinha, 1 banheiro no pavimento térreo, e 2
dormitórios no pavimento superior.
• Todas as unidades contam com rede de abastecimento de água, energia
elétrica e captação de esgoto, bem como a colocação de guias e sarjetas,
drenagem e pavimentação com blocos de concreto intertravados.
• Tais recursos são repassados pela Caixa Econômica Federal à Cohab-cp -
Companhia de Habitação Popular de Campinas.
• A Cohab-cp – é a responsável pela elaboração do trabalho técnico e social,
fiscalizada pela Caixa.
• Cada família atendida se compromete, por contrato, a pagar o financiamento
por meio de prestações cujo valor não excede 10% do salário mínimo (hoje o
valor da prestação não ultrapassa, portanto, R$ 38,00)
As 40 Unidades Habitacionais construídas e toda a infra-estrutura local
foram entregues oficialmente em maio de 2007.
SEGUNDA ETAPA – SITUAÇÕES SEM RISCO DA ÁREA PÚBLICA
Mantidas as características gerais do empreendimento em relação à
primeira etapa, esta segunda etapa pretende:
• Atender quem está em área pública e que ainda não foi beneficiado na primeira
etapa.
• Atender 55 famílias, que já assinaram contrato em maio de 2006, removendo
dos barraquinhos e remanejando nas unidades a serem construídas.
• Manter, basicamente, o mesmo plano estabelecido para a primeira etapa.
• Financiamento pela mesma Caixa Econômica Federal, tal e qual programado
para a etapa anterior.
TERCEIRA ETAPA – ATENDIMENTO AOS INVASORES DA ÁREA PRIVADA
Esta é a etapa prevista para o atendimento dos moradores assentados
em área privada.
• contemplará 30 famílias que residem em área particular, que está em processo
de desapropriação pela Prefeitura Municipal de Campinas
• Os recursos não virão da Caixa Econômica Federal mas do PAC - Programa
de Aceleração do Crescimento do Governo Federal
125
• Tais recursos serão suficientes para a construção de 30 Unidades
Habitacionais e a realização de toda infra-estrutura prevista como modelo para
as etapas anteriores.
Para viabilizar a transformação da área privada em pública e permitir
unificação das matrículas junto ao Cartório de Registro de Imóveis, se expediu
Decreto 15.930 de 09 de agosto de 2007 declarando a área privada como sendo de
interesse social para fins de desapropriação.
Assim que houver os recursos necessários para a desapropriação ela
será feita e a regularização fundiária da área inteira proderá prosseguir como sendo uma área apenas, inteiramente pública.
Hoje, as principais necessidades do “Núcleo Residencial Guaraçaí” são
a finalização do projeto de reurbanização da área e a regularização fundiária, com
entrega do Termo de Concessão de Direito Real de Uso.
Ainda não foi feita a regularização documental para remessa a cartório, nem concedido nenhum documento individual de concessão de uso especial para fins de moradia. A esperança dos moradores é que a 2ª e 3ª etapas se encerrem logo,
completando-se o projeto de regularização fundiária. Temem que eventual
descontinuidade administrativa impeça a conclusão do projeto.
RESULTADOS:
• Regularização Fundiária ainda em andamento, mas caminhando para plena.
• Desapropriação da área particular em andamento (já expedido decreto desapropriatório).
• Faltando também lei de desafetação da área toda (tão logo se torne pública a área privada) e
• posterior parcelamento da área toda em apenas um projeto, • com expedição de concessão de uso especial para fins de moradia. • Regularização realizada sem qualquer remoção para núcleo distante. • Foram feitas apenas realocações para imóveis novos na mesma área da
ocupação.
SERVIÇOS
Embora se projetasse uma melhoria importante para a qualidade de
vida local, enquanto a solução com a regularização fundiária não aconteceu algumas
melhorias pontuais foram se dando ao longo de algumas administrações públicas.
Antes da regularização acontecer tal como hoje ocorre, o núcleo já contava com
alguns serviços públicos:
126
Bem antes da regularização fundiária passar a ser realidade no local, a
população do Guaraçaí já contava com equipamentos sociais importantes, instalados
nas proximidades do núcleo.
Há creches próximas, escolas públicas estaduais, um posto de saúde
com atendimento domiciliar e ambulatorial e algumas instituições privadas
complementando o trabalho como: Centro Educacional de Assistência Social Menino
Jesus Praga, com atendimento sócio-educativo às crianças de 0 a 4 anos; Igreja
Católica São Pedro Apóstolo, da Chácara da Barra, promove distribuição de cestas
básicas; o Instituto Dom Nery, atendimento aos adolescentes de sexo masculino, a
Casa Caridade e Cultura João XXlll assistência às famílias com entrega de cestas
básicas.
A Associação de Moradores ainda existe formalmente e realiza
periódicas eleições para sua diretoria (periodicidade bienal). A Associação tem hoje
por presidente a Sra. Rita de Cássia Arruda, moradora ainda em barraco já que sua
casa ainda não foi construída.
Embora a associação não possua sede social para desenvolvimento de
atividades sócio-culturais, algumas organizações não-governamentais situadas no
entorno do núcleo se encarregam de prestar atendimento.
Trata-se de comunidade que tem tido boa participação na formulação
de políticas municipais na medida em que possui representantes no Conselho do
Orçamento Participativo (OP).
127
“NÚCLEO RESIDENCIAL VILA NOGUEIRA”
(primeira de uma seqüência de ocupações que formaram 4 núcleos residenciais à margem esquerda do Ribeirão das Anhumas)
128
6.5.2 – “NÚCLEO RESIDENCIAL VILA NOGUEIRA”
planta
129
6.5.2 – “NÚCLEO RESIDENCIAL VILA NOGUEIRA”
foto no sentido contrário
imagem 26
130
Imagem 20 - Vista da margem direita do Ribeirão das Anhumas, a partir da margem esquerda. As mudas de árvore que são vistas em primeiro plano ocupam o espaço de barracos que aí estavam instalados e que foram removidos para viabilizar a regularização fundiária desta área do Núcleo da Vila Nogueira.
Imagem 21 - Estas mudas de árvore ocupam lugar em que estavam os barracos do N.R. Vila Nogueira. Os barracos que aí se encontravam foram removidos como condição para viabilizar a regularização fundiária deste núcleo. Uma parte do núcleo ainda tem barracos atualmente mas a regularização está em andamento. Plantam-se árvores para impedir a realização de novas invasões.
Imagem 22 - Em primeiro plano, margem esquerda do Ribeirão das Anhumas. Ao lado das árvores de médio porte vistas no centro da imagem corre o Ribeirão. Mostra novamente a área em que havia moradias que foram removidas e as árvores plantadas para impedir novas invasões e para compensar o ambiente pela ocupação da margem do Ribeirão. Note-se o tipo de condomínio de luxo postado do outro lado do Ribeirão das Anhumas (já na margem direita). O contraste é notável. Entre o ribeirão e as casas que são vistas no alto há uma estrada que é também visível na imagem. Entre essa estrada e o ribeirão, mais adiante na direção jusante, há outros 2 condomínios de luxo.
131
Imagem 24 - há lazer e diversão para as crianças e adolescentes no período do dia em que não estão na escola. Na imagem, uma aula de capoeira.
Imagem 25 - segurança
Imagem 23 - Núcleo comunitário de crianças e adolescentes da vila nogueira. Para quem segue pela Rua Luíza de Gusmão em direção à Rua Moscou, este núcleo comunitário é utilizado pelos próprios moradores como referência do ponto que divide o “Núcleo Residencial Vila Nogueira” e o “Núcleo Residencial São Quirino”.
132
5.5.2 – “NÚCLEO RESIDENCIAL VILA NOGUEIRA” Proc. 73.134/04 - (5-B) Moradias: 132
Moradores: 504
Domínio da área: PÚBLICA
JOSÉ PAULINO NOGUEIRA era grande proprietário de terras e dono,
no final do século XIX (juntamente com seus irmãos Artur, Sidraque e seu genro Paulo
de Almeida Nogueira), de imensa fazenda em terras onde hoje está a cidade de
Cosmópolis, chamada de “Fazenda do Funil”. As atuais cidades de Paulínia, Sumaré,
Valinhos e Cosmópolis eram, na época, bairros periféricos de Campinas, afastados do
centro e sem nenhum tipo de melhorias ou benefícios.
Por volta de 1880, houve um intenso movimento entre fazendeiros da
região visando a construção de uma estrada de ferro, que viesse facilitar o
escoamento da produção agrícola das fazendas, prejudicado pelos rios Atibaia e
Jaguari, cuja transposição dificultava sobremaneira a comercialização dos produtos.
Esse movimento culmina com a aprovação de empréstimos para a construção da Cia.
Carril Agrícola Funilense, ligando Campinas à tal Fazenda do Funil.
A Estrada de Ferro é inaugurada em 18/09/1899, quando também se
inauguram suas várias estações, todas elas recebendo nomes de diretores e membros
da própria Companhia: "Barão Geraldo", "José Paulino Nogueira", "João Aranha",
"José Guatemozin Nogueira" e "Artur Nogueira", dentre outras que levaram o nome da
fazenda onde estavam situadas: "Santa Genebra", "Deserto", "Santa Terezinha" e
"Engenho". Obviamente, os bairros onde estavam essas estações foram sendo
conhecidos pelos mesmos nomes. Surge, assim, a vila "José Paulino". Em 30 de
novembro de 1944, através do Decreto-lei 14334, a vila de "José Paulino" foi elevada à condição de Distrito, com o nome de PAULINIA.
Aquele mesmo proprietário de terras, tão importante para a história da
cidade de Paulínia, adquire terras em Campinas e as unifica para o fim de realizar um
loteamento que terminou se chamando Vila Nogueira. Como se vê, José Paulino
Nogueira foi bastante homenageado: nome da cidade de Paulínia, em 1944;
loteamento “Vila Nogueira” 11 anos depois; e Rua José Paulino no centro de
Campinas.
Seu genro Paulo de Almeida Nogueira é proprietário das terras situadas
ao lado do loteamento da Vila Nogueira e é nessas terras vizinhas que seus herdeiros
133
José Bonifácio Coutinho Nogueira Paulo Nogueira Filho vão fazer surgir o Loteamento
São Quirino.
O “Núcleo Residencial Vila Nogueira” está situado na área que deveria
ter-se transformado na PRAÇA 2 do Loteamento da Vila Nogueira, uma faixa
longilínea e estreita que ocupa o espaço existente entre a Rua Dona Luiza de Gusmão
(antiga Rua 1) e o Ribeirão das Anhumas, poucas dezenas de metros após o Ribeirão
receber as águas do Córrego Mato Dentro e as da Lagoa do Taquaral, razão pela qual
é das áreas mais sujeitas a inundação de toda a região. Sua extensão se dá desde os
limites do Parque Novo Taquaral e Jardim Lídia com o Loteamento Vila Nogueira até
os limites deste com o Loteamento São Quirino (praça 6, igualmente ocupada por
moradias, mas do núcleo seguinte). Quarteirão municipal 8379, zona leste, macrozona
4, área de planejamento 17, Administração Regional 3. Quanto à área ocupada, as
informações são controversas:
• Para o Cartório de Registro de Imóveis a praça tem a área de 38.690,00 m2 • Para a COHAB a área ocupada é de 37.775,00 m2 (conforme consta da Lei
Municipal 6126 de 04/12/1989. • Em alguns documentos oficiais da municipalidade, tal como consta do
procedimento interno de regularização, a ocupação possui 40.150,14 m2, e de duas uma: ou não pode ser correto porque a área de ocupação seria maior do que a área da praça, ou a ocupação ocorreu na praça toda e em parte de rua.
Na verdade jurídica a ocupação deste núcleo atinge não apenas a praça
2 do loteamento da Vila Nogueira, como também:
• Parte de uma avenida projetada para o loteamento Vila Nogueira • a Praça 6 do Loteamento do Jardim Novo Taquaral • parte de uma avenida projetada para o Loteamento Jardim Novo Taquaral.
Somente não houve muito grande preocupação com a situação jurídica
dessas áreas porque em determinado momento do caminho da regularização se
percebeu que manter os moradores naquele espaço seria inadequado. Mas se a não
remoção prevalecesse teria sido necessário desafetar essas áreas e criar
juridicamente um “loteamento” que abrangesse apenas a área invadida, para permitir o
registro desse assentamento.
Pelas transcrições 23.398 (livro 3T, fls. 136), 23.397 (livro 3T, fls. 136) e
26.862 (livro 3Y, fls. 193) JOSÉ PAULINO NOGUEIRA se tornou proprietário de toda
a área e em 1955 consegue aprovar o loteamento junto à municipalidade e ao cartório
e doa algumas áreas (que posteriormente viriam a ser ruas, avenidas e praças) para a
municipalidade, conforme obrigam as leis da época. Uma das áreas doadas foi
exatamente a PRAÇA 2. A doação desta praça foi feita por escritura pública de
doação de 29 de dezembro de 1955, lavrada perante o 3o. Tabelionato de Campinas,
134
às fls. 264 do livro 205 e gerou a transcrição 27.084 de 13 de janeiro de 1956, feita às
fls. 281 do livro 3-Y do Cartório de Registro de Imóveis em que figura como
transmitente doador JOSÉ PAULINO NOGUEIRA, então qualificado como desquitado
e como donatária a Municipalidade de Campinas.
Deixando para trás o “Núcleo Residencial Guaraçaí”, instalado à
margem direita do córrego de dimensões não muito expressivas que neste trecho já é
chamado de Anhumas, embora não constitua ainda o Ribeirão das Anhumas (que só
se forma mesmo como “Ribeirão” posteriormente ao recebimento das águas do
Córrego Mato Dentro e do córrego que provém da Lagoa do Taquaral) e caminhando
direção jusante, formou-se por volta de 1969 o “Núcleo Residencial Vila Nogueira” à
margem do curso d´água que, neste trecho sim, já se trata do “Ribeirão das
Anhumas”.
Este núcleo teve início com a ocupação de uma família provinda do
Estado de Pernambuco, do nordeste brasileiro. O alto desemprego em sua região de
origem impulsionou a família para cidades em desenvolvimento do sul do país, como a
região de Campinas, buscando emprego e melhor qualidade de vida.25
O incremento populacional se deu ao longo década de 1970 por
famílias de diversas regiões do Brasil: Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Bahia,
Espírito Santo e Interior de São Paulo contribuíram para o aumento dessa população
ocupante do que hoje é este núcleo residencial.
A organização dos moradores ocorreu no ano de 1973 com a formação
da Associação de Moradores, denominada “Associação de Moradores das Favelas
Vila Nogueira e Parque São Quirino”, aspecto importante que confirma que até mesmo os moradores dessas áreas tratavam suas situações como uma só.
Neste mesmo ano, os moradores se organizaram e realizaram um mutirão para a
drenagem das minas d´água existentes na Praça 5 do mesmo loteamento, que
posteriormente será ocupada.
Em 1975 os moradores passaram a reivindicar junto às autoridades
municipais melhoria da infra-estrutura local, obtendo junto à CPFL a regularização da
iluminação pública e, em apenas parte do núcleo, a energia elétrica individualizada
nas casas. Foi possível também organizar um mutirão e construir a sede social do
“Núcleo Residencial Vila Nogueira”, conhecida como “barracão”.
Em 1977 chega o transporte. Os moradores conseguem fazer com que
25 Este histórico foi elaborado a partir de pesquisa do histórico que consta do processo de regularização fundiária dessa área junto à Cohab-cp-Companhia de Habitação Popular de Campinas, que tem o número 5-B
135
algumas linhas de ônibus passem a atender a demanda local, o que decorreu de
reivindicação específica junto à Secretaria Municipal dos Transportes.
Em 1978 novamente organizados em mutirão, os moradores abriram
ruas na praça 5 e vielas na Rua Dona Luíza de Gusmão.
Novo mutirão, agora com o apoio da Administração Municipal (Regional
03) em 1979, e se aterrou uma grande erosão que existia na antiga praça 5 do Vila
Nogueira.
Em 1980 a Associação de Moradores participou ativamente do
movimento social denominado “Assembléia do Povo” que reivindicava melhorias
físicas nas favelas e a posse definitiva da terra urbanizada. Essa assembléia é um
movimento de esquerda, aparentemente inspirado no movimento APU – Assembléia
do Povo Unido que segue o modelo clássico dos movimentos de libertação nacional
do Terceiro Mundo.
A associação e os moradores realizam, em 1982, mutirões de limpeza
da margem do córrego Ribeirão das Anhumas, sempre aos sábados. Nesse mesmo
ano, os moradores também se organizaram em mutirão para reconstruir as moradias
danificadas pelas fortes chuvas.
Percebendo que cada segmento de núcleo habitacional que pudesse ter
suas características individualizadas precisaria de um tratamento separado e
específico junto às instituições públicas e privadas, a Associação se desmembra em 1985 e após eleição da nova diretoria, registrou-se em cartório de registro de pessoas
jurídicas com uma nova denominação a “Associação de Moradores do Parque Social
Isa”.
Neste mesmo ano, as famílias moradoras da Rua Dona Luiza de
Gusmão, área considerada de risco, ocuparam a Praça 5 do Vila Nogueira, que
passou a ser denominada Núcleo Residencial Parque Social Isa.
Em 1986 a Associação passou a receber doações de material de
construção feitas pela instituição filantrópica da Alemanha "Pão para o Mundo" e
realizaram um mutirão para a construção da sede social em alvenaria.
Decreto Municipal nº 9.664 de 19/10/88 “declara de utilização de
interesse social e permite o uso pelos moradores da favela da Vila Nogueira e pela
respectiva Associação de Moradores da área de 37.775,00 m2”. O mesmo decreto
afirma no art. 2o. que “será destinado a cada morador um lote de terreno representado
por parte ideal da área descrita no art. 1o., a ser utilizado apenas para fim residencial
136
(...)”. Não consta que qualquer morador tenha recebido qualquer documento de
permissão. Em 1989 a Lei Municipal 6126 de 04 de dezembro desincorpora da
classe de “bens públicos de uso comum do povo” o transfere para a de “bens
patrimoniais” a área de 37.775,00 m2 da Praça 2, Vila Nogueira para viabilizar
juridicamente a concessão de direito real de uso “aos seus atuais ocupantes, com a
finalidade de promover a urbanização de favelas.” Ao que consta nenhuma concessão
foi realmente feita na prática e não consta, igualmente, que tal lei tenha sido revogada.
Logo após, no entanto, em janeiro de 1990, grande inundação atinge
muito especialmente esta área e grande parte dos moradores é transferida
provisoriamente para a sede social do núcleo e para escolas da região, permanecendo
nesses locais por aproximadamente 20 dias. A administração municipal da época
efetivou a remoção de todas as famílias desabrigadas para o “Núcleo Residencial
Floresta I’’ que havia sido projetado e executado pela COHAB - CP.
Estes fatos permitem confirmar a idéia de que não se deve realizar
regularização fundiária com mantença de moradores em área em que o risco não
possa ser eliminado. Manter os moradores nesses locais é literalmente desperdiçar
recursos públicos e continuar a expor os moradores a perigos desnecessários. Área
de risco irremovível (inundações, deslizamentos, explosões, contaminação, etc) não
combina com regularização fundiária. Esta precisa acontecer somente após
solucionada a situação de risco.
Ao longo de 1991 as famílias gradativamente retornaram para a Rua
Luiza de Gusmão, devido à precariedade da infra-estrutura e equipamentos sociais
existentes na área do “Núcleo Residencial Floresta I’’.
Com o rompimento da tubulação da SANASA (chamado “Tubão”), em
1994, desabrigando cerca de 60 famílias, foram elas reassentadas no N.R. Lafayette
Álvaro.
Na seqüência várias enchentes atingiram o local obrigando a Secretaria
Municipal de Habitação, juntamente com a COHAB-CP, a reassentar as famílias
desabrigadas em vários núcleos residenciais do Município.
Em fevereiro de 2003 outra grande inundação atingiu novamente o
local, desabrigando várias famílias e danificando inúmeras moradias obrigando as
autoridades a novas intervenções.
O processo administrativo instaurado pela SEHAB para regularização fundiária da área da Vila Nogueira se inicia em dezembro de 2004. A Diretoria
137
Técnica (DT) da COHAB solicita à Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária
análise prévia de “Projeto de arruamento e loteamento para a favela do Núcleo
Residencial da Vila Nogueira”, juntando documentos.
Em vistoria prévia para estudos de viabilidade da regularização se
constatou uma série enorme de problemas desta ocupação:
• Existência de construções de madeira ou material misto • Ausência de ordenação mínima entre edificações (implantação adensada e
desordenada). • Inexistência de definição de quadras e caminhos. • Vias internas (vielas e passagens) irregulares com larguras variáveis entre 1 e
5 metros. • Vielas com circulação precária com grande quantidade de entulho obstruindo e
lixo doméstico lançado diretamente à via ou ao córrego • Ausência de pavimentação. • Impossibilidade de circulação de veículos. • Drenagem pluvial por superfície com destino ao ribeirão agravada por erosão
provocada pela retirada de vegetação para construção das moradias • Ausência de vegetação à margem do ribeirão em grandes extensões, bem
como grande quantidade de terra sem compactação da margem é carregada para o leito do ribeirão, aumentando assoreamento do leito, criação de bossorocas e incrementando situações de enchentes.
• Região de baixada com risco iminente para moradores • Freqüente reorganização espacial das moradias dentro da ocupação, como
resultado das constantes enchentes. • Áreas de desmoronamento já ocorrido • Grande quantidade de entulho em saída de galeria pluvial • Moradias em situação de risco de deslizamento, por ocuparem barrancos
desvegetados (encostas) • Barrancos implantados em cota intermediária entre a via pública e o leito do
ribeirão • Lançamento de esgoto a céu aberto, com abertura de valetas pelos moradores
para escoamento de águas e esgoto, causando alta insalubridade por perigo de refluxo
• Entulho acumulado em diversos pontos do núcleo, servindo de abrigo e criadouro de animais peçonhentos
• Degradação das margens do ribeirão • Áreas brejosas com densa vegetação bem próximas das habitações • Ligações de água e energia clandestinas
Diante de estudos hidrológicos feitos pela Fundação Centro Tecnológico
de Hidráulica (FCTH-USP) que constatou uma faixa de 60 metros como sendo a
mancha de inundação de 100 anos, bem como à vista da periodicidade e multi-
reincidência de eventos naturais desastrosos, evidenciada assim a
insustentabilidade da situação, a administração municipal não teve outra alternativa
senão encontrar uma solução definitiva para o problema. Por consulta à comunidade
local, se concluiu que aquele local não poderia ser mantido ocupado. Decisão de
2003.
138
Aquela alternativa definitiva alvitrada por tantas administrações vinha
sendo efetivada pela Cohab-CP/Sehab em parceria com a Autoridade Federal e Caixa,
pelo Programa de Subsídio Habitacional (PSH), prevendo a construção de um novo
conjunto habitacional na região Norte denominado Residencial Olímpia, que atenderia
as famílias em situação de “risco iminente” das Ruas Luiza de Gusmão e Moscou e
demais áreas de risco das regiões leste e norte da cidade.
Além disto, diante da iminência da remoção das moradias, se procedeu
à planificação ambiental da futura área que seria por inteiro desocupada, prevendo-se:
• Faixa de 60 metros de distância em relação ao ribeirão, obedecendo-se a mancha centenária de inundação.
• Limpeza da calha do córrego
• Recomposição da mata ciliar
• Ações educativas junto à comunidade do entorno
• Controle e fiscalização das ocupações na bacia toda para garantir permeabilidade
• Remoção dos moradores (exigência da municipalidade), em 3 etapas (exigência dos moradores).
• A remoção abrangeria a integralidade não apenas a o núcleo da Vila Nogueira como também o núcleo São Quirino (6B1 e não o 6B). Seriam, portanto, 132 unidades (504 pessoas) naquele e 317 unidades (1.268 pessoas) neste.
Em abril de 2005 (fls. 69 do processo de regularização) há nova
indicação de 100% de remoção (“sobretudo pela presença de anfiteatros, encostas e
baixadas e também pela repetição de incidentes de alagamentos”) e a remoção se
inicia em seguida. O mesmo projeto que propõe remoção alerta para a necessidade de
urbanização desta Praça 2 assim que se der a desocupação, “para inibir novas
ocupações”. E ainda propunha a “recuperação (ambiental) de um espaço (que está)
bastante degradado...” com a “restituição da área à condição originária”.
Considerando que em ambos os núcleos a Associação e os moradores
concordavam com a remoção das famílias para a Vila Olímpia proposta pela
SEHAB/COHAB-CP, desde que essa nova área possua infra-estrutura e
equipamentos sociais para atender a demanda, a Coordenadoria Especial de
regularização fundiária encaminha pedido de remoção para o setor de assistência
social da SEHAB (maio de 2005, fls. 71 dos autos de regularização).
No Vila Nogueira, na primeira etapa seriam removidas 33 unidades da Vila Nogueira com base em compromisso firmado com Caixa Econômica Federal por
139
meio da “7a. Portaria PSH”. Na segunda etapa a remoção abrangeria 39 unidades
(“8a. Portaria PSH”). E finalmente na terceira etapa, 60 unidades (“9a. Portaria PSH”).
Remoções se iniciam em meados de 2005.
Houve plantio de árvores em todos os espaços dos quais foram
removidos moradores. Este é o motivo pelo qual se percebe, visitando o local, que a
área originalmente ocupada pelas moradias hoje está desocupada e plantada com
árvores de médio porte.
Em setembro de 2007, 270 (duzentas e setenta) famílias do Vila
Nogueira e do São Quirino somadas já tinham sido removidas mas remanesciam 179
moradias, com aproximadamente 716 pessoas.
Núcleo 1ª. Fase (unidades)
2ª. Fase (unidades)
3ª. Fase (unidades)
Total (unid.)
Resistentes em 01/08/07
V. Nogueira 33 39 60 132 23
São Quirino 33 87 207 317 156
Estavam decidindo a estratégia para remover para o Núcleo Vila
Olímpia essas 179 famílias do Vila Nogueira e do São Quirino, quando houve
significativa mudança de planos entre novembro e dezembro de 2007.
Com a aprovação do PAC – Plano de Aceleração do Crescimento para
criar-se o Parque Linear Anhumas as remoções foram paralisadas.
Os moradores da Vila Nogueira serão acomodados na vila que tem sido
chamada de “Vila 1” e que está prevista para 80 unidades (protocolo de aprovação no
DUOS, municipal, 07/11/9880). Também o GRAPROHAB já se manifestou
(protocolados 824/07 e 825/07) e expediu Termos de Dispensa de Análise das
aludidas vilas. O DPRN, órgão estadual, igualmente foi consultado a respeito da
recuperação da APP e a autorizou (protocolo 63.956/07). Ou seja: os caminhos para a
construção do Parque e das Vilas já está desobstruído.
Seja para reassentar os moradores na nova Vila prevista para ser
construída no Parque Linear, seja para reassentá-los na Vila Olímpia, ou ainda para
outra solução qualquer, fato é que a praça 2 será desocupada e a regularização
fundiária no próprio local está, por todos os motivos já elencados, inteiramente
inviabilizada.
Assim como já alertou o departamento jurídico da SEHAB em parecer
no processo administrativo deste núcleo, se aplicará à área da praça 2 o art. 7o. da Lei
Municipal 11.834 de 19/12/03 (Lei de regularização fundiária de Campinas):
140
Art. 7º - Verificada a impossibilidade de regularização do parcelamento, por ausência das condições técnicas, por acarretar risco à vida ou à saúde pública ou ainda, pelo não atendimento ao artigo 6º desta lei, a área deverá ser revertida à condição de gleba, devendo o loteador ou o responsável executar as obras e serviços necessários para sanar eventuais danos ambientais causados pela implantação do parcelamento, bem como suportar os demais ônus pelas lesões e prejuízos provocados aos terceiros e à Administração Pública.
E considerando que a área é pública, as despesas deverão correr a cargo do orçamento municipal conforme consta do primeiro parágrafo deste mesmo artigo:
§ 1º - Na impossibilidade de regularização das ocupações espontâneas em áreas públicas, as obras necessárias para restituição da área a sua condição originária, serão de responsabilidade do Poder Público.
Restará, contudo, uma questão jurídica após a remoção de todos os
moradores do núcleo da Vila Nogueira: a área da praça 2 foi desafetada para poder ter
seu uso concedido aos ocupantes. Com a remoção, a praça precisará voltar à sua
condição original de “área afetada para o uso comum do povo”. Conviria ser revogada
a lei de desafetação de 1989.
SERVIÇOS Durante todo o tempo em que os ocupantes ali permaneceram e em
que não tinham ocorrido ainda as remoções, essa comunidade pôde contar (assim
como contam ainda os que por lá permanecem) com diversos serviços públicos e
privados.
Um dos mais antigos é o Núcleo Comunitário Pq. Social Isa26 (não
confundir com o “Núcleo Residencial Parque Social Isa”), instalado na própria Vila
Nogueira. É exatamente este Núcleo comunitário que marca a divisa entre o núcleo
residencial da Vila Nogueira e o do Parque São Quirino. Trata-se de órgão público
subordinado à Secretaria Municipal da Promoção Social que atende crianças e jovens
de 6 a 14 anos com atividades como reforço escolar, oficinas de artesanato e pintura,
esporte, lazer e cultura, projeto em parceria com a Faculdade de Pedagogia da
Unicamp. Atende no horário complementar da escola. Se a criança ou jovem freqüenta
escola regular pela manhã, pode ir ao Núcleo à tarde e vice-versa.
Já a Fundação Espírita Bezerra de Menezes (particular), situada na Vila
Nogueira desenvolve trabalhos sócio-educativos e de ação social com cursos
profissionalizantes, palestras educativas e orientação psico-social.
26 ver fotos do núcleo comunitário no anexo
141
A Seta - Sociedade Educativa de Trabalho e Assistência, do Jardim
Santana (bairro contíguo) realiza trabalhos sócio-educativos e de reforço escolar, bem
como oficinas de dança e artesanato, para crianças e jovens de 07 a 12 anos. A
mesma entidade, em sua filial da própria Vila Nogueira ministra cursos de informática,
datilografia e teatro mas apenas para jovens de 12 a 17 anos.
A Igreja Católica São André de ação assistencial dos Vicentinos atua
junto às famílias carentes da região com cestas básicas, e em parceria com a pastoral
da criança concretiza o projeto de nutrição e pesagem de crianças.
No atendimento a toda a comunidade, com realização de bingos, festas
e reuniões comunitárias, atua a “Associação dos Moradores” que, atualmente (2008)
está articulada e integrada com as demais Associações de seu entorno. A liderança
atual (Dona Ginalva) também faz parte do Conselho Consultivo do Fundap (Fundo de
Apoio à Sub-Habitação Urbana) e do COP (Conselho Municipal do Orçamento
Participativo).
142
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
143
5.5.3 – “NUCLEO RESIDENCIAL DO PARQUE SÃO QUIRINO” (abrangendo duas áreas distintas)
O Núcleo Residencial do Parque São Quirino se localiza pouco adiante
do Núcleo Residencial Vila Nogueira na direção jusante do ribeirão.
Está instalado onde deveriam ter sido as praças públicas de números 10 e 06 que passaram a existir como resultado da aprovação do loteamento do Parque
São Quirino. Primeiramente foi invadida a praça 06 e uma década depois a praça 10.
Ao analisar o Vila Nogueira se viu que José Paulino Nogueira era
proprietário da área que se transformou no Loteamento Vila Nogueira e que seu genro
Paulo de Almeida Nogueira era proprietário das terras vizinhas e que é nessas terras
que seus herdeiros José Bonifácio Coutinho Nogueira Paulo Nogueira Filho vão fazer
surgir o Loteamento São Quirino.
A origem do nome “São Quirino” deve-se ao fato de que toda aquela
região constituía a Fazenda São Quirino, que ainda existe mas com área bastante
diminuta e que se situa nas proximidades do Shopping Galleria. A fazenda abrangia as
duas margens do Ribeirão das Anhumas e os dois lados da atual Rodovia Dom Pedro,
o que nos dá idéia de sua magnitude. Aliás, “Quirino” é um nome bastante ligado a
Campinas, a julgar pelas ruas centrais “Dr.Quirino” e “Cel. Quirino”.
A propriedade das terras em que foi erigido o Loteamento do Parque
São Quirino está registrada (antigamente o nome era “transcrição”) sob nº 49770 no
livro 3AU, fls 156 do 1o. Cartório de Registro de Imóveis de Campinas.
O histórico do “Núcleo Residencial Parque São Quirino” (não da
Fazenda) é comum ao da Vila Nogueira. Iniciou-se por volta de 1972 (pouco depois do
núcleo da Vila Nogueira e quase contemporaneamente com o Núcleo Gênesis) com a
ocupação de uma família oriunda da cidade de São Paulo que evidentemente buscava
melhorar a qualidade de vida que experimentava na megalópole em que vivia.27
Durante toda a década de 1970 outras famílias provindas de diversas
regiões do Brasil, foram gradativamente ocupando a área, passando o local a ser
caracterizado como favela dada à sua precariedade habitacional.
A organização inicial dos moradores se deu em 1973 com a formação
da primeira Associação de Moradores, denominada “Associação de Moradores das
Favelas Vila Nogueira e Parque São Quirino” (vide histórico do Núcleo da Vila
Nogueira).
27 Este historico foi elaborado a partir daquele que se encontra nos autos do processo de regularizeção fundiária existente na COHAB-CP.
144
O local passou a ser conhecido como "pichão" em razão da existência
de um despejo de resíduos negros da produção de açúcar, semelhantes a piche, na
área da Rua Moscou, proveniente da empresa Açúcar Pérola (Companhia de Usinas
de Açúcar Nacionais) que se situava ao lado de onde hoje está erigido o conjunto
residencial Cidades do México, no Bairro Guanabara (a aproximadamente 5 km,
portanto, do local em que esta indústria despejava seus resíduos).
Até 1985, quando a associação se divide em duas (uma para cuidar da
Vila Nogueira e outra para o São Quirino) a história dos dois núcleos é idêntica.
Após eleição da nova diretoria, registrou-se em cartório de registro de
pessoas jurídicas a “Associação de Moradores da Favela Parque São Quirino”. No
mesmo ano parte das famílias moradoras da Rua Moscou (praça 06) ocupou a praça
10. Neste ano ainda, mediante apoio técnico da Regional 03, os moradores
realizaram um mutirão para terraplanar da área do “pichão”.
Importante inovação acontece em 1988 quando parte destacada do Parque São Quirino foi urbanizada, passando a ser denominada como "Núcleo Residencial Dom Bosco". Feita a remoção das áreas de risco, as famílias que
residiam neste local receberam o “Titulo de Concessão de Direito Real de Uso” (ver
histórico próprio do Dom Bosco).
Em razão de grande inundação em 1990, que causou muitos danos à
cidade de Campinas e em especial na área aqui estudada, boa parte dos moradores
perdeu suas moradias e foi abrigada no Ginásio do Taquaral e em escolas da região,
permanecendo nestes locais por aproximadamente um mês.
A administração municipal da época pela Cohab-CP e DUF
(Departamento de Urbanização de Favelas, atual Coordenadoria Especial de
regularização fundiária da Sehab - Secretaria Municipal de Habitação) providenciou a
remoção das famílias desabrigadas, para outra região da cidade, reassentando-as no
Núcleo Residencial Parque Floresta I. Mas a precariedade da infra-estrutura ali
instalada; a falta de equipamentos sociais importantes, a não-adaptação dos
moradores à região noroeste da cidade (muito diferente da região leste onde antes se
encontravam instalados) e a significativa distância do novo local de moradia em
relação ao centro da cidade (20 km) fez com que gradativamente as famílias
voltassem para o São Quirino.
Ainda neste ano de 1991 em uma parte específica da Rua Moscou
houve um surto de escorpiões e a partir daí, o local passa a ser conhecido como "área do escorpião".
145
A partir de 1992 a limpeza da margem esquerda do Ribeirão das
Anhumas, na qual se encontra este núcleo, passou a ser realizada pela Prefeitura, por
meio da Administração Regional 03.
Foram feitas algumas tentativas de regularização conjunta das duas
áreas invadidas. Mas com este núcleo aconteceu algo muito curioso que vale a pena
ser relatado para que se possam aquilatar as dificuldades que os profissionais
envolvidos com a regularização fundiária precisam enfrentar e a criatividade que
precisam utilizar para solução dos problemas.
Como se sabe, foram ocupadas duas praças: uma mais distante da
área de APP e a outra com boa parte dentro da área de APP. Embora a comunidade
seja a mesma abrangendo as duas praças, optou-se por separá-las para que uma
delas pudesse ser regularizada mais rapidamente (aquela que não enfrenta as
dificuldades provenientes da área de APP) e a outra fosse regularizada
posteriormente, com calma e maiores cuidados decorrentes das implicações
ambientais.
Assim resolvida pela separação das áreas, a municipalidade de Campinas abriu dois processos administrativos na área de regularização fundiária:
• Em 1996, o proc. 24.185/96 (6-B) para regularizar o assentamento da praça 10
(distante da APP) e
• Em 2004, o proc. 73.132/04 (6-B1) para regularizar o assentamento da praça
06 (com partes dentro da APP).
Já pelo ano de abertura de cada um desses processos (1996 e 2004) se
percebe a distância em tempo entre a regularização daquele em que não aparecia a
discussão ambiental para aquele em que essa discussão era necessária.
As diferenças não param aí. O processo mais antigo já resultou na
expedição de praticamente todos os termos de concessão de direito de uso para fins
de moradia e já contemplou praticamente todos os moradores. Somente não foram
ainda beneficiados aqueles que não se interessaram em buscar na prefeitura o
documento que já está pronto há tempos.
Já o outro processo, que tomou o número 6-B1 ainda não foi
regularizado, mas a pesquisa demonstrou que a população que ali permaneceu sem
regularização terminou sendo particularmente favorecida por esta demora, conforme
se verá.
146
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 6)
foto aérea
147
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 6)
planta proposta de remoção de
moradias 1ª e 2ª fases
148
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 6)
planta de pós remoção
149
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 6)
150
Imagem 26 – Núcleo São Quirino (6-B1) - início da praça 6 em ponto próximo ao Núcleo da Vila Nogueira e da Praça 10 do São Quirino. À direita uma área vazia de onde houve remoção de moradores que foram realojados na Vila Olímpia conforme o plano original de regularização fundiária deste núcleo. As moradias são remanescentes dessa desocupação. Moradores que resistiram à desocupação e que agora serão instalados nos conjuntos habitacionais que serão erigidos nesta área.
Imagem 27 – moradias situadas na parte central do núcleo são Quirino, entre o Núcleo Vila Nogueira (às costas do observador) e o Núcleo Dom Bosco (ao fundo, ao final da curva)
Imagem 28 – área do São Quirino de onde ocorreu extensa remoção de moradores com reassentamento no Vila Olímpia. Ao final dessa curva se inicia o Núcleo Dom Bosco.
151
Imagem 29 - O mesmo condomínio, visto pelos fundos (a partir da margem oposta do ribeirão). Do local em que se postou o autor da imagem, já foram retirados ocupantes para serem realocados em unidades habitacionais edificadas pela COHAB-CP. No local onde havia famílias, hoje há árvores plantadas que formarão o futuro “Parque Linear das Anhumas”. Esta imagem e a seguinte foram tomadas a partir do mesmo ponto da margem esquerda do Anhumas. Esta, feita em direção montante. A seguinte, direção jusante
.
Imagem 30 - O Ribeirão das Anhumas, visto de sua margem esquerda e em direção jusante. As construções vistas nesta margem, mais adiante, são parte do “Núcleo Residencial São Quirino”. Exatamente no ponto em que se postou o autor da imagem havia inúmeros barracos que foram retirados por configurar, este trecho, como de elevado risco de inundações.
Imagem 31 – ao final da área da qual houve remoção, já bem próximo do Dom Bosco, a imagem apresenta: 1.- Primeiro plano – à direita, barraco de um dos muitos moradores que resistiram à remoção para o Vila Olímpia. 2.- Plano intermediário – pouco abaixo da construção, passa o ribeirão 3.- Terceiro plano – a fumaça está sendo expelida pela “Maria Fumaça” que está próxima da estação Anhumas, já na margem direita do ribeirão
152
NÚCLEO RESIDENCIAL DO PARQUE SÃO QUIRINO – PRAÇA 06 Processo de Regularização na SEHAB 73.132/04 (6-B1)
Moradias: 317
Moradores: 1268
Domínio da área: pública
Este núcleo está assentado em parte da área que deveria ter-se
transformado na PRAÇA 06 do Loteamento Parque São Quirino.
A praça está no quarteirão 8379, macrozona 4, área de planejamento
17, Administração Regional 3, Zona Leste de Campinas e possui área de 91.400 m2 (em outros documentos, 60.955,96 m2). Trata-se, portanto, de área de grandes
dimensões, estreita e longa, que acompanha o traçado do Ribeirão das Anhumas,
ocupando toda sua margem esquerda neste trecho. Essa praça se inicia na divisa do
Loteamento Vila Nogueira com o Loteamento São Quirino e se estende por um milhar
mais centenas de metros até a Rodovia Dom Pedro. É tão grande que ali couberam os
núcleos São Quirino, Dom Bosco e Gênesis (parte deste).
Essa área foi repartida em diversas áreas menores e todas elas foram,
com o tempo, desafetadas para fins de regularização fundiária.
• Desafetação pela lei 5.704/86, da área de 31.420 m2 para formar o Dom Bosco
• Declaração de interesse social da área de 59.980 m2 pelo Decreto 9673 de
25/10/88.
• Desafetação final pela lei municipal 13.242/08 para viabilizar o Parque Linear
do Anhumas e a construção das Vilas I e II para realocação dos moradores da
Vila Nogueira, São Quirino e Guaraçaí (parte).
A doação desta área enorme para a prefeitura se deu a partir da
aprovação do loteamento do Parque São Quirino, de área pertencente a José
Bonifácio Coutinho Nogueira, sua mulher Maria Thereza Coutinho Nogueira e Paulo
Nogueira Neto e sua mulher Lúcia Ribeiro do Valle Nogueira. A doação foi feita por
escritura de 09/05/68 das notas do 5o. tabelionato de Campinas, livro 217, fls, 8v.,
posteriormente registrada no 1o. cartório de registro de imóveis em 24/05/68 sob o
número de transcrição 53.354 no livro 3AX, fls. 112.
Houve em 1988 tentativa de regularização por meio de permissão de uso (não é concessão), pelo Decreto Municipal 9673 de 25/10/88 da área de 59.980
m2, desta Praça 06 aos moradores do São Quirino. Nos anos seguintes, se comprovou que esta decisão da municipalidade,
exatamente por desconsiderar a situação de risco, era equivocada. Como várias
153
enchentes atingissem o local, a municipalidade, pela Sehab, juntamente com a
COHAB-CP, se viram na contingência de remanejar famílias em vários bairros da
cidade de Campinas. Núcleos Gênesis, Lafayette Álvaro, São Luis, Vida Nova e
Jardim Telesp foram alguns dos recipiendários dos moradores remanejados.
Nova grande enchente atingiu o local em 2003 produzindo novamente
expressiva quantidade de famílias desabrigadas e danificando as moradias, a
administração local, ante tão constantes enchentes, buscou uma alternativa mais
definitiva que contemplasse a participação das famílias em situação de risco iminente
em um projeto de moradia com vistas à remoção e reassentamento.
O procedimento administrativo aberto na CERF/SEHAB para
regularização desta ocupação se inicia em 2004 quando a COHAB/Campinas elabora
um projeto urbanístico que, conforme ele mesmo se define, “prevê a remoção total
das moradias em três etapas distintas, com a transferência das famílias para outras
áreas, pela ação conjunta entre os departamentos de assistência social e técnico da
COHAB e Prefeitura Municipal de Campinas.” (fls. 16 dos autos).
O projeto foi precedido de estudo hidrológico “contratado pela COHAB à
Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica que indica a área atingida pela mancha de
inundação num período de até 100 anos.”
O estudo que culmina com a proposta de remoção constatou:
• Topografia de baixada, com presença de encostas
• Ocupação adensada e desordenada
• Construções de madeira ou mistas
• Vias internas irregulares com larguras entre um e cinco metros
• Pavimentação ausente
• Inviabilidade de tráfego de veículos
• Drenagem de águas pluviais por superfície com destino ao ribeirão
• iluminação pública existente
• eletrificação domiciliar e abastecimento de água (medidores coletivos) apenas nas moradias voltadas para a rua principal
• esgoto apenas em algumas dessas moradias voltadas para a rua principal
• coleta de lixo regular
• existência de local apto à instalação de sistema de lazer e de área verde
• extensa área de risco iminente (risco 1) abrangendo a maior parte das moradias
• reorganização freqüente dos moradores dentro da área ocupada, não permitindo uma ordenação mínima entre as edificações
154
• para qualquer projeto seria necessário observar a faixa de APP de 15 metros, mas “em alguns trechos do ribeirão essa faixa foi ampliada para até 65 metros em virtude do resultado do estudo hidrológico”.
• Necessidade de melhoria das condições ambientais, com: 1- limpeza da calha; 2- recomposição da mata ciliar nos limites do núcleo; 3- ações educativas junto à comunidade local; 4- maior controle e fiscalização em relação às ocupações urbanas na bacia de contribuição do córrego, objetivando garantir taxas adequadas de permeabilidade”.
A remoção foi então proposta porque um projeto que
contemporaneamente contemplasse todas essas necessidades era na época
economicamente inviável.
Esse projeto foi gestado em diversas reuniões preparatórias entre
moradores e Poder Público, visando atendimento integral.
Contemporaneamente se elabora então o projeto de loteamento
denominado Núcleo Residencial Vila Olímpia, a instalar-se na zona norte da cidade,
fruto de parceria entre a Prefeitura, a Cohab-CP, o Ministério das Cidades (pelo
Programa de Subsídio Habitacional – PSH) e a Caixa Econômica Federal. O objetivo
é, evidentemente, atender com moradia digna as 323 famílias moradoras das Ruas
Moscou (São Quirino) e Dona Luiza de Gusmão (Vila Nogueira), priorizadas como
“risco iminente”.
A Associação de Moradores participou das principais ações junto aos
moradores, e havia, tal como aconteceu com o Núcleo da Vila Nogueira, concordância
na remoção das famílias para o Residencial Olímpia, proposta pela SEHAB/COHAB-
CP, desde que a citada área possua infra-estrutura básica e equipamentos sociais
para atender a demanda.
Realiza-se em 2005 novo estudo, agora pela área técnica da CERF
(Eng. Ralpho B. Gobbo) confirmando a necessidade de remoção e se inicia então o
remanejamento das famílias.
Em 04 de maio de 2005 a Sra. Coordenadora da área de regularização
fundiária, após diversas considerações (fls. 74) conclui ser: “inconveniente o
reconhecimento pelo poder público do direito à moradia naquele local”. Mas não
propõe a remoção pura e simples. Propõe o reassentamento das famílias no Vila
Olímpia.
Entre 2006 e 2007, 209 famílias foram removidas deste núcleo para o
Vila Olímpia. Os que resistiram, serão beneficiados conforme já se afirmou nos
155
resultados da pesquisa da Vila Nogueira. Este último estudo alertava para a
necessidade de, em “paralelo às remoções seja desenvolvida a urbanização da Praça
06 para inibir novas ocupações”.
Deu-se, no entanto, entre novembro de dezembro de 2007 uma
mudança de planos em relação às remoções do Núcleo Vila Nogueira e deste Núcleo
São Quirino, já abordada na descrição da regularização do Núcleo Vila Nogueira que
se deixa de descrever aqui, por desnecessário.
Os moradores do São Quirino (Praça 06) serão acomodados na vila que
tem sido chamada de “Vila 2” e que está prevista para 100 unidades (protocolo de
aprovação no DUOS, municipal, 07/11/9880). Também o GRAPROHAB já se
manifestou (protocolados 824/07 e 825/07) e expediu Termos de Dispensa de Análise
das aludidas vilas. O DPRN, órgão estadual, igualmente foi consultado a respeito da
recuperação da APP e a autorizou (protocolo 63.956/07). Ou seja: os caminhos
jurídico-legais para a construção do Parque e das Vilas já estão desobstruídos.
A mudança de planos (realocação na Vila Olímpia / realocação na
Praça 06 do São Quirino) criou uma situação jurídica no mínimo curiosa. Locais da
Praça 06 que já estavam desafetados para fins de concessão serão agora utilizados
para área verde do Parque Linear; e espaços dessa mesma Praça em que o risco foi
removido e que não estavam desafetados porque iria acontecer a remoção, agora
precisam ser desafetados porque neles se prevê a construção de uma vila que
posteriormente precisará ser parcelada para fins de concessão de direito real de uso
aos futuros moradores dessa vila.
E como a realocação dos atuais ocupantes da Praça 02 da Vila
Nogueira será (se os planos atuais vingarem) feita na Praça 06 do Parque São
Quirino, que é uma área enorme; como diversos trechos desta Praça já foram
desafetados (para o Dom Bosco, por exemplo e para a concessão de direito real de
uso para os ocupantes da área conforme Lei 5704/86); como o projeto do Parque
Linear Anhumas ocupa toda a praça 06 sendo uma parte área verde e outra parte
construção da vila residencial; e como a construção da Vila dentro do Parque Linear
Anhumas precisa acontecer com a praça toda já desafetada (para permitir o posterior
registro do parcelamento do solo da futura vila); era necessário desafetar toda a área
remanescente da praça 06 que ainda não havia sido desafetada.
E isto se fez por meio de um procedimento administrativo nº
10/61567/2004 que resultou na Lei Municipal 13.242 de 07 de janeiro de 2008 que desafeta a área de 60.955.96 m2 da Praça 06. Assim, toda a área já está desafetada
156
e isto evitará discussão jurídica sobre estar ou não desafetada a área em que será
construída a Vila Residencial. Esta mesma Lei já determina que ali se implantará o
Parque Linear e unidades habitacionais serão erigidas para acomodar os moradores
das áreas de risco do Vila Nogueira e do São Quirino.
SERVIÇOS
As entidades assistenciais públicas e privadas que atendem as mais
diversas demandas deste núcleo são basicamente as mesmas já mencionadas em
relação ao Núcleo da Vila Nogueira, dada à proximidade das áreas.
A Associação de Moradores está integrada com as demais Associações
de moradores de seu entorno. Além da diretoria da Associação, existe ainda a
colaboração de uma antiga liderança da área (Sr. Sebastião) que faz parte do
Conselho Consultivo do Fundap (Fundo de Apoio à Sub-Habitação Urbana), do
Conselho Municipal do Orçamento Participativo - COP, do Conselho Gestor e do
Conselho Municipal da Saúde.
157
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 10)
158
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 10)
foto aérea
159
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 10)
planta proposta de remoção moradias
160
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 10)
documento regularização feito pela prefeitura
161
“NÚCLEO RESIDENCIAL SÃO QUIRINO”
(Praça 10)
documento concessão direito real uso
162
Imagem 32 - São Quirino – Praça 10 - À esquerda, as casas que compõem o núcleo São Quirino (6-B). O Ribeirão está a aproximadamente 50 metros à direita desta imagem. Este é o encontro da Rua Dona Luiza de Gusmão com (ao fundo, seguindo a mesma linha em continuação) a Rua Moscou. Divisa entre os bairros (e os núcleos) Vila Nogueira e São Quirino. Imagem tomada na direção norte/nordeste.
Imagem 33 - O mesmo núcleo (praça 10) visto a partir do outro lado
(imagem tomada na direção sul/sudoeste)
Imagem 34 - Viela de passagem do Núcleo São Quirino – Praça 10 – As casas de ambos os lados desta viela compõem o núcleo. Ao fundo, prédio de 4 andares em construção na área deste núcleo. Em terreno público portanto (o concessionário da área a vendeu para a pessoa que está construindo o prédio). O córrego está a aproximadamente 50 metros às costas do observador.
163
NÚCLEO RESIDENCIAL DO PARQUE SÃO QUIRINO – PRAÇA 10 Processo de Regularização na SEHAB 24.185/96 (6-B)
Moradias: 45
Moradores: 180
Domínio da área: pública
Essa área está situada na unidade Básica Territorial 26 – Zona Leste.
Trata-se de área pública praça esta com área de 6.226,16 m². Ocupa o quarteirão
municipal 2654 do cadastro municipal; certidão gráfica A3/350 e se situa entre a Rua
José R. Aboim Gomes, Rua 44, Rua Edgard Segaglio, Rua Jorge Curado e os limites
da Vila Nogueira.
Analisando-se o mapa original do loteamento se percebe que a Praça 10 não estava originalmente prevista. A área em que ela deveria ter sido criada
estava prevista, originalmente, para ser loteada, constituindo a quadra 7. Era
formada pelas Ruas 44, prosseguindo pela 45 pouco depois da confluência das duas,
deflete à esquerda seguindo por aquilo que originalmente deveria ter sido a Rua 41
fazendo curva em “s” ao contrário, defletindo à esquerda pela rua 47 onde estava
previsto um “cul-de-sac” paralelo com a rua 44 onde a descrição começou.
A praça 10 passou a existir porque, ao que se nota da documentação,
foi necessária uma remodelação do loteamento por exigência do cartório porque para
atingir o percentual de áreas públicas que a lei exigia para aprovação do loteamento
faltavam áreas. Então, parte que deveria ter sido loteada se transformou em área
pública com o nome de Praça 10 quando a quadra 7 foi dividida em quatro partes:
7-A, 7-B e 7-C e praça. O núcleo central da quadra 7 recebeu o nome de Praça 10.
O espaço à direita da Praça 10 (de quem olha o mapa) se transformou em 7-C e foi
loteado; o espaço à esquerda do 7-C (cercando a praça) se transformou em 7-A e foi
também loteado e a área situada à esquerda da praça 10 se transformou em 7-B e foi
também loteado.
Ou seja: a Praça 10 ficou cercada ao norte pela quadra 7-A, a oeste
pela quadra 7-B, ao sul pela pela divisa com o loteamento Vila Nogueira r pela Rua 44
e a leste pela quadra 7-C. Requerimento de 08/08/78 acompanhado de memorial
descritivo e planta aprovada pelo Decreto Municipal 2496 foi acatado pelo Cartório de
Registro de Imóveis, resultando na averbação de 30/08/78 sendo então oficialmente
criada a Praça 10, que posteriormente viria a ser invadida tornando-se o Núcleo
Residencial do Parque São Quirino (6-B).
164
A praça 10 deveria ter tido, então, a seguinte conformação: iniciaria
divisa com o loteamento da Vila Nogueira, defletiria à esquerda prosseguindo pela Rua
44, prosseguindo até o ponto em que a Rua 44 encontra com a Rua 45. Defletiria
deste ponto para a esquerda, pela Rua 55 (divida da quadra 7-A com a 7-B) até atingir
a Rua 54 (divisa com a quadra 7-A), faria curva de quase 180 graus à esquerda
novamente pela Rua 47 (divida com a quadra 7-B), prosseguindo depois à direita
contornando a área da quadra 7-B, terminando na divisa com o loteamento da Vila
Nogueira, formando um perímetro que desenha uma espécie de bota.
Em 1978 os moradores se organizaram em mutirão e abriram ruas na
Praça 10 do Parque São Quirino e vielas na Rua Moscou.
Em 1996, já sedimentado o assentamento de moradia da Praça 10, a
SEHAB instaura internamente o processo 24.185 objetivando ali concentrar
informações a respeito da regularização do conjunto de moradias instaladas no que
deveria ter sido a Praça 10 e solicita à Secretaria de Obras e Urbanismo que por sua
Coordenadoria de Parcelamento de Solo expeça parecer técnico a respeito da
viabilidade da regularização desta área.
Secretaria elabora um “Plano de Urbanização Específica” para
“promover a melhoria das condições de habitabilidade dos moradores do local e a
regularização fundiária com base na Lei 5079 de 30/03/81”
Em 26 de agosto de 2003 o CSU/DUOS corrige o projeto inicial para
prever a distância da área de regularização em relação à APP, de 15 para 30 metros,
observando assim a regra do Código Florestal. Assim se fez porque a topografia do
local permite a observância dessa distância. Veja-se pelo mapa da área (anexo) que
em alguns trechos a distância entre a Rua Moscou e o leito do ribeirão é bem grande
em relação a outros trechos em que tal rua está mais próxima do leito. E como esta
parte do Núcleo Residencial tem uma rua (a Moscou) entre ele e o ribeirão, não foi
difícil fazer essa adaptação.
No projeto se observou, com relação ao meio ambiente, que “o núcleo
não causa interferências ambientais e não existem áreas de risco ambiental”(referindo-se obviamente à APP).
O mesmo projeto assim observou:
• 25% da área do núcleo estava sendo reservada, pelo projeto, para área útil • não são previstas áreas verdes ou de lazer; apenas as casas, os caminhos e
as vielas. • Há todavia duas outras áreas contíguas que têm sido utilizadas para lazer e
área verde e que suprem essa deficiência.
165
Para viabilizar a regularização fundiária plena era necessário desafetar
a área de 6.226,16m2 em que essas famílias estão assentadas. Isto se fez por meio
da Lei Municipal 12.616 de 04/09/06. Elabora-se então Memorial Descritivo completo
prevendo todas as 45 unidades habitacionais e respectivos lotes.
Expede-se o Auto de Regularização do “loteamento”; é o documento
final de regularização de todo o espaço e que, depois de publicado no Diário Oficial do
Município, é enviado a registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Uma vez expedido o Auto de Regularização, são expedidos os Termos
de Concessão de Direito Real de Uso (individualizados) que, devidamente
numerados, são igualmente enviados a registro para que cada morador de lote passe
a ser oficialmente cessionário desse espaço garantindo assim uma situação
semelhante à de proprietário.
RESULTADOS:
• Regularização Fundiária foi PLENA • Em setembro de 2006 foram entregues os termos de concessão de direito
real de uso. • Na regularização desta área não houve qualquer remoção. • Não foi possível, no entanto, registrar de imediato em cartório o parcelamento
do solo deste núcleo porque quando de sua aprovação havia regra na Constituição Estadual de São Paulo proibindo a alteração de destinação de áreas públicas institucionais nascidas de loteamentos (como é o caso desta área, que ocupa a Praça 10 do Loteamento São Quirino). Com a alteração do artigo que trata deste assunto, o registro se tornou possível e está sendo providenciado.
166
“NÚCLEO RESIDENCIAL DOM BOSCO”
167
“NÚCLEO RESIDENCIAL
DOM BOSCO”
planta
168
“NÚCLEO RESIDENCIAL DOM BOSCO”
DOCUMENTO ELABORADO PELA SUPERINTENDÊNCIA DE REGULARIZAÇÃO DE
FAVELAS DA PREFEITURA DE CAMPINAS
169
Imagem 35 - Para melhor localizar o Núcleo Dom Bosco. À direita desta imagem se encontra o Núcleo Gênesis. Ainda mais à direita, a Rodovia Dom Pedro I. No terço superior da foto, logo abaixo das casas que se situam no morro, estão as casas que formam o Dom Bosco e que se encontram à margem esquerda do Anhumas. À margem direita, a fábrica de sabão que aqui é vista no terço superior também, à esquerda. Em primeiro plano os trilhos do trem turístico (“Maria Fumaça”) cuja Estação Anhumas está pouco mais de 500 metros depois da fábrica.
Imagem 36 - Aproximação. Estas casas compõem o núcleo Dom Bosco, já regularizado antes mesmo da Lei de Regularização atual. As árvores do centro da imagem estão à margem do Ribeirão, o que dá bem a idéia da proximidade do Núcleo Dom Bosco em relação ao ribeirão. A imagem foi feita a partir da margem oposta do ribeirão. A mata situada acima do casario compõe o Bosque Chico Mendes, municipal, que integrará futuramente o conjunto de “eixos verdes” que configurará o “Parque Linear das Anhumas”.
imagem 37 - a mesma rua vista a partir da margem direita do anhumas ...
A mesma imagem da fot. acima, agora aproximada e vista sob 2 ângulos opostos. Percebe-se o traçado das ruas (em verdade vielas) que desembocam todas no ribeirão.
... e aqui vista a partir da margem oposta. O autor da imagem está agora de costas para a casa azul que é vista, na imagem da esquerda, ao final da rua. (imagem 38)
170
Imagem 39 - “Núcleo Residencial Dom Bosco” visto a partir da margem oposta do ribeirão, que se encontra, nesta imagem, logo abaixo das casas, paralelamente aos trilhos.
Percebem-se as ruas endireitadas, corrigidas em relação à sinuosidade do traçado original feito sem critério pelos invasores. Percebem-se lotes demarcados. Entre as casas e a mata que é vista acima delas (Bosque Municipal Chico Mendes) se encontra a Rua Moscou. O núcleo Gênesis está à direita mas não é visualizado. Os núcleos Guaraçaí, Vila Nogueira e São Quirino, também não visualizados, estão à esquerda.
Imagem 40 - CEMEI São João Batista - a partir daqui começa o Dom Bosco, que para fins administrativos e intervencionais foi desmembrado do São Quirino para ser mais rapidamente regularizado e que está situado à direita desta imagem, ao fundo
Imagem 41 - Proximidades do Dom Bosco. à esquerda o conjunto propriamente dito, composto de ruelas e casas. o ribeirão está, portanto, também à esquerda desta imagem, logo abaixo do casario. À direita o início do bosque municipal chico mendes. o espaço que se localiza um ponto de ônibus, próximo de onde está o caminhão, foi recentemente invadido por sem-teto. mas como se trata de área particular o proprietário obteve mandado de reintegração de posse que foi cumprido em 15 de outubro de 2007
AO FUNDO, ANTES DO CONJUNTO DE CASAS INSCRUSTRADO SOBRE O MORRO, HÁ UMA BAIXADA ONDE SE VÊ PARTE DO NÚCLEO DOM BOSCO.
Imagem 42 - A vegetação retilínea mais clara que é vista no terço superior da imagem demarca o leito do ribeirão das anhumas em cuja margem esquerda está o Dom Bosco. O observador está na margem direita e a edificação grande vista no canto esquerdo da imagem é a fábrica de sabão que está, como se vê, postada mais próxima do ribeirão do que o próprio conjunto do Dom Bosco. cada um está em uma margem do ribeirão
171
5.5.4 – “NÚCLEO RESIDENCIAL DOM BOSCO” processo de regularização na GUF (SERLA): 034455 de 05/11/85)
Moradias: 136
Moradores: 544
Domínio da área: PÚBLICA
Trata-se de um assentamento habitacional irregular, posteriormente
regularizado, destacado do Núcleo Residencial São Quirino.
A área em que se erigiu este assentamento, aproximadamente
31.420m2, é parte daquilo que deveria ter-se convertido na Praça 06 (que tem área
total de 91.400 m2) do Loteamento do Parque São Quirino se a área não tivesse sido
invadida. Tal praça foi doada pela transcrição 53.354 (feita no Livro de Transmissões,
no de número 3AX, a fls. 112), de 24 de maio de 1968 (transcrição anterior: 3AU-156-
48.770) originária de escritura de doação de 09 de maio de 1968, das notas do 5º
tabelião local, livro 217, fls. 8v. em que figuram como transmitentes doadores o Dr.
José Bonifácio Coutinho Nogueira e sua mulher Maria Thereza Coutinho Nogueira,
Paulo Nogueira Neto e sua mulher Lúcia Ribeiro do Valle Nogueira e como adquirente
(donatária) a Municipalidade de Campinas.
O processo interno de regularização (protocolo administrativo nº
034455) se inicia como uma “urbanização de favela” em 31/10/85 quando a Gerência
de Urbanização de Favelas (um dos órgãos municipais executores do Programa de
Combate às Enchentes) por meio do Engº Carlos Armando Mendes Conagin, ultimou
um projeto inicial e expediu ofício para o Secretário de Promoção Social de Campinas
sugerindo ao reurbanização e solicitando encaminhamento do projeto ao Prefeito
Municipal.
O projeto estava acompanhado de minudente Memorial Descritivo,
algumas plantas daquilo que estava sendo proposto, descrição detalhada dos lotes
(em 20 folhas); e descrição de vielas sanitárias.
Em 19/02/86 se inicia a tramitação. Note-se que a esse tempo a reurbanização era tratada como assunto predominantemente social, o que se
denota pelo tipo de subordinação da GUF.
O Gabinete do Prefeito encaminhou, como medida preliminar, projeto de
lei à Câmara local para desafetação da área. Interessante que atualmente a
desafetação da área costuma ser, na tramitação, uma das últimas providências,
172
depois que os demais aspectos (urbanístico, social) estão solucionados. Neste caso
foi uma das primeiras providências.
A Municipalidade orçou em seguida custos do projeto; obteve valores
junto à CPFL (14/05/1986) elaborou cronograma de desembolsos e por meio da
COHAB (agente promotor) buscou recursos junto ao BANESPA (agente financiador).
Em 20 de agosto de 1986 a Câmara Municipal de Campinas aprovou a
lei Municipal nº 5704 determinando a desincorporação da classe de bens públicos de
uso comum do povo e transferida para a de bens patrimoniais a área de terreno de
propriedade da prefeitura municipal de Campinas “parte da praça 6, localizada no
quarteirão 8.379 do cadastro municipal, loteamento São Quirino, com 31.420,00 m2 de
área e as seguintes medidas: 250,00 m + 143,50 m de frente pelo alinhamento da rua
Moscou; 13,00 m de curva pelo alinhamento da rua Moscou e da estrada do sabão;
84,00 m + 35,00 m lateralmente à direita, onde confronta com a estrada do sabão;
510,00 m aos fundos, onde confronta com o córrego Ribeirão das Anhumas; 38,00 m
lateralmente à esquerda, onde confronta com o remanescente da mesma praça”.
A mesma Lei autorizou “a prefeitura municipal de Campinas a conceder
o direito real de uso da área descrita no artigo anterior a seus atuais ocupantes, com a
finalidade de promover a urbanização das favelas”.
Aprova-se, em 1988, um “Plano Específico do Núcleo Residencial Dom
Bosco” por meio do Decreto 9.448 de 19/02/88.
Aprovado o plano, antes mesmo da aprovação em juízo e em cartório a
municipalidade já estava expedindo (desde 27/02/88) os primeiros Termos de
Concessão de Direito Real de Uso com base no cadastro de moradores que já havia
sido realizado in locu , tempos antes, pelo serviço de assistência social.
Este “Plano Específico” prevê:
• Destaque de uma área de 15.049,70 m2 para constituir uma praça que se instalaria praticamente ao centro (pouco deslocado) da área já depois de urbanizada; seria a “Praça 6-A”
• Destaque de outra área, de 1.785,00 m2, colocada entre as quadras “J” até “O”, e a Rua Moscou, delimitada a leste pela Estrada do Sabão; seria a “Praça 6-B”.
• Abertura de 13 “Ruas” situadas transversalmente à Rua Moscou, terminando todas na margem esquerda do ribeirão. Não são ruas para circulação de veículos, mas de pedestres; são praticamente só utilizadas para acessos dos moradores a suas casas; não são ruas de passagem.
• 16 quadras no núcleo, de “A” até “O”, totalizando 136 lotes. • arruamento regular, numeração dos lotes e nomeação das ruas. • Observância da faixa de preservação de 15 metros
O órgão que o aprovou administrativamente foi a SERLA – Supervisão
Especial de Regularização de Loteamentos e Arruamentos (órgão já extinto).
173
A municipalidade formaliza requerimento para regularização do Dom
Bosco em 17/03/88, dirigido ao Juiz de Direito, originando o Processo 35/88, que
tramitou na Justiça (Vara Cível cumprindo funções de Vara de Registros Públicos), do
que decorreu sentença favorável em 30/09/88. Expede-se então mandado de registro
do loteamento com características diferenciadas.
O “loteamento diferenciado” é finalmente registrado em 1989, 04 de
janeiro, tendo o 1o. Cartório de Registro de Imóveis de Campinas aberto matricula da área, devidamente regularizada, sob o n º 57.410.
A partir daí os lotes terminam sendo matriculados individualizadamente
e cada morador figura oficialmente, em cartório, como concessionário de seu
respectivo lote.
Assim que expedidos os documentos os moradores receberam da municipalidade o termo de concessão e, anexa, a matricula de seu lote dela
constando seu nome como concessionário, o que constitui expressiva conquista. A
entrega era feita pela Procuradoria Municipal, que aproveitava para fornecer
orientação jurídica gratuita aos moradores, individualizadamente, quanto a seus novos
direitos.
A pesquisa permite perceber que, estranhamente, alguns moradores ou
não foram buscar seus documentos ou simplesmente desistiram dele ou ainda
abandonaram suas casas ou não tinham documentos pessoais para que a
regularização documental da posse e concessão de direito real do imóvel pudesse ser
feita.
Lastimavelmente, como a Associação de Moradores a esta época não
estava organizada (estava sem diretoria executiva e sem conselho fiscal) houve
dificuldade para expedição dos termos de concessão, termos de renúncia e termos de
novas concessões a partir das renúncias.
Até hoje há um departamento na prefeitura encarregado de atender os
casos de renúncia à concessão, formalizando os Termos Administrativos de Renúncia
e expedição de novas concessões.
RESULTADOS:
• Regularização plena
• Apenas 18 remoções em época em que não havia ainda um consenso quanto à regularização desses espaços de moradia.
• Registros individuais no Cartório de Registro de Imóveis realizados
174
“NÚCLEO RESIDENCIAL
GÊNESIS”
175
“NÚCLEO RESIDENCIAL GÊNESIS”
FOTO AÉREA
176
“NÚCLEO RESIDENCIAL GÊNESIS”
PLANTA
177
Imagem 43 - Panorama do gênesis tomado de sobre a ponte da rodovia Dom Pedro I – o arvoredo que é visto no centro da imagem no sentido longitudinal esconde o Ribeirão das Anhumas.
imagem 44 - panorama do Gênesis tomado da estrada do Carrefour (Dom Pedro até estação ferroviária anhumas).
Quem deste ponto olha 45 graus para a esquerda, divisa o “núcleo residencial Dom Bosco”
Imagem 45 - Em primeiro plano o campo de futebol utilizado por moradores de todos os núcleos residenciais próximos (aproximadamente 8 núcleos). ao fundo, as casas que formam o “núcleo residencial Gênesis”
178
FIM DA LINHA – A ESTAÇÃO ANHUMAS
Imagem 46 - Panorama visto de sobre a ponte da Rodovia Dom Pedro em direção montante do Ribeirão das Anhumas. Vêem-se os trilhos da ferrovia. À direita, a fábrica de sabão instalada na beira do Ribeirão. Ao fundo, logo após a torre branca, se encontra a Estação Anhumas da ferrovia, de onde parte o trem turístico que hoje alcança o centro da cidade de Jaguariúna.
Imagem 47 - A estação Anhumas da ferrovia Imagem 48 - “Maria Fumaça” realiza o percurso turístico
179
5.5.5 – “NÚCLEO RESIDENCIAL GÊNESIS” Processo de regularização na SEHAB: 57.661(124)
Moradias: 356
Moradores: 1.424
Domínio da área: semi-pública (sociedade de economia mista).
O “Núcleo Residencial Gênesis” se localiza, tal e qual os demais
núcleos aqui estudados, na Região Leste do Município de Campinas.28
Delimitações: entre o loteamento e arruamento do Parque das
Anhumas, loteamento e arruamento Jardim Santana (3ª.Parte), parte da chácara
Santa Terezinha, parte da Chácara Santa Lúcia, faixa desapropriada pelo D.E.R. para
construção da Rodovia Dom Pedro I, trecho do Ribeirão das Anhumas e finalizando no
trecho da Rua Comendador Herculano Gracioli (antiga estrada do sabão) do
arruamento e loteamento Parque das Anhumas.
Se encontra na Gleba 15, quarteirão 30.013, área de planejamento 14,
macrozona 4, Administração Regional 3. Alguns documentos mencionavam área de
166.631,00 m2 e outros ainda 117.314,44 m2 já que consideram outros espaços como
integrantes.
A área toda de 190.462,00m2 era objeto da Transcrição 29.981 feita
no livro 3-AB, fls. 136 do 1o. Cartório de Registro de Imóveis, com área de. Essa área
toda configura em 31/01/1958 parte da FAZENDA SANT´ANNA.
Em 13 de setembro de 1957 essa área toda foi permutada por escritura
pública do 3º. Tabelionato de Campinas (livro 222, fls. 54v.) por outra área, entre os
membros da FAMÍLIA ARRUDA CAMARGO (Francisco Xavier de Arruda Camargo e
outros) com a Prefeitura de Campinas. A Prefeitura tornou-se proprietária com base na
aludida transcrição 29.981.
Em 1966, por lei municipal 3534 de 12/12/66, art. 18, estas e outras
terras municipais passaram a integrar o patrimônio do DAE (Depto. de Água e Esgoto),
autarquia municipal.
Em 11/06/1970, por escritura do 4º. Tabelionato de Campinas o Depto
de Estradas de Rodagem desapropria desta fazenda a área de 23.831,00 m2 que
seria necessária para passagem da estrada Campinas a São José dos Campos 28 Este histórico foi elaborado a partir dos documentos oficiais que constam do processo de regularização fundiária junto à COHAB-CP e por meio de entrevistas e outros documentos obtidos durante a pesquisa junto a cartórios.
180
(depois designada por Rodovia Dom Pedro I). Remanesce, da área original da
fazenda, a área aproximada de 166.631,00m2.
Essa área de 166.631,00 m2 foi transferida, pela Lei Municipal 4356 de
28/12/73, do DAE para a SANASA, Sociedade de Economia Mista que essa mesma lei
autorizou a ser criada, o que se deu em 28/08/74. Essa área era conhecida na
SANASA como “Área da Depuradora do Anhumas” conforme item 28 da Ata das
Assembléias Gerais Ordinária e Extraordinária de 30/04/81 e terminou matriculada no
1º. Cartório de Registro de Imóveis sob número 76.993 em 28/12/1995.
A área total matriculada no 1o. Cartório de Registro de Imóveis sob o
número 76.993 (de 166.631m2) posteriormente foi desmembrada gerando:
• Matrícula 77.813 – Gleba 15 - área de 136.766 m2, posteriormente retificada para 114.483 m2, que terminou prevalecendo como sendo efetivamente a área em que o núcleo estava assentado.
• Matrícula 77.814 – Gleba 15-A – área de 16.167 m2 que se situa na divisa do Gênesis com os Loteamentos Parque Anhumas e Jardim Santanas (3a. Parte), limitada pela Rua Comendador Herculano Gracioli (antiga Estrada do Sabão).
• Matrícula 77.815 – Gleba 15-B – área de 13.898 m2 confrontando com a rodovia Dom Pedro.
Este núcleo residencial surge na mesma época dos outros núcleos das
proximidades, em áreas públicas ou particulares, na década de 70.
Esta área é parte do complexo de ocupações ocorrido à margem
esquerda do Ribeirão das Anhumas que se inicia na Rua Luíza de Gusmão, passa
pela Rua Moscou e termina no citado Núcleo, dando impressão de tratar-se de uma
única ocupação enorme.
A partir de 1978, durante a administração de Francisco Amaral como
Prefeito, houve na área a ocupação de aproximadamente 200 famílias migrantes de
diversas regiões do Nordeste do país e do interior do Estado de São Paulo.
Essa área era propriedade particular da Sanasa (Sociedade de
Abastecimento de Água e Saneamento S.A., empresa de economia mista por ações,
criada em 1973 para prestar serviços de abastecimento de água e esgotamento
sanitário no município de Campinas) e já estava ocupada pelos moradores há muito
tempo quando passou a pertencer à Prefeitura Municipal de Campinas em outubro de
1995, aprovado pela Lei 8.514/95, que autorizou o Poder Executivo a receber tal área
mediante “dação em pagamento” (e não “doação” como consta de alguns documentos
oficiais) de empréstimos obtidos pela SANASA junto à municipalidade conforme leis
181
municipais 5.814/87 e 5.955/88.
A escritura de dação em pagamento foi assinada em 23/11/95 nas notas
do 5o. Tabelionato de Campinas, fls. 394 do livro 557.
Tal acordo visava a urbanização da área e o reassentamento de
famílias em situação de risco da Região Leste do Município de Campinas.
O desenho da ocupação era caótico, mas não diferençava de todo tipo
de ocupações que conhecemos: vielas, passagens, caminhos ora estreitíssimos ora
mais largos, sinuosidade, relevo não vencido gerando casas vizinhas em platôs
diferenciados.
Era necessário, para que a regularização acontecesse, planejar
inteiramente a área, projetar uma urbanização completa, com arruamentos, guias,
escoamentos de água, saneamento, circulabilidade, aeração e, o quanto possível,
todos os demais itens de urbanismo que se observam quando se pretende realizar um
loteamento.
A regularização do GÊNESIS foi feita por meio de DUAS
INTERVENÇÕES. A primeira em 1997 e a segunda em 2004.
Da primeira a Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária não
possui a documentação. A regularização de 2004 está bem documentada.
Pelos documentos da regularização de 2004 se pode constatar que a
primeira intervenção, de 1997, buscou apenas dar uma conformação urbanística ao
local, com arruamento, iluminação e água, bem como construção de unidades
habitacionais na forma de embriões de 25 a 31 m2 (construções que permitem
posteriores ampliações, conforme as necessidades e as possibilidades de cada
família). A construção dessas unidades foi, em grande parte, financiada pelo FUNDAP
– Fundo de Apoio à População de Sub-Habitação Urbana.
Havia espaço nas proximidades, que permitiu começar “do zero”
engendrando sistema de construção do novo núcleo em três etapas.
Projeto abrangeu criação de 12 quadras com desenho regular, de “A” a
“N” e foi necessário aprová-lo na SANASA, CPFL, DPOV e posteriormente (última
fase) no GRAPROHAB, criado em 1991.
Já que o projeto previa a mantença dos moradores na mesma área já
por eles ocupada, construiram-se alojamentos nas proximidades destinados a receber
famílias. Retirou-se um terço dos moradores, instalando-os nesses alojamentos
enquanto eram construídas casas no local de onde tais famílias haviam sido retiradas.
182
Os barracos de onde eles haviam saído foram destruídos. Iniciaram-se então aterro,
parcelamento do solo, implementação domiciliar de água, energia elétrica e esgoto
sanitário e uma vez terminadas as casas, era hora de voltar para ocupar as casas
novas. Mas qual casa era de quem? Isto se resolveu por sorteio.
Vagos os alojamentos, retiraram-se moradores da segunda etapa para
lá, repetindo-se o processo até que a terceira etapa terminou e todos os antigos
moradores estavam instalados nas novas casas.
Gradativamente a área foi se transformando em Núcleo Habitacional
dotado da infra-estrutura necessária em processo que se estendeu por
aproximadamente cinco anos.
A urbanização da área se deu, portanto, em 1997 e obedeceu projeto
da Cohab-Campinas; executaram-se 356 lotes.
Foi esta a razão pela qual os estudos feitos por ocasião da segunda
intervenção, em 2004, constataram a presença de “casas de alvenaria”, “vias retas e
largas”, etc. O local já tinha sofrido uma intervenção com caráter de urbanização.
A construção de novas unidades neste núcleo foi possível, portanto, a
partir da assinatura do contrato 248/02 entre a COHAB e a Prefeitura local. Em
outubro de 2004 o Diretor Técnico da COHAB envia ofício à Coordenadoria Especial
de Regularização Fundiária encaminhando um projeto de regularização e solicitando
análise das variadas áreas técnicas da SEHAB. Se pretendia construir no local mais
52 moradias pelo PSH do Governo Federal, em duas fases.
Esta segunda intervenção foi necessária porque ainda remanesciam
nas proximidades algumas famílias que precisavam de moradia e havia ainda neste
núcleo algum espaço possível para receber casas. No início do ano de 2004 foi
assinado convênio entre municipalidade campineira e Caixa Econômica Federal para
construção de 52 moradias pelo Programa de Subsídio Habitacional (PSH) da
Administração Federal em duas fases.
O diagnóstico inicial da regularização de 2004 do núcleo constatou:
• Topografia plana
• Ocupação pouco adensada e ordenada
• Maioria das construções em alvenaria
• Vias oficializadas, sem pavimentação, em bom estado de conservação, largura média de 9m
• Iluminação pública ausente
183
• Drenagem de águas superficialmente em direção ao ribeirão (canalizada em alguns poucos trechos, pelos próprios moradores)
• Eletrificação domiciliar presente
• Água potável abastecida com medidor coletivo
• Rede de esgoto presente
• Coleta de lixo infreqüente, com existência de acúmulos locais
• Ausência de situações de risco
• Desnecessidade de remoções
Se comparado aos demais núcleos, portanto, o Gênesis até que
apresentava boas condições de habitabilidade porque, insista-se, já havia sofrido uma
intervenção em 1997, com intuitos urbanísticos.
O projeto da segunda intervenção foi elaborado prevendo:
• Faixa “non aedificandi” de 15 m para APP
• Instalação de sistema de lazer e de áreas verdes
• Limpeza da calha
• Recuperação da mata ciliar
• Ações ambientais educativas
O projeto alertava já na época a necessidade de “maior controle e
fiscalização do poder público em relação às ocupações urbanas próximas, na bacia de
contribuição do ribeirão, objetivando garantir taxas adequadas de permeabilidade e
reversão do processo de degradação ambiental.”
A primeira fase foi totalmente concluída com a entrega de 27 moradias em julho de 2004 e a segunda fase se concluiu em setembro de 2005 com a entrega de 25 moradias.
Um segundo estudo, em 2005, a cargo da Arq. Vanderléia M.C.Guedes,
às fls. 40 e seguintes do procedimento, já a título de acompanhamento pós regularização, revela grande sensibilidade com as questões ambientais. Constata que
a partir da intervenção de 1997 a parte que havia ficado vazia (entre o
empreendimento e o ribeirão) havia sido novamente invadida e partilhada; que a área
de APP apresentava “depósito de madeiras, entulhos, horta particular, etc” e que se
fazia importante “que esse espaço seja revertido a APP, para a devida proteção do
córrego.” Constatou também a presença de esgoto e, analisando o laudo da mancha
de inundação da área, constatou “a presença da faixa amarela que indica forte
inundação ao longo do curso d´água.”
184
Obtidas informações que faltaram quando desse segundo estudo, a
mesma profissional elabora (fls. 65) em setembro de 2006, novo estudo em que
novamente revela sua intensa preocupação ambiental. Havia aumentado o número de
ocupantes da área de APP, os “lotes” frutos da partilha dessa área estavam cercados
com arame ou madeira, havia estoque de lixo reciclável, havia barracos possivelmente
para moradia e era necessário remover “todas as atividades impróprias ao local e
assim retomar a função original de APP com a recuperação da vegetação ciliar,
proteção do córrego e maior permeabilidade.”
RESULTADOS:
Para a regularização fundiária plena está faltando a formalização do
loteamento inteiro (abrangendo primeira e segunda intervenções) junto ao registro de
imóveis; como a área é pública, precisará haver
• Desafetação da área, por lei
• emissão dos Termos Individuais de Concessão de Direito Real de Uso e finalmente
• registro dos títulos de concessão no cartório de registro de imóveis em nome dessas pessoas, para que elas possam futuramente, se desejarem, comercializar suas casas.
• Não há impedimentos para isto. Caminhos jurídicos já estão desobstruídos uma vez que a empresa que era proprietária transferiu a propriedade para a municipalidade
• regularização caminhando para “plena”, sem nenhuma remoção ter sido necessária.
SERVIÇOS A organização dos moradores deste núcleo sempre esteve ligada às
Associações de Moradores das áreas do entorno, como as da Rua Moscou (Parque
São Quirino), Vila Nogueira, Cafezinho e Independência. Por serem muito próximos
uns dos outros, estes núcleos chegaram a unir suas principais lideranças para
reivindicar em conjunto melhorias nas condições de habitabilidade não só pelas suas
áreas, mas para toda região que contava com diversas ocupações sem qualquer
infra-estrutura. Ante a proximidade dos demais núcleos, os serviços de que se
utilizavam os moradores do GÊNESIS foram sempre os mesmos que eram oferecidos
aos outros. Tanto dos órgãos públicos quanto das Não Governamentais. E contou-se
também com a assessoria do Movimento Social “Assembléia do Povo”.
185
6 – CONFLITOS Se o tema da “regularização fundiária” já suscita diversos conflitos
legais, sociais, administrativos, políticos, ideológicos, profissionais e institucionais, a
“regularização fundiária em área de APP” é tema ainda mais polêmico.
Regularização fundiária é primordialmente tema urbano e quando ela se
dá em áreas privadas não suscitam muita controvérsia, na medida em que a oposição,
quando existe, acontece apenas entre o proprietário da área e os ocupantes.
Se a área é pública, é preciso distinguir entre áreas públicas destinadas
a área verde, áreas públicas institucionais e áreas públicas dominicais. O conflito entre
urbanistas (pela regularização) e administrativistas (opondo-se a ela) vão se
apresentar na controvérsia quando a regularização se pretenda fazer em áreas
dominicais ou destinadas a fins institucionais.
Enquanto não aconteceram as muitas reformas legais que permitiram a
regularização fundiária nessas áreas públicas, a oposição à regularização nessas
áreas era intensa. Mas uma vez feitas as modificações legais não cabe mais dúvida a
respeito da possibilidade jurídica de regularização, de modo que aquela oposição de
administrativistas tende a situar-se em patamares formais não de todo impedientes da
regularização.
Mas se a regularização fundiária se refere à ocupação em área pública reservada para transformar-se em área verde ou em área de APP (seja pública ou
privada) este componente ambiental amplifica a complexidade do assunto. É que tal
tema prende tentáculos em diversos campos políticos (ocupantes, municipalidade,
proprietários) e científicos (urbanistas, ambientalistas). Os conflitos se apresentam
então muito mais evidentes.
Embora muitos sejam os personagens desses profundos embates de
toda ordem, há dois protagonistas. Ambientalistas e urbanistas se destacam pela
solidez de princípios, pelo apego às convicções e pelo aguerrimento com que
assumem posições e defendem seu ideário.
Há nas abordagens de uns e outros, diferenças conceituais importantes,
objetivos diferentes, métodos substancialmente divergentes, que por vezes justificam
que ambientalistas e urbanistas sugiram, para um mesmo problema social e ambiental
grave, soluções inteiramente opostas.
Esta pesquisa pretendeu mapear estes conflitos não para evitar que
eles aconteçam mas especialmente para fazê-los transparentes e, com isto, ou
prevenir sua ocorrência ou contribuir para que os profissionais se permitam entender
essas diferenças e, apesar delas, tratar a regularização como um instrumento urbano
e ambiental importante que ele é, e que não pode ficar subordinado unicamente à
186
eventual predisposição desfavorável de alguém cuja formação impede ver os fatos
mais claramente e em toda a sua complexidade.
ALGUMAS CONVERGÊNCIAS
Nem tudo são conflitos entre ambientalistas e urbanistas. Quando o
assunto seja, por exemplo, construção de garagens subterrâneas nas cidades,
ambientalistas e urbanistas não divergem. Garagens diminuem o tempo de
deslocamento de veículos e reduzem congestionamentos, permitindo economia de
combustível e gerando menor nível de poluição decorrente da queima desse
combustível.
Também nos casos em que pessoas bem situadas no contexto social se
apropriam de dunas, de praias, de espaços ambientalmente protegidos, quando
poderiam ter optado por não instalar suas moradias no ambiente natural, a solução de
remoção soa justa para ambos estes profissionais. Urbanistas não fazem conta de
eventual remoção porque não se envolvem aí questões sociais.
É justamente a questão social que antagoniza essas duas ciências
quando o assunto seja a regularização fundiária em áreas de APP. Não é o problema
ambiental que as adversariza. Todos concordam com a necessidade da proteção
ambiental. A questão está, no entanto, em saber até que ponto a ocupação das APP´s
por moradias configura verdadeira ofensa ambiental.
LOCALIZAÇÃO DOS CONFLITOS São muitos os conflitos entre profissionais do urbanismo e defensores
da causa ambiental a respeito do tema regularização fundiária quando esta se destine
a regularizar um assentamento informal, irregular, sedimentado, em
• área verde (reservada, nos loteamentos, para a criação de locais de lazer dos
moradores)
• área de preservação permanente
O tema da regularização, propriamente, não deveria acender pavios de
intolerância entre estes dois ex adversi pois o que os devia antagonizar seria apenas
a tentativa de regularizar espaços de moradia em espaços ambientais.
Mas o embate já se iniciou ao tempo em que se discutia regularização
fundiária na constituinte de 1988. Enquanto ela deveria ser apenas uma preocupação
urbana, sem abranger áreas verdes ou ambientes protegidos, o movimento
187
ambientalista já se preocupava com ele e já o combatia mas provavelmente por razões
estratégicas. Ambientalistas não têm, normalmente, preocupações urbanas mas
provavelmente se temia, na época, que com a abertura da porta da regularização
fundiária em áreas urbanas se tornaria mais fácil abrir a discussão – como
efetivamente aconteceu – da regularização fundiária em áreas ambientalmente
protegidas (áreas verdes, APP´s, Unidades de Uso Sustentável, Unidades de
conservação e até mesmo reservas legais).
Então era melhor não discutir regularização fundiária de área nenhuma.
O assunto entrou, contudo, fortemente na agenda ambiental quando a
regularização deixou de cuidar apenas de áreas urbanas desprovidas de maior
interesse ambiental e passou a abranger essa dimensão tão significativamente
presente nas áreas verdes e de APP.
Retirada a questão ambiental da discussão, o litígio entre ambos se
esvai, embora se mantenham outros personagens. No tema “regularização” (não em
áreas ambientais) os personagens que litigam são outros. São progressistas
(defendendo o direito à moradia) litigando com conservadores (defensores do direito à
propriedade, como a T.F.P.29 por exemplo); Proprietário contra ocupante (nas áreas
privadas ocupadas para fins de moradia); administração pública se opondo a ocupante
(quando a ocupação se dê em área pública), administrativistas em choque com
urbanistas (quanto à possibilidade de permitir que uma área pública seja dada em
concessão, sem licitação, à fruição privada), moradores do entorno em litígio com os
ocupantes daquilo que deveria ter sido uma praça ou um equipamento social
comunitário se não tivesse havido a ocupação. Vejam-se, para exemplificar, as áreas reservadas em loteamento para
fins institucionais (escola pública, creche pública, posto público de saúde). É claro que
a palavra “ambiente” não exprime somente o conjunto de condições naturais e de
influências que atuam sobre os seres humanos e demais organismos vivos.
(FREITAS, 1999, fls.281).
Se a tomarmos em sua acepção ampla, que abrange, além da
ambiência natural tutelada, o cultural (patrimônio histórico, artístico, arquitetônico, etc),
o do trabalho (condições de salubridade e segurança das atividades laborais) e o
artificial (espaço urbano construído, conforme art. 182 e 225 da Constituição Federal),
concluiremos que os conflitos entre urbanistas e ambientalistas poderiam
perfeitamente se dar também no exemplo da área reservada para fins institucionais,
como efetivamente se deram.
29 Tradição, Família e Propriedade, entidade civil da ultra-direita católica.
188
Mas se deram não porque ambientalistas tivessem resolvido estender
sua atuação para o “ambiente construído”, mas porque já se sabia os caminhos que
seriam abertos a partir da possibilidade de regularização fundiária de áreas privadas e
públicas. Se os conflitos aparecem também quando se trate de regularização fundiária
de assentamento em área destinada a fins institucionais que esteja fora de área de
APP e de área verde, a motivação só pode ser estratégica.
Mesmo em se sabendo que, uma vez regularizadas essas moradias, os
moradores das proximidades deixarão de contar, ao menos naquele espaço, com
serviços públicos importantes e que isto poderá afetar a qualidade de vida dessas
pessoas (o que é também um dado ambiental) a questão ambientalista não emerge
nessas situações, salvo por temores em relação às novas possibilidades que surgirão
a partir daí.
Surgem aí outros conflitos (moradores das proximidades e moradores
da área que se pretende regularizar) e a conotação ambiental é mera coadjuvante das
discussões.
È como se os ambientalistas só tivessem olhos para o ambiente natural
e lhes fosse invisível o ambiente acinzentado das construções em meio à cidade.
O tema desta pesquisa se limita às áreas de APP, razão pela qual não
se abordarão aqui os conflitos entre urbanistas e ambientalistas nos casos de áreas
verdes condominiais.
VISÃO MÚTUA DISTORCIDA Intui-se que os conflitos entre urbanistas e ambientalistas nascem da
diversidade de formação das pessoas envolvidas nessas grandes áreas do
conhecimento humano ou das diferenças de gênese histórica dos movimentos sociais
(apoiados por urbanistas) e dos ambientalistas.
Não há congresso, simpósio, encontro, em que se as questões
ambientais estejam em pauta, em que não se afirme, pejorativamente, que
movimentos ambientalistas são “movimento de elite” ou “movimento de direita”, como
se isto configurasse grave distorção genética que comprometesse todas as propostas
dali advindas; já os movimentos sociais, populares, são auto-proclamados “movimento
de pobres” ou “movimento de esquerda”, como se este fato lhes outorgasse um direito
divino de infalibilidade em seus diagnósticos e propostas.
É comum ambientalistas considerarem os membros de movimentos
sociais (também chamados “populares”) como “trogloditas ambientais” enquanto estes
vêem aqueles como “alienados”, extremistas, “xiitas ambientais”, insensíveis às
189
causas sociais, e pessoas para quem o mundo estaria bem melhor sem a presença de
nenhum ser humano.
Há claramente uma visão anti-urbana no ambientalismo, na medida em
que se origina de uma postura de defesa do ambiente natural, sem interferências
humanas.
A percepção que ambientalistas e urbanistas parecem ter uns dos
outros é carregada de preconceitos que só limitam a discussão e a circunscrevem ao
terreno da galhofa, que não aprofunda conceitos nem encontra elementos comuns a
partir dos quais é possível construir pontes e não erigir barreiras.
CONFLITOS NO CAMPO DOS DIREITOS Ao adentrar na discussão acerca dos conflitos entre estes
protagonistas, o que surge de pronto são conflitos de direitos que produzem até
mesmo conflitos intra-institucionais.
Na regularização fundiária em áreas de APP combinam-se dois temas
jurídicos: o direito pessoal (individual e social) à moradia digna e o direito transpessoal
(difuso, difundido, expandido, espraiado) ao ambiente saudável. Evidenciam-se, então,
desde logo, conflitos entre direitos sociais e direitos difusos.
A esta questão se aplicam não apenas leis que regulam o direito de
propriedade (propriedade esta que tem índole privada e configura, por isto mesmo,
direito disponível) como também normas ambientais ou urbanísticas que regulam seu
uso e ocupação (que são de ordem pública e de direito indisponível) que não admitem
disposição em contrário pelos particulares, nem discricionariedade pelos
administradores e agentes públicos.
O conflito que se estabelece entre o direito à moradia e o direito ao
ambiente saudável não é apenas conflito de objeto, como também conflito de essência
de direitos e conflito de sujeitos. O objeto do direito à moradia é a proteção
habitacional, proteção contra a remoção; o do direito ao ambiente é a proteção da vida
em sua existência e em sua qualidade; em sua essencialidade, o direito à moradia é
individual; o direito ao ambiente é, mais que coletivo, “difuso”; o sujeito do direito à
moradia é o morador; o do direito ao ambiente é a sociedade.
Assim, no exato momento em que nasce um direito individual à
moradia, nasce igualmente um direito da sociedade a que essa moradia cumpra suas
funções sócio-urbanístico-ambientais.
Não há “direito à moradia” ou “direito à propriedade” que nasça sem que
contemporaneamente nasçam também os “deveres” de quem é morador ou de quem é
190
proprietário. “Direito à propriedade” e “deveres ligados à propriedade” são gêmeos
tanto quanto se dá entre o “direito à moradia” e os “deveres ligados à moradia”.
Não é por outro motivo que o desatendimento às leis ambientais pelo
proprietário de um imóvel gera uma “presunção de dano ambiental” e por vezes um
dano ambiental efetivo. E se, como visto, as questões social e ambiental estão hoje na
essência, no cerne, na própria conceituação da propriedade, é possível concluir que
um defeito em uma parte do que se pretenda definir termina por contaminar o próprio
objeto definido.
Assim, uma violação ambiental em propriedade (privada ou pública)
constitui sempre uma violação à função sócio-ambiental da propriedade e,
conseqüentemente, uma violação não a um “direito” mas a um “dever” da propriedade.
Não é – em geral – possível admitir uma regularização que inobserve os
deveres de atendimento às normas legais ambientais ou urbanísticas em vigor e de
recomposição o mais integral possível dos bens ambientais e urbanísticos atingidos.
Os princípios é que, de um lado, permitem a edição de leis que
dialoguem com a realidade das classes populares (normas urbanísticas) e, de outro,
impedem este mesmo diálogo no campo ambiental.
Mas é preciso discutir a veracidade do entendimento segundo o qual
enquanto as regras urbanísticas variam em latitude, longitude e no tempo, a supra-
espacialidade e ultra-temporalidade informam as questões ambientais e impedem que,
por regramento nacional, regional ou municipal, as normas protetivas do ambiente
possam tornar-se de observância “dispensável” ou possam flexibilizar-se.
Este raciocínio parte da noção segundo ao qual as normas urbanísticas
são flexibilizáveis mas as ambientais não.
Por um lado, a existência de ZEIS não significa flexibilização, mas um
diálogo que a lei abre com o território popular de modo a permitir que as pessoas
edifiquem com observância à lei.
E por outro, embora a doutrina repudie a flexibilização de regras
ambientais, elas variam tanto quanto as leis urbanísticas. Se as regras urbanísticas
têm, tanto quanto as regras ambientais, caráter de direito publico e são regras de
ordem pública, e têm sido modificadas para dialogar com a realidade, não há muito
senso em afirmar que as normas ambientais não possam igualmente variar conforme
o dado de realidade.
Ademais não é verdade que urbanismo só abranja ou alcance
interesses espacialmente localizados, nem é verdade que as regras ambientais gozem
da presunção de abrangência universal.
191
A decisão urbanística da cidade de São Paulo optando pela realização
de rodízio municipal de veículos exerce influência em um número enorme de cidades
não apenas de seu entorno como até de outros Estados da Federação. E as regras
para manejo em bacias hidrográficas são tão díspares que serviram de motivo para a
criação de Unidades Territoriais de Bacia e, dentro destas, os Comitês de Bacias que
têm justamente por razão de vida a criação de regras harmônicas de todos os entes
políticos cujos territórios estejam naquelas bacias. Isto mostra que as regras urbanas
são apenas desejadamente locais, e que as regras ambientais são desejadamente
universalizantes. Mas daí a serem em verdade, há enorme distância.
Normalmente a diferenciação de uma regra urbanística traz
conseqüências boas ou negativas para indivíduos ou para todo o conjunto de uma
coletividade espacialmente localizada. Mas a flexibilização de uma regra ambiental
pode gerar conseqüências imprevisíveis para indivíduos, coletividades e até mesmo
para sociedades diversas daquela em que a flexibilização aconteceu. Não respeita
limites espaciais ou fronteiras políticas.
Daí a conclusão de que as normas ambientais (dentre as quais a
brasileira que protege APP´s) embora não devessem aprioristicamente sofrer grandes
modificações de uma localidade para outra, precisam adaptar-se em certas situações
muito particulares à realidade. E isto não significa necessariamente “flexibilização”
dessas normas, mas apenas uma adaptação à realidade para atender interesses
sociais.
Hoje na prática quem faz essas “adaptações pontuais” à lei é o
Ministério Público com seus “termos de adaptação de conduta” que permitem que o
Ministério Público se transforme em legislador caso a caso na medida em que ele
aceita uma realidade que não está conforme à lei.
É o que se dá, por exemplo, em situações muito comuns na prática, nas
quais uma área de APP ou uma unidade de uso sustentável é em parte ocupada para
fins residenciais e o morador, convocado pelo Ministério Público, afirma que é melhor
ele não ser removido (por exercer vigilância e impedir o acesso de outras pessoas ao
local) e o Ministério Público termina por formular com esse morador um termo que
tolerará aquela presença naquela área para prevenir “situações piores”.
É melhor que estes ajustes, esta “sintonia fina” se faça por leis locais,
sujeitas a controle político e social e não por uma instituição à qual é defeso legislar.
192
CONFLITOS INSTITUCIONAIS As ciências ambiental e urbanística são portanto substancialmente
diversas e o conflito de direitos que da aplicação de cada uma delas emerge explica
antagonismos que se constatam até mesmo nos espaços institucionais.
A discussão a respeito da “autonomia do direito urbanístico”, por
exemplo, que aparentemente não configura mais que um conflito de direitos, em
verdade mascara, dentre outros, o conflito entre regularizar ou não regularizar
ocupações de áreas públicas.
O Direito Administrativo é um ramo muito antigo do Direito Público. O
Direito Urbanístico provém também desta cepa, mas é bem mais recente.
Um dos pontos mais arraigados na bi-milenar consciência jurídica de
administrativistas, ponto quase convertido em totem dessa área do Direito, é a res
publica (coisa pública). Intocabilidade ou inapropriabilidade individual ou grupal (assim
considerado um pequeno coletivo) das propriedades públicas. Estas são de todos e
não podem servir apenas a um ou a alguns.
Assentamentos informais para fins de moradia tanto acontecem em
áreas públicas, como privadas; tanto se dá em áreas ambientais privadas, como
públicas; mas estas estavam até recentemente protegidas por um verdadeiro cipoal de
normas jurídicas federais, estaduais, distritais e municipais e alterá-las para permitir a
regularização fundiária nessas áreas constituía um desafio imenso.
Administrativistas constataram que a autonomia do direito urbanístico
ensejaria – como acabou se demonstrando verdade – flexibilização nesse símbolo
sagrado da administração pública. Houve então resistência àquela autonomia,
registrada por Fernandes, 2006: enquanto as cidades e seus problemas crescem assustadoramente, e a despeito do fato de que milhares de leis urbanísticas têm sido aprovadas em todos os níveis de governo, desde a década de 30, mas sobretudo ao longo das três últimas décadas, tais juristas ainda perdem tempo em discussões estéreis acerca da autonomia do Direito Urbanístico. De modo geral, o Direito Urbanístico somente tem sido aceito como um sub-ramo do Direito Administrativo ou, em alguns casos, do Direito Ambiental. (...) Tal resistência é de natureza ideológica.
E as alterações na lei acabaram acontecendo e só se tornaram
possíveis, entre outros motivos importantes, porque urbanistas, desvinculados da
matriz administrativista, se viram autorizados a enfrentar aquele totem.
Não fosse a independência científica do direito urbanístico em relação
ao administrativo teria havido, para a liberação da regularização fundiária em áreas
públicas, muito maior resistência do que houve.
193
O conflito entre autonomia ou não do direito urbanístico escondia,
portanto, também essa questão importante: a liberação das áreas públicas para fins de
moradia de alguns para resgatar injustiças seculares e tentar aumentar a oferta de
terras e assim contribuir para diminuir seu preço, facilitando o exercício do direito de
construir legalmente.
Sob aspecto institucional há ainda outro embate importante a lembrar,
que diz respeito a um dos personagens que se apresenta nos conflitos: a instituição
Ministério Público (ora o Estadual, ora o Federal, dependendo do tipo de propriedade
ocupada).
Ministério Público é a instituição encarregada, no âmbito cível, de
proteger os chamados direitos difusos, que são todos indisponíveis, como por exemplo
o meio ambiente, o urbanismo, o loteamento clandestino e os registros públicos. Um
Promotor de Justiça para cada uma dessas áreas.
Como estão todos estes quatro assuntos presentes no tema
“regularização fundiária em área de preservação permanente”, fica claro que, ao
menos no Estado de São Paulo, quatro Promotores deveriam atuar em cada
procedimento que se instaurasse visando à regularização de cada área ocupada. Mas
como “loteamento clandestino” e “urbanismo” são temas tradicionalmente ligados na
instituição Ministério Público, houve um tempo em que três promotores atuavam em
cada um desses procedimentos: o PJ do meio ambiente, o de Urbanismo e o de
Registros Públicos, cada qual defendendo um ponto de vista diferente – muitas vezes
conflitante com os demais – de uma mesma instituição.
Como sabemos que as ocupações se intensificaram a partir de meados
da década de 1970, é surpreendente que o tema “regularização fundiária” não tivesse
sido ainda “descoberto institucional e normativamente” pela instituição Ministério
Público até 1995 quando aparece pela primeira vez (mas com a designação de
“regularização de loteamento”) em norma interna dessa instituição.
Veja-se que em 1998 se expediu Ato 168 do Procurador Geral (chefe da
instituição) fixando detalhadamente as atribuições dos Promotores de Justiça do
Estado de São Paulo e ali ficaram consignadas as seguintes funções para cada um
dos promotores que hoje são envolvidos na regularização:
PJ Registros Públicos Art. 254 - Nos casos de parcelamento do solo urbano (loteamento e desmembramento) e regularização de loteamentos: I - manifestar-se, no prazo legal, nos autos de impugnação de pedido de registro, atentando para a rigorosa observância dos requisitos impostos pela legislação federal, estadual e, se houver, municipal, bem como para a titulação imobiliária da área objeto do pedido;
194
PJ Habitação e Urbanismo Art. 447 - Considerar que todo parcelamento do solo deve satisfazer os requisitos da legislação federal, estadual e municipal, observadas as fases administrativa (licenças, autorizações, aprovações etc.), civil (registro especial) e urbanística (execução de obras de infra-estrutura), assim como as condições geológicas, sanitárias e ecológicas para a sua implantação. PJ Meio Ambiente Art. 461 - Instaurar investigação (inquérito civil ou procedimento preparatório, conforme o caso) ao tomar ciência da existência de lesão ou ameaça de lesão ao patrimônio ambiental.
Havia, portanto, no que toca à fiscalização das atividades de
parcelamento de solo urbano, trípla gestão. Cada qual objetivando proteger um
aspecto diverso: PJ Habitação e Urbanismo pretendendo a regularidade (legalidade)
dos parcelamentos, PJ Meio Ambiente objetivando impedir que os parcelamentos
chegassem às áreas ambientais e o PJ de Registros Públicos desejando que, uma vez
formulada pretensão de regularização, os requisitos legais de todos os níveis (federa,
estadual, municipal) fossem “rigorosamente observados”.
Mas um assentamento informal de moradias em área de APP não
consegue atender integralmente aos requisitos de prévia legalidade de parcelamento,
não lesionamento ambiental em nenhum nível e regularidade documental.
O resultado é que em alguns processos que chegavam à Justiça se
viam três manifestações diversas de três órgãos do Ministério Público (que deveria ser
uma instituição una): um (o “Promotor Ambientalista”) pretendendo a retirada dos
moradores da área; outro (o “Promotor Urbanista”) pleiteando reformas destinadas a
urbanizar a área, com a mantença (ou não) dos moradores desde que atendidos
requisitos mínimos de segurança ambiental; e outro (o “Promotor Registral”)
pretendendo o não reconhecimento legal do parcelamento informalmente realizado.
Como se vê, eram posições incomponíveis de uma mesma instituição. E o mais curioso: todas defendendo o interesse público, já que:
• é do interesse público que as áreas só sejam parceladas depois que a área seja “urbanizada” (com instalação de arruamento, sistema de escoamento de águas, fornecimento de água, luz, etc);
• atende ao interesse público que áreas ambientais não sejam privatizadas e • serve ao interesse público que só se registrem documentos que atendam
inteiramente à legalidade.
Tal situação mereceu esta crítica de Fernandes (2006, p. 37): Argumentos de ordem ambiental têm sido cada vez mais utilizados para justificar a oposição – freqüentemente de cunho ideológico – às políticas sociais de regularização fundiária . Em que pese o papel fundamental que a instituição tem tido na construção de uma ordem pública no Brasil, o próprio Ministério Público, com freqüência, opõe
195
valores ambientais a outros valores sociais – como o direito social, constitucional, de moradia – mesmo em áreas urbanas (públicas e privadas) onde os assentamentos humanos já foram consolidados ao longo de várias décadas de ocupação informal.
A situação chegou a tal ponto, naquilo que toca ao parcelamento
informal de solo em áreas de proteção ambiental, que foi necessária a emissão de um
ato que esclarecesse a qual profissional competiria atuar nesta questão: se ao PJ do
Meio Ambiente ou ao PJ de Habitação e Urbanismo.
O resultado foi a edição do Ato 55 em 1995, por meio do qual o
Ministério Público fez sua opção institucional pela prevalência do Direito à Moradia, conforme se pode constatar pela leitura do ato que determina caber ao Promotor de Habitação e Urbanismo (e não ao do Meio Ambiente) a atuação nesses casos de fracionamento de solo em áreas de proteção ambiental:
ATO Nº 55/95 - PGJ, DE 23 DE MARÇO DE 1995 O Procurador-Geral de Justiça, no uso de suas atribuições legais, Considerando a freqüência de casos relativos a parcelamento de solo em área de proteção ambiental; Considerando que tais casos, em tese, envolvem atribuições dos cargos de Promotor de Justiça do Meio Ambiente e de Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, ambos especializados, gerando dúvida e conflitos de atribuição; Considerando, portanto, a conveniência de definir regras específicas de atribuição na matéria; Resolve: Artigo 1º. Observar-se-á o princípio da unicidade de atuação dos Órgãos do Ministério Público na apuração e adoção das medidas judiciais e extrajudiciais em defesa do meio ambiente e do urbanismo, na hipótese de parcelamento irregular do solo em área de proteção ambiental. Artigo 2º. O dano ao meio ambiente relacionado com o parcelamento irregular do solo em área de proteção ambiental será da atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, o qual providenciará, prontamente, nos autos da peça informativa ou do procedimento instaurado, exame pericial ou estudo técnico, sem prejuízo de outras medidas, observado o disposto no artigo 5º deste Ato.
Passados alguns anos de experiência dessa separação clara de
atribuições parece que não foi possível compor os conflitos mesmo assim e
continuavam as dificuldades de atuação nesta área. Por tal razão em 2003 novo ato
institucional foi expedido, desta feita unificando essas promotorias, encerrando-se
de vez o conflito: a partir de então apenas um Promotor de Justiça atuaria em tais
casos, devendo ele analisar tanto o aspecto do direito à moradia quanto o da proteção
ambiental e tentar na prática e em cada caso compor os dois interesses. Ato Normativo nº 303-PGJ, de 6 de fevereiro de 2003 O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, (...) Resolve (...)
196
Art. 1º. Ficam unificados, sob a denominação de Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo, criado pelo art. 2º do Ato Normativo nº 84, de 5 de março de 1996, e o Centro Operacional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente, criado pelo art. 1º, inc. I, do Ato Institucional nº 1, de 5 de março de 1990.
A experiência tem demonstrado, desde então, que a visão do Ministério
Público sofreu profunda modificação em relação à regularização fundiária de
assentamentos informais em áreas ambientais, pois tem prevalecido o entendimento
da prevalência do direito à moradia, desde que tomadas medidas recuperadoras do
ambiente lesado. Prova disto é que têm partido do Ministério Público muitas
manifestações públicas favoráveis a este tipo de regularização. A composição dos dois
interesses tem acontecido na prática em cada caso concreto aspirante à
regularização.
Como se nota, os conflitos em relação a tal tema existem até mesmo
dentro das instituições, o que não é de todo excêntrico dada à multidimensionalidade
deste assunto.
CONFLITOS DE PERFIL A história do movimento ambientalista no Brasil se caracterizou pela
participação dominante das classes da elite, mais esclarecida e com alta escolaridade,
como mostra a pesquisa iniciada em 1992: "O que o brasileiro pensa do meio
ambiente e do consumo sustentável", coordenada pelo Instituto de Estudos da
Religião.30
O ativista ambiental “clássico” é: homem, branco, escolaridade média
ou superior, morador de área urbana, com renda familiar superior a 5 salários
mínimos, preocupado com fauna e flora. Possui tendência a conservador e
contemplativo, embora isto tenha mudado muito conforme se verá.
Urbanistas não provêm, em condições normais, de classes populares.
Tanto quanto os ambientalistas, são pessoas que vivem em cidades, têm boa renda e
formação superior. O que os distancia não é a origem social, mas as crenças, a
maneira de pensar, suas disposições psíquicas e morais, sua personalidade e
formação. O que os distingue, portanto, são suas características psicológicas ,
intelectuais e comportamentais que dirigem ao longo do exercício de vida ou de suas
profissões as suas escolhas e escalas de prioridade.
30 Disponível no site pesquisado 21/04/08 http://www.repams.org.br/downloads/uso%20sust.%20dos%20RN.pdf
197
O que produz nítida dissemelhança entre essas duas classes de
intelectuais é o que está antes da formação e é também o que vem depois dela. São
as características pessoais com as quais a formação teórica irá interagir e aquilo que
resultará (comportamentalmente) dessa interação.
Na formação, até se aproximam. São ambos universalistas, embora em
microcosmos diversos. O planeta e a cidade. Curioso é que em determinado momento
da história contemporânea brasileira, urbanistas e ambientalistas compuseram
partidos de mesma base ideológica: a esquerda. Isto ao tempo em que ambientalistas
acreditavam (o que por volta do início dos anos 80 se constatou ser inviável) que a
Política Verde se poderia executar pelos partidos de esquerda somente.31
O urbanismo, que nos anos 30 abrigava planejadores e executores de
planejamento, sofre a partir do pós guerra significativas mudanças. A partir do final dos
anos 40 planejar e projetar são vistos como dois processos distintos. “Os órgãos
municipais passam a definir um espaço de atuação específica de urbanistas.
Constituem-se departamentos de urbanismo, arquitetura e obras, que vão concretizar
a clivagem na atuação de urbanistas, arquitetos e engenheiros na administração
local.(...) Define-se [então] o novo perfil do urbanista: profissional generalista, não
especialista, com capacidade coordenadora de equipes multidisciplinares.”
(FELDMANN).
Este personagem, cuja necessidade de existência se constatou a partir
do agigantamento das cidades produzido pela industrialização, personagem dos
lumiares do século XX, portanto, teve todo esse século XX para se dar conta da
importância de fazer a cidade funcionar levando em conta dimensões políticas e
sociais. A experiência o ensinou. Se a formação do urbanista abrange hoje
conhecimentos de ciências sociais e de ciências políticas, não é sem motivo.
O urbanista é, desde que abandonou as escrivaninhas públicas do
planejamento tecnocrático, capacitado a traduzir as necessidades individuais, de
grupos sociais e das comunidades, com relação à concepção, planejamento e
construção de espaços, promovendo a valorização do patrimônio natural e do
construído, o respeito à história e à cultura e contribuindo na manutenção do equilíbrio
entre ambiente físico, natural e social.
Tais circunstâncias, aliadas à sua inquietude por natureza e à sua
inconformidade por formação o tornam um profissional que aspira por reformas e quer
fazê-las. Urbanista deseja priorizar o homem, ver eqüalizados os múltiplos interesses
que determinam a formação da cidade e organizá-la e sabe que a existência da cidade
deve o quanto possível complementar o ambiente natural. 31 conforme site pesquisado em 21/08/08: http://www.pvrs.org.br/menu/pvnobrasil.htm
198
O Movimento Ambientalista, que conta atualmente com diversas
ciências envolvidas na defesa do patrimônio ambiental (engenheiros químicos e
florestais, biólogos, geólogos e outros), ligados ou não a órgãos públicos, foi gestado
em países industrializados surgindo como movimento planetário dos anos 60. Não é
de há muito que percebeu a importância de sua participação política e é aos poucos
que tem notado que política nenhuma se realiza sem considerar a dimensão humana e
social.
Se a este cenário aduzirmos a brandura de índole de seus membros e
seu pouco entusiasmo com rupturas, teremos um profissional que vê a natureza e o
mundo em tal ordem de prioridade e preciosismo que é preciso conter o homem, frear
sua voragem insaciável de urbanização e desenvolvimento e ecologizar as cidades.
Para ambientalistas, o quanto existe de natureza precisa ser expandido introjetando-a
nas cidades existentes e é necessário combater o avanço das cidades pois o quanto
existe de ambiente urbano é suficiente para contentar a sede humana de progresso. O
ambientalista está aos poucos constatando a necessidade de sociologizar as questões
ambientais.
Essas duas formas bem diversas de perfil terminam por manifestar-se
no embate sobre regularizar ou não moradias situadas em áreas ambientais. Uns
desejam regularizar porque a prioridade é o homem que precisa de um abrigo e vêem
na regularização uma chance de compor os interesses humanos com os ambientais.
Outros desejam afastar as moradias desses ambientes porque objetivamente,
segundo eles, as áreas de proteção não conseguem, com a presença humana
diuturna que uma moradia representa, exercer suas múltiplas funções ambientais de
preservação de flora, fauna e mananciais.
CONFLITOS DE GESTÃO
Visto o conflito sob outra ótica, era natural que os embates entre
ambientalistas e urbanistas não tardassem a acontecer. Com as cidades avançando
no território, chega sempre um momento em que a cidade alcança áreas naturais
preservadas, intocadas ou pouco modificadas de sua vocação ambiental.
Embora ambos os profissionais sejam universalistas, fato é que o
urbanista atua de forma centrada em um tema especializado: o meio urbano. Ainda
que se exija dele que se sinta confortável em diversas áreas do conhecimento para
poder dar conta da multiplicidade de necessidades urbanas, esse universalismo é
segmentado, o que não ocorre com o ambientalista, para quem praticamente não há
199
nada no mundo que se possa dizer inalcançável pelo ambientalismo. Ambiente é tudo,
ou um pouco de tudo.
E aqui outra diferença entre estas ciências: uma pesquisando tudo de
uma parte e a outra analisando uma parte de tudo.
Urbanista é levado a pensar o local e a levar em conta as questões
sociais ambientadas nesse local. Sua sensibilidade para as questões sociais é
inevitável. Mesmo que não o desejasse, o urbanista não teria como deixar de encarar
as diferenças sociais ou as injustiças múltiplas que na cidade são ainda mais cruentas.
A concentração do urbanista nos problemas do urbano (ainda que
multifacetados) lhe facilita simpatizar-se com a causa dos que vivem e se consomem n
a cidade, objeto de seu estudo.
Já o conhecimento ambientalista, em razão de sua amplitude, se
fragmenta. Ele que foca no “tudo” que o ambiente natural representa, se desvincula do
homem e das situações específicas. Fuchs (1992) evoca este apriorístico desafio da
atividade ambientalista:
...sua definição é regida pelas tensões e articulações entre o caráter universal da formulação (...) e a particularidade inevitável das situações contextualizadas. (FUCHS, 1992)
O ambientalismo tem no multi-setorialismo sua força e sua fragilidade. A
propriedade que tem o ambientalismo de se espalhar entre diversos setores da
sociedade e sua penetrabilidade transversal nas demais ciências, são consideradas
suas principais conquistas e ao mesmo tempo o motivo principal de suas derrotas.
Quanto maior a diversidade, tanto mais apoios pela universalização de
pretensões; quanto menor sua especificidade, tanto menor simpatia por parte dos que
defendem o ambientalismo se manifestando pontualmente, caso a caso.
Talvez seja por estes motivos que a dimensão humana das questões de
regularização fundiária em áreas ambientais sensibilize tão pouco a ambientalistas.
Não há foco possível. A tendência necessária é ver o amplo, o supra-humano, para
entender mecanismos mais complexos que talvez acabem um dia fazendo total
diferença para a preservação da raça.
Não deixa de ser verdade que o ambientalista vê o homem. Mas o vê
não isolado no contexto de sua condição humana ou de sua condição urbana. Ele o vê
no contexto ampliado do ambiente inteiro. Este o motivo pelo qual não se lhe advém
pruridos de consciência ao propor a remoção do homem dos espaços ambientalmente
200
protegidos, mesmo sabendo que aquele espaço não é utilizado senão para fins de
moradia.
É que encarando o homem como elemento no qual diretamente
incidirão os resultados seja dos maus tratos, seja dos bons cuidados com o ambiente,
ele o vê ao encerramento dos ciclos ambientais sendo beneficiado pelo contexto
ambiental final favorável, ou por ele prejudicado, se hostil. E se para isto seja
necessário que o homem abandone aquela área utilizada “indevidamente” para fins de
moradia, será este um preço a pagar para que esta e as futuras gerações possam
harmonizar-se com o ambiente natural mais do que o fazem com o ambiente urbano.
O ambientalista tanto vê o homem que sua preocupação central não é,
propriamente, o destino do planeta, mas o da raça humana.
Segundo o ambientalismo, não é preciso que ninguém se preocupe com
a Terra. O Planeta vai se salvar. Ele se adapta. Estava aqui antes dos homens e
estará depois. É muito mais velho do que os seres humanos. A humanidade é que
talvez sucumba. O ser humano na terra é que corre risco de inviabilidade. O homem
desenvolve capacidade tecnológica cada vez maior, muda tudo de acordo com sua
conveniência e está, por conta disto tudo, aumentando de forma por demais
significativa sua pegada na terra. A preocupação central do ambientalista, portanto, é
com o ser humano e não propriamente com a Terra.
CONFLITOS DE TRAJETÓRIA E ATUAÇÃO POLÍTICA Não há substanciais diferenças entre as estratégias dos movimentos
urbanistas e dos movimentos populares (apoiados por urbanistas, conforme ficou
demonstrado no capítulo dos movimentos sociais ao longo da pesquisa) para legitimar
politicamente suas ações. A ativa participação da sociedade civil, especialmente dos
movimentos sociais, das entidades e associações populares, no que toca às questões
urbanas e ambientais busca sempre introduzir novos atores como agentes decisivos
na adaptação do modelo ou na construção de um novo modelo de desenvolvimento e
requer dos organismos internacionais e dos governos que estes os aceitem como
interlocutores e se abram à participação democrática.
Ambientalistas sempre enfatizam as dificuldades que experimentaram
para trazer as questões ambientais para o centro da agenda política dos governos,
sindicatos, partidos, movimentos sociais. Para isto contribuiu o desinteresse de alguns
setores da esquerda brasileira, para cujos grupos o ambientalismo era “uma questão
menor”, frente aos “problemas estruturais da sociedade”.
Apoio à discussão ambiental faltou também de setores da direita
chamados “desenvolvimentistas”, que viram o ambientalismo como um conjunto de
201
“idéias românticas” que poderiam espantar investidores e fontes de lucro, ou como
obstáculo para superar o atraso.
A soma de desinteresses dos principais matizes políticos foi motivo de
grande dificuldade para firmar-se o ambientalismo como matéria política digna de
disputar espaços e os primeiros militantes ecológicos tiveram de arrombar várias
portas bem fechadas para tornar legítima a preocupação com o meio ambiente.32
Analisando-se as conexões sociais e políticas, percebe-se que se
urbanização consiste no deslocamento de pessoas que saem da área rural para os
centros urbanos, quem estuda os processos que levam a esses movimentos e a forma
como devem as cidades estar preparadas para receber essas pessoas com qualidade
ou minimamente com dignidade, estará inevitavelmente mais próximo de pessoas do
que profissionais de outras áreas, ainda que afins.
Assim, embora urbanistas sejam, tanto quanto ambientalistas,
profissionais com formação acadêmica (o que já garante àqueles um diferenciamento
social que mais os aproxima de ambientalistas que de movimentos populares) o fato
de urbanistas exercerem atividades muito mais próximas de pessoas do que os
ambientalistas (mais voltados aos processos do ambiente preferencialmente com
pouca interferência humana) dá àqueles uma visão das necessidades humanas que o
ambientalista normalmente não possui.
Urbanistas não são necessariamente arquitetos ou engenheiros que
podem centrar sua visão profissional na edificação do belo, do confortável e do
harmônico. Por isto urbanistas se vêem na contingência de encarar a cidade de forma
ampla, com suas conexões e confrontos e não podem prescindir de uma visão política
das questões urbanas, que contribui muito para o entendimento das complexidades do
urbano e dos dramas humanos que ali se apresentam.
Disto resulta que urbanistas estejam mais propensos a sensibilizar-se
com problemas humanos do que ambientalistas estão.
Por tais características próprias da atividade escolhida, é natural que
urbanistas se aproximem de classes populares para aprimorar o desempenho de sua
atividade profissional.
Data dos primeiros lampejos de redemocratização no Brasil a
aproximação e maior envolvimento dos urbanistas com os movimentos populares
(movimentos de moradores de cortiços, favelados, de regularização de loteamentos
clandestinos e sem-teto).
32 Pesquisa oficial Juventude, Cidadania e Meio Ambiente - Subsídios para a elaboração de políticas públicas, em http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaoambiental/jcambiente.pdf acessado em 14/04/08
202
É nesta ocasião que, segundo Rolnik (2000), “os parâmetros
tradicionais do planejamento urbano começam a ser questionados no contexto do
processo de politização da questão urbana, que ocorre com a emergência dos
movimentos sociais urbanos a partir do final dos anos 70. Dentro do âmbito de reforma
do ordenamento jurídico nacional, os movimentos impulsionaram o tema da Reforma
Urbana, politizando o debate sobre a legalidade urbanística e influenciando fortemente
o discurso e as propostas nos meios técnicos e políticos envolvidos com a formulação
de instrumentos urbanísticos.
A aproximação se expressou, então, em boa parte:
• na luta pela redemocratização
• no apoio às reivindicações urbanas e, mais intensamente,
• na formulação da emenda popular da reforma urbana para a constituinte de
1988.
Nesta mesma época, “um dos temas que marcaram os debates foi a
relação da legislação com a cidade real e, sobretudo, sua responsabilidade para com
a cidade irregular, informal e clandestina. A idéia da necessidade de legalizar a cidade real parte do movimento popular, alcançando diversos setores da sociedade
e resultando em uma proposta de reformulação da legislação através da Emenda Popular da Reforma Urbana, encaminhada ao Congresso Constituinte em 1988 pelo
Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Aí estavam contidas as propostas que
procuravam (...) [democratizar] o solo urbano.” (também ROLNIK 2000)
E como tais movimentos populares já estavam conectados com setores
da intelectualidade brasileira de esquerda e com setores da igreja, a aproximação dos
urbanistas com esses setores foi reflexa.
Esta multiface das relações humanas na cidade envolvendo urbanistas
permitiu a estes uma visão de mundo, de processos econômicos e de mecanismos
políticos que os impede de desconsiderar problemas sociais presentes na
regularização da situação de moradias, que são inseparáveis das questões urbanas e
fundiárias.
Talvez para os conflitos contribua, ainda, como lembra Rolnik, 1996, o
fato de que urbanistas estão aliados a lideranças construídas por fora da rede de
intermediação política, enquanto as lideranças ambientalistas foram gestadas dentro
do ambiente político, como parte mesma do staff político.
203
COMPROMISSO COM REFORMAS SOCIAIS Há ainda conflitos quanto às diferenças no compromisso com rupturas
da estrutura social. É da essência do movimento urbanista o comprometimento com
mudanças na estrutura da sociedade, pois o desenvolvimento verdadeiro só ocorre
com reformas social.
Feito o diagnóstico da questão urbana, especialmente o da
insustentabilidade intrínseca do processo de crescimento urbano lateralizado,
centrifugado e espraiado, não restava senão combater as causas desse crescimento,
identificadas como aquelas ligadas à estrutura econômica e social. É critica corrente entre não-ambientalistas, que o ambientalista entenda,
in genere, dada à sua formação algo mais conservadora, que o desenvolvimento é
compatível com a continuidade. Daí seu radicalismo bem menos acentuado do que o
de profissionais de algumas outras áreas.
Em seus primórdios, no início dos anos 70, o movimento ambientalista
operou de forma radical em razão da necessidade de firmar-se como opção política
mas tendeu à moderação a partir da década de 80, com a decadência do regime
militar, ganhando força a partir de então. Isso se deu em função da abertura política e
do retorno de exilados políticos, como Fernando Gabeira, que conviveram com grupos
ecológicos europeus. O movimento começou a deixar de ser radical quando se
percebeu que, passando a oposição a ser uma alternativa de poder, era preciso
passar a propor soluções viáveis e criativas.
A partir daí ambientalistas politizaram seu movimento, ingressaram na
política, conquistaram simpatias e fração considerável do eleitorado brasileiro, avesso
a radicalismos; e passaram a interferir nas discussões e decisões da sociedade. Essa
transformação, entretanto, não pode ser considerada um avanço histórico porque isto
seria confundir o ganho em posições meramente setoriais com uma efetiva mudança
civilizatória.
Se dependesse apenas do movimento ambientalista os valores que
guiam a sociedade sofreriam mudanças pontuais, setoriais, mas continuariam a ser
em essência os mesmos da lógica de mercado e da burocracia estatal. Sem dúvida
que por conta das atividades ambientalistas mudanças e progressos aconteceram mas
não causaram uma ruptura conceitual no modo de produção das cidades.
Sempre segundo alguns urbanistas, as estruturas sociais pré-
estabelecidas informam a atuação dos movimentos ambientalistas, que desenvolvem
projetos de incentivo ao desenvolvimento do mercado. E não é possível falar em
204
mudança histórica se a estrutura de mercado prevalece, se a atuação das ONGs tem
como pautadores a mídia a opinião pública.
Por tudo isto o Movimento ambientalista brasileiro não teria contribuído
para grandes mudanças ou reformas sociais. Não provocou mudanças radicais na
estrutura social do país.33
O ambientalismo não chega a ser, no Brasil, portanto, um marco
civilizatório, a partir do qual surgem novas relações do homem com o meio ambiente já
que não alterou de forma significativa as relações sociais. Pelo contrário, conformou-
se à estrutura de mercado e à cultura tradicionais.
Por outro lado, o comprometimento de urbanistas com reformas que
permitissem o florescimento de novos valores, novas práticas e com isto resultados
diferentes dos até aqui obtidos, permitiu o entendimento de que a regularização
fundiária em área de APP precisa acontecer, por atender a um critério de justiça; por
priorizar o homem; por priorizar o direito à moradia; por permitir uma nova prática na
conduta do homem frente ao ambiente.
As agressões da moradia ao ambiente são, segundo muitos urbanistas,
infinitamente menos gravosas para o ambiente do que a agricultura e a produção
industrial, por exemplo, que, por se sintonizarem com padrões de desenvolvimento,
são vistas pela sociedade com alguma tolerância.
CONFLITOS DE OBJETO (CONCEITUAIS) Aqui se agrupam as diferenças na forma de ver a cidade e o ambiente e
de propor encaminhamentos e soluções.
VISÃO DO REAL E VISÃO DO IDEAL Os conflitos dessas áreas se estabelecem a partir de falsas premissas
quanto àquilo que seja ambientalmente ideal ou urbanística ou socialmente adequado.
As questões ambientais são quase sempre colocadas em uma
perspectiva do “ideal” enquanto que as questões de moradia (ligadas ao direito à
moradia e ao urbanismo tomado em sua acepção ampla) são colocadas sob ótica do
“real”. Esta diferença quanto à extensão de um e de outro já gera conflitos na medida
em que o ideal ambiental é necessariamente extenso, abrangendo áreas da realidade
urbanística.
33 ALEXANDRE, Agripa Faria; tese de doutorado Ambientalismo político, seletivo e diferencial no Brasil. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). In http://www.multirio.rj.gov.br/sec21/chave_artigo.asp?cod_artigo=3537 acessado em 01/04/08.
205
Argumento comum que se encontra em escritos de origem urbanística é
que, uma vez constatada uma situação de irreversibilidade, de consolidação do
assentamento de moradia e de inviabilidade da remoção pura e simples dessas
verdadeiras cidades construídas, por falta de opção, à margem da lei, é preciso ser
realista e promover as remoções possíveis que sejam necessárias para dar ao espaço
uma conformação mais urbana e para liberar o mais possível o espaço de APP.
Ambientalistas, porém, alertam para a necessidade de agir
considerando situações ideais e caminhando em direção a elas. Partem às vezes da
idéia de que as situações de irregularidade não são eternas e que a insistência em
manter-se a irregularidade terminará gerando a regularidade de uma forma ou de
outra.
O problema é que a experiência demonstra claramente que a única
forma de tornar regulares situações de irregularidade urbana têm sido as leis de
anistia que não regularizam nada e não garantem nenhuma recuperação ambiental.
A regularização fundiária teria, portanto, pelo menos a vantagem de
regularizar exigindo algum nível de recuperação ambiental, que será saudável para o
conjunto da sociedade.
Ambientalistas insistem, no entanto, que se realmente é necessário
levar em conta a “consolidação” como critério, seria importante seguir dois critérios
filosóficos: a distinção entre passivo urbanístico-ambiental e loteamentos futuros; e
evitar que a flexibilização dos requisitos ambientais somente beneficie ocupantes que
não tiveram outra opção senão a irregularidade e evitar que essa flexibilização
aproveite a loteadores de alto padrão que, apenas por cobiça, aterraram nascentes,
destruíram rios e desmataram na calada da noite.
FORMAS DE ENCARAR A CIDADE Divergem ambos, também, na forma de encarar a cidade.
A cidade, que a lógica imediatista do capital vê como “fonte de
acumulação” se contrapõe fortemente à cidade como “valor de uso” onde todos
possam ter acesso aos custos e benefícios de urbanização e onde prevalece o direito
à cidade. Urbanistas vêem a cidade, aceitam-na como palco comunitário no qual se
confrontam todas as forças econômicas, políticas, sociais e populares e desejam vê-la
transformada naquele “valor de uso” na qual, para que todos tenham vez, não pode
haver espaço para exclusões.
Ambientalistas vêem a cidade como um adversário embrutecido que
precisa ser domesticado para que haja um mínimo de convivência com a natureza ou
que, pelo menos, para existir, não enseje necessariamente a aniquilação do ambiente.
206
A cidade é vista como a causa dos principais males do ambiente e que precisa,
exatamente por isto, ser confrontada na sua vocação expansionista.
Para ambientalistas, portanto, todos os males que digam respeito ao
ambiente urbano precisam ser contidos, ficar circunscritos aos limites da cidade e ser
por ela resolvidos, com seus próprios meios. O assentamento informal para fins de
moradia, sendo uma das expressões físicas do malfunction urbano, precisa ser
resolvido no próprio ambiente urbano e não transferido para outros setores que
supostamente em nada contribuíram para que aquele sintoma de males urbanos
surgisse.
Diferenças e conflitos se revelam também na forma de encarar a
ocupação de uma determinada área para fins de moradia.
Para urbanistas a ocupação para fins de moradia de espaços
ambientalmente protegidos mais não é do que legítima manifestação do direito à
moradia.
Veja-se que ambientalistas, no entanto, em geral encaram as
ocupações para fins de moradia nas áreas ambientais não como uma expressão do
direito à moradia mas como “lesão ambiental” que carece ser curada. É o que se dá,
por exemplo, em Figueiredo (2005, FLS. 517): O grande desafio do Direito Ambiental Brasileiro no Século XXI será enfrentar (...) a condição de país pobre, periférico, com uma crescente desigualdade social que acaba acarretando um outro tipo de lesão ambiental: a ocupação humana de espaços ambientais via de regra acompanhada de uma ausência completa de condições sanitárias ambientalmente adequadas. O desrespeito à legislação ambiental produz, paradoxalmente, mais intensa certeza da importância vital do Direito Ambiental para a sobrevivência planetária.
Um tal entendimento apriorístico de que moradias em áreas ambientais
são apenas lesões ambientais (deixando de ver nelas a dimensão social) por certo
apenas dificulta o diálogo que precisaria acontecer entre as duas ciências para
encontrar caminhos de consenso que permitissem acudir, a um só tempo, tanto as
fragilidades urbanas e sociais, como as ambientais.
É substancial equívoco o movimento ambientalista não se dar conta de
que o verdadeiro inimigo ambiental não é, em essência, a moradia. As principais
agressões urbanas atuais ao ambiente decorrem de movimentações irregulares de
terra, caixas de empréstimo (locais de extração de terra, areia ou pedra), pedreiras,
lixões, aterros sanitários, usinas de compostagem, incineradores, fontes industriais, e,
no meio rural, agricultura mecanizada e derrubada de florestas para criação de
pastagens.
207
FORMAS DE COMPREENDER O CUSTO SOCIAL Quando ambientalistas defendem a retirada dos moradores das
proximidades dos mananciais, buscam defender o recurso hídrico ou ambiente além
de, obviamente, o bolso público que é, se visto na essência, o bolso de cada um (o
que os inclui). São pessoas em geral de classe média que têm noção de que o
tratamento da água poluída do manancial pelas descargas de esgotos e de águas
servidas tem custo elevado para a sociedade.
A respeito do mesmo tema, no entanto, os urbanistas argumentam que
o preço que a sociedade paga para tratar a água que milhões de pessoas precisam
consumir e que é conspurcada pelos moradores dessas áreas, é um custo a pagar
pelo descaso com que no passado enfrentou e ainda hoje vem enfrentando o tema da
segregação e o da exclusão. Se ela, sociedade, pretende um dia livrar-se deste custo,
que atue desde já em favor da regularização fundiária (atuação curativa) e em favor de
outras formas que incentivem a inclusão e a convivência dos diferentes nos espaços
nobres da cidade (atuação preventiva).
CONCEPÇÃO DO ALCANCE DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA O urbanista sabe que a regularização fundiária que a sociedade anseia
em relação a essas áreas ambientais que foram ocupadas e que já estão consolidadas
é aquela que se faça com o mínimo de sacrifício ambiental possível. E se houver
algum nível de sofrimento ambiental, a sociedade deseja que ele seja mitigado,
compensado, indenizado ou de alguma forma recuperado. Ele olha a realidade e vê a
necessidade de intervenção levando em conta princípios impregnados de realidade.
O ambientalista põe seus olhos no ideal e teme pelos resultados de
uma regularização fundiária feita maciçamente sem critério ou com critérios não
suficientemente protetores para o ambiente.
Considera que o homem ainda não conhece os mecanismos de
sofrimento e de capacidade de auto-recuperação do ambiente. O homem sabe muito
pouco do ambiente, suas reações e capacidades. Exatamente por isto, permitir que
áreas ambientalmente importantes sejam ocupadas para depois regularizá-las
mantendo-se os ocupantes nesses locais, mesmo que se tomem medidas protetivas
que hoje julgamos eficientes e adequadas, pode resultar em convivência pacífica e
saudável do homem com a natureza, mas pode na verdade constituir uma tragédia no
futuro. Não se sabe até onde irão os resultados dessas ações humanas que
confrontam o ambiente e o sobrepujam.
208
Então, por não se saber desses resultados, o que a prudência
recomenda é a não agressão ou a cura da agressão por meio da remoção dessas
moradias desses locais. Nada mais, nada menos, que utilização do princípio da
precaução que hoje já se aplica a situações como antenas de telefonia móvel em
áreas urbanas ou como segurança dos alimentos transgênicos. Por precaução, já que
o conhecimento técnico não atingiu ainda níveis que permitam afirmar com segurança
os resultados da utilização de um ou de outro, melhor não os utilizar.
Assim pensa então o ambientalista: se já pudesse a humanidade
dominar com folga conhecimentos que permitissem afirmar com segurança que a
regularização fundiária feita com observância de cuidados ambientais não resultaria
males irremediáveis às áreas em que os assentamentos de moradia se encontram,
então se poderia sim falar em regularizar tais assentamentos. Como isto está longe de
acontecer, melhor não regularizar e promover a remoção dos moradores dessas áreas
tão logo quanto possível, preferencialmente encontrando alternativas para a moradia
dos removidos.
Parece, contudo, que urbanistas, técnicos e moradores dessas
ocupações possuem já um capital acumulado de conhecimento a respeito do tema da
regularização em área ambiental capaz de evidenciar de forma algo clara que
regularizar seja a medida correta que consulta ao interesse de todos os envolvidos:
moradores, ambiente e instituições.
VISÃO DE FUTURO Enquanto para urbanistas é preciso pensar no hoje, na situação
consolidada, nas verdades que nascem da realidade constatável ictu occuli no
ambiente social, para ambientalistas é preciso pensar no amanhã e projetar um futuro
minimamente desejável.
Este confronto é, além de óbvio, dos mais saudáveis por permitir uma
digressão franca a respeito daquilo que realmente importa para aqueles que ocuparão
a terra depois de nós.
Não há quem possa, pelo menos no atual estágio de desenvolvimento
do conhecimento humano, que eventual regularização de espaços de moradia possa
comprometer os recursos hídricos e, com isto, o futuro da humanidade de forma
irremediável. As evidências são, isto sim, em sentido contrário, pois não é crível que
por conta da regularização dos espaços de moradia, desde que postas em prática
soluções técnicas para a questão ambiental, o planeta se veja sob impacto tal que o
impeça de continuar a exercer suas funções de abrigo humano.
209
Fato é que enquanto se discute se essa regularização compromete ou
não o ambiente de forma irremediável, há milhões de pessoas sem moradia
adequada, vivendo em condições sub-humanas, em franca oposição à regra
constitucional da proteção mínima da dignidade inerente aos seres humanos, e o
problema agudiza ainda mais.
O mesmo diagnóstico é dado por Bueno (2004): A intensificação da pobreza, da precariedade e da irregularidade na forma de morar nas cidades, por um lado e, por outro, o aprimoramento da legislação urbanística e ambiental a partir dos anos 80, resultaram em uma situação generalizada de impasses operacionais e legais, associados a um grande sofrimento das populações envolvidas – seja pelas condições precárias de vida, seja pela insegurança em relação à moradia. A fiscalização do uso do solo, principalmente de interesse local, é historicamente ineficaz. A redemocratização do Brasil e a atuação do movimento urbanista recolocam o tema do controle urbano na pauta da gestão municipal nos anos 90.
A conclusão é pela necessidade de pensar já no agora, no hoje,
logicamente equacionando soluções ambientais de forma a compatibilizar esses
diversos interesses. É uma solução que atende aos interesses da moradia sem
afrontar por demais o interesse ambiental. É, portanto, uma solução viável, compatível
com o que se pode esperar de um pais da linha sul do planeta, ainda não
suficientemente desenvolvido.
CONFLITOS DE ESFERAS DE COMPETÊNCIA Por conta do campo mesmo em que atuam, ambientalistas carecem
elaborar normas de interesse mais difuso, conteúdo mais amplo, abrangente,
genérico, enquanto urbanistas se ocupam de normas de interesse local, específico.
Isto explica que ambientalistas atuem mais nos âmbitos federal e estadual criando leis
ou outras normas nacionais ou regionais, enquanto urbanistas tenham atuação muito
mais destacada nos municípios. E explica também o fato de ambientalistas terem um
Conselho Nacional de Meio Ambiente com poder deliberativo, enquanto urbanistas
somente recentemente conquistaram o direito a um Conselho Nacional, mas com
caráter meramente consultivo. É que as regras urbanísticas não costumam mesmo ter
caráter nacional vinculante, salvo em algumas exceções como aquelas atualmente
contempladas no Estatuto da Cidade.
É de pouca valia criar uma regra ambiental altamente protetora para a
cidade de São José do Rio Preto, se a cidade vizinha polui desbragadamente. Mas
convém ao peculiar interesse do município que as regras de edificação sejam por ele
estabelecidas.
210
Por isto mesmo, são poucas as incursões de ambientalistas no campo
local e são igualmente raras as de urbanistas no nível federal.
Todos sabem, contudo, que para realmente produzir novos valores,
nova cultura e com isto comportamentos diferenciados, é preciso editar regras
nacionais, que devam ser observadas pelos Estados Federados e pelos municípios.
Mas há muito assunto que convém sobremodo ao interesse do
município mas só pode ser regulado por lei federal. A propriedade, por exemplo. O
preço da terra não sofreria nenhuma alteração significativa se as regras para obrigar a
propriedade urbana a cumprir funções sócio-ambientais não fossem fixadas
nacionalmente.
Por outro lado, adianta pouco que se criem regras ambientais nacionais,
no CONAMA, se municípios tiverem liberdade para alterar essas regras de acordo
com seu “peculiar interesse”.
É por isto que em alguns assuntos urbanistas se prestam a elaborar
regras de caráter nacional e ambientalistas se debruçam a limitar a edição de regras
locais.
A diferença é que as regras de interesse urbanístico elaboradas no nível
federal criam um mínimo necessário a partir do qual todos os municípios possam agir
segundo seu “peculiar interesse” enquanto que as regras de interesse ambiental
elaboradas no nível federal criam um limite máximo possível a partir do qual a
liberdade municipal não existe. Normas urbanísticas federais criam piso aquém do
qual município algum pode regrar; e regras ambientais federais estabelecem um teto
além do qual nenhum município pode normatizar.
Antes da democratização urbanistas e ambientalistas tinham
reduzidíssima participação política e por isto não influenciavam de forma importante ou
metodizada a elaboração de normas. A legislação ambiental dessa época se limitada a
criar parques nacionais e regras anti-poluição.
Como os assentamentos irregulares ou clandestinos de moradia
ganharam impulso em meados anos 70, a situação parecia grave em 1977 quando o
então Senador Otto Lehmann, da ARENA (Suplente do Senador Orlando Zancaner,
que havia renunciado ao cargo em 19/04/76 em virtude de ter sido nomeado
Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo) formulou Projeto de Lei
18/79 (de 12/03/79) que se converteu na Lei de Loteamentos (6.766) de 1979.
O movimento ambientalista não estava, nesta época (meados dos anos
70) estruturado, o que o torna insuspeito de ter sido agente inspirador desse conjunto
de normas.
211
Nem se tinha então noção exata do tipo de mecanismos que levam
moradores para as áreas públicas e para as de APP (o que impedia a visão da
injustiça que se cometia pela exclusão social e pela segregação espacial, noções que
apareceram alguns anos depois), razão pela qual a Lei 6.766 não decorreu de
qualquer “movimento social” ou popular.
O fato de ter havido uma Lei em 1979 com caráter protetivo da ordem
urbana, nos permite elucubrar a respeito do tipo de pressões políticas que a
inspiraram. Seu autor: um advogado com formação na principal academia de São
Paulo, conhecida por seus alunos de condutas liberais mas de formação
conservadora.
Lendo-se sua exposição de motivos não se percebe senão uma
preocupação com a ordem e a organização na produção irregular de moradias dos
grandes centros urbanos, o que faz então presumir que provavelmente tenha sido
engendrada por urbanistas, preocupados com a ordem urbanística, ainda não
sintonizados com os movimentos de esquerda como posteriormente aconteceu.
Até que fossem desfocados da questão meramente urbanística e
despertados para a fulcralidade do problema social, urbanistas não viveram crise
alguma de identidade. Apesar de sua formação nitidamente voltada para as questões
que já então empolgavam os partidários da esquerda abrigados nas academias,
urbanistas não viveram grandes dramas de consciência naqueles anos políticos
instáveis da década de 70. Em vigor a ditadura no seu apogeu (o Ato Institucional 05 é
de 1968) que calava discordâncias, intelectuais e povo evitavam o quanto possível as
irregularidades de quaisquer espécies.
As tormentosas questões conflitantes entre o direito à regularidade
urbana e o direito social à moradia ainda não se apresentavam. Urbanistas sequer
desconfiavam, a despeito de sua formação voltada para questões de importância
social, que menos de uma década depois estariam liderando movimentos pelos
direitos sociais.
Há de ter havido, portanto, ao final dos anos 70 e início dos 80, um
conflito inesperado, de dissensão: urbanistas preocupados com a regularidade urbana
em oposição a urbanistas focados nas questões sociais que mais de perto falavam às
comunidades populares.
Com a chegada ao poder de partidos de centro-esquerda e, mais
recentemente, de esquerda, os assuntos de direto interesse urbano puderam contar
com regras federais que flexibilizaram direitos identificados com valores da direita
(propriedade por exemplo) e assuntos de direto interesse ambiental foram
empoderados para que a sociedade ditasse as regras (criação do CONAMA, por
212
exemplo). Convém lembrar, a propósito, que embora o ciclo autoritário político
brasileiro tenha se extinguido oficialmente somente em 1986, como a desmilitarização
do poder se deu de forma “lenta, gradual e restrita”, alguns assuntos foram
democratizados bem antes de 1986, a por exemplo da questão ambiental.
A criação do CONAMA, em 1981, facilitou a democratização do assunto
ambiental e a participação da sociedade civil organizada na edição de normas nesta
área.
A Constituição Federal, em 1988, se revela a regra-mãe mais ecológica
de todas as que o Brasil já teve. Em nenhuma outra Constituição brasileira foram
incrustradas tantas regras tão reveladoras de preocupação ambiental. Ela reflete a
chegada ao poder normativo (poder parlamentar constituinte) de tantos personagens
que a redemocratização política resgatou de exílios compulsórios ou voluntários.
Reflete a onda de regramentos que o pensamento ambiental gerou naquela
oportunidade.
Quando tiveram chance de se aliar aos movimentos populares e atuar
no âmbito federal, por volta de 1984, urbanistas produziram o capítulo da Reforma
Urbana e o Estatuto da Cidade. Quando tiveram receio de que regras municipais
pudessem comprometer todo um conjunto de esforços normativos federais,
ambientalistas produziram Resoluções que, como a 369, limita e condiciona muito
(pela fixação de inúmeros requisitos) a possibilidade de os municípios licenciarem a
regularização fundiária em áreas ambientais atendendo a seu “peculiar interesse”.
Foi este o momento em que os ambientalistas limitaram o alcance do
“peculiar interesse municipal” para fazê-lo submeter-se a um expressivo conjunto de
regras federais de observância cogente por todos os municípios.
Até aqui, todavia, por conta de um determinado assunto qualquer,
urbanistas se lançavam à elaboração de leis federais e, por conta de outro assunto
qualquer, ambientalistas corriam a limitar a liberdade de estados e municípios
editarem leis por demais liberais.
Com a regularização fundiária, pela primeira vez um mesmo assunto
produz contemporaneamente os dois resultados. A regularização fundiária tem sido
responsável, portanto, por algumas mudanças importantes naquela dinâmica
urbanistas/local, ambientalistas/nacional. Urbanistas têm sido responsáveis por
significativas mudanças legais na área federal (para permitir a CONCESSÃO DE USO
ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA, por exemplo, foi necessária a alteração de
quase uma dezena de leis federais) e ambientalistas têm produzido normas federais
com caráter de aplicabilidade bem local, focado, como é o caso da Resolução 369 do
213
CONAMA que embora permita a edição de norma municipal, a condiciona
intensamente.
Isto tudo pode ser visto como um dos muitos sintomas positivos da
ambientalização da questão urbana (em processo) e a incipiente urbanização da
questão ambiental. O que preocupa é que a resolução 369, por exemplo, exatamente
por estabelecer duas dezenas de requisitos para que a regularização seja possível,
evidencia de modo claro a preocupação dos ambientalistas não com a questão social,
mas com a questão ambiental. Embora ambientalistas já dêem mostras de assimilação
da possibilidade de o ambientalismo impregnar-se de assuntos urbanos, há ainda
muito a trilhar para que o ambientalismo se inocule da questão social.
DILUIÇÃO DE CONFLITOS Os conflitos e o lado negativo da ocupação de áreas ambientalmente
sensíveis são de alguma forma amenizados, suavizados, quando se busca
compreender que a ocupação, embora aprioristicamente possa ser considerada
inadequada, é em boa medida justificável e que mesmo não sendo um direito, é sob
muitos aspectos moral e legítima e juridicamente lícita.
Contribui também para serenar os ânimos dos conflitantes o saber que
para regularizar, é necessário compatibilizar, por critérios eminentemente técnicos, o equilíbrio dos interesses envolvidos, objetivando de um lado a permanência – quanto possível - dos assentamentos humanos e, de outro, proteger – o mais possível - o ambiente natural. E ajuda, também, saber que este mesmo objetivo de busca do equilíbrio
entre atividade humana e proteção ambiental tem sido também insistentemente
perseguido pelas próprias normas ambientais e urbanísticas.
A mudança no perfil dos ambientalistas também poderá brevemente
contribuir para integração das questões ambientais e sociais
Pesquisa do Ministério da Educação e do Ministério do Meio Ambiente
de dezembro/04 e janeiro/0534 ouviu 241 jovens em todo o Brasil. Os resultados estão
detalhados no livro “Juventude, Cidadania e Meio Ambiente - Subsídios para a
elaboração de políticas públicas” e revela que hoje os jovens que participam da
sociedade civil ambiental organizada é predominantemente
• do sexo feminino (56%)
• da cor parda (55%)
• cursou ensino médio em escola pública (80%)
34 Pesquisa oficial Juventude, Cidadania e Meio Ambiente - Subsídios para a elaboração de políticas públicas, em http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaoambiental/jcambiente.pdf acessado em 14/04/08
214
• mora em área urbana (95%) e
• pertence a famílias de renda mensal até 5 salários mínimos (51%).
Estes dados dão conta de que a maioria desses jovens não provém da
classe média ou das elites mas emerge das classes mais populares e com níveis de
escolaridade mais baixos.
Os dados, portanto, representam uma novidade e indicam que começa
a haver uma renovação nos quadros do movimento.
Tal fenômeno pode contribuir para a popularização da questão
ambiental no Brasil, para que o movimento se fortaleça, integre a problemática social às questões ambientais e tenha maiores condições de influenciar os rumos
das políticas públicas.
Isto deve significar uma mudança na percepção do conceito que o
brasileiro tem sobre o meio ambiente. Parece que o “novo ambientalista” deixou de
acreditar que ambiente é apenas um sinônimo de fauna e flora, e passou a relacioná-
lo a seu dia-a-dia, aos problemas urbanos, do bairro e da comunidade. Cada vez mais
os elementos ambientais se têm aproximado dos sociais.
Para explicar a adesão dos jovens de classes mais baixas ao
movimento ambientalista é possível considerar que essas pessoas estão cada vez
mais expostas a problemas como enchentes, desabamentos e falta de saneamento, e
começam a entender essa realidade social à luz da questão ambiental.
Por outro lado, a contribuição para amenizar os conflitos provém às
vezes de fontes inesperadas. Muitas empresas abandonaram em parte a visão
mercantilista, amesquinhada de sua relação com a comunidade e já se transformaram
em “cidadãs”, especialmente após o advento das noções de responsabilidade
ambiental. A cada dia mais e mais empresas incorporaram a responsabilidade
ambiental no planejamento de suas ações.
E como as empresas estão, desde meados dos anos 90, aprendendo
que essa incorporação do ambiente precisa completar-se com a incorporação de
questões sociais (essência da chamada “responsabilidade sócio ambiental das
empresas”) também isto tem tido uma participação didática para uma alteração, ainda
que pouco perceptível, na mentalidade ambientalista.
Uma das soluções para prevenir conflitos consiste, evidentemente, na
harmonização das agendas verde e marrom.
Para isto é importante lembrar Fernandes (2006) (...) Já a maior aceitação do Direito Ambiental [como ramo autônomo do direito] deve-se em parte ao fato de que a agenda ‘verde’ é freqüentemente a expressão de uma visão naturalista de um
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espaço abstrato e sem conflitos, sendo como tal certamente mais próxima da sensibilidade das classes médias do que a agenda ‘marron’ das cidades poluídas – que são estruturadas a partir de conflitos político-sociais e jurídicos em torno da terra e das relações de propriedade.
Cada uma das ciências –ambiental e urbanística – se empenham por
pautar nos mais diversos foros de participação política ou social sua própria agenda.
Fala-se em agenda verde para evidentemente referir às coisas ambientais (que é tudo,
menos cidade) e em agenda marron (embora devesse ser “cinza”) para tratar questões
da sociedade urbanizada (que é a cidade, sem o complicador das questões
ambientais).
Pouco se fala de entrosamento dessas agendas, até porque elas
parecem referir-se a questões inteiramente separadas e intocáveis, cada qual com
seus conflitos e necessidades.
Para ambientalistas, por exemplo, existe apenas uma fragilidade
realmente significativa no planeta: a do ambiente que tem sido bombardeado por sem-
número de agressões que precisam ser brecadas a qualquer custo.
Urbanistas constatam hoje no ambiente urbano uma soma de
fragilidades: a sócio-ambiental.
E a questão ambiental que tradicionalmente opôs ambientalistas e
urbanistas pode ser o elo que faltava para a desejada harmonização de agendas.
Esse entrosamento só se dará por completo quando ambientalistas aceitarem incluir
em sua agenda a questão social. Fora disso, os conflitos gerarão sempre uma
tendência maniqueísta, fragmentadora, partidarizada e por vezes ideologizada, que
em nada contribui para o diálogo entre essas duas vertentes do pensamento e da
ação.
Essa questão não passou desapercebida de Rolnik (1996): (...)a dimensão urbano-ambiental como outra das grandes mudanças de paradigma que separam Vancouver/76 de Istambul/ 96. (...) Há quem (...) [veja a] cidade como inimigo declarado; há quem aponte a luta contra a miséria e o desemprego como condição de sustentabilidade. Entretanto, duas imagens parecem emergir com força. Uma, que aproxima os temas ambientais do Primeiro Mundo àqueles dos países pobres: a poluição (...) o (...) lixo(...)a deterioração da cidade causada pelos automóveis não são mais temas apenas de cidades européias e norte-americanas. Outra, que os afasta: nas cidades pobres (ou cidades do Sul, na linguagem da Conferência), os problemas ambientais estão intimamente ligados aos sociais e não podem de forma alguma ser tratados separadamente. No Brasil, esta afirmação é mais que conhecida, é vivida (...) exemplos de cenas urbanas recorrentes entrelaçaram a fragilidade ambiental com a vulnerabilidade social. Para as cidades brasileiras, portanto, uma agenda urbano-
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ambiental centrada na sustentabilidade passa pelo enfrentamento difícil, mas inevitável, da questão social.
Dar aos conflitos a importância que eles efetivamente têm e não a que
achamos ou desejamos que eles tenham é já uma forma de contribuir para a
minimização não de sua existência ou quantidade, mas de seus efeitos.
É evidentemente reducionista o argumento segundo o qual a
regularização fundiária em áreas ambientais protegidas não seja mais que um mero
conflito de direitos que se resolve com decisões administrativas ou judiciais ou ainda
com normas que, privilegiando um dos lados da questão, esvaziem o conflito.
É claro que as convicções produzem conflitos, que reclamam normas
que os resolvam. Mas o conflito não se soluciona apenas com mais leis, com decisões
ou com sentenças judiciais. É clara a necessidade de criação de uma cultura de
regularização de moradias dessas áreas, mostrando com clareza que é possível
encontrar complementaridade entre ambiente e moradia, especialmente para os casos
em que:
• se saiba que o ambiente está irremediavelmente comprometido, em razão da já
solidificação do espaço de moradias; ou
• quando medidas prévias de cunho ambiental protecionista ou reparador sejam
tomadas como condição necessária para ter lugar a regularização fundiária.
Conflitos se resolvem com enfrentamentos e com experiências que na
prática evidenciem até onde estão certos uns ou outros. Quanto mais regularizações
bem sucedidas em áreas de APP forem feitas, tanto mais se sub-dimensionarão os
conflitos. É a prática que demonstra a veracidade dos argumentos em favor da
regularização plena e sustentável capaz de satisfazer tanto os urbanistas atuais (que
compreendem a importância de contextualizar a cidade no ambiente natural) quanto
os ambientalistas de visão contemporânea que não são incapazes de lidar com a
questão social e de sensibilizar-se com ela.
Uns e outros não atentam à experiência e às recomendações de
Staurenghi (2000) para quem há pontos a partir dos quais é possível a construção de
harmonias: Sob o ponto de vista meramente jurídico, o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225) e a moradia (art. 6º.) são igualmente protegidos pela Constituição Federal. No plano infraconstitucional, encontramos normas ambientais regulando espaços necessários à preservação ambiental, bem como o Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01, que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal.
217
Ou seja: é inevitável que essas duas áreas precisem dialogar para que a proteção de ambos os direitos possa acontecer com harmonia.
Criando condições para que, mantidas suas bases individualizadoras,
cada vez mais a ciência ambiental se urbanize e a ciência urbanística se ambientalize,
poderemos prevenir conflitos.
Ambiente e moradia se não são convergentes, não carecem ser
antagônicos. Podendo ser complementares, não precisam ser excludentes. Nem se
advoga que componham uma unidade descaracterizadora da essência de cada
ciência.
O VERDADEIRO CONFLITO Os conflitos aqui apresentados, ligados ao compartilhamento do
território e na utilização de espaços naturais não são, todavia, os socialmente mais
perniciosos. Quando muito podem dificultar ou impedir uma determinada regularização
por não atendimento integral dos requisitos urbanísticos, ambientais ou de legalização
dominial que as normas exigem. Ou seja: quando muito contribuem para dificultar às
classes populares o acesso à moradia própria regularizada. São conflitos que
produzem males no varejo.
O conflito verdadeiro, lembrado por Rolnik (2007), produz males no
atacado, permeando as relações humanas urbanas e conflagrando a arena do
território. É conflito pouco visível, decorrente do fato de os espaços territoriais não
terem sido, no Brasil, compactuados. É o conflito entre o uso do espaço da cidade como território para viver e o uso do mesmo espaço para fins de lucro,
entesouramento e aumento do patrimônio individual. Visualizar apenas os conflitos aqui pesquisados e deixar de considerar
o conflito de uso do território é submeter-se à armadilha que este verdadeiro conflito
oculta.
218
7 – CONCLUSÕES – ANÁLISE CRÍTICA DAS SITUAÇÕES PESQUISADAS A pesquisa revela o pioneirismo de Campinas no campo da
regularização fundiária. Foi das primeiras cidades a enfrentar o problema da
irregularidade, tentando solucioná-lo até mesmo por meio da “permissão de uso”.
Embora sem sucesso, ao menos demonstrou a preocupação do poder público com a
questão fundiária. Sua lei de regularização é das primeiras do país.
Há no processo administrativo da regularização do Dom Bosco
arquivado junto à Coordenadoria Especial de Regularização Fundiária um curioso
documento datado de 26/02/89 (poucos dias após a abertura da matrícula no registro
de imóveis, portanto), por meio do qual os moradores são convidados, pela
“Superintendência de urbanização de Favelas” a participar de um “Seminário de
Associações de Favelas” documento este que já mencionada o “direito à moradia” que somente 11 anos depois seria transformado em Direito Social previsto na
Constituição Federal. Tal documento já consignava que “o direito à moradia não se
restringe ao acesso a um abrigo; é necessária infra-estrutura e serviços urbanos.”
Também esse documento mencionava, já na época, a necessidade de “solução
jurídica para o problema da posse definitiva da terra” assunto que somente em 1999 a
ONU iria discutir por meio da Conferência Habitat.
Ou seja: a Superintendência de Urbanização de Favelas de Campinas
estava já então surpreendentemente sintonizada com as reivindicações e os mais
modernos instrumentos de luta dos movimentos sociais iniciados em 1978.
Se considerarmos que a Coordenadoria Especial foi criada em 2002 e
que Dom Bosco (com apenas 18 remoções) e Gênesis (com apenas 20) foram
regularizados antes disto, perceberemos quão extraordinário foi o trabalho de
Campinas pela regularização fundiária antes mesmo da criação de seu órgão público
específico.
Se Campinas dava mostras, de um lado, de tenacidade em favor da
prevalência do Direito à Moradia sem sacrifício ao Direito ao Ambiente Saudável antes
mesmo da existência da Coordenadoria (de que são exemplos a regularização do
Dom Bosco e do Gênesis), por outro lado dava exemplos aparentemente negativos
nessa mesma época, formalizando permissões ou, pior, concessões de uso
indiscriminadamente (como se deu nos casos da Vila Nogueira e do São Quirino)
como se regularização fundiária consistisse unicamente no reconhecimento do direito
219
de posse da área já ocupada. Essas concessões desprezavam critérios ambientais e
urbanísticos, mas especialmente jurídicos.
Em boa hora foi aprovado, portanto, o Estatuto da Cidade, que garantiu
que a regularização fundiária se fizesse com observância de critérios técnicos, sociais,
ambientais e urbanísticos.
Outro aspecto extremamente positivo, talvez o mais importante deles,
foi a criação na estrutura da Secretaria Municipal de Habitação (subordinado
diretamente ao gabinete do Prefeito e com status de Coordenadoria) de um
Departamento específico para regularização fundiária, dotado de alguma estrutura
material e reunião de profissionais das áreas de urbanismo, arquitetura, jurídica e
social. Campinas foi das primeiras cidades a criar um órgão desta natureza, por meio
do qual foi possível organizar a questão das centenas de regularizações que
precisariam ser feitas, centralizar as informações, facilitar a troca de informações entre
os diversos profissionais encarregados das regularizações, criar um banco de dados,
formar novos profissionais, gerar experiência desse tipo de intervenção e diversas
outras vantagens em favor da regularização na cidade.
A criação da Coordenadoria foi um marco importantíssimo para avançar
ainda mais ousadamente nas práticas positivas e equilibradas de regularização
fundiária.
É possível afirmar, pesquisando a forma como a regularização fundiária
se desenvolveu em Campinas, que a partir da criação da Coordenadoria Especial de
Regularização Fundiária, em 2002, o assunto passou a ser tratado com equalização
de critérios, com organização, visão abrangente, profissionalismo e como prioridade,
permitindo a realização de uma espécie de “linha de montagem” de regularizações que
às dezenas se fizeram a partir daí.
Até então, se fazia aquilo que era possível mas o possível, se estava
sempre muito além do que se podia exigir daqueles profissionais, situava-se muito
aquém da demanda por regularização. A precariedade ainda se nota, mas a criação
da Coordenadoria foi sem dúvida alguma um salto de qualidade.
Foi ali que se sedimentou de vez a idéia de que regularização e
remoção não combinam, salvo em situações de risco irremovível.
Em entrevistas com profissionais daquele setor a pesquisa pôde
constatar seu compromisso com uma regularização fundiária de resultados.
É comum ouvir desses profissionais que apesar de todos os avanços na
cultura da regularização fundiária seja ou não em área de APP, ainda prevalece nos
moradores “regulares” da cidade a idéia de que só se regulariza a situação dos
assentamentos habitacionais irregulares com remoção e com encaminhamento dos
220
moradores removidos para os lugares mais longínquos da cidade. E mesmo depois de
tantas alterações legislativas destinadas a remover obstáculos à regularização,
quando se trate de regularização fundiária em área de APP, o conceito até mesmo de
muitos profissionais urbanistas e ambientais é de que só se deve regularizar
removendo. Há muito a fazer para modificar valores enraizados na cultura da moradia
popular.
Lastimavelmente não há nenhum profissional da área ambiental nesse
departamento, o que teria sido de muita utilidade nos casos das regularizações objeto
desta pesquisa, das quais apenas uma não abrangia aspectos ambientais a analisar.
A questão ambiental foi tratada pelos profissionais da área jurídica, o que não parece
ser suficiente.
A municipalidade de Campinas tem agido preventivamente na medida
em que 1. impede a consolidação de novas ocupações; 2 - retira ocupantes de áreas
reservadas para empreendimentos de interesse ambiental e 3 - retira novos ocupantes
de áreas limítrofes de espaços já regularizados.
Campinas agiu preventivamente no caso do GÊNESIS, evitando
previsíveis gravames ao ambiente e agiu curativamente no caso do GUARAÇAÍ,
elevando a cota para fixá-la acima da mancha centenária de inundação, assim como
no caso do DOM BOSCO, mantendo o mais possível os moradores nos locais em que
se encontravam, resolvendo a um só tempo as questões social, urbanística e
ambiental.
GUARAÇAÍ
O critério de priorizar, no Guaraçaí, os ocupantes das áreas de risco,
para fins de reassentamento nas novas unidades habitacionais construídas no próprio
núcleo, causou alguma polêmica. Ocorre que os ocupantes das áreas de risco eram
justamente os ocupantes mais recentes do assentamento. Os ocupantes mais novos
vão se apoderando das áreas “que sobram”, que são as piores do assentamento,
exatamente as áreas de risco. Segundo os moradores mais antigos do núcleo eles é
que tinham prioridade, exatamente em razão da “antiguidade”.
Mas a decisão é correta e atende não apenas à lógica de uma
intervenção como também às leis e regulamentos de regularização que vigoram em
Campinas. Não tem sentido priorizar os que não correm risco, até porque caso os
males que em determinado momento são apenas “risco” realmente aconteçam nesse
221
período, a responsabilidade é do administrador público que, conhecendo a situação de
risco, a ignorou momentaneamente.
Embora previstas no projeto inicial, as plantas finais de regularização
não prevêem áreas verdes para o núcleo remodelado. Isto se explica, contudo, pela
exigüidade de espaço da área deste núcleo, que é bastante pequeno se comparado
com os demais aqui pesquisados.
As dificuldades operacionais para atuar em área de dominialidade mista são imensas. Por isto mesmo, tal como se deu depois no Guaraçaí, o Poder
Público precisa empenhar-se por regularizar não apenas o quinhão de invasores de
áreas públicas, como também o dos que o fizeram em área privada. Não é correto que
o administrador público relegue à própria sorte os que ocuparam área privada e
acredite já ter feito sua parte quando regulariza fundiariamente a situação dos que
ocuparam a área pública. A administração pública precisa olhar por todos.
Caberia aqui, talvez, alguma crítica à atividade desenvolvida pela
COHAB-CP em relação a esta terceira etapa em que expressiva soma será entregue
pelo poder público (recursos de toda a sociedade, portanto) para os proprietários da
área particular que foi invadida pelos atuais moradores e que está sendo
desapropriada.
A crítica que se poderia fazer decorre da circunstância de os
proprietários dessa área privada encravada em meio às áreas públicas do Guaraçaí já
terem muito provavelmente perdido seu direito à propriedade dessa área, uma vez que
os atuais moradores do Guaraçaí já têm direito à usucapião da área por eles ocupada.
Na usucapião, uma vez superado o prazo exigido pela lei, o posseiro se torna
automaticamente proprietário; o direito já está constituído por inteiro; o que o Poder
Judiciário fará caso o interessado ingresse com ação de usucapião será apenas
DECLARAR que a propriedade já pertence ao posseiro (domínio mesmo).
Ou seja: a(s) pessoa(s) em cujo(s) nome(s) se encontra registrada a
área privada que existe no Guaraçaí já perdeu(ram), provavelmente, o direito a essa
propriedade em razão do decurso do que no âmbito jurídico se convenciona chamar
de “prescrição aquisitiva” da propriedade (a própria usucapião).
Se já perdeu esse direito não fazendo jus a indenização nenhuma; a
aquisição da propriedade por parte dos atuais possuidores do imóvel é uma questão
de tempo, já que tramita na Justiça uma ação de usucapião em relação a exatamente
esta área privada. A desapropriação da área pela municipalidade era, à primeira vista,
portanto, desnecessária. A municipalidade desapropriar a área e pagar por ela é um
222
prêmio para os ex-proprietários, que receberão por algo que já não é deles e uma
parte dos recursos do PAC, em lugar de ser utilizada para a melhoria das condições
urbanísticas do próprio núcleo, será privatizada.
Ocorre, todavia, que a desapropriação e a transformação da área em
pública permitirá a unificação de todas as áreas (as públicas e a privada) e apenas
uma e assim será mais fácil fracionar o terreno legalmente e entregar a cada morador
seu quinhão por meio da concessão de uso.
Imaginemos que a desapropriação não se fizesse: precisariam ser
feitas, juridicamente, duas regularizações na área do Guaraçaí: uma da área pública e
outra envolvendo a área privada. E como a área não comporta um desenho perfeito do
loteamento que ali se pretende implantar, o resultado é que alguns moradores teriam
suas áreas em parte em área pública e em parte em área privada, praticamente
precisando receber dois títulos diferentes: a escritura da área privada e a concessão
de uso da área pública. Isto geraria dificuldades imensas que não cabia permitir.
Além disto, os moradores da área privada precisariam reunir-se em
condomínio para juntos administrar a área por meio de uma espécie de usucapião
coletivo. Não seria possível individualizar a área de cada um e o problema apareceria
no cartório, que provavelmente não registraria nenhum documento de propriedade que
não individualizasse a área. Ou seja: os moradores ganhariam a ação na justiça mas
ela correria o risco de ser inócua.
Ademais, o formalismo da área jurídica e sua tradicional morosidade
impedem que a regularização fundiária se faça, num caso destes, com a celeridade
que seria necessária, já que os recursos federais previstos para esta regularização
estão por ser liberados.
A solução encontrada, então, parece convir ao interesse de todos:
• o do poder público, que termina por ser o condutor do processo de
regularização até final solução jurídica com outorga de documentos
garantidores do pleno direito dessas pessoas à moradia; e finalmente
• o do proprietário da área, que recebe indenização por uma área que ele já
havia, na verdade, dado por perdida;
• o dos moradores do núcleo, que mais facilmente e mais rapidamente recebem
os títulos de concessão de direito real de uso, que poderão ser comercializados
no mercado posteriormente.
VILA NOGUEIRA
223
Antes da decisão de remoção de 100% dos moradores do “Núcleo
Residencial Vila Nogueira” a prefeitura havia decidido, conforme se viu, manter os moradores naquela área.
Tal área, no entanto, sempre se soube ser de grande risco porque está
no início do trecho do Ribeirão das Anhumas, no espaço em que ele recebe as águas
do Mato Dentro e da Lagoa do Taquaral (que do Taquaral até este trecho vêm
canalizadas). Ou seja: o núcleo da Vila Nogueira está exatamente no início de um
caudal enorme de águas, que neste trecho se vêem enforcadas, afuniladas, quando
de grandes chuvas.
Se isto nunca foi segredo para ninguém, não era também de
desconhecimento da administração pública local que, mesmo assim, resolveu por
documento oficial (decreto e posteriormente lei) primeiramente permitir o uso e,
depois, conceder o uso para os moradores.
Se houvesse sido apenas permitido o uso não caberia falar-se em
indenização. Mas quando se trata de concessão a situação é diferente e tribunais há
que reconhecem direito à indenização. Se os moradores têm hoje (já que a lei não foi
revogada) direito à indenização por serem concessionários de uma área da qual estão
sendo removidos e a população de Campinas corre hoje o risco de ter de pagar
indenização como decorrência de uma decisão que bem poderia ter sido evitada se o
administrador público houvesse sido minimamente prudente na condução da coisa
pública, é oportuno questionar se não caberiam ação de improbidade e ação
regressiva indenizatória contra tal administrador.
Por vezes o administrador, no afã de beneficiar certos segmentos da
população, realiza determinados atos administrativos de legalidade duvidosa podendo
expor a desnecessário risco suas finanças pessoais (em caso de uma posterior
condenação por improbidade administrativa), sua carreira política e o dinheiro público.
Se foi corajosa a decisão de manter os moradores na área de risco por
meio do instrumento da permissão de uso, o foi também a decisão posterior de
remoção de 100% dos ocupantes da área.
Em uma época em que a palavra “remoção” soava a ofensa, a decisão
da Coordenadoria de regularização fundiária de remover todos os ocupantes do Vila
Nogueira e do São Quirino convinha sobretudo aos interesses dos próprios ocupantes.
Primeiro, porque os protegia do risco; segundo, porque não se trataria de uma
remoção pura e simples, mas de uma remoção com alternativa (no caso, a realocação
224
em outro núcleo residencial); terceiro, porque a remoção foi acordada com as
associações de moradores; quarto, porque a remoção não seria feita abruptamente,
mas gradativamente, em três etapas.
Somente bons administradores são capazes de tomar decisões levando
primariamente em conta interesse das pessoas atingidas pela decisão e relegando a
uma dimensão de importância inferior as pressões políticas e ideológicas que orbitam
tais decisões. Posteriormente, com o anúncio da existência de verba para a
construção do Parque Linear, foi possível rever em parte a decisão de remoção.
Houve mudança de planos em relação a este núcleo e o núcleo do
Parque São Quirino. Se havia decidido por 100% de remoção de ambos os núcleos
para o Núcleo Vila Olímpia. Entre 2005 e 2006 cerca de 270 famílias foram removidas.
Cerca de 179 famílias, no entanto, resistiram.
Resultado: os ocupantes que resistiram à remoção terminarão sendo beneficiados pela construção das duas vilas no Parque Linear Anhumas que
será implementado em toda a região à margem do Anhumas. Para os que já foram
removidos e estão na Vila Olímpia, não há projeto de retorno à área primitiva. Quem
foi compreensivo, tolerante, acatou as recomendações da autoridade e se mudou,
perdeu. Embora se saiba ser uma situação difícil, deveria ter havido um mecanismo de
acomodar na Vila do Parque Linear as famílias que foram removidas e, em relação
aos resistentes, continuar com o programa inicial de remoção para a Vila Olímpia.
Teria sido, aparentemente, uma solução mais justa em favor daqueles que atenderam
aos apelos do município no sentido de deixar a área de risco.
Correta, igualmente, a decisão de, paralelamente à desocupação da
Praça 02, desenvolver-se o plantio de árvores e a reurbanização da Praça.
Plantar obedece a uma dupla lógica: prevenir e inibir novas ocupações
e compensar o ambiente que continuará em parte degradado com a eventual
mantença de parte dos moradores deste núcleo no mesmo local, próximo ao ribeirão.
O "Núcleo Residencial Vila Nogueira" não é, hoje, senão uma sombra do que já foi
quanto à sua extensão.
SÃO QUIRINO De louvar-se a iniciativa da Coordenadoria Especial de Regularização
Fundiária em separar as áreas da Praça 10 e da Praça 06. É que se as duas áreas
tivessem sido mantidas juntas para fins de uma regularização única, ambas estariam
até hoje com dificuldades de regularização. A regularização separada evita que a
225
discussão ambiental referente a uma das áreas “contamine” a outra, causando
dificuldades para regularização de ambas. Ao menos uma “se salva” mais
rapidamente.
Aliás, o que aconteceu na regularização do Núcleo Residencial do
Parque São Quirino faz lembrar o drama que vivem profissionais da área de infância e
juventude quando deparam com grupos de irmãos abandonados ou órfãos que
precisam ser colocados em família substituta. Colocar crianças em família, salvo nos
casos em que essa criança seja menina, branca e de pouca idade, é difícil. Sucede em
alguns casos que no grupo de irmãos há algum ou alguma adotável. E nestes casos o
drama consiste em separar ou não os irmãos para que pelo menos o menor deles
consiga uma família.
O tempo mostrou que a decisão da CERF foi correta pois todos os moradores da Praça 10 já conseguiram a regularização plena. Outro ponto importante a considerar nesta regularização da Praça 10 é
o fato de não ter sido feita nenhuma remoção. Apenas remodelação espacial das
moradias para acomodação de todos em lotes adequadamente desenhados.
Valem aqui as observações críticas feitas em relação ao “Núcleo
Residencial Vila Nogueira” já que o histórico, os problemas, o enfrentamento e as
soluções foram praticamente os mesmos em ambas as áreas.
DOM BOSCO
Quando ainda não se falava em regularização fundiária (a expressão
não havia ainda sido cunhada) pois se conhecia apenas ou “remoção de favelas” ou
“urbanização de favelas”, Campinas realizou, em 1988 (há 20 anos, portanto) a
regularização plena do “Núcleo Residencial Dom Bosco” .
Se a regularização do Dom Bosco não tivesse sido feita na época, hoje
somente seria possível realizá-la em razão da alteração constitucional no Estado de
São Paulo.
A regularização foi realizada no momento certo (fevereiro de 1988)
porque em 1989 foi aprovada a Constituição do Estado de São Paulo proibindo
remanejamento (mudança de destinação) de áreas verdes nascidas de loteamentos.
Como este núcleo está sobre a praça 06 do Loteamento São Quirino,
essa alteração de destinação (de institucional para dominical) não seria possível
enquanto durasse a proibição constitucional.
226
Esse empecilho foi derrubado em janeiro de 2007, e se a isto somarmos
o fato de ter sido respeitada a faixa de 15 metros, atualmente a regularização prevista
na Resolução 369 do CONAMA seria possível.
Como se vê da documentação do “Núcleo Residencial Dom Bosco”
observou-se faixa de 5 metros mas da planta se vê que entre o limite final dos 5
metros e o início da construção mais próxima há no mínimo 10 metros, o que totaliza
os 15 metros que a lei exige. Embora a faixa de 15 metros seja decorrente de lei de
1979 e a faixa de 30 metros seja imposição de Lei federal de 1986 (lei 7.511) a regularização fundiária do Dom Bosco ignorou a faixa de 30 metros que era a aplicável à época em que a regularização foi feita.
Se a regularização do Dom Bosco tivesse demorado mais poucos
meses, teria sido legalmente inviabilizada nas condições em que foi feita.
Apesar de esta regularização ter sido feita com 15 metros, não há
indicação alguma de que haja risco seja para os ocupantes, seja para o ambiente
natural do ribeirão pela não observância dos 30 metros. A convivência da comunidade
local com o ribeirão é de respeito, como se pode notar das imagens feitas no local.
Esta experiência do Dom Bosco de certa forma desmente os critérios de 15 ou de 30 metros que constam do Código Florestal e que se repetem na Resolução 369.
GÊNESIS
O tipo de intervenção realizada pela COHAB-CP neste “Núcleo
Residencial Gênesis” parece exemplar.
Há no Brasil experiência suficiente para se poder saber o mecanismo
com que acontecem as invasões dessas áreas ambientalmente frágeis. É preciso
entender esse mecanismo e atuar preventivamente.
A ocupação da área em que hoje se encontra o Gênesis se deu com
algum distanciamento em relação ao Ribeirão das Anhumas, como se pode perceber
pelas imagens encontráveis ao longo desta pesquisa. Entre a data de início da
ocupação, 1978, e a data da primeira intervenção urbanística no local, em 1997, não
se passaram 20 anos. Como na primeira intervenção da municipalidade na área não
havia recursos suficientes para uma regularização completa, decidiu-se pela
realização de arruamento, água e iluminação.
Se considerarmos como as coisas funcionam no poder público, que
demora a detectar os problemas e mais ainda para tomar atitudes; se considerarmos
227
que tudo, na administração pública, depende de mobilização, pesquisas, projetos, leis
(cuja tramitação é igualmente lenta), licitações, prazo para execução de obras,
descontinuidade administrativa cada vez que um novo administrador toma posse e
todos os demais aspectos que contribuem para a lentidão de todo e qualquer processo
que dependa de vontade política e de tramitação dentro da administração, veremos
que 20 anos não é muito tempo.
No caso do Gênesis, houve tudo isto e mais a complicação de precisar
depender de recursos federais. Mas em menos de 20 anos o problema estava
equacionado, com todos os invasores deixando uma situação de favelamento precário
para o urbanismo satisfatório.
Parece evidente que o fato de a área ocupada ser propriedade não de
um ente da administração direta mas da administração indireta (onde as coisas
acontecem mesmo mais rapidamente) como o é a SANASA, há de ter contribuído com
alguma parcela para a agilização da solução.
Como a SANASA é empresa de economia mista (possuindo, portanto,
também investidores privados) lhe seria muito difícil justificar junto aos investidores a
inércia diante da ocupação de uma sua gleba de significativas proporções.
Juridicamente a empresa poderia doar (após autorização legislativa) sua área aos
ocupantes e até mesmo outorgar escritura definitiva em cartório. Mas esta providência,
isoladamente, não urbanizaria a área. Era preciso pensar mais abrangentemente.
Pensar nos aspectos urbanísticos, sociais e não descurar dos ambientais já que o
ribeirão se situa a poucas dezenas de metros de uma das extremidades do núcleo.
Simplesmente entregar a área aos invasores não seria decisão sensata
e poderia haver resistência dos investidores privados da empresa. Como a SANASA
possuía dívida com a municipalidade, engendrou-se um plano de entregar a área em
dação em pagamento de parte da dívida para a municipalidade e esta, uma vez
urbanizada a área com os recursos já informados, se encarregaria de, após
autorização legislativa, proceder à entrega de títulos de Concessão de Direito Real de
Uso. Já que um bem público não pode ter seu domínio transferido a particulares, só
mesmo a concessão de direito real de uso garante ao concessionário alguma certeza
de que aquele imóvel é praticamente seu (embora não o seja).
A rápida intervenção da municipalidade e solução ao problema
daquelas famílias evitou para a sociedade como um todo o agravamento severo de um
problema ambiental: o despejo de lixos, dejetos, esgoto, rejeitos de obras e todo tipo
de resíduos no Ribeirão das Anhumas.
228
Quem vê hoje o Gênesis e vê a distância que existe entre ele e o
Ribeirão, pode falsamente entender que o Gênesis jamais apresentou problemas de
poluição desse curso d´água. Mas se hoje o Gênesis tem seu problema de coleta de
lixo equacionado e coleta de esgoto de todas as residências, com evidente prevenção
do problema ambiental que poderia ter ocorrido com a extensão dos barracos do
Gênesis até poucos metros do ribeirão, isto se deveu à atitude decidida dos quantos
administraram a cidade, a Secretaria de Habitação, a de Obras e a COHAB-CP nesse
período de pouco menos de 20 anos.
A regularização fundiária tem sido vista freqüentemente, pelas
experiências Brasil afora, como uma importante conduta curativa das administrações
públicas, sobretudo municipais, de elevado interesse urbanístico, social e ambiental.
Mas a COHAB-CP que liderou o processo de regularização fundiária do Gênesis
demonstrou eficaz e eficientemente que é possível atuar preventivamente, antes que o
problema ambiental se instale por completo e degrade o ambiente por demais.
Em se tratando de regularização fundiária, não há como atuar
preventivamente em relação aos aspectos sociais de uma ocupação. Isto só se
consegue com mecanismos macro-econômicos de distribuição de renda que a um só
tempo contribuem para a prevenção da violência, a fixação das comunidades no
campo, a significativa diminuição das invasões e tantos outros resultados que tornam
melhores as cidades.
Mas atuar preventivamente em relação a aspectos ambientais de uma ocupação é possível. Gênesis é exemplo dessa possibilidade. Não fosse aquela
intervenção a tempo e a hora, as moradias precárias hoje estariam muito próximas ao
leito fluvial. Talvez tivessem suplantado a beira do ribeirão e estivessem até
palafitados.
Certo que a sociedade campineira como um todo acabou pagando pelo
terreno (a SANASA teve cancelada parte de sua dívida com a prefeitura por conta
desta dação da gleba em pagamento da dívida) mas estaria hoje pagando ainda mais
caro se precisasse recuperar ambientalmente o Anhumas ainda mais do que já se faz
necessário. E estaria pagando de forma indireta em outras áreas como saúde da
população que foi abrigada com dignidade pelo Gênesis.
Sob aspectos exclusivamente econômicos, a regularização fundiária do
Gênesis, da forma como foi feita, foi um “bom negócio” para a sociedade campineira
que hoje conta com um bairro a mais, integrado quase que por completo à malha da
cidade; conta com cidadãos mais participativos (instruídos pela experiência de
229
participação comunitária trazida pelos primórdios das discussões desta regularização)
e com casas que contribuem – pelo IPTU, para ficar apenas em um exemplo – com as
receitas da cidade.
Hoje temos o Ribeirão geograficamente preservado do núcleo de
moradores; o entorno da margem esquerda conservado para o que futuramente
constituirá o “Parque Linear do Anhumas” com valorização daquela área toda e do
entorno; os moradores assentados condignamente em unidades minimamente
ajustadas à função de morar; a municipalidade consciente do dever cumprido sem
aviltamento de qualquer direito de qualquer segmento social; e a sociedade em
condições de viver melhor, com menos violência. E em relação ao Ribeirão, as
agressões ambientais que a ele teriam sido feitas durante esse período de 10 anos
passados entre o término das obras principais do Gênesis e os dias de hoje foram
evitadas, foram prevenidas.
O tipo de regularização fundiária que se fez no Gênesis é adequado, a
todos os títulos, seja qual for o ângulo que se pretenda tomar para analisá-lo.
Mas é preciso considerar que o trabalho preventivo ali realizado pode
estar comprometido com a situação que hoje se vê, visitando o local, de diversos
barracos ocuparem a área mais próxima do leito do Ribeirão e que está destinada ao
Parque Linear. A remoção desses barracos é necessária para que se possa continuar
a preservar o Ribeirão e permitir a futura implantação do Parque Linear sem maiores
percalços e sem maiores dispêndios. Quanto mais o tempo passa, mais se consolida a
situação desses novos ocupantes. É preciso removê-los providenciando uma
alternativa de moradia.
INEXISTÊNCIA DE ACOMPANHAMENTO E AVALIAÇÃO PÓS-REGULARIZAÇÃO As necessidades de regularização em uma cidade das dimensões de
Campinas são tantas e são de tal ordem reduzidos os recursos humanos, materiais e
orçamentários, que se tem dado pouca importância para as avaliações de pós-
regularização. Apenas o Dom Bosco vem recebendo periódicas visitas de uma
profissional para avaliar as condições de pós-colocação.
A falta dessa avaliação é preocupante na medida em que se deixam de
pensar, coletivamente, os caminhos trilhados, quais os que foram mais importantes
para o sucesso do empreendimento e quais os que poderiam – ou deveriam – ter sido
evitados.
230
É a avaliação organizada, feita não muito tempo após se considerarem
terminados os serviços que caberiam à instituição pública, privada ou mista, que
permite o acúmulo de experiência para abreviar procedimentos nos empreendimentos
futuros de regularização. A avaliação tem objetivo estratégico (facilitar procedimentos
futuros) e econômico (menores gastos) visando eficiência (fazer mais, com menos).
Perder a chance de uma avaliação pós-regularização incentivando os
moradores à reflexão conjunta com os técnicos e demais atores desperdiça recursos,
dispersa forças e cria risco de reincidir em equívocos.
231
7.1 – CONCILIAÇÃO DAS AGENDAS – COMPATIBILIZANDO DIREITO AO AMBIENTE COM DIREITO À MORADIA
Essas agendas são conciliáveis quando se trate de regularização
fundiária em área de APP ?
A experiência dos casos aqui pesquisados evidenciou que sim.
Mostrou que é possível que a regularização fundiária se faça sem
sacrifícios ambientais ou com alguma dificuldade ambiental superável.
No GUARAÇAÍ, por exemplo, os interesses ambientais, os urbanísticos
e os habitacionais foram conciliados na medida em que houve:
• respeito ambiental (observância do distanciamento necessário em relação à APP e equacionamento das questões do lixo, estando a caminho a solução para o esgoto);
• respeito aos interesses urbanísticos (arruamento e construção de novas unidades, com individualização de lotes)
• respeito aos interesses sociais (construção atualmente em andamento de barracão destinado a depósito de material reciclável para a atividade cooperada dos moradores)
• respeito à moradia (com eliminação do risco mediante levantamento da cota para 619 ms, superação da mancha centenária de inundação e pouquíssimas remoções)
• respeito à solução jurídica (a desapropriação da área particular e futuramente unificação de todas as áreas em apenas uma pública, como concessão de direito real de uso individualizado aos moradores).
• Resultado: compatibilização entre direito à moradia e direito do ambiente à preservação
No VILA NOGUEIRA e no SÃO QUIRINO (PRAÇA 06) houve:
• em um primeiro momento, prevalência do direito social à moradia, com permissão de uso coletivo para os moradores;
• com a seqüência de inundações (e ante a falta de recursos para a construção das moradias nas proximidades) prevalência do direito à vida e à integridade física dos moradores por meio de remoções, mas com respeito ao direito social à moradia, pois não aconteceu nenhuma remoção sem destino; o que motivou a retirada dos moradores (inclusive da faixa de APP não foi, portanto, a preocupação ambiental, mas preocupação com a segurança dos moradores);
• na seqüência, ante a possibilidade de se poder contar com esses recursos federais, prevalência do direito à moradia com respeito às questões ambientais pois as remoções foram paralisadas e se está aguardando a chegada dos recursos para se construir as unidades habitacionais fora da área de APP ;
• como as unidades habitacionais serão individuais, na seqüência da intervenção se dará o respeito ao direito de regularização jurídica pois a todos os moradores se conferirá a concessão de direito real de uso de suas unidades.
• Resultado: compatibilização do direito à moradia com o direito do ambiente à preservação.
No SÃO QUIRINO (PRAÇA 10) deu-se:
232
• Respeito ao direito à moradia – foi feita a regularização do espaço praticamente sem remoções;
• Respeito às necessidades urbanísticas - remodelações com caráter urbanístico foram feitas.
• Respeito ao ambiente – a administração buscou separar a área que apresentava problemas ambientais e dar a ela um tratamento separado; coleta de lixo regularizada.
• Respeito à questão jurídica – cada morador recebeu concessão individualizada de direito real de uso.
• Resultado: compatibilização entre questões ambientais, urbanísticas, sociais e jurídicas.
No DOM BOSCO, ocorreu:
• Respeito ao direito à moradia – regularização com pouquíssimas remoções. • Respeito às necessidades urbanísticas – remodelação do espaço, com
arruamento, etc. • Respeito ao ambiente – retirada das moradias que haviam invadido a área de
APP; colocação das casas fora dessa área; encaminhamento de solução (ainda em andamento) para a destinação do esgoto; solução para a destinação do lixo, com coleta freqüente.
• Respeito às necessidades jurídicas dos moradores – todos receberam concessão individualizada de direito de uso da área em que suas moradias estão construídas.
• Resultado: compatibilização entre essas agendas de modo a priorizar a todas, sem detrimento a nenhuma.
No GÊNESIS houve:
• Respeito ao direito à moradia – regularização da área inteira (que não é pequena) com pouquíssimas remoções; depois de regularizada a área houve espaço até para a construção de outras unidades para acomodação de moradores que precisaram ser removidos de outras áreas da cidade.
• Respeito ao ambiente – atuação preventiva eficaz, que evitou que o assentamento se expandisse até a área de APP, o que fatalmente teria ocorrido se não tivesse havido a intervenção pública.
• Respeito aos aspectos jurídicos dos moradores – É decisão tomada que tão logo os problemas documentais sejam resolvidos se fará a concessão
• • individualizada de direito de uso da área pública para cada morador em relação
à área em que sua moradia se encontra. • Resultado: compatibilização entre os direitos à moradia, ao ambiente e demais
direitos, priorizando-se todos os aspectos, sem sacrifício de qualquer deles. Resultado geral: não houve uma área sequer, de todas as aqui pesquisadas, em que o ambiente tenha sido sacrificado para que os direitos sociais (moradia, direito à cidade, direito à produção regular, etc) pudessem ser respeitados. Em todos os casos pesquisados o direito ao ambiente saudável foi respeitado. E para isto não foi necessário impedir que qualquer outro direito fosse protegido.
233
NÚCLEO
ESTRUTURA “Núcleo
Residencial Guaraçaí”
“Núcleo Residencial
Vila Nogueira”
“Núcleo Residencial
São Quirino”
(Praça 06)
“Núcleo Residencial
São Quirino”
(Praça 10)
“Núcleo Residencial
Dom Bosco”
“Núcleo Residencial
Gênesis”
Água S S S S S S
Energia elétrica S S S S S S
Iluminação pública S N N S S S
Coleta esgoto S (parte) N (fossas e
despejo córrego)
N S N S
Coleta lixo S S N S S S
Águas pluviais S N S S N S
Permeabilidade S S S S S S
Transporte e acessibilidade S S S S (reduzida) S (precária) S
Correio S N N S S S
Telefone público S S S S S S
Escola pública e profissionalizante S S S S S S
Creche S S S S S S
Posto saúde S S S S S S
Associação atuante S S S S N S
Regularização fundiária plena N (ainda) N (ainda) N (ainda) S S N (ainda)
Remoção para núcleo distante N S S N N N
Remoção para o mesmo núcleo S S S S S S
Área pública S S S S S S
Área privada S N N N N N
Ao longo da pesquisa criticamos a existência de regras federais de
regularização fundiária em área de APP, afirmando enfaticamente a necessidade de
que essas regras sejam municipalizadas.
Em Campinas temos a demonstração cabal da procedência dessa
afirmação. A regularização fundiária em áreas de APP em Campinas aconteceu
sempre com obediência às normas federais. Mas se as regras fossem municipais,
provavelmente os resultados não teriam sido diferentes. Teria sido indiferente, para o
resultado, se as regras fossem federais, estaduais ou municipais. Ambiente e
urbanismo teriam dialogado e se harmonizado da mesma forma.
234
Se a regra é federal mas o ente local pretende regularizar sem observar
critérios ambientais, providencia-se sempre uma lei local que permita essa não
observância da regra federal, sob argumento da necessidade de atender às
peculiaridades locais. E é discutível se os mecanismos para declaração de
inconstitucionalidade dessa lei local e para posterior punição do administrador local
funcionam a contento.
Se a regra é federal e o ente local pretende regularizar com observância
de critérios ambientais, sociais e urbanísticos, a norma federal é desnecessária. Ele
observará aqueles critérios com ou sem lei federal.
O que faz diferença, portanto, é a cidade contar ou não com um
administrador que, ao decidir-se pela regularização fundiária, efetivamente leve em
conta as dimensões todas necessárias.
Campinas quase comprometeu a regularização fundiária da Vila
Nogueira e do São Quirino (Praça 6) ao utilizar, por decreto, o instrumento da
permissão de uso que eternizaria as moradias até mesmo em locais de risco, quando
já incidiam ali as tais regras federais. E isto mostra que a existência de regras federais
é inteiramente inútil quando no ambiente local não haja administrador disposto à
observância dessas regras.
7.2 – REGULARIZAÇÃO EM ÁREA DE APP – O DIREITO À REGULARIZAÇÃO E SEUS LIMITES Mas e se tivesse havido, nos casos aqui pesquisados, uma situação em
que, apesar dos agravos ao ambiente, houvesse sido necessário fazer prevalecer o
direito à moradia ? Qual teria sido a solução ?
Isto remete a um outro questionamento: há direito à regularização sem
que medidas protetivas ao ambiente sejam tomadas ou mesmo quando não haja
alternativa técnica à agressão ao ambiente ? Ou seja: se o ambiente de APP sofre
agravos decorrentes de moradia(s) erigida em área em que não poderia ter ocorrido a
edificação e tais agravos não podem ser removidos senão com a remoção da(s)
moradia(s) o direito à não remoção e, conseqüentemente, à regularização, existe ?
Convém então questionar se existe aquilo que se possa chamar de
“direito à regularização fundiária de moradia situada em área de APP” e se existe um
ponto-limite a partir do qual o comprometimento ambiental não justifica a regularização
de uma ocupação informal, mesmo que para fins de moradia. Ou seja: saber se os
argumentos de regularizar moradia e de esta constituir um “direito” podem justificar
qualquer tipo de agressão ao ambiente.
235
Partindo dos extremos, podemos afirmar que em áreas de risco a
regularização, além de não ser direito, é proibida.
Ademais, não há no direito brasileiro um artigo de lei que declare,
peremptoriamente, que as pessoas em tais ou quais situações tenham “direito à
regularização”.
Esse direito existe como decorrência da existência de leis que
expressamente declaram a usucapião (Estatuto da Cidade) e a concessão de uso
especial para fins de moradia (Medida Provisória 2220/01) como “direitos”. Decorre
também da análise conjunta e sistemática de diversos textos legais. Como “direito à
regularização”, todavia, ele é apenas “entrevisto” ou “sugerido” em meio a tais leis,
somente se mostrando com clareza após uma análise jurídica acurada.
Se alguém tem direito à usucapião ou à concessão de uso especial para
fins de moradia e reside em assentamento irregular e consolidado de moradias só há
uma forma de se fruir esse direito: regularizando-se fundiariamente a área para que o
interessado possa, com a usucapião, ter direito ao título dominial de seu imóvel ou,
com a concessão de uso especial para fins de moradia, ter um direito à permanência
exclusiva e definitiva na área.
Daí poder dizer-se que o direito à usucapião ou à concessão de uso
especial para fins de moradia é direito-fim que abrange o direito à regularização como
direito-meio (direito-instrumento).
Que o direito à regularização fundiária exista hoje integrando o
complexo de direitos sociais ligados à moradia, praticamente não há quem objete.
Afinal, vivemos todos na cidade e esta “(...) não pode ser algo que castigue os pobres
e privilegie os ricos, como nos burgos murados da Idade Média, que deixavam os
miseráveis de fora junto com o esgoto e a peste.”35
Excetuadas as situações de risco, o Estatuto da Cidade impõe a
regularização fundiária de assentamentos ocupados por população de baixa renda
como uma diretriz da política urbana. E já que se trata de “norma de ordem pública”,
a regularização tornou-se, juridicamente, uma atividade vinculada. Assim, deixou de
ser uma discricionariedade do administrador para ser uma obrigação político-
administrativa.
Mas nas múltiplas hipóteses em que a ocupação acontece em área de mananciais ou em áreas de preservação permanente, o direito à regularização é
bastante limitado. Nestas situações é possível a regularização fundiária, condicionada
ao equacionamento das questões-satélite ligadas ao urbanismo e ao ambiente. 35 Rosângela Staurenghi, Promotora de Justiça de São Paulo, ao depor na Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados, em Brasília, definindo A cidade que queremos.
236
A mesma legislação que proscreve regularização de áreas de risco sem
que esse risco seja resolvido, igualmente proíbe a regularização de áreas de risco ambiental sem que esse risco seja enfrentado e removido.
Lei Federal 6.766/79 – Loteamentos Art. 3º (...) Parágrafo único. Não será permitido o parcelamento do solo: (...) V - em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção. Medida Provisória nº 2.220 de 4 de setembro de 2001 Art. 5o É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local na hipótese de ocupação de imóvel: (...) III - de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais;
E mesmo em Campinas é assim também. A legislação campineira
forma uma barreira jurídica à regularização de assentos de moradia irregular em APP
quando haja risco de perenização da ofensa ambiental. Até impressiona que
quantidade de leis e outras normas que protegem o ambiente da agressão que a
moradia por vezes supostamente representa:
LEI COMPLEMENTAR Nº 15 DE 27 DE DEZEMBRO DE 2006 PLANO DIRETOR DE CAMPINAS Art. 2º - São objetivos da política de desenvolvimento do Município: (...) VII – proteção e recuperação do meio ambiente das áreas urbanas e rurais, especialmente de áreas verdes, mananciais de abastecimento, cursos d’água, áreas de interesse social, áreas de risco ao assentamento humano e áreas de interesse histórico; Art. 27 - São diretrizes e normas específicas da Macrozona 3: IX – preservar as microbacias do Ribeirão Anhumas Art. 36 - São diretrizes da política de meio ambiente: (...) XIX – assegurar ações de proteção e recuperação ambiental após a desocupação de imóveis em situação de risco, evitando–se a reocupação das áreas; Art. 39 - Os Corredores Ambientais Estratégicos serão constituídos inicialmente pelas áreas de preservação permanente e várzeas dos rios Capivari, Atibaia e do ribeirão Anhumas. Art. 50 - São objetivos da Política de Habitação:
237
(...) omissis LEI N º 11834 DE 19 DE DEZEMBRO DE 2003 Regularização fundiária (...) Art. 4º - O processo de regularização consiste no conjunto de ações que visam adaptar o parcelamento do solo irregular aos padrões urbanísticos e ambientais recomendados na legislação municipal e definidos na presente lei, compreendendo a implementação de obras de infra estrutura básica e o registro do plano no Cartório de Registro de Imóveis competente e, quando pertinente, a outorga de concessão de direito real de uso, mediante Termo Administrativo. (..) Art. 6º - A regularização prevista nesta lei pressupõe a comprovação da irreversibilidade do parcelamento. Parágrafo único - A situação de irreversibilidade do parcelamento será caracterizada por laudo técnico elaborado pela Municipalidade, contemplando, em especial, os seguintes aspectos: localização do parcelamento, acessibilidade por via oficial de circulação, situação física e social, em especial adensamento, obras de infra-estrutura, ocupação das áreas de risco, interferências ambientais e impacto de vizinhança. (...) Art. 15 -- A regularização deverá observar as seguintes condições técnicas e urbanísticas: I -- quanto às obras e serviços de infra-estrutura urbana, serão definidos de forma a assegurar: (...) g) recuperação geotécnico-ambiental das áreas degradadas; DECRETO N.º 14.776, DE 17 DE JUNHO DE 2.004 Regulamenta a Lei Municipal n.º 11.834, de 19 de dezembro de 2003 Art. 1º - Poderão ser regularizados, desde que atendidas as exigências da Lei 11.834/03, quaisquer parcelamentos do solo implantados no Município de Campinas, independentemente da zona de uso onde se localizam, ficando excluídos os localizados nas seguintes áreas: (...) VII – em unidades de conservação legalmente constituídas ou em áreas reconhecidas como de interesse ambiental; VIII – em áreas tombadas pelos órgãos de preservação do patrimônio histórico e/ou ambiental. (...) Art. 11 – A análise técnica, que abrangerá a gleba objeto da regularização e seu entorno, deverá compreender, entre outros: I - avaliação urbanística que contemple os aspectos ambientais, sistema viário, equipamentos públicos;
Interessante que o art. 50 do Plano Diretor de Campinas, ao tratar da
política de habitação no município tenha ignorado a proteção ambiental.
238
Ao que se nota da redação dessas leis, no Brasil e em Campinas não é
legalmente possível admitir uma regularização que inobserve os deveres de
atendimento às normas legais ambientais ou urbanísticas em vigor e de recomposição
integral dos bens ambientais e urbanísticos indevidamente atingidos.
Ou seja: se levarmos em conta apenas as leis, na regularização
fundiária é preciso considerar, sempre que se decida – em atendimento à demanda –
regularizar determinada área:
• O direito à moradia – criando unidades habitacionais que possam abrigar
aquele contingente populacional (preferencialmente todos os moradores e
naquele mesmo local) e excepcionalmente realizando reassentamento com
transferência para outras áreas próximas;
• O direito à cidade – com melhoria física da área e do entorno, desadensando a
área, ordenando o arruamento, criando lotes definidos e individuais ou
individualizáveis, melhorando o acesso do transporte público, permitindo o
acesso das atividades de proteção social (bombeiros, polícia, ambulâncias) ou
de comunicação (correios, acessibilidade física);
• O direito à vida social – com atividades comunitárias preferencialmente
cooperadas, por exemplo, por boa parte dos moradores, incluindo os
moradores com limitações físicas, mentais ou econômicas, para que tais
pessoas possam passar a pagar a prestação da casa de alvenaria para a qual
serão transferidas bem como eventuais despesas condominiais;
• O direito de acesso ao mercado (questões econômicas da regularização)
abrangendo o direito de ser proprietário da área na qual se habita para poder
ser parte do mercado, contribuir (por impostos, por exemplo) com a vida
econômica da cidade e poder até mesmo negociar o bem de que se é dono
(observadas certas cautelas no caso de concessão de uso especial para fins
de moradia).
• O direito ao ambiente saudável – com saneamento (fornecimento de água e
criação de redes de coleta e afastamento de esgotos e outros dejetos) e
instalação de serviços de coleta de resíduos (lixo). Em se tratando de
ocupações de áreas de mananciais esta precisa ser a grande prioridade da
regularização (depois da eliminação de situações de risco). A tarefa primeira
será, sem dúvida, uma vez elaborado e aprovado o plano de intervenção pelos
órgãos apropriados, e resolvidas as situações de risco, tomar providências
para com efetividade proteger a APP e ao final enfrentar os demais problemas
(urbanização, legalização, etc).
239
Em resumo, pelas leis atuais o direito à regularização fundiária de assentamento irregular em área de preservação permanente existe desde que
atendidos alguns requisitos fundamentais, nesta ordem: eliminação das situações
de risco, equacionamento das questões ambientais, solução dos problemas
urbanísticos e sociais e legalização.
Embora moradores nesses assentamentos fixados em áreas de APP
tenham direito à regularização, nem tudo é regularizável. Há, evidentemente, pelas
leis em vigor, limites que precisam ser observados. Mas também esses limites
precisam ser flexibilizados.
Mas se é direito dos moradores, então a discussão precisa se dar apenas quanto aos aspectos de conveniência, oportunidade e limites dessa regularização. Que ela deva ser feita, não se pode validamente discutir. Ou por outra: é possível afirmar que a regularização fundiária de moradias em áreas de preservação permanente poderá ser excepcionalmente admitida para atender a população de baixa renda nas zonas urbanas ou de expansão urbana. Todavia, o processo de regularização fundiária deverá buscar a sustentabilidade do meio ambiente urbano e do construído. Para isto é necessário superar dificuldades tradicionais ditadas
basicamente pela visão parcializada da impossibilidade de conciliação de interesses
ambientais com os de moradia. É neste sentido o alerta de Denaldi (2004): “É
necessário abandonar a falsa dicotomia ‘habitação x meio-ambiente’ e transpor a abordagem setorial, adotando-se uma visão integrada e participativa. Trata-se de
uma questão (...) que precisa ser enfrentada para impedir que o passivo sócio-
ambiental continue aumentando. “
Ou, no dizer de Staurenghi (2000): A regularização fundiária em áreas de preservação ambiental não pode ser analisada como um problema pontual, mas em suas implicações para os ecossistemas. A partir de um levantamento técnico multidisplinar, é possível identificar os conflitos existentes e minimizá-los, seja com a manutenção da ocupação com medidas técnicas efetivas de redução da degradação ambiental e compensações, seja com a recuperação integral da área e recolocação das pessoas.
A regularização fundiária precisa, portanto, observar certos limites. A
regularização não pode gerar um custo ambiental expressivo. Este custo precisa ser
tolerável.
240
Todas estas afirmações se baseiam nas leis atualmente em vigor no
Brasil. Mas é preciso discutir se essas leis estão certas em exigir esses cuidados
ambientais.
Incide aqui o tema da constitucionalidade da Resolução CONAMA
369/06 e o tema de saber se será constitucional (para evitar discussões a respeito da
constitucionalidade daquela resolução) transpor para a futura Lei de Responsabilidade
Territorial Urbana (atual Projeto de Lei 3057/00 da Câmara dos Deputados) regras que
por demais limitem a regularização fundiária em áreas de APP. Por diversas razões a
constitucionalidade daquela resolução é bastante discutível e por razões outras haverá
aparente inconstitucionalidade caso a futura lei imponha restrições de grande porte
para que a regularização aconteça em áreas de APP.
Como Direito à Moradia e Direito ao Ambiente saudável e
ecologicamente equilibrado são direitos de igual envergadura (são ambos direitos
fundamentais e ambos assegurados pela Constituição) qualquer limitação ambiental
que impeça o exercício do Direito à Moradia estará correndo sério risco de declaração
de inconstitucionalidade. O máximo que a lei poderá fazer será criar critérios para
harmonizar (nunca impedir) os direitos ao ambiente e à moradia para que ambos
convivam sem sacrifício por inteiro de qualquer um deles.
7.3 –REGULARIZAÇÃO CURATIVA E ATUAÇÃO PREVENTIVA A regularização fundiária é onerosa e é importante preveni-la. Se o
custo individual da irregularidade é alto, o custo social (coletivo) da regularização é
igualmente pesado. Engana-se quem entenda que a irregularidade apresente um
custo apenas para o indivíduo ou sua família. Ela socializa custos indiretos. Na cidade a injustiça e a iniqüidade social revelam-se numa visualização dramática pela própria contigüidade, no mesmo espaço, dos grandes contrastes sociais. A qualidade de vida do meio urbano se arruína em ritmo alarmante. O ambiente material é sacrificado pela (...) invasão das populações carentes rechaçadas para as encostas e para as periferias. O ambiente social se deteriora pela escalada do crime, da violência e do tráfico de drogas. Aumentam as cargas conflituais exacerbadas pelas frustrações coletivas. Um pequeno episódio pode detonar crises com reações em cadeia imprevisíveis. (...) registra-se a existência de vários milhões de menores abandonados nos centros urbanos, sem mencionar os chamados órfãos diurnos, crianças de tenra idade, fechadas no estreito espaço doméstico durante as longas horas de ausência do pai e da mãe ocupados no trabalho. A permanência e, mais ainda o agravamento da situação (...) não interessam a nenhum dos setores da população citadina. A todos cabe tomar consciência da gravidade da situação e empenhar-se em sua solução.36
36 Itens 59 a 63 do documento elaborado pela CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em fevereiro de 1982, por ocasião de sua 20ª. Assembléia Geral, intitulado Solo Urbano e Ação Pastoral.
241
Muitos administradores públicos e agentes do poder público atuando na
prática da regularização fundiária constatam o óbvio: os programas de regularização
fundiária solteiros, divorciados de políticas preventivas, de caráter apenas curativo,
cuidam somente do passivo social existente. Olham para o passado. Não tocam no
problema enraizado na sociedade que, fruto de um conjunto de fatores socialmente
injustos, continuam agora mesmo a excluir social e espacialmente e estão ainda agora
gerando novas irregularidades, novas informalidades, novos passivos que precisarão
em um futuro breve ser enfrentados por nossos sucessores.
Só que a julgar pela quantidade de seres humanos incorporados à vida
diariamente, a julgar pela finitude da capacidade de recursos ambientais e pelo nível
de injustiça que cada vez em maior escala estamos produzindo, parece correto
presumir que o problema que estamos transmitindo – como legado – aos que nos
sucederão, terá dimensões muito mais dramáticas do que as já gravíssimas que
herdamos e que temos tentado equacionar com grandes dificuldades, das quais o
custo é apenas uma.
Fernandes (1998) critica a regularização apenas curativa. (...) em virtude da enorme pressão para que respostas sejam encontradas para o fenômeno crescente de ilegalidade, as agências públicas têm se concentrado mais na cura do que na prevenção do problema, sobretudo no âmbito municipal. (...) [programas de regularização têm tido caráter curativo] precisando ser combinados com investimentos públicos e políticas sociais e urbanísticas que gerem opções adequadas e acessíveis de moradia social para os grupos mais pobres. Os governos locais devem urgentemente conceber mecanismos que se prestem a romper com o processo de ilegalidade urbana em alguma medida, sobretudo mediante a formulação de políticas urbanas e fiscais mais eficientes de provisão de terras e moradias nas áreas centrais das cidades.
A ação preventiva, mesmo que feita à custa de recursos de enorme
envergadura, é infinitamente menos onerosa para a sociedade do futuro e socialmente
mais justa na exata medida em que evita que tantos seres humanos sejam obrigados
a confrontar-se com a natureza para ter o direito de morar e mesmo assim em
condições aviltantes e indignas.
É este também o entendimento de Smolka (1998):
(...)O desafio apresenta-se em como regularizar sem alimentar o círculo vicioso da irregularidade assegurando um conteúdo preventivo a tais políticas e programas. Qualquer política mais conseqüente passa, no mínimo, por uma visão mais completa e/ou abrangente dos programas de regularização e, idealmente, por uma alteração das regras do jogo imobiliário urbano – o que por sua vez exigiria uma política fiscal mais contundente sobre o valor da terra urbanizada. A
242
postura dominante em relação, por um lado, à tolerância às ‘soluções informais’ e, por outro, a inserção destes programas de regularização na agenda pública parece bastante conveniente para o status quo. (...) Tais políticas reiteram ou representam um contínuo desde o passado: ‘diferenciar – quando não ignorar – a situação do pobre, oferecendo-lhe uma solução que não afete ou melindre a essência do sistema. Trata-se, antes de tudo, de uma política curativa focalizada em projetos específicos para cada assentamento (...) essas intervenções não só reiteram e mantém intocadas as ‘regras do jogo’ imobiliário urbano que produzem a informalidade, como também exacerbam algumas das ‘taras’ do sistema.
Com o espraiamento da área urbana e a mantença das condições
ideais para a continuidade do processo de segregação, nossas cidades não terminam e estamos sempre produzindo novas irregularidades e carecendo de novas regularizações. Estão sempre incompletas. Há sempre nelas a marca
desconcertante e embaraçosa do algo mais a fazer. E isto vai dos prédios às casas,
das ruas às avenidas. Quem visita a periferia tem permanentemente a incômoda
sensação de incompletude. Está sempre faltando alguma coisa. Parece próprio da
cultura brasileira (de não terminar o que se inicia), mas é em verdade próprio da
condição de pobreza, de miséria, impingida a milhões de cidadãos.
Bueno (2004) descreve as características que servem a qualquer área
carente de regularização fundiária e retrata uma realidade ainda pior quando o
conjunto de moradias está em área de APP: Nossas cidades são resultados de nossas estruturas sociais, caracterizadas por diferentes condições de vida e de acesso a serviços e equipamentos urbanos. Historicamente nosso ambiente construído apresenta uma urbanização incompleta – bairros sem pavimentação e com erosão (causando assoreamento dos cursos d’água e dificuldades de acesso ao sistema de transporte e outros serviços), lançamento de esgoto nos cursos d’água pelos próprios sistemas de afastamento de esgotos domésticos, coleta de lixo parcial e com disposição final inadequada, inacessibilidade à moradia digna, com a formação de assentamentos precários e irregulares.
Podemos não ser responsáveis pela situação de urbanização
incompleta de que atualmente padecem nossas cidades mas somos nós que estamos
construindo um programa de regularização fundiária (que precisa ser completo),
enfrentando esse imenso passivo, tentando corrigir agravos ambientais. Nosso
trabalho só se completa com atuação preventiva de modo a impedir a continuação de
um modelo, um sistema, que tem produzido sempre mais daquilo que hoje
combatemos à custa de expressivos recursos de nossas nações que não são
economicamente opulentas.
Atuação incompleta é a receita de problemas sociais, urbanos e
ambientais que estaremos transmitindo.
243
Atuar investindo naqueles aspectos que previnem as ocorrências de
ocupação é ainda a providência que mais condiz com a inteligência humana e com a
capacidade econômica da sociedade.
Sem pretender reducionismos, é possível afirmar que, se objetivamos
atuar preventivamente quanto a regularizar assentamentos urbanos irregulares, será
preciso primeiramente insistir na aplicação efetiva dos instrumentos que o Estatuto da
Cidade permite. Elaborado propositalmente para ser um “conjunto de objetivos a
atingir” o Estatuto precisará progressivamente ser viabilizado e colocado em prática.
Combater os vazios urbanos, adensando os centros das cidades é outra
medida preventiva válida em razão de suas múltiplas implicações na redução do
tamanho da cidade, no aumento da oferta de terras e conseqüentemente na regulação
do preço da terra urbana.
Importa, também, flexibilizar o mais possível as leis que regulam a
atividade de construção popular para que maior número de pessoas possa construir
licitamente, podendo regularizar sua moradia sem maiores entraves administrativos,
burocráticos ou econômicos (valores das taxas, etc).37 A lei precisa dialogar com a
realidade e a diversidade.
Convém, a respeito deste tema, levar em conta o alerta de Alfonsin
(1998) de que as pessoas precisam ter direito à produção regular da moradia,
observados apenas critérios mínimos e não ideais. As leis não podem ser inflexíveis
ainda que pretendam equalizar a produção habitacional impedindo a existência de
moradias de muito baixo padrão. Não devem as leis impedir que expressiva parcela da
população consiga construir, dentro das suas possibilidades e dentro da lei, o tipo de
abrigo que seja ocasionalmente suficiente para a família.
Agir inteiramente de acordo com a lei é inviável para enorme
contingente de famílias. E aquilo que para elas é possível construir está sempre
37 A propósito, ver a lição de Martins, 2006 - Os resultados do conjunto de levantamentos e de projetos realizados permitem assumir que o procedimento adotado para a elaboração de projetos de recuperação ambiental deve partir de uma análise da defasagem entre legislação existente e situação verificada. É necessário que se elabore projeto urbanístico de qualidade, mas dentro das condições reais e com possibilidade de algum tipo de adequação, senão à letra da lei, ao espírito da lei e aos seus princípios fundamentais. E a mesma advertência faz Fernandes (1998): Da mesma forma que a discussão sobre o direito urbanístico tem de se dar no contexto da sua relação com as práticas concretas de gestão urbana, não há mais como ignorar que legalidade e ilegalidade são duas faces do mesmo processo de produção do espaço urbano. E ainda o mesmo autor: (...)a promoção da reforma urbana depende em parte da promoção de uma reforma jurídica ampla, sobretudo no que se refere à regulação dos direitos de propriedade imobiliária e do processo mais amplo de desenvolvimento urbano, planejamento e gestão. (...) a promoção da reforma jurídica é vista por organizações nacionais e internacionais como uma das principais condições para a mudança do padrão excludente do desenvolvimento urbano nos países em desenvolvimento e em transição e para a efetiva confrontação da ilegalidade urbana. Em especial, é fundamental que se reconheça que, em alguns casos, como o do Brasil, nos quais a ilegalidade urbana deixou de ser a exceção e passou a ser a regra, ela é estrutural e estruturante dos processos de produção da cidade e precisa ser enfrentada enquanto tal, requerendo a formulação de diretrizes e estratégias específicas no contexto mais amplo do planejamento urbano e da gestão urbana e não meramente por meio de políticas sociais e/ou urbanísticas isoladas e marginais.
244
desconforme com as regras urbanísticas que exigem demais. As leis exigem padrões
mínimos que o cidadão médio brasileiro não pode atender.
Seria necessário reconhecer essa realidade e regular diferenciadamente, atendendo-se às mais variadas dissemelhanças. Agir com justiça
na regulação, consiste em dar a cada um o que é seu, tratando-se diferentemente os
desiguais. Parece claro que não convém estabelecer para todo e qualquer tipo de
fonte de agravos ambientais o mesmo nível de restrições. A situação de uma
ocupação para fins de moradia é bem diversa da situação de uma empresa que, tendo
possibilidade de produzir de forma limpa, resolve produzir poluindo ou que, tendo
possibilidade de instalar-se em outro local, resolve postar-se na beira de um
manancial.
A avaliação dessas situações, portanto, é justo que se faça com rigor
em relação à empresa e com alguma tolerância quando se trate de moradia. Ou
mesmo que se dê a ambas as situações um tratamento igualmente rigoroso. O que se
vê, no entanto, é grande complacência com empresas e severidade com moradias.
Ninguém nasce ou cresce desejando, como ideal de qualidade de vida,
morar à beira de um córrego poluído, conviver com animais de toda sorte e viver
exposto a riscos.
Uma família que, à míngua de outra possibilidade, não vê alternativa
senão fixar sua moradia à margem de um córrego, em condições precaríssimas,
correndo riscos à própria vida e à saúde, age em situação de necessidade que precisa
ser levada em conta na avaliação moral ou legal desta conduta.
Expressiva parte da sociedade não tem olhos para os dramas pessoais,
o desespero, as dificuldades enormes enfrentadas pelas tantas e tantas famílias
expulsas para os rincões mais distantes dos centros urbanos, para aquilo que essa
mesma sociedade considera “o lugar deles”.
Seja nas academias com seus estudos e pesquisas; seja nas
instituições públicas por sua atividade profissional que torna impositivo o contato
pessoal com quem vive aquelas dificuldades; ou ainda nas organizações privadas da
sociedade civil imbuídas de espírito de solidariedade voluntária; há sempre alguém
buscando compreender as razões que levam esses membros da sociedade a essas
situações extremas de indignidade e buscando encontrar para essas pessoas e para a
natureza, que sofre agressões, caminhos de consenso que atendam o mais possível a
todas as necessidades manifestadas.
É preciso, ainda, no propósito da ação preventiva, dificultar a
periferização dos grandes centros por meio da utilização de todos os instrumentos
245
viáveis e ainda investir prioritariamente em habitação de perfil popular de modo a
diminuir o déficit e produzir equalização social.
Outra possibilidade é a utilização de instrumentos que permitam cobrar
do investidor imobiliário uma contra-prestação social e ambiental pela autorização para
realização de seu empreendimento.
Parece igualmente importante deixar de fixar objetivamente faixas de
preservação de APP, com aplicabilidade para todo o território nacional,
indistintamente, assim como parece importante tratar de forma diversa uma APP situada em área rural de uma APP situada em área urbana.
A diversidade das situações desaconselha a padronização. A regulação
precisa existir mas ela precisa considerar as muitas diversidades e:
• quando se trata de APP em área rural, o regramento pode ser federal ou regional, conferindo preferência à questão ambiental
• quando a APP esteja em área urbana, o regramento precisa se dar sobretudo localmente, com critérios locais, conferindo maior proeminência à questão social.
Este conjunto de medidas parece ser uma fórmula, uma receita,
minimamente adequada para melhorar a qualidade de vida urbana nos grandes
centros. São propostas de soluções já suficientemente discutidas e amadurecidas que
parecem viáveis para problemas de há muito diagnosticados.
De lege ferenda podemos fixar alguns critérios conciliadores para os
casos de regularização fundiária em áreas de APP que poderiam ser assim resumidos:
• a moradia ou o assentamento causa severo desgaste ambiental insolúvel e
está em área de risco insuperável, encontre-se ou não em área de APP, indica-se a remoção da moradia ou do assentamento com alternativa de
reassentamento preferencialmente nas proximidades; prevalência do princípio
da proteção à vida ou à integridade física dos moradores, com alternativa para
a moradia.
• a moradia ou o assentamento causa severo desgaste ambiental insolúvel, não
havendo situação de risco (ou sendo o risco removível), encontre-se ou não em área de APP indica-se a remoção da moradia ou do assentamento com
alternativa de reassentamento preferencialmente nas proximidades;
prevalência do princípio da proteção ambiental, com alternativa para a moradia.
• A moradia ou o assentamento não apresenta problemas ambientais (ou em
que os problemas ambientais são contornáveis) mas está em área de risco
insuperável, encontre-se ou não em área de APP, indica-se a remoção da
moradia ou do assentamento com alternativa de reassentamento
246
preferencialmente nas proximidades; prevalência do princípio da proteção à
vida ou à integridade física dos moradores, com alternativa para a moradia.
• A moradia ou o assentamento não apresenta problemas ambientais (ou os tem,
mas eles são contornáveis) e não está em área de risco (ou está em área em
que o risco é superável), encontre-se ou não em área de APP, indica-se a
mantença dos moradores em suas moradias ou no assentamento. Prevalência
do princípio da proteção do direito à moradia.
• Assim que houver notícia da existência de um assentamento habitacional
informal se consolidando que, no todo ou em parte esteja em área de APP ou
em suas proximidades, a regularização fundiária precisa ser feita como
prioridade da administração pública para evitar-se a agressão ao ambiente que
a ocupação da área de APP terminará inevitavelmente provocando. A remoção
de riscos e as soluções urbanísticas e ambientais com pouca ou nenhuma
remoção de moradias se farão, com a intervenção prioritária, muito mais
facilmente e com menor ônus. Prevalência do princípio da prevenção.
Fazer esses dois interesses dialogar, sem sacrificar um em favor de
outro, é o grande desafio proposto a quem tem a grave função de operar a
regularização dessas áreas consolidadas de moradia em locais ambientalmente
sensíveis. É preciso entender que tanto os moradores de assentamentos irregulares
quanto o ambiente são sujeitos de direito.
247
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250
A P Ê N D I C E S
251
APÊNDICE I – LINHA DO TEMPO
DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
252
APÊNDICE II – QUADRO-RESUMO DE
UNIDADES AMBIENTAIS (LOCAIS ESPECIALMENTE
PROTEGIDOS)