POLÍTICAS PÚBLICAS, tempo, escola
-
Upload
maicon-alentejo -
Category
Documents
-
view
213 -
download
0
description
Transcript of POLÍTICAS PÚBLICAS, tempo, escola
1
POLÍTICAS PÚBLICAS, TEMPO, ESCOLA.
Lúcia Velloso Maurício
Antecedentes deste seminário
Discutir tempo e escola como política pública dentro de um Seminário Nacional
Educação em Tempo Integral nos faz lembrar o tempo decorrido para que esta concepção
pedagógica ganhasse foco e estarmos aqui agora neste debate. Passaram-se mais de 20 anos
desde a implantação dos CIEPs no Rio de Janeiro, fato indispensável para que este
seminário se desenvolva hoje. É notável a força da proposta dos CIEPs, que deixou de ser
de Darcy Ribeiro, e o envolvimento que sua implantação causou a tantos profissionais,
gerando tal garra que muitas destas escolas conseguiram preservar, de alguma forma, traços
da proposta, apesar de não se constituir mais como política de estado. Dela ficaram como
saldo prédios com marca de uma concepção de escola e pessoas imbuídas da convicção de
que aquela proposta era viável e atendia a demandas da sociedade brasileira. Esta convicção
é condição, embora não suficiente, para que a proposta possa vir a ser uma política pública.
E estamos aqui a discutir exatamente isto: que passos devem ser dados, deste momento em
diante, para que a escola de tempo integral possa se viabilizar como política pública.
Impossível falar para este auditório sem ser invadida pela emoção de quem, há
quase 25 anos está implicada neste projeto que veio, ao longo do tempo, se constituindo em
compromisso. Sinto-me à vontade para falar deste tema. Este é o meu lugar, como é o lugar
de Ligia Martha e Ana Cavaliere que organizaram este seminário, resultado de longo
investimento nesta proposta de escola, tecido através do Núcleo de Estudos de Escola
Pública de Horário Integral (NEEPHI). Ana Cavaliere e Ligia Martha promoveram, através
do Núcleo, encontros com diretores e professores de escolas de horário integral; cursos e
disciplinas implementados na graduação e Pós-graduação em educação da UNIRIO;
publicações em artigos e livro; orientações de monografias e dissertações e outras ações
que contribuíram para propagar a proposta de educação integrada em tempo integral.
Por outro lado, ter participado de toda esta trajetória traz responsabilidade. Tivemos
contato com realidades que este auditório não teve oportunidade de conhecer. Há outras
pessoas que passaram por experiências semelhantes às nossas que não estão aqui, mas que
continuam, em outros espaços, debatendo estratégias de ampliação da abrangência da
2
experiência de escola pública de horário integral. Instituições, como a Fundação Darcy
Ribeiro (FUNDAR), secretarias de educação, programas de formação continuada dentro de
secretarias constituem espaços de aglutinação sem os quais a vivência preciosa dessas
pessoas deixa de colaborar para a viabilização desta proposta. Ontem as perguntas desta
platéia me alertaram para esta responsabilidade que o conhecimento do passado me traz, a
tal ponto que modifiquei minha comunicação, para não deixar sem resposta algumas
indagações fundamentais que se fizeram presentes.
Assim, esta comunicação, embasada em profunda convicção de que não existem
respostas únicas e prontas para cada experiência de escola de horário integral, apresenta
alguns pressupostos a que cheguei, através de práticas, estudos e pesquisas, que considero
indispensáveis para que esta proposta de escola se constitua como política pública. Mais
adiante, foi o acréscimo que fiz, quero lembrar as críticas que foram feitas ao projeto de
escola de horário integral, particularmente no estado do Rio de Janeiro, e como elas se
atualizam hoje.
Pressupostos para a implantação da escola pública de horário integral
A educação integral reconhece a pessoa como um todo e não como um ser
fragmentado, por exemplo, entre corpo e intelecto. Que esta integralidade se constrói
através de linguagens diversas, em variadas atividades e circunstâncias. O desenvolvimento
dos aspectos afetivo, cognitivo, físico, social e outros se dá conjuntamente. De fato, o ser
humano vai se desenvolver de qualquer maneira, com escola ou sem, com mais tempo ou
não no ambiente escolar. O que é necessário para garantir à criança “a igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola” (art.206 da Constituição)? Ou para
“assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-
lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (art. 22 da LDB)?
É necessário tempo de permanência na escola para que a criança das classes
populares tenha igualdade de condições educacionais se comparamos com as oportunidades
que as crianças de classe média têm, em espaços variados e ao longo do dia inteiro, com
acesso a linguagens e circunstâncias diversas. É necessário tempo para adquirir hábitos,
valores, conhecimentos para o exercício da cidadania numa sociedade complexa como a
brasileira do Século XXI. Ninguém adquire hábitos de higiene sem praticar: é necessário
3
tempo para escovar dente; é necessário tempo para fazer leitura crítica das imagens
veiculadas pela televisão; é necessário tempo para praticar valores democráticos, na
educação física, na hora da refeição, nas discussões em sala de aula. E a necessidade de
tempo traz como conseqüência a necessidade de espaço. São intrínsecas, à proposta de
escola de horário integral, instalações adequadas para que todos os alunos possam escovar
dente e tomar banho; refeitório compatível com as demandas para uma forma de comer
saudável; equipamentos em sala multimeios para que os alunos assistam e discutam
programas variados em TV, DVD, internet e outros recursos; indispensável também espaço
suficiente para a realização, por exemplo, de reunião de alunos para prepararem
campeonatos, comemorações, conselhos. Assim se constroem valores democráticos. Tempo
e espaço implicam em custos. Não custa lembrar que educação não é despesa, é
investimento, porque ela traz retorno social e econômico.
A escola hoje responde por demandas que deixaram de ser atendidas no passado.
Quando se diz que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, as pessoas não percebem
a dimensão deste fato: em 1940, 2/3 da população escolarizável estava fora da escola; em
1970, 1/3 ainda da população em idade escolar estava fora da escola. Há apenas 10 anos o
Brasil conseguiu universalizar o Ensino Fundamental. Isto quer dizer que não temos ainda
uma geração de pais de nossos alunos totalmente escolarizada. Por isso a escola está
sobrecarregada. Os professores reclamam: não é tarefa da escola. Seria dos pais. Mas nem
todos os pais, menos ainda os avós que criam muitos dos nossos alunos, passaram pela
escola. Estes hábitos e conhecimentos não adquiridos vão repercutir na escola. Estas
condições brasileiras levam à inevitabilidade da escola pública em horário integral se de
fato se projeta um país capaz de garantir cidadania a todos os seus filhos.
O conceito de escola pública de horário integral que reivindicamos introduz alguns
condicionantes. Em primeiro lugar, o objetivo desta escola não é tirar a criança da rua,
como repetia Leonel Brizola. Tirar criança da rua pode redundar em proposta de
enclausuramento. A criança deixar de estar na rua pode ser uma conseqüência da escola de
horário integral. A criança precisa gostar da escola. Ela deve querer estar na escola. A
escola pode se fazer convidativa. Para que os objetivos da escola sejam alcançados, precisa-
se da adesão daqueles que são obrigados por lei a freqüentá-la. Pode parecer contraditório,
mas a obrigação não leva inevitavelmente ao desagrado. A escola precisa estar atenta a este
4
fato e isto implica, do nosso ponto de vista, o segundo condicionante para sua efetivação:
que a escola seja um laboratório de soluções. Para isto, o horário integral deve ser para
alunos e professores. Só nesta convivência longa e diária serão formuladas as condições
coletivas que tornem produtivo o convívio de culturas diversas, dos próprios alunos e de
professores e alunos. Haverá tensão, haverá conflito, mas a compreensão desta função da
escola permitirá que se encontrem os meios indispensáveis para a realização deste projeto.
Em terceiro lugar, a escola pública de horário integral tem como pressuposto a
aprendizagem e não a reprovação. Alguns professores poderiam interpretar este aspecto
como aprovação automática, uma estratégia para maquiar resultados positivos. No caso da
escola de horário integral seria uma incompreensão da sua função. O aluno permanece o dia
inteiro nesta escola, este é o seu espaço de aprendizagem formal, de sistematização do seu
conhecimento. Se não for na escola onde permanece o dia inteiro junto a profissionais com
objetivo específico de mediar seu conhecimento, onde construí-lo, sistematizá-lo, tirar suas
dúvidas? O tempo que ele passa ali se destina, entre outros objetivos, à disponibilidade para
se adotarem situações de aprendizagem alternativas, caso se reconheça que através de uma
proposta primeira, o objetivo não foi alcançado. Além disso, o conhecimento pode ser
desenvolvido com recurso a diversas linguagens, compreensão intrínseca a esta concepção
de escola e portando indispensável no projeto de escola de horário integral.
Um quarto aspecto a ser considerado é que a escola pública de horário integral é,
necessariamente, uma política de estado, seja implantada pelos órgãos estatais diretamente,
seja fruto de parcerias com instituições da sociedade civil. Cada uma destas modalidades
tem vantagens e desvantagens, mas não há hipótese de que esta proposta de educação seja
implantada sem a vontade política dos governantes. O projeto de escola em tempo integral
implica uma disponibilidade de recursos materiais e humanos significativa ou uma
articulação entre serviços de diversas instituições que não se dá espontaneamente. Caso não
se leve em consideração os recursos indispensáveis para esta proposta, teremos um
simulacro de escola de horário integral e faremos o que o jornal O Globo fez, numa série de
reportagens que publicou sobre os CIEPs em 2006: analisar um produto que não foi gerado
por esta escola.
Finalmente, a escola de horário integral deve ser uma opção, para o aluno e para o
professor. O aluno não deve estar lá por falta de vaga em outra escola, ou por falta de
5
alternativa da família. Ele precisa se adaptar a passar um dia completo em um espaço que
não seja sua própria casa. O professor não deve ir para esta escola para ajeitar situação
funcional, como acumular matrícula, ou para aumentar sua carga horária. Ele precisa estar
disposto a inventar esta escola. Tanto professor quanto aluno devem querer passar por esta
experiência, devem estar cativados para enfrentar este desafio. Na medida em que a escola
tenha sucesso, contando com todos os recursos que ela deve ter, a demanda aumenta e a
oferta poderá acompanhá-la. Isto atende a mais um requisito: a implantação paulatina desta
escola. Não há como universalizar a escola de horário integral em curto espaço de tempo.
Na medida em que ela produza os efeitos para os quais ela foi projetada como solução, ou
seja, a aprendizagem sistemática de todo o ensino fundamental, mais recursos estarão
disponíveis para sua ampliação, que deixam de ser desperdiçados com a evasão e a
repetência.
Não será esta uma visão marcadamente otimista da proposta de escola pública de
horário integral, uma experiência da qual se tem, por enquanto, resultados pontuais? Eu
diria que esta é a dimensão que falta à referida reportagem de O Globo, cujo ponto de vista
é o gasto com um prédio que deixou de ser utilizado para a finalidade para a qual foi
projetado. Assim, segundo o jornal, tornou-se caro e inútil. A perspectiva que é
reiteradamente apontada por muitos profissionais que vivenciaram a experiência dos
CIEPs, a que aparece nas cartas de leitor da reportagem mencionada, é a de futuro, é a
potencialidade do impacto renovador que uma proposta de educação como esta pode trazer
para alunos, professores, sistema de ensino e para a sociedade como um todo.
Representações na avaliação da escola pública de horário integral
É esclarecedor ilustrar o cenário da época da implantação da escola pública de
horário integral no Estado do Rio de Janeiro. Zaia Brandão, em artigo de 1989, expõe sua
relutância em participar de seminário promovido pela Fundação Carlos Chagas, em 1987,
sobre a escola pública de horário integral, tal o clima “emocional” que a envolvia naquele
cenário político. Relata a origem do seu criticismo em relação aos CIEPs, em conversas
com Darcy Ribeiro, mas reconhece que sua reação reflete vícios da academia. Afirma que o
impacto nacional causado pelos CIEPs colocou em discussão não as escolas, mas a disputa
político-partidária representada por Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer. A
6
autora, a despeito de reconhecer o boicote da imprensa ao Governo Brizola, considera que
as críticas veiculadas expressavam a polêmica levantada pelos CIEPs: constituição de uma
rede paralela; escola como out door; prioridade ao tempo integral, em detrimento da
extinção do terceiro turno; ausência de proposta pedagógica; custo muito alto. Afirma que o
CIEP representou ousadia para romper com a tradição, apesar das mazelas enfrentadas por
causa da urgência da implantação. Mas que o programa deixou questões para reflexão:
como conduzir o problema das crianças que completam a renda familiar; e o espaço/tempo
ampliado no atendimento à demanda das camadas populares. Destacou que o prédio e
horário novos trazem motivação.
Entre as críticas da época, era lugar comum abordar o populismo. Os argumentos
focalizavam ausência de transparência em relação a custos, critério de localização, número
de escolas concluídas e de alunos atendidos (Mignot, 1988). Leal (1991) sistematizou a
literatura sobre clientelismo, definindo-o como a distribuição de benefícios oriundos de
recursos públicos, efetivada por indivíduos ou grupos no poder, para atender interesses
particulares em troca de lealdade, apoio político e até vantagens econômicas, resultando em
alto grau de ineficiência social. O estudo mapeou as práticas clientelistas na educação de 1º
e 2º Graus no Brasil, através de aquisição e distribuição de livros didáticos, merenda e
bolsas de estudo; construção de escolas; recrutamento e lotação de professores.
A questão da construção dos CIEPs estava aí inserida porque, segundo a autora, o
diagnóstico que deu origem ao Programa foi coerente com o problema educacional quando
criticou o funcionamento e a estrutura da escola pública e enfatizou a necessidade de se
repensarem aspectos do ensino-aprendizagem. Entretanto, a implantação afastou-se do
diagnóstico na medida em que se concentrou na construção dos CIEPs. Cunha (1991)
considerou que a localização inadequada dos escolões não eliminou o terceiro turno, que a
pressa nas construções para fins eleitorais deixou vazamentos e que obras monumentais
como o CIEP têm objetivo de aumentar os valores simbólicos dos governantes e engordar
as “caixinhas” (p.483).
Victor Paro, que falou na Mesa Redonda de abertura deste seminário, foi o primeiro
a abordar o segundo tema das críticas, a inviabilidade de universalização da escola de
horário integral (PARO ET AL., 1988 b e 1988 c), como resultado de estudo promovido
pela Fundação Carlos Chagas. Alegavam que a simples extensão da escolaridade diária não
7
garantia o funcionamento ótimo da escola. Consideravam que o pequeno tempo de
permanência do aluno na escola é um grave problema, mas há outros do mesmo porte: a
superlotação das salas de aula, que pode ser solucionada sem extensão da escolaridade; o
salário do professor, que tem que trabalhar em vários lugares; a precariedade de instalações;
a escassez de material didático etc. Para os autores, a proposta de horário integral ignorava
que o mínimo estabelecido por lei de quatro horas diárias ainda estava para ser atingido.
Assim, o custo muito alto com incerteza de benefício inviabilizava a universalização da
escola de horário integral no Ensino Fundamental.
A crítica anterior remete à discussão sobre custos. Oliveira (1991) distinguiu dois
tipos de críticas ao custo dos CIEPs: de um lado, as que discordavam da oportunidade de
implantar uma escola como essa; de outro, as que incidiam sobre a análise dos gastos dessa
implantação. Rebate a impossibilidade de universalização do atendimento em tempo
integral quando não se garantia ainda ensino de boa qualidade em tempo parcial, alegando
que a escola unitária tem sido confundida com uniformidade de atendimento. No mesmo
sentido, Coelho (1996) afirmou que qualidade emancipatória a ser desenvolvida no ensino
público fundamental requer democracia que se lê, minimamente, como acesso e
permanência na escola, mesmo que seja necessário facultar condições desiguais para que as
crianças das classes desprivilegiadas possam se tornar iguais. Concluiu que a extensão da
quantidade de horas na escola é condição para desenvolver a qualidade emancipatória,
inserindo conteúdo político na qualidade de ensino.
Em artigo específico sobre o tema, Costa (1991) comparou os custos de uma escola
convencional e de um CIEP de 1ª à 4ª série, assim como os custos de outro par de 5ª à 8ª
série. A autora dividiu os custos em pessoal, material e capital (prédio). Exemplificando
com os dados do primeiro segmento, o CIEP apresentou custo aluno/ano três vezes maior
que o da escola convencional nos aspectos pessoal e material, e duas vezes maior no
tocante ao prédio. Concluiu que as despesas assistenciais não eram relevantes. Como tanto
no CIEP quanto na outra escola, a maior parte do custo aluno (60%) está na despesa com
pessoal, este se mostrou realmente o fator significativo. Ou seja, o CIEP, com sua
capacidade completa, apresentaria resultado diferente, pois a comparação foi feita entre
taxas, e não entre valores absolutos.
8
A quarta vertente da crítica discutiu a função da escola. Paro et al.(1988 a)
reafirmaram a função de instrução da escola, sem desconhecer a de socialização, mais
importante para as crianças das camadas populares que não contam com alternativas de
lazer em ambientes coletivos diversificados. Entretanto, consideraram que, na escola real, a
instrução tem sido reduzida a mínimos insignificantes e a socialização tem se consistido de
práticas autoritárias que recalcam a cultura do dominado, até que essas crianças sejam
expulsas da escola sem aprender o mínimo necessário. O que se divisava por trás do caráter
formador da escola voltada para as classes trabalhadoras era a concepção de pobreza como
problema moral, que devia ser eliminado por meio da educação integral. Argumentaram
que as propostas de horário integral daquele momento se apresentavam como alternativas à
FEBEM, que obteve êxito na segregação e fracassou na “ressocialização das crianças das
classes populares.
Leonardos, que realizou três pesquisas (1990, 1991 b e 1992), comparando um
CIEP e uma escola convencional, ambos de 1ª à 4ª série e situados na Cidade de Deus,
encontrou outros resultados. O estudo, que considerou pensamento crítico como capacidade
de avaliar uma idéia, tomar uma posição e argumentar, investigou a fala, a leitura e a escrita
em turmas de 4ª série. O levantamento socioeconômico indicou que os alunos do CIEP
eram mais pobres, ainda que apresentassem histórico escolar – número de séries já
repetidas – semelhante. Os resultados apontaram que os alunos do CIEP revelavam
domínio superior significativo na habilidade da fala em relação aos alunos da outra escola e
desempenho homogêneo nas três habilidades, embora fosse baixo, pois nenhum índice
ultrapassou 65,6%. Os da escola tradicional mostraram grande oscilação nas três
habilidades, com índice pouco maior na habilidade escrita que o do CIEP, porém não
significativo. A análise da freqüência dos temas escolhidos pelos alunos das duas escolas
sugeriu que existiam diferenças entre eles no campo ideológico.
Na pesquisa de 1992, Leonardos submeteu redações argumentativas dos alunos à
análise de conteúdo, confirmando que os alunos do CIEP apresentavam maior capacidade
de pensamento crítico em sua dimensão ideológica. O estudo concluiu que a postura dos
alunos do CIEP foi considerada não-repetidora do senso comum, enquanto o discurso dos
alunos da escola convencional enquadrava-se mais na repetição da palavra autorizada. De
acordo com a autora, não há como negar o impacto dos programas educacionais –
9
progressista ou tradicional – na diferença verificada, apesar de não se poder afirmar que
este fosse o único fator determinante. Os alunos da escola convencional se reconheciam
como classe média “de fora” da Cidade de Deus. No CIEP, ao contrário, manifesta-se uma
postura de assumir sua pertinência a todos os espaços daquela comunidade.
Outra questão levantada pela implantação do programa foi a pertinência do horário
integral, tendo em vista a necessidade de a criança colaborar com a renda familiar (PARO
ET AL., 1988 a; CUNHA, 1991). Perissé (1994), analisando a evasão de alunos de um
CIEP, concluiu que, diferentemente do que se supunha, o motivo principal para o abandono
do horário integral não era a necessidade de complementar a renda familiar, mas a não
implementação da proposta original, tanto por responsabilidade do governo da época
quanto pela dos profissionais que trabalhavam naquele CIEP, deixando os alunos na
ociosidade por longo período do dia.
Outra crítica à implantação foi a contradição observada entre o discurso da equipe
central do PEE e a prática das escolas (LIMA, 1988), ou entre o discurso e a prática dos
próprios professores (AGUIAR, 1991). Sobre discurso, Oliveira (1991) atribuiu ao
salvacionismo de Brizola, que justificava o programa, a origem do estigma do CIEP como
escola para pobre. A este respeito, Xavier (2001), que estudou a descontinuidade da política
de educação fluminense no período de 1975 a 1995, considera que o discurso que associou
a proposta de educação integral a uma política de prevenção da violência presente nas ruas
da cidade contribuiu para imprimir à imagem dos CIEPs o mesmo estigma do qual queria
livrar os alunos, passando de escola salvadora à representação social de espaço de
segregação para crianças pobres.
Três aspectos positivos mereceram destaque por terem sido citados, em contextos
diversos, tanto por críticos como por defensores da implantação da escola de horário
integral. O primeiro e mais significativo para a permanência da demanda por essa escola é a
satisfação dos pais. Paro et al.(1988 a) reconheceram que, à primeira vista, a população
desejava esses projetos que estavam sendo oferecidos. Lobo Jr. (1988) atribuiu o
entusiasmo das comunidades e das equipes internas em torno do CIEP a uma estreita
ligação entre a proposta populista do CIEP e um certo consenso vulgar do que seja escola
de qualidade.
10
Lima (1988) registrou que, apesar da omissão da escola em discutir a disciplina,
diante de tantos casos de violência, a visão dos pais era positiva, um descanso saber que os
filhos estavam na escola. Leonardos (1991a) compartilhou esta percepção ao afirmar que o
conceito de CIEP da comunidade em geral era de um prédio em que funcionava uma escola
de horário integral, o que lhes dava tranqüilidade para trabalhar e mantinha as crianças
alimentadas. Oliveira (1991) mencionou a expectativa favorável da população, que foi
confirmada em avaliação externa realizada em 1994 (MAURÍCIO e SILVA, 1995),
segundo a qual o índice de aprovação da comunidade em relação ao horário integral, ao
prédio escolar, à integração criança-escola e à qualidade de vida da comunidade após a
implantação da escola ficou acima de 80%.
O segundo aspecto positivo enfocou o horário integral do professor que, segundo
Paro et al.(1988 b) e Brandão (1989), permitia intervalos para planejamento, preparação de
material didático e aperfeiçoamento profissional, indispensáveis diante do baixo padrão de
qualidade do professor, resultante do desprestígio da profissão e dos baixos salários. Arroyo
(1988) e Costa (1995) abordaram outro aspecto, considerando que o horário mais extenso
do professor contribui para seu maior envolvimento com o projeto da escola, consolidando
um sistema de ensino mais definido, com um corpo profissional que poderia constituir-se
interlocutor para a classe trabalhadora.
O último aspecto compartilhado por vários autores foi a discussão sobre a escola
pública suscitada pela proposta dos CIEPs. O debate contribuiu para o avanço do processo
de democratização da escola pública, tanto que, nas campanhas eleitorais, apesar de
ressalvas, figurou como plataforma política (Mignot, 1988) de todos os candidatos ao
governo do Estado. Para Brandão (1989), CIEP tornou-se “nome próprio” para escola de
tempo integral; entrou na vida dos usuários, nos debates de educação, dos intelectuais e dos
políticos. Para Oliveira (1991), a discussão sobre a inadequação da escola pública
decorrente da introdução do projeto teve como conseqüência a incorporação do direito à
educação de boa qualidade, em jornada ampliada, às reivindicações das classes
trabalhadoras na Constituição do Estado e na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro.
Garcia (1992) resume tudo dizendo que o CIEP colocou a discussão sobre escola na rua.
Xavier (2001), no artigo já mencionado sobre a descontinuidade da política
educacional fluminense, destaca que o PEE, que se constituiu como projeto capaz de
11
oferecer alternativas para contemplar a diversidade sociocultural de sua clientela, terminou
funcionando como negação dessa mesma proposta ao buscar se transformar em “modelo
multiplicável de escola”. Este fato foi agravado pela implementação das escolas por meio
de rede paralela uma vez que não se rotiniza o extraordinário, deixando de institucionalizar
os bons frutos que a educação integral pudesse trazer. O artigo conclui, por um lado, que as
rupturas provocadas por concepção privatizante da administração pública, que leva à
alternância de partidos, prejudica não só a avaliação das políticas educacionais como
também impede que seus efeitos positivos tenham continuidade; por outro lado, que já é
possível identificar a persistência de determinadas concepções que são retomadas em
sucessivos projetos sempre que a conjuntura política oferece condições, como tem sido o
caso da escola de horário integral.
Passados vinte anos, não se resolveram os problemas que relegavam ao segundo
plano o projeto de escola pública de horário integral, como turmas superlotadas ou salários
baixos do professor, nem se investiu firmemente neste projeto de escola como possibilidade
de enfrentamento tanto de questões de socialização e permanência na escola como de
acesso ao conhecimento através de linguagens e recursos diversos. O custo alto alegado,
cresce cada vez mais à medida em que aumenta a distância entre a situação em que se
encontra a infância brasileira e a necessidade de conhecimentos para participação plena na
sociedade.
Atualização das representações sobre a escola pública de horário integral
Políticas públicas são viabilizadas de acordo com a incorporação que dela fazem os
grupos em seus contextos sócio-políticos. Os grupos nutrem expectativas e constroem
representações a respeito dos fenômenos sociais que lhes dizem respeito, através das suas
interações, vivências, encontros nos ambientes os mais diversos, do trabalho ao bar, da
escola ao estádio esportivo, da praia à missa. Os meios de comunicação desempenham
importante função de reforço e veiculação de representações sobre fatos do cotidiano.
Tomam-se como familiares fatos que acontecem com outros muito distantes de nós;
vivenciamos o que ouvimos ou vemos na TV, na internet ou lemos nos jornais, com a força
de uma interação direta. Este poder de induzir emoções e conduzir atitudes não é neutro.
12
Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens a respeito
dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência da rede pública de
educação em tempo integral que completava 21 anos no Rio de Janeiro. Aquela série
estampava uma concepção de educação pública em tempo integral: um fracasso. Após vinte
e um anos, estava sendo reforçada a representação de que aquela escola era cara, mal
construída, eleitoreira, demagógica, ineficiente, escola de pobre, depósito de crianças. O
Jornal estava criando um ambiente, preparando um “clima” de rejeição a qualquer proposta
política que pretendesse viabilizar projeto de educação em tempo integral. Uma antecipação
ao que pudesse surgir na campanha dos candidatos a governo.
Descartando os apelos sensacionalistas para causar impacto, como a fotografia de
um menino que mora em prédio de Ciep abandonado, mas que não estuda, ou a foto de ex-
aluno da primeira turma de Ciep que hoje é presidiário, as reportagens estavam ancoradas
em dois argumentos: o modelo de educação bem sucedida é passar para a faculdade e a
educação pública é avaliada como gasto. Para consolidar os argumentos, a reportagem
expõe um produto – os alunos - que foi gerado por uma outra escola pública, já que a de
tempo integral, proposta por Darcy Ribeiro (1986, 1994), deixou de ser implementada há
muitos anos. Mas isto não é dito. O Globo termina restrito à afirmativa de que foram
construídos prédios caros e que isso foi um desperdício. Em nenhum momento é levantada
a hipótese, por exemplo, de que o desperdício é abandonar prédios, patrimônio público,
apenas para justificar uma política de estado de não investir em educação integral.
Há um estudo de uma arquiteta (Moussatché, 1998) que mostra como o prédio
escolar, ao longo do século, foi utilizado para manipular as representações da população
sobre a escola. Um dos casos analisados é exatamente o dos Centros Integrados de
Educação Pública (CIEP) no Estado do Rio de Janeiro, processo que ocorreu em dois
momentos: no Governo de Moreira Franco (1986-1990) e no Governo de Marcelo Alencar
(1995-1998).
Ao assumirem o Poder, os grupos antagônicos ao governo anterior [...] deixam de
investir na manutenção dos prédios existentes. [...] E os prédios recém-construídos,
deterioram-se até o momento em que, sem condições ambientais de utilização,
passam a ser apresentados à população, através dos meios de comunicação, como
“edificações obsoletas” (p.186).
Finalizando, trouxe o exemplo desta série de reportagens, que analisei em
texto apresentado na ANPEd (MAURÍCIO, 2007), para lembrar que as políticas públicas se
13
constituem nos ambientes sociais, nos quais grupos disputam poder para defender
interesses, que favorecem ou dificultam preconceitos e desigualdades. Esta imagem pública
que permanece dificulta que se divulgue a proposta de escola pública de horário integral
que foi desenvolvida e suas possibilidades de contribuição para reverter o processo de
exclusão social que se naturaliza nas escolas brasileiras. Este embate não se dá apenas nos
locais reconhecidos como arenas políticas – Congresso, Assembléia Legislativa, prefeitura
ou outro órgão executivo – mas nos nossos espaços cotidianos, através de jornal, televisão,
rádio e de nossas próprias interações. A viabilidade da escola pública de horário integral
tem como condição, entre muitas outras, o reconhecimento do nosso papel político como
educadores.
Referências bibliográficas
AGUIAR, Maria de Fátima. Inovações metodológicas: seus caminhos e descaminhos.
Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação, UERJ, 1991.
ARROYO, Miguel Gonzales. O direito ao tempo de escola. Cadernos de Pesquisa. nº 65,
1988, pp. 3-10.
BRANDÃO, Zaia. A escola de 1º Grau em tempo integral: as lições da prática. Educação e
Sociedade, nº 32, 1989, pp. 116-129.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1998
(atualizada até a Emenda Constitucional n° 53, de 16/12/2006). Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/ Acesso em: 10 mar.2007
__________. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996: dispõe sobre as diretrizes e bases
da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.
CAVALIÉRI, A. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar
multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996.
COELHO, Ligia Martha C. Costa. Escola Pública de Horário Integral e Qualidade de
Ensino. Ensaio, v.11, nº 4, 1996, pp. 121-128.
COSTA, Marly Abreu. Comparação das estimativas do custo/aluno em dois CIEPs e duas
escolas convencionais no município do Rio de Janeiro. Educação e Sociedade nº 40, 1991,
pp. 486-501.
14
COSTA, Marly Abreu. Qualidade de ensino: a escola pública de tempo integral em
questão. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação UFRJ, 1995.
CUNHA, Luiz Antônio. Estado, educação e democracia no Brasil. 2ª ed. São Paulo:
Cortez, EDUFF. FLACSO, 1991.
GARCIA, Regina. CIEP – a paixão deslocada. Proposta nº 52. Rio de Janeiro: FASE,
1992, pp. 11-13.
LEAL, Maria Cristina. Práticas clientelísticas e recursos públicos para a educação de
primeiro e segundo graus. Tese de doutoramento. Faculdade de Educação, UFRJ, 1991.
LEONARDOS, Ana Cristina. Opportunities to learn academic skills in teh Brazilian public
schools: a comparative case study. Doutoramento em Educação. Standford University,
1990.
________. O CIEP como inovação educacional. Contexto e Educação, Ano 6, nº 22, 1991,
pp. 46-64.
________. Avaliação do desempenho de alunos de CIEP e de escola convencional:
comparando o desenvolvimento de pensamento crítico. Relatório de Pesquisa. Rio de
Janeiro: CAPES/UFRJ, 1991.
________. Análise de discurso das produções acadêmicas de alunos de CIEP
(representativo da proposta original) e de escola convencional. Relatório de Pesquisa. Rio
de Janeiro: CAPES/UFRJ, 1992.
LIMA, Valdileia. CIEPs : a re-invenção da escola pública? Dissertação de mestrado.
Faculdade de Educação, UFF, 1988.
LOBO JR. CIEPs: a impotência de um desejo pedagógico. Dissertação de mestrado.
Faculdade de Educação, UFF, 1988.
MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Literatura e representações da escola pública de horário
integral. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 27, p. 40-56, 2004.
__________.Representações do jornal O Globo sobre escola de tempo integral. Caxambu:
Anais da 30º Reunião Anual, 2007.
MAURÍCIO, L. V. e SILVA, I. Avaliação Externa 1993 e 1994. Carta 15: O Novo Livro
dos CIEPs, Brasília: Senado Federal, 1995, pp. 193-219.
15
MIGNOT, Ana Christina. CIEP : alternativa para a qualidade de ensino ou nova investida
do populismo em educação? Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação da PUC-RJ,
1988.
MOUSSATCHÉ, Helena. A arquitetura escolar como representação social da escola. Tese
de doutorado. Faculdade de Educação, UFRJ, 1998.
O GLOBO. Cieps 21 anos. Rio de Janeiro: 28 de maio a 4 de junho de 2006.
OLIVEIRA, Carlos Alberto. CIEP: modelos subjacentes de uma escola que está fazendo
escola. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação, UFRJ, 1991.
PARO, V. et alii. Escola de tempo integral : desafio para o ensino público. São Paulo:
Cortez Editora, 1988.
________. A escola pública de tempo integral: universalização do ensino e problemas
sociais. Cadernos de Pesquisa, nº 65, 1988, pp. 11-20.
________. Viabilidade da escola pública em tempo integral. Educação e Sociedade nº 29,
1988, pp. 86-99.
PERISSÉ, Vanda Lúcia S. Análise da evasão de alunos de um CIEP de segundo segmento
do Primeiro Grau para escolas de horário parcial. Dissertação de mestrado. Faculdade de
Educação, UFRJ, 1994.
RIBEIRO, Darcy. O Livro dos CIEPS. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1986.
________. “O Estado da Educação”. Carta, nº 12. Brasília: Senado Federal, 1994.
XAVIER, Libânia N. Inovações e (des)continuidades na política educacional fluminense
(1975-1995). Um Estado em questão: os 25 anos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV,
2001, pp. 115-156.