Pollyanna Furtado Rosa de Sombra

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  • ROSA DE SOMBRA

    Pollyanna Furtado

    Eclipse

    Edies

  • RROOSSAA DDEE SSOOMMBBRRAA

    Pollyanna Furtado

    2013

  • 2013 Pollyanna Furtado Lima

    Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 5.988 de 14/12/73. Autorizo a reproduo total ou parcial, por quaisquer meios, para fins no comercial, na condio de que seja respeitada a autoria. Preparao, reviso, capa, projeto grfico: Pollyanna F. Lima.

    FURTADO, Pollyanna. Rosa de sombra: poema e prosa potica. Manaus: Eclipse [Edio fora de comrcio], 2013. ROSA DE SOMBRA_VERSO DIGITAL.pdf

    Contato e outros textos: [email protected] pollyannafurtado.blogspot.com.br

  • FRAGMENTOS

    ...Uma msica inusitada e triste se revelou nas

    paredes do meu sonho. De forma inacabada, mas

    crescente, como se rasgasse as fibras do meu

    ventre. Um grito nascia ainda mido de

    placenta. Encontrei a minha prpria voz como

    um filho prdigo. Me abjeta, no me via

    maternal dos meus erros. Desprezei os frutos da

    minha prpria carne, o meu sangue. Ainda

    morno, ele se desprendia de mim at constituir

    sua forma autnoma. Era meu e no era. S no

    mundo. Vagou em recnditos obscuros. Com

    resqucios luminosos, perpassou por meus olhos

    imprecisos. Agarrei-o com fria de amor

    impregnado de remorso. Um amor sanguneo

    matou meu nico filho, sufocado nos meus

    braos insanos.

    ***

    BOI, BOI, BOI,/ BOI DA CARA PRETA, /PEGA ESSE MENINO / QUE TEM MEDO

    DE CARETA. Cantaste s nessa noite.

    -03-

  • Eu estava demasiada, em nuseas de amor, para

    perceber a emancipao do teu carter. Altivo e

    mais forte do que o meu. Quando chegaste, eu j

    havia passado de 400 luas. No anteparo dos

    ombros de teu pai, me escorei at construir meus

    alicerces. Isso me rendeu anos de aniquilamento.

    Ele era a minha escora segura. Mas eu me

    devorava por dentro. O que sobrou de mim,

    seno a casca seca?!

    ***

    Minha alma selvagem! Liberta-me desta

    nusea que me tira o gosto da vida! Suplico por

    todos os meus poros, o suor lamurioso de

    trabalhos excessivos e inteis. Quanto tempo

    ainda terei de pagar pelos erros de meus

    ancestrais? Estou em dbito sem jamais pedir

    emprstimos.

    ***

    Ama-te a ti mesmo antes de, ao prximo. Diz o mandamento do livro annimo, que no li.

    -04-

  • Depois da era de Narciso, encontramos um fosso

    espelhado, onde, no fundo, h nada.

    ***

    Ainda que busques uma ilha de conforto no

    meio do caos das coisas nulas, ests preso

    lama que deforma o teu carter ainda em

    formao. Buscas sempre a sombra fresca em

    trridos desertos, buscas uma luz amena no

    centro da dissoluo abissal. No entanto, ests

    preso a ti mesmo, aos erros que no cometeste,

    preso ao que chamamos de condio humana.

    ***

    Seria capaz de me libertar, mas no agora. A

    minha indolncia torna-me vtima de mim

    mesma. Os meus apegos. Ah! Os meus apegos

    infindveis! Quanto mais tenho, mais desejo.

    Quanto mais me esquivo, mais me aoitam.

    Quanto mais eu ganho, mais eu perco.

    -05-

    -05-

  • E esse desdobramento de eus que cresce como

    samambaia e que se multiplica infinitamente.

    ***

    Diante da imagem trespassada de espectros

    gerados pela refrao das luzes artificiais em

    choque com a superfcie fria dos espelhos e

    vidraas, a face frgil e slida se estilhaa. A

    fragmentao do virtual reflexo do

    aniquilamento da carne viva.

    ***

    Ontem eu estava slida. Hoje estou lquida.

    Amanh, luminosa...

    -06-

  • ROSA DE SOMBRA

    No vermelho da sombra,

    esconde-se uma rosa azul.

    Rosa precria e triste,

    sem ptalas nem odor.

    Aquela mancha fria,

    dissolvida ao p da porta,

    de talos inacabados,

    sombra, coisa morta.

    Vi uma rosa rude

    se fechar na boca da noite.

    Sem ressoar de sinos.

    Rosa venosa de Vnus

    venenosa.

    Matria lendria de sonho,

    um vulto apenas na manh.

    Nem um pssaro quis beij-la,

    a rosa se desfez.

    -07-

  • DEBUTANTE RETR

    Eu queria fazer de minha existncia uma

    festa. E, para mim, tinha de ser especial - meus

    quinze anos retrocedidos. Meu idealismo

    ranoso com as farpas da realidade cortando a

    minha carne. Ai de meus sonhos juvenis! Queria

    um mundo de bondade leve. A vida como um

    sonho delicado, doce e sem diabete. Mas eu ca

    e a minha queda foi o desastre. As feridas do

    corpo eram sangue e fragilidade.

    Vi dentro das chagas no apenas a dor, mas a

    inutilidade humana com a qual manifestava os

    meus orgulhos. Queria o amor, contudo o dio

    me consumia. O que faria de mim com tanta

    sombra devassando o meu corpo?

    Precisava empreender uma alquimia.

    Apropriar-me de saberes complexos e secretos,

    para resgatar, de dentro do meu ser, a luz

    perdida.

    -08-

  • Porm fui privada da razo e, com as mos

    amarradas, no pude tatear os sculos. Assim, o

    conhecimento que pude agarrar, em parte, foi-

    me dado por herana, em parte foi induzido por

    uma intuio refinada, pela falta. Da o luminoso

    obscurantismo, o meu fascnio por temas

    bizantinos, a minha tendncia ao retrocesso e ao

    primitivismo.

    Descendi da sombra, cresci como ervas em

    bosques de pinheirais. Sem diretrizes nem

    espectros que me alinhassem, segui, por pulso

    primitiva, a fora das minhas fibras, enlaando-

    se nos troncos nodosos. Disso advm uma fora

    destrutiva. O passado herbrio marcou meu

    presente semi-humano. Sou semierva numa

    floresta inexplorada.

    Voltado ao estado semi-humano, sonhei ser

    um animal mitolgico. E de fora, me observava

    impassvel. Olhava o rio sem se importar com a

    minha presena curiosa.

    -09-

  • Eu, um animal nunca visto. Era alongado como

    um pinguim. S que a cabea era mais cheia e o

    pescoo largo. A plumagem era morte quase

    cinza. E tinha os olhos sinistros de um abutre.

    Ainda nesse sonho, Jorge Luis Borges falava-me

    acerca de coisas inventadas, de animais que

    nunca existiram, de cidades e pessoas invisveis.

    E eu achei que era uma conversa entre amigos,

    porque, quando se sonha, coisas e seres so to

    nossos. O pssaro mitolgico, a voz do poeta

    argentino, os saberes milenares, as imagens, as

    invenes.

    Iluso de propriedade, pois no temos nada

    neste mundo. Absolutamente nada. Nem mesmo

    o corpo. Ou os corpos. Tudo provisrio.

    No gosto de falar atravs de espelhos.

    Sinto-me humilhada quando me foram a criar

    invlucros diante do meu Ser. Preferia no dizer.

    Por que as pessoas se escondem? A precariedade

    -10-

  • est a e no podemos nos furtar disso. Tanto

    melhor seria no dizer. Ser a questo. Porm

    minha boca revela uma montanha de inutilidades

    de uma persona esfacelada com as dores de

    existir.

    Eu, o que espero de mim? Tantas coisas. Sou

    finito e infinito. Mas a dor ainda se sobrepe.

    Espero to pouco, apenas um ser humano menos

    vil. E as demandas da vida? E as demandas? O

    mundo espera que eu seja gil, incansvel e

    invencvel. Eu quero ser um ser humano. Parece

    muito. A humanidade no se importar com o

    humano.

    -11-

  • NO VRTICE DA SOMBRA

    O inefvel me prende

    com suas garras de ao e antimatria.

    O olhar esquivo, nas vitrines, cintila...

    com a sujidade das coisas aparentes,

    refratando ndoas fracionrias.

    Alamedas abertas,

    veredas do meu sangue,

    limtrofe dos meus olhos.

    O verossmil do engano

    se perdendo no que vejo.

    Estou fora, no vrtice da sombra.

    Penetrando na matria perecvel,

    de um grito, antes de acontecido.

    ..................................................

    ..................................................

    ................................................

    Eu destilava as minhas vaidades

    diante da vigilante desateno das esttuas

    -12-

  • quando o mundo fractal se abriu,

    fraturando meus sentidos

    em espelhos partidos

    e multiplicados ad infinitum.

    -13-

  • EU SOU O MEU LUGAR

    Firmeza sobre os ps, apesar de... No

    importa o lugar onde eu esteja, meu eixo est no

    lugar. E mesmo que eu me perca com

    frequncia, a minha perdio no o meu ser.

    Vou muito alm do que padeo. E as fraquezas

    dos membros no me deixam menos viva. A

    vida me sobra. Preciso estender os braos para

    dissipar tanta tenso aprisionada. No existe

    crescimento sem retraimento. Assim

    respiramos: inspirao e expirao.

    A minha aldeia o meu corpo. Esta

    comunidade que me forma coesa, apesar das

    dissidncias. Em harmonia com o tempo-espao,

    estendo minha fora vital, como quem tenta

    agarrar um fruto maduro pendendo do

    galho. Esse fruto um sonho longnquo e tenro.

    E os limites do corpo esto na mente. Se ela no

    existisse, seriamos todos um s, como numa

    paisagem natural: o rio est no cu, a terra est

    nas rvores, o ar est nos frutos. Cada elemento

    est no todo.

    -14-

  • s vezes, me dou conta dos meus

    aprisionamentos. Em outras, me esqueo de que

    fui condicionada a uma poro de coisas.

    Somente a sacudidela do desespero me lana de

    volta autoconscincia, a nica coisa capaz de

    me libertar.

    No tenho razes, porque no sou planta.

    Reconheo a esterilidade do meu pragmatismo,

    mas se fosse pensar numa imagem para minhas

    inquietaes, escolheria a de um pssaro na

    gaiola ou a de um gato num poro abandonado.

    rvores so impassveis, amo-as

    impetuosamente. Porm possuem razes. Eu no

    as tenho. Eu sou o meu lugar e se algum me

    condenar por impreciso, apenas lamento. Eu

    sou o meu lugar e meu ser o mundo.

    -15-

  • POEMA DA TUA BOCA

    Fechada,

    sumo do silncio ancestral. Aprisiona-me fora.

    Eu me resguardo diante do teu templrio

    [silncio.

    Aberta,

    abismo insondvel do caos,

    expanso de amor e dio.

    Do profundo pntano das palavras

    libertao que espero.

    Devoras a minha quietude.

    -16-

  • MERGULHO NA SOMBRA

    Ela precisava aprender a Ser. E, para isso,

    deveria olhar para dentro de si. Olhando-se

    talvez no visse o mais aprazvel. Ao mergulhar

    na sombra, veria mundos inexplorados. Frente

    ao desconhecido, encontraria possibilidades.

    Descobrindo outros caminhos, entraria em

    outras cidades. Sabendo de sua potncia, tomaria

    as chaves de tantas portas. Seria capaz de entrar

    em si? Ela no deixaria para trs a sua prpria

    vida. Queria tantas coisas e, no entanto, tinha

    nas mos o infinito.

    Ela queria ser a lua e se banhar de sol. Seus

    ps pisavam sobre a luz solar. Raios e

    reverberaes de um cataclismo e tudo mudou

    de cor. A cidade, o sonho e a noite cinza se

    fechando num crculo. Esperava a manh

    dourada com a face mergulhada no indizvel. As

    estrelas nas alturas, flores pendendo do talo

    seco. A sua estrela, uma hlice dourada, que

    revelia de sua condio, desfazia as nuvens,

    -17-

  • revirava a terra, agitava as guas, despedaava

    as rochas. Quando no restasse mais nada,

    dissolveria a si mesma. Tudo acabado,

    renasceria o universo.

    Estava distante, pequena e luminosa como

    olhos selvagens no meio das trevas. Pura como a

    flor no pntano. Num quarto escuro, ela a

    guardava. Estufa imprpria para estrelas

    suspensas.

    Nas manhs de outono, abria a janela

    procura de uma fora maior. "O corao da luz

    o sol", dizia. Mesmo quando silenciasse seus

    lbios, ele permaneceria. Teve vontade de abrir

    a janela e ver o tapete azul bordado de

    brilhantes. H muito no o via. Era sempre a

    cidade sem luz nas alturas. Feia e amortecida.

    Cad os habitantes desta aldeia?. Esto todos adormecidos. Com estrelas na face, olhava o

    lado escuro da vida.

    -18-

  • E esta vontade de construir outros

    mundos. Ela era abstrata quando olhava

    para as coisas. Repetindo saberes, ansiava

    dizer o indizvel. Talvez assim, seria capaz

    de Ser.

    Olhava no espelho, nada lhe dizia. O sol

    continuar nascendo ao leste. Que importa

    a cor dos cabelos? A noite continuar a ser

    noite. Que interessa a palidez das unhas?

    Nada ir mudar. A menos que sua potncia

    seja posta em campo.

    Saber demais inquieta, o sofrimento

    envelhece. E a placidez estava distante de

    suas ambies. Por mais que passasse o

    tempo contemplando a vida, no seria um

    eremita. Escrevia porque no tinha memria e a

    escrita era sua maneira de se guardar.

    Valia-se da fora da pequena estrela.

    Imperfeita, mas lhe revelava o profundo.

    Com frequncia, ela se cansava.

    Envelhecera com as ltimas crises. Porm

    no tinha medo. No havia outra sada.

    -19-

  • Sobre a autora

    Foto: Maradueira

    POLLYANNA FURTADO (1981)

    professora da rede pblica de ensino e Mestra

    em Letras Estudos Literrio (UFAM). Publicou

    os livros de poemas Fractais e margem da luz

    (edio independente, 2007) e Simetria do caos

    (7Letras, 2011).