políticas públicas no brasil Hanna e Foucault.pdf

download políticas públicas no brasil Hanna e Foucault.pdf

of 15

Transcript of políticas públicas no brasil Hanna e Foucault.pdf

  • 66

    O CONCEITO DE POLTICA EM HANNAH ARENDT E SUA ACEPO BIOPOLTICA EM FOUCAULT: MANIFESTAES NO PODER LEGISLATIVO DO MUNICPIO DE CANOINHAS/SC.

    THE CONCEPT OF POLICY IN HANNAH ARENDT AND ITS MEANING IN FOUCAULT BIOPOLITICS: EVENTS IN THE LEGISLATIVE POWER IN MUNICIPALITY OF CANOINHAS/SC.

    Sandro Luiz Bazzanella1

    Walter Marcos Knaesel Birkner2

    Erica Daiana Maximo3

    Resumo: O presente artigo resultado de uma pesquisa articulada em torno de anlises, interpretaes e consideraes das concepes de poltica no poder legislativo do municpio de Canoinhas. Num primeiro momento, amparados nas reflexes e nos conceitos sobre poltica em Hannah Arendt e de biopoltica em Michel Foucault estabelecemos um quadro conceitual que permite o confronto entre conceitos, opinies e prticas encontradas no poder legislativo do municpio de Canoinhas na gesto 2005/2008. Num segundo momento, confrontadas as concepes conceituais com as prticas do poder legislativo, confirmam-se as duas principais hipteses que nortearam a pesquisa. Ou seja, a partir das anlises de Arendt, confrontadas com as prticas do legislativo, confirma-se o esvaziamento da poltica. A partir das anlises em torno da biopoltica em Foucault, o que se constata a reduo da poltica condio de biopolitica. A vida biolgica dos indivduos passa a ser a finalidade da poltica. A poltica que nasce entre os gregos como articuladora do mundo humano, reduz-se condio de uma racionalidade administrativa disciplinadora e controladora da vida dos indivduos em biologicidade.

    Palavras Chave: Ao; Poltica; Biopoltica; Poder Legislativo; Racionalidade poltico-administrativa.

    Abstract: This article is the result of a research which consist of an analysis, interpretations and conceptions of politics in the legislative power of the municipality of Canoinhas. In a first instance, supported in the concepts and reflections on politics in Hannah Arendt and Michel Foucault on biopolitics, we established a conceptual framework that allows the confrontation between the ideas, opinions and practices found in the legislative branch of Canoinhas municipality managed betwen 2005/2008. Secondly, faced the conceptual ideas with the practices of the legislature, we confirmed the two main hypotheses that guided this research. In other words, from the analysis of Arendt, confronted with the practice of law, it is confirmed the emptiness of politics. From the discussions of biopolitics in Foucault, what we find is the reduction of politics to the condition of biolpolitics. The biological life of individuals becomes the order of politics. The politics that flows among the Greeks as the articulator of the human world, is reduced to the status of an administrative rationality disciplining and controlling the lives of individuals in biologicity. Keywords: Action; Politics; Biopolitics; Legislature, political and administrative rationality.

    1Dr. em Cincias Humanas. Universidade do Contestado Campus Canoinhas/SC. E-mail: [email protected]; 2Dr. em Cincias Sociais. Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado Campus Canoinhas/SC. E-mail: [email protected] 3Bacharel em Cincias Sociais. Universidade do Contestado Campus Canoinhas/SC. E-mail: [email protected]

  • 67

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    Introduo

    O presente artigo o resultado de um conjunto de reflexes desenvolvidas a partir de

    pesquisa junto ao poder legislativo municipal de Canoinhas no ano de 2007. O objetivo geral da

    pesquisa articula-se em duas perspectivas: num primeiro momento caracteriza-se pelo trabalho

    conceitual em torno da definio de poltica em Hannah Arendt e de biopoltica em Michel

    Foucault. Num segundo momento, procura estabelecer um contraponto com as concepes

    polticas que perpassam o poder legislativo do Municpio de Canoinhas buscando desta forma,

    compreender aspectos da dinmica poltica do referido municpio no contexto de desenvolvimento

    do Planalto Norte Catarinense. Assim, a pesquisa foi centrada na investigao e compreenso de

    questes de ordem poltica que potencializam a reflexo e anlise em torno das demandas da

    sociedade em que vivemos. Entendemos que o estudo e a anlise conceitual em torno da questo se

    faz mister como condio da construo de uma sociedade com maior poder de organizao

    poltica, de participao nas mais diversas instncias pblicas, condio que pode lhe conferir

    condio atuante em torno dos interesses de ordem pblica. Uma sociedade pautada em princpios

    democrticos est necessariamente vinculada a ideais fundados na insero e na participao dos

    cidados no universo das relaes plurais que compem o espao poltico.

    O objetivo das reflexes aqui desenvolvidas de contribuir para a constituio de uma

    sociedade que compreenda a poltica como uma das esferas centrais da atividade humana,

    articulando sua cosmoviso para a constante reflexo em torno da vida humana em sua dimenso

    pblica, sobre a responsabilidade e a capacidade de distino entre questes de interesse pblico e

    privado. Neste contexto, as atitudes humanas podem tornar-se mais reflexivas, comunicativas e

    participativas e, a partir destas condies polticas, abrem-se os horizontes de possibilidade na

    construo de prticas polticas vinculadas democracia e participao popular, fortalecendo a

    democracia representativa, caracterstica determinante da organizao poltica moderna e

    contempornea. Portanto, as reflexes desenvolvidas neste artigo tm como parmetro

    comparativo, a poltica alicerada no ideal grego antigo, caracterizada pelo debate nas goras

    pblicas em que se envolviam os cidados na busca do bem comum, do bem viver como finalidade

    ltima da plis. A plis para os gregos significava a cidade-comunidade, o espao onde os cidados

    discutiam as questes de interesse comum, qualificando e conferindo finalidade suas vidas a

    partir da defesa dos interesses pblicos na manuteno da ordem, da harmonia, do princpio de

    isonomia, condies necessrias para realizao de uma vida plena, bem vivida em seu mbito

    pblico.

    Evidenciava-se o fato de os gregos atriburem cidade-comunidade uma condio natural. Os

    homens se unem para formar a polis na medida em que o ser humano se caracteriza, em sua

    natureza humana, pela sociabilidade em funo das garantias em um primeiro momento da

  • 68

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    prpria sobrevivncias, mas acima de tudo como o lcus por excelncia da realizao da vida

    humana qualificada na esfera das relaes polticas na busca do bem viver. Desta forma, a plis,

    espao pblico da comunidade dos cidados a condio necessria para a consolidao da busca

    do bem comum, do alcance da felicidade como realizao da finalidade da vida humana

    circunscrita no mbito macrocsmico da physis.

    Neste sentido, a concepo grega de poltica est ligada a perspectivas que abrangem seu

    sentido exclusivamente pblico. O fazer poltica seria eminentemente a prtica da virtude, ou seja,

    aquilo que se considerava o bem da cidade. Esta era a condio fundamental na vida dos cidados

    gregos, a poltica como condio inerente aos cidados de realizao de sua vida pblica. As

    relaes humanas se encontravam em primeiro plano na poltica grega, ou seja, o espao pblico

    era o espao do encontro e do confronto das pluralidades na busca do bem comum.

    A concepo tica a partir da qual se moviam os cidados gregos encontrava-se vinculada a

    cidade-comunidade, pois, de acordo com tal concepo, s nos tornamos perfeitos pelo hbito,

    pela prtica da virtude que leva justia. Os hbitos que se desenvolvem atravs do encontro com o

    diferente, do debate pblico e livre, apresentam-se como fundamentais para a construo do bem

    comum. o desenvolvimento destes hbitos polticos que permitem o desenvolvimento da

    capacidade de discernimento entre interesses pblicos e privados. a condio sine qua non para o

    alcance do bem comum. A partir do discernimento do espao pblico como condio para a

    cidadania, adquire-se o conhecimento da verdade. Assim, quem conhece o bem no pratica o mal,

    pois o conhecimento do bem gera a construo de virtudes pautadas em hbitos considerados

    corretos. Para Aristteles

    1. O Sentido da Poltica em Hannah Arendt4.

    Para a politloga Hannah Arendt a poltica ocidental, cuja gnese encontra-se nos gregos

    designada com o conceito de vida activa, que se caracteriza ao constituir-se em atividades vitais

    como forma de realizao de uma vida qualificada. Vida qualificada que se constitui no encontro e

    no confronto das pluralidades atravs do discurso, do debate livre em praa pblica, espao em que

    os cidados criavam e recriavam o mundo no qual coabitavam. A criao do mundo o resultado

    da ao que constitui a partir das relaes polticas, fundamento ontolgico do humano. Ao

    4 Hannah Arendt (1906-1975). Nascida na Alemanh, destacou-se como pensadora poltica. Apresentada muitas vezes como filsofa, recusa essa designao, preferindo ser denominada como politloga. A recusa da designao de filsofa da poltica se apresenta como posiconamento crtico, por compreender que no h uma lacuna radical entre filosofia e poltica, entre vida do esprito e o espao da ao, o que se apresenta como dura crtica s concepes de poltica de origem platnica. Hannah Arendt vivenciou grandes transformaes polticas do sculo 20, o que fez com que estudasse a formao dos regimes autoritrios (totalitrios) instalados nesse perodo: o nazismo alemo e o comunismo sovitico. Estudos estes que a levaram defesa incondicional da liberdade, da poltica como dimenso fundante da condio humana em contraposio s sociedades de massa e sua tendncia privatizao dos indivduos na vida em sociedade, potencializando os crimes contra a pessoa. Nesta perspectiva, sua obra fundamental para entender e refletir sobre os tempos atuais, dilacerados por guerras localizadas e por nacionalismos. Para ela, compreender significava enfrentar sem preconceitos a realidade e resistir a ela, sem procurar explicaes em antecedentes histricos.

  • 69

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    discursiva, dialgica que mobilizava os cidados em torno da poltica como caracterstica

    primordial dos seres humanos.

    A coisa poltica entendida nesse sentido grego est, portanto, centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como o no-ser-dominado e no dominar, e positivamente como um espao que s pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que so meus iguais no existe liberdade alguma (...).5

    Porm, o mundo grego possua uma estrutura poltica hierrquica, na medida em que

    entendia que o bom funcionamento da plis dependia do fato de que cada cidado cumprisse da

    melhor forma possvel a finalidade de sua existncia. Desta forma, a sociedade grega, mais

    especificamente a ateniense, dividia-se em um plano inferior da vida humana, que Arendt designa

    como labor, caracterizado pela satisfao das necessidades biolgicas vitais e, por outro lado a

    realizao da vida humana qualificada atravs das relaes e aes polticas desencadeadas no

    mbito da polis atravs debate pblico. O labor era o conjunto das relaes produtivas que se

    estabeleciam no espao privado da casa, cuja finalidade era a manuteno das necessidades

    biolgicas e fisiolgicas de sobrevivncia (comer, dormir, cuidados com a higiene e a manuteno

    do corpo), trabalhos desenvolvidos pelos escravos, pelas mulheres e crianas, que compunham a

    oikonomia do lar, espao por excelncia do cuidado com a vida biolgica. Em um segundo plano

    ficaria a dimenso do trabalho destinado a artesos e comerciantes e realizado em certos locais

    especficos da cidade. Portanto, em primeiro plano caracterizando a vida ativa encontrava-se a

    ao que definida atravs da poltica e das aes dela derivadas, atividade por excelncia dos

    cidados e realizado em praa pblica.

    A ao, nica atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediao das coisas ou da matria, corresponde condio humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e no o homem vive na terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da vida humana tm relao com a poltica; mas esta pluralidade especificamente a condio no apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam de toda vida poltica.6

    Porm, a politloga alem, radicada nos Estados Unidos em funo da perseguio aos

    judeus durante a Segunda Guerra Mundial, demonstra que na modernidade, ocorre um

    esvaziamento do mbito poltico, da vida ativa. A modernidade reduz a importncia da dimenso

    humana da ao, que passa a ser suprimida pelo trabalho e, principalmente, pelo labor. De acordo

    com Arendt, em um primeiro momento, nos primrdios da modernidade, o trabalho assume a

    centralidade da condio humana. O trabalho assume a condio ontolgica par excellence,

    determinado pela forma de ser e de estar dos seres humanos. sob esta prerrogativa que Marx

    5 ARENDT, Hannah. O Que Poltica? Traduo Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1998, p. 48. 6 ARENDT, Hannah. A Condio Humana. Traduo Roberto Raposo; Psfcio de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitria, 1991, p. 15.

  • 70

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    afirmou o trabalho como a atividade criadora do mundo humano e, portanto, constitutivo do

    homem. Os indivduos passam a preocupar-se eminentemente com o trabalho na lgica da gesto

    da vida biolgica vinculada a dinmica da produo e do consumo da vida. O trabalho elevado

    categoria por excelncia da definio da identidade pessoal. Neste contexto, passamos a nos definir

    a partir do trabalho que desenvolvemos. O trabalho assume a condio de categoria ontolgica a

    partir da qual definimos quem se . No entanto, no decorrer da modernidade, o prprio trabalho

    sofre um esvaziamento em sua condio ontolgica primeira, remetido a um segundo plano, ao

    passo que a atividade do consumo, vinculado diretamente ao labor, passa a ser condicionante na

    vida dos seres humanos. Ou seja, na modernidade e, mais especificamente na contemporaneidade,

    estabelece-se o primado da dimenso privada da vida humana sobrepondo-se sobrepe dimenso

    pblica.

    Os interesses privados passam a ser determinantes na conduo da existncia em sua

    cotidianidade. Manifesta-se, neste contexto, significativa ausncia de participao nas questes de

    mbito pblico, as aes humanas preferencialmente so pautadas na gesto da vida biolgica, nas

    preocupaes vinculadas ao trabalho, na produo e no consumo como horizonte de sentido e de

    totalidade existenciais. Neste contexto preciso ter presente que o trabalho para Arendt definido

    da seguinte forma:

    O trabalho a atividade correspondente ao artificialismo da existncia humana, existncia esta no est necessariamente contida no eterno ciclo vital da espcie e cuja mortalidade no compensada por este ultima. O trabalho produz o mundo artificial das coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condio humana do trabalho a mundanidade.7 (ARENDT, 1991, p. 15)

    A poltica como dimenso central da vida humana em sua condio constitutiva no plano

    das relaes comunitrias, sede espao para as polticas pblicas derivadas da razo de Estado

    vinculando-se ao mbito da sobrevivncia biopolitica8 da populao. Ou seja, estabelece-se na

    modernidade uma razo poltico-administrativa de Estado cuja prioridade o cuidado com a

    populao concebida como recurso humano necessrio ao fortalecimento econmico do Estado. A

    razo de Estado faz viver e deixar morrer estabelece regras de cuidados com a higiene, a sade,

    educao e segurana. Cuidados que para Arendt, podem ser definidos como labor na medida em

    que sua nfase se estabelece em relao condio biolgica das populaes. Sob tais perspectivas,

    7 Ibidem, p. 15 8O conceito de biopoltica articulado nas obras de Foucault, Agamben, Espsito, entre outros pensadores, tem origem em obras que se apresentam nos estertores do sculo XIX, nas primeiras dcadas do sculo XX e no ps-guerra. A especificidade do conceito de biopoltica, no contexto das obras que vm luz nestes perodos, uma significativa influncia positivista, darwinista, que se aplica na interpretao das funes do Estado na administrao e no fortalecimento de sua populao como manifestao da riqueza biolgica e vital, em funo dos interesses de auto-afirmao populacional, econmica e territorial. Nestas perspectivas, o conceito de biopoltica assume trs caracterizaes especficas: organicista, antropolgica e naturalista. Foucault por sua vez retoma o conceito de biopoltica em suas articulaes filosficas na dcada de setenta do sculo XX. Foi no perodo de 1974 a 1979 que o conceito ganhou a centralidade nas pesquisas, nas obras e entrevistas, imprimindo-lhe uma complexa interpretao, articulando as esferas biolgicas, histricas, polticas, epistemolgicas e ontolgicas sobre as quais se desenvolvem as relaes de saber e de poder na modernidade e em cuja centralidade se apresenta a vida.

  • 71

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    ocorre uma reduo do sentido original da forma como os gregos concebiam a poltica. Na

    modernidade a vida ativa e a ao humana pblica so suprimidas pelo labor, pelos cuidados com a

    vida biolgica. O labor a atividade que corresponde ao processo biolgico do corpo humano, cujo

    crescimento espontneo, metabolismo e eventual declnio tm a ver com as necessidades vitais

    produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condio humana do labor a prpria

    vida. 9

    1.1 A Poltica em seu cuidado com a vida biolgica: A Biopoltica em Foucault

    Na perspectiva das reflexes de Hannah Arendt10, o filsofo francs Michel Foucault

    aprofunda a problemtica da biopoltica, anunciando-a como constitutiva da razo de Estado

    moderno e suas manifestaes contemporneas. Desde os primrdios do Estado moderno, a noo

    de governo, segundo Foucault, estaria vinculada a conduo da racionalidade poltico-

    administrativa do Estado moderno, envolvendo tcnicas e procedimentos destinados a controlar a

    vida e a morte dos seres humanos. O governo passa a ser responsvel pela vida dos indivduos.

    Mas, enfim, creio que se pode dizer, de maneira geral, que, na medida em que, a partir do fim do sculo XVII incio do sculo XVIII, muitas das funes pastorais foram retomadas no exerccio da governamentalidade, na medida em que o governo ps-se a tambm querer se encarregar da conduta dos homens, a querer conduzi-los, a partir desse momento vamos ver que os conflitos de conduta j no vo se produzir tanto do lado da instituio religiosa, e sim, muito mais, do lado das instituies polticas. E vamos ter conflitos de conduta nos confins, nas margens da instituio poltica. (FOUCAULT, 2008, p. 260).

    De certa forma, Foucault identifica esta caracterstica biopoltica na gnese do Estado

    moderno e, de forma mais intensa na teoria de Hobbes, onde o Estado (Leviat) a personificao

    do poder soberano, cuja legitimidade esta vinculada a sua capacidade de estabelecer a ordem social

    bem como garantir a segurana do territrio e da populao, revelando-se em toda sua intensidade

    a condio biopoltica no qual se move o Estado moderno. Assim, o Estado passa a controlar,

    atravs de mecanismos e tcnicas de disciplinarizao dos corpos, de normalizao de hbitos e

    costumes, bem como de cuidados com a higiene, a vida e a morte da populao. Isto significa, o

    desenvolvimento de tcnicas de controle sobre os hbitos de vida e de higiene da vida biolgica dos

    indivduos. Neste sentido, o aumento de segurana e de previsibilidade sobre a vida das populaes

    e dos indivduos implica a perda da liberdade. [...] a soberania se exerce nos limites de um

    9 ARENDT, Hannah. A Condio Humana. 1991. Op-cit., p. 15 10 A aproximao entre Hannah Arendt e Foucault em torno do conceito de biopoltica no algo convergente e imediato como uma leitura apressada possa sugerir. necessrio levar em considerao as anlises presentes em Hannah Arendt para salvaguardar as devidas diferenas entre ambos os pensadores. Em primeiro lugar argumento central na obra A Condio Humana (1991), que a vida biolgica foi elevada centralidade do projeto moderno, mas isto no pressupe que ela afirme o conceito de biopoltica. No se encontra o citado termo uma nica vez ao longo da obra. Em segundo lugar, ao tomar a linha argumentativa e reflexiva de Arendt em torno da poltica, evidencia-se o fato de que a centralidade da vida biolgica para politloga alem significa o fim da poltica. No tem sentido para ela usar o termo biopoltica, o que evidenciaria e a levaria a admitir que ainda h poltica. .

  • 72

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    territrio, a disciplina se exerce sobre o corpo dos indivduos e, por fim, a segurana se exerce

    sobre o conjunto de uma populao.11

    Trata-se de fazer surgir certo nvel em que a ao dos que governam necessria e suficiente. Esse nvel de pertinncia para a ao de um governo no a totalidade efetiva e ponto por ponto dos sditos, a populao com seus fenmenos e seus processos prprios. (...) o panptico o mais antigo sonho do mais antigo soberano: que nenhum dos seus sditos escape e que nenhum dos gestos de nenhum dos meus sditos me seja desconhecido. Soberano perfeito tambm , de certo modo, o ponto central do panptico. Em compensao o que vemos surgir agora [no ] a idia de um poder que assumir a foram de uma vigilncia exaustiva dos indivduos para que, de certo modo, cada um deles, em cada momento, em tudo o que faz, esta presente aos olhos do soberano, mas o conjunto dos mecanismos que vo tornar pertinente, para o governo e para os que governam, fenmenos bem especficos, que no so exatamente os fenmenos individuais, se bem que (...) os indivduos figurem a de certo modo, e os processos de individualizao sejam a bem especficos.12

    Assim, o conceito de biopoltica evidenciado pelo Michel Foucault, diz respeito a uma

    tecnologia de poder constituda na modernidade. Esta tecnologia de poder apresenta-se como

    poder racionalizador que tem como objetivo primordial a otimizao e a superao dos problemas

    que envolvem a vida da populao. Utilizando-se de conhecimentos cientficos provenientes das

    mais diversas cincias, da estatstica, da demografia, da medicina, alm de mecanismos como:

    sistema de vigilncia, relatrios de inspeces, escrituraes, tecnologias disciplinares no mundo

    do trabalho, constitui-se um poder de administrar, controlar a vida e a morte das populaes.

    Nestas estratgias esto includas a educao, a assistncia social, a sade, os transportes, a

    secularizao de diversos aspectos da vida social, postos em funcionamento paralelo emergncia

    do Estado do bem-estar social.

    Podemos ver que a razo de Estado, no sentido de um governo racional capaz de aumentar a potncia do Estado de acordo com ele mesmo, passa pela constituio prvia de um determinado tipo de saber. O governo s possvel se a fora do Estado for conhecida; s assim poder ser mantida. A capacidade do Estado e os meios para aumentar devem tambm ser conhecidos, assim como a fora e a capacidade de outros Estados. [...]. necessrio um saber: um saber concreto, preciso e proporcional potncia do Estado. A arte de governar, caracterstica da razo de Estado, est intimamente ligada ao desenvolvimento do que se denominou estatstica ou aritmtica poltica, ou seja, ao conhecimento das foras respectivas dos diferentes Estados. Tal conhecimento era indispensvel ao bom governo.13

    11FOUCAULT, Michel. Segurana, territrio, populao: curso dado no Collge de France (1977-1978). Traduo Eduardo Brando; reviso da traduo de Claudia Berliner. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008, p. 15/16. 12Ibidem, pp. 86/87. 13 FOUCAULT, Michel. Omnes et Singulatim: Para uma crtica da razo poltica. Traduo Selvino Jos Assmann. Desterro Brasil: Ed. Nephelibata, 2006, p. 53.

  • 73

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    A biopolitica tem como objeto a populao, problematizando a vida no campo da poltica,

    utilizando-se dos instrumentos admnistrativos, cientificos para fazer viver e deixar morrer.

    Neste contexto, a vida biolgica assume um papel fundamental nas estratgias biopolticas da razo

    moderna de Estado. A vida, em sua dimeno eminentemente biolgica, comea a ser

    problematizada no campo do pensamento poltico, da anlise do poder poltico, ao incorporar

    tecnologias que se materializam em estratgias de biopoder, de controle disciplinar dos corpos e

    das mentes da populao. Porm, este biopoder que se apresenta no auge da modernidade aos

    nossos dias difere do biopoder nos primrdios do Estado moderno. A competia ao poder soberano

    a deciso de fazer morrer e deixar viver, o que est em jogo neste momento a inverso desta

    mxima poltico-administrativa do Estado, ou seja, fazer viver e deixar morrer.

    Parece-me que um dos fenmenos fundamentais do sculo XIX foi, o que se poderia denominar a assuno da vida pelo poder: se vocs preferirem, um tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espcie de estatizao do biolgico ou, pelo menos, uma certa inclinao que conduz ao que se poderia chamar de estatizao do biolgico. (...). E eu creio que, justamente, uma das mais macias transformaes do direito poltico no sculo XIX, consistiu, no digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania fazer morrer ou deixar viver com outro direito novo, que no vai apagar o primeiro, mas vai penetr-lo, perpass-lo e modific-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de fazer viver e de deixar morrer.14

    No contexto biopoltico contemporneo o poder no est localizado exclusivamente no

    soberano que tinha a prerrogativa de fazer morrer e deixar viver. A biopoltica como uma

    tecnologia de controle e poder sobre a vida, caraterstica da racionalidade poltico administrativa

    do Estado moderno, preocupa-se fundamentalmente em fazer viver e, por consequncia, em

    deixar morrer. Porm, a transferncia de tais concepes no se deu de forma repentina. Foi a

    partir da formulao e do desenvolvimento da racionalidade poltica e econmica da sociedade

    burguesa moderna que tais fatos foram evidenciando-se. Neste sentido, a biopolitica est

    relacionada ao Estado de bem-estar social.

    Na teoria clssica da soberania, vocs sabem que o direito de vida e de morte era um de seus atributos fundamentais. Ora, o direito de vida e de morte um direito que estranho, estranho j no nvel terico; com efeito, o que ter direito de vida e morte? Em certo sentido dizer que o soberano tem direito de vida e morte significa, no fundo, que ele pode fazer morrer e deixar viver; em todo caso, que a vida e a morte no so desses fenmenos naturais, imediatos, de certo modo originais ou radicais, que se localizariam fora do campo do poder poltico.15

    A preocupao com a vida e com os mtodos utilizados para fazer viver e deixar morrer,

    partem de uma concepo poltica de bem-estar social, onde conceitos e tcnicas so utilizadas, a

    14FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade: Curso no Collge de France (1975-1976). Traduo Maria Ermantina Galvo.

    So Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999, pp. 285/287.

    15 Ibidem, p. 286.

  • 74

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    fim de otimizar os resultados das polticas pblicas que se propem a atender s necessidades do

    contrato social e, principalmente, racionalizar as polticas de estado e de interresse de mercado.

    Trata-se de uma condio poltica que articula as novas tecnologias de controle e de produo da

    vida, considerando aspectos da cincia atual como a biologia molecular, a manipulao do material

    gentico, entre outras possibilidades tcnico-cientficas como estratgia biopoltica. Estratgias

    convencionais continuam sendo largamente utilizadas, gerando indicadores a serem empregados

    poltica e administrativamente. Seriam elas: pesquisas demogrficas para controle da populao,

    estatsticas de sade, de educao, polticas pblicas voltadas para a sade e a higiene, interferindo

    direta ou indiretamente na vida biolgica da populao, potencializando a dinmica do fazer viver,

    o que caracteriza a razo biopolitica de Estado na potencializao da vida humana em sua

    dimenso marcadamente biolgica.

    (), a correlao entre tcnica de segurana e a populao, ao mesmo tempo como objeto e sujeito desses em mecanismos de segurana, isto , a emergncia no apenas da noo, mas da realidade da populao. So no fundo, uma idia e uma realidade sem duvida absolutamente modernas em relao ao funcionamento poltico, mas tambm em relao ao saber e a teoria polticos anteriores ao sculo XVIII. (), a disciplina se exerce sobre o corpo dos indivduos e, por fim, a segurana se exerce sobre o conjunto de uma populao. Limites de territrio, corpo dos indivduos, como conjunto de uma populao, tudo bem, mas no isso creio que isso no cola.16

    Ainda nesta perspectiva, contemporaneamente os debates em torno das tcnicas

    biopolticas esto relacionados biogentica, onde os discursos bioticos assumem importncia

    significativa, preocupados com a influncia da tcnica e da racionalidade tecno-cientfica na vida

    dos indivduos, da populao e, at mesmo da espcie, vinculados aos possiveis abusos tcnicos que

    podem levar a consequncias imprevisveis. Neste sentido, observam-se as pesquisas com clulas-

    tronco, DNA, a utilizao de transgnicos, entre outras tecnologias biolgicas modernas. Estes

    fatos comprovam que a biopoltica, enquanto manifestao de uma determinada racionalidade

    poltico-administrativa de Estado utilizada, em sua plenitude para obter o controle sobre as mais

    variadas formas de vida, sobre tudo a vida humana, como tambm j demonstrado para interferir

    nas questes de ordem pblica. Sob estas prerrogativas no bojo das reflexes de Hannah Arendt e

    de Michel Foucault, pode-se considerar que a poltica moderna reduz a vida esfera biolgica,

    utilizando-se de tecnologias de poder para controlar a vida biolgica da populao com o objetivo

    de garantir a maximizao da gesto produtiva e de consumo caracterstica de sociedade

    globalizada financeiramente e alicerada na hegemonia da economia sobre a politica.

    Sob os pressupostos biopolticos o Estado contemporneo compreendido como o

    responsvel pelos os aspectos pblicos, onde o que considerado como bem pblico no

    reconhecido como algo que diz respeito aos interesses dos cidados, mas como dimenso da vida

    16 FOUCAULT, Michel. Segurana, territrio, populao. 2008. Op-cit., pp. 15/16.

  • 75

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    de indivduos societariamente dispostos sob a responsabilidade exclusiva de governos que

    conduzem a razo biopoltica de Estado. Sob tais pressupostos, os indivduos isentam-se das

    responsabilidades polticas e refugiam-se na esfera dos interesses privados. A gesto da vida

    biolgica, bem como dinmica da produo e do consumo considerada superior s questes

    polticas. O privado se sobrepe ao pblico, o que gera a ausncia de participao no mbito das

    decises polticas. Assim, a lgica do desenvolvimento e da poltica estaria voltada a propostas

    otimistas e de otimizao da produo do crescimento econmico. A racionalidade poltico-

    administrativa articulada s novas tecnologias reduz a vida ativa condio da vida em sua

    dimenso biolgica, como tambm aspectos pblicos a meros dados estatsticos. A esfera da vida

    biolgica se sobrepe dimenso poltica constitutiva da cidadania. Neste sentido, a modernidade

    confere primazia premissa de que o mais alto bem que os seres humanos possuem a vida em sua

    dimenso biolgica. Vida que se efetiva na privacidade dos desejos e das necessidades individuais.

    A vida concebida sob a premissa biolgica a negao do mundo que se constitui atravs das

    relaes entre os seres humanos em praa pblica.

    (), a era moderna continuou a operar sob a premissa de que a vida, e no o mundo, o bem supremo do homem; em suas mais ousadas e radicais revises e crticas dos conceitos e crenas tradicionais, jamais sequer pensou em pr em dvida a fundamental inverso de posies que o cristianismo trouxera para o decadente mundo antigo. Por mais eloqentes e conscientes que fossem os pensadores da era moderna em seus ataques contra a tradio, a prioridade da vida sobre tudo mais assumira para eles a condio de verdade axiomtica 17

    A partir da lgica biopolitica seria funo do governo apenas o fazer poltica, significando

    uma responsabilidade limitada na prpria gnese do contrato social que lhe conferiu o poder de

    zelar pela vida biolgica dos indivduos e da populao, possuindo o poder de orientar e julgar a

    conduta e a vida dos indivduos. Somente o Estado lcus par excellence pblico, e no os

    cidados que o compem. Sob estas perspectivas possvel partir do pressuposto que a concepo

    biopolitica estabelece um vnculo entre a racionalizao e os abusos do poder poltico no

    desenvolvimento de tcnicas de poder voltadas a dirigir a vida biolgica dos indivduos. Como

    evidenciou Foucault, o Estado a forma poltica de um poder centralizado e centralizador, o poder

    poltico exercido sobre os civis. A razo considerada o principio fundamental do Estado. Como

    arte do domnio sua funo seria, desta forma, reforar o prprio Estado, aumentando a potncia

    pela construo de um poder racional.

    Enfim, as tcnicas biopoliticas resultam do desenvolvimento da racionalidade poltica

    moderna, incluindo tambm fatores que contribuem para que o Estado seja ao mesmo tempo um

    fator de individualizao. A concepo de indivduo construda na modernidade isolou o cidado,

    preocupando-se prioritariamente com interesses egocntricos, em contraposio poltica que visa

    ao bem comum esvaziando-se em sua dimenso pblica. Evidencia-se a existncia de uma crise 17 ARENDT, Hannah. A Condio Humana. 1991. Op-cit., p.332

  • 76

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    no que se refere s concepes polticas, como tambm nas relaes humanas que se tornaram

    biopoliticamente racionalizadas e, por consequncia individualizadas. Foucault demonstra que a

    concepo de poltica estaria vinculada ao desenvolvimento e aplicabilidade de tcnicas e

    procedimentos que controlam a vida dos indivduos no sentido de potencializ-las

    economicamente. O Estado passa a ser responsvel pelo atendimento das necessidades vitais da

    vida da populao. O Estado conduzido por uma razo de governo cujo foco de sua ao esta

    voltado para a vida humana concebida como recurso humano. As formas de vida humana so

    normalizadas, normatizadas e vigiadas a partir de polticas pblicas cada vez mais eficientes e

    eficazes. Sob a perspectiva Hannah Arendt a poltica, enquanto ao dos cidados na esfera pblica

    deveria estar em primeiro plano na condio da existncia humana. Porm, o que se apresenta

    atualmente seria uma laborizao dos indivduos, seres humanos agindo de forma condicionada

    por um estilo de vida pautado na lgica da gesto econmica de produo e de consumo da vida. A

    sociedade identifica-se plenamente com a concepo de trabalho em curso como condio de

    acesso ao consumo acelerado e efmero de mercadorias, remetendo a condio humana condio

    do labor.

    3. O mbito poltico municipal: O caso de Canoinhas.

    Estes panoramas biopoliticos caractersticos da racionalidade politico-administrativa

    moderna apresentam-se na condio da poltica municipal de Canoinhas. A partir de entrevistas e

    de observaes nas sesses na Cmara de Vereadores do municpio de Canoinhas em 2007,

    confirma-se, num primeiro momento, a ausncia de participao dos cidados em torno das

    decises estratgica de sua cidade. Evidencia-se tambm o fato de existir uma disputa interna entre

    o poder executivo e o legislativo. O legislativo tem suas funes especficas limitadas pela influncia

    e pelos interesses do executivo. O que caracteriza o legislativo sua subservincia aos interesses

    biopolticos do Executivo, o que, de certa forma se revela em trs momentos distintos. O primeiro

    no esvaziamento das prerrogativas que constituem o poder legislativo frente ao poder executivo.

    Em segundo lugar, pela perda de referncia popular em relao s reais funes do poder

    legislativo na estrutura do Estado democrtico de direito. E, no terceiro momento, que se

    caracteriza como decorrncia das situaes, na ausncia do significado das instituies do Estado

    democrtico de direito, no que concerne na relao de independncia entre os trs poderes que lhe

    so constitutivos: Executivo, Legislativo e Judicirio.

    Nesta mesma perspectiva, a partir da anlise das entrevistas realizadas com os vereadores

    em exerccio sob tal contexto, constata-se que h uma reduo na concepo e no sentido que a

    poltica assume desde os gregos. A concepo de poltica que se apresenta marcada pela dimenso

    do labor, que se caracteriza pela condio humana submetida dinmica de um ininterrupto

  • 77

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    processo de produo e consumo privado da existncia, de seres humanos despontecializados da

    esfera comum da ao poltica como dimenso central de sua existncia, reduzindo-se ao cuidado

    individualizante com a vida biolgica e seus imperativos de necessidade. As entrevistas foram

    realizadas com dez vereadores que compuseram o poder legislativo do municpio de Canoinhas na

    legislatura de 2005 a 2008. A metodologia utilizada foi baseada em entrevista semi-estruturada,

    que permite uma especulao em torno do conceito de poltica que permeia o universo do poder

    Legislativo. A anlise de dados foi articulada em trs momentos: a pr-anlise, a descrio analtica

    e a interpretao a partir do referencial bibliogrfico utilizado como suporte terico. A pr-anlise

    se preocupou com a organizao do material, relacionado com o referencial terico, com as

    questes norteadoras e com os objetivos. A descrio analtica e a interceptao do referencial

    utilizaram-se do material pesquisado a fim de submet-lo anlise com base no referencial terico

    buscando configurar snteses, consideraes pertinentes temtica. Referente entrevista semi-

    estruturada, foram agrupadas e selecionadas as respostas e tambm os dados informados pelos

    entrevistados. Apresentamos algumas perguntas e respostas selecionadas na entrevista18 efetuada

    naquele contexto, evidenciando os argumentos acima arrolados em torno do esvaziamento da

    concepo de poltica, bem como da perda de referncia em torno da concepo do Estado

    Democrtico de Direito:

    1 Pergunta: Qual a funo do Vereador?

    Resposta: Vereador 1: legislar e fiscalizar os atos do poder executivo. Ser o elo para ligar a

    populao e o poder executivo.

    Resposta: Vereador 2: Fiscalizar os atos do executivo e propor aes ao executivo solicitadas

    pela populao. Levar as aspiraes da comunidade.

    Resposta: Vereador 3: Legislar. Fiscalizar o poder executivo. Aprovar leis e projetos e

    representar a comunidade.

    2 Pergunta: Quais seus principais projetos encaminhados na atual legislatura?

    18De um total de 10 entrevistas realizadas decidiu-se pela apresentao de trs entrevistas em funo das seguintes situaes: a) A questo do espao de produo do artigo. A apresentao das 10 entrevistas inviabilizaria a possibilidade de publicao do artigo em funo de sua extensividade, na medida em que extrapolaria o nmero de pginas desejveis e aceitveis para tal fim. b) Por entendermos, aps minuciosa leitura e anlise do conjunto das entrevistas, que as 3 (trs) entrevistas escolhidas reverberam as ideais, as concepes e argumentos presentes no conjunto das pesquisas, o que nos permite afirmar que no h perdas considerveis na qualidade e profundidade das reflexes suscitadas pelas questes.

  • 78

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    Resposta: Vereador 1: Criao de uma rotatria em frente Universidade. Solicitaes de

    asfalto.

    Resposta: Vereador 2: Solicitao para pista de skate. Defesa de transporte escolar para

    funcionrios pblicos. Indicao de melhoria em praas pblicas, indicao e busca de informaes

    do programa sade bucal, dentre outros.

    Resposta: Vereador 3: Lei que normaliza a criao de animais domsticos. Grande apoio

    implementao do programa porteira adentro. Incentivo pecuria. Pavimentao (Marcilio Dias).

    Iluminao e Transporte.

    3 Pergunta: De que forma voc atende aos pedidos que as pessoas fazem para voc?

    Resposta: Vereador 1: Fazendo indicaes, requerimentos, intercedendo nas estruturas

    competentes ou dizendo que no possvel quando no for.

    Resposta Vereador 2: Encaminho para cada secretaria ou rgo competente sempre buscando

    os que tm mais poder para resolver a solicitao, fazendo atravs de indicaes.

    Resposta Vereador 3: Com dedicao, fazendo indicaes para o Executivo.

    Estas perguntas e respostas apresentadas representam as concepes polticas e,

    consequentemente, o pensamento e a ao majoritrios entre os Vereadores participantes daquela

    legislatura no municpio de Canoinhas. Nas respostas observa-se que a funo do vereador estava

    vinculada aos interesses eminentemente do poder executivo, reduzindo sua funo legislativa em

    torno dos interesses polticos da comunidade canoinhense condio de apresentar solicitaes

    feitas por pessoas da comunidade atravs de indicaes ao executivo e, dificilmente, atravs de

    projetos de lei e da autoria dos prprios vereadores que pudessem ser apresentados, debatidos e

    votados em plenrio. Esta condio reveladora da perda de referncia por parte dos dignitrios

    pblicos que ocupam as funes legislativas de sua real funo no Estado democrtico de direito. A

    sobreposio de funes executivas em relao s legislativas, a constante negociao de interesses

    entre estes poderes em funo de interesses que no ficam claros no mbito do que pblico,

    demonstram a crise de representatividade em que est inserido o Estado como condio da

    garantia da liberdade poltica de seus cidados. Por outro lado, o esvaziamento de sua atribuio

    como garantia da liberdade poltica, do espao pblico como lcus privilegiado pelos cidados, o

    remete a limitadas fronteiras da racionalidade poltico-administrativa de carter biopoltico. Ou

  • 79

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    seja, a principal funo do Estado passa a ser a de provedor de bens e servios necessrios ao

    conforto e bem-estar da vida biolgica da populao. A ao poltica do Estado fica limitada a

    algumas reas de cunho biopoltico, entre elas: Sade, Educao e Segurana.

    Concluso

    A luz das reflexes em torno da poltica, desenvolvidas por Hannah Arendt, pode-se dizer

    que a confuso conceitual presente entre os vereadores em relao s questes pblicas e interesses

    privados, revela-se consequentemente nas posturas e aes por eles assumidos no exerccio de seu

    mandato, marcado por prticas assistncialistas aos seus possveis eleitores, aprofundando a

    caracterstica personalista na poltica, e talvez o mais prejudicial, que o fato de impedir aos

    indivduos conceberem as fronteiras existentes entre o mbito da questo pblica e dos interesses

    privados. Associado a tudo isto, chama-se a ateno para incompreenso e at o desconhecimento

    das ideologias partidrias em torno das quais se encontram afiliados. Sob a perspectiva de Arendt,

    este cenrio demonstra o fim da poltica na forma da democracia representativa que se constitui na

    modernidade. Os vereadores, legitimados pelo processo eleitoral no representam os interesses de

    parte da comunidade (seus eleitores) na busca do bem comum, qui representam a cosmoviso

    partidria na defesa dos interesses pblicos. Em grande medida o legislativo reduz-se a

    encaminhar ao executivo indicaes para contemplar interesses privados, bem como submeter-se

    aos interesses da racionalidade administrativa em torno de polticas pblicas de carter

    eminentemente biopoltico.

    Neste sentido, em relao s polticas pblicas pode-se constatar que tcnicas biopoliticas

    de fazer viver e deixar morrer se fazem presentes como uma srie de requerimentos que foram

    solicitados pelos vereadores, entre eles: patrolar ruas, salrios de educadores, construir novos

    abrigos para pontos de nibus, analisar grau de insalubridade de funcionrios pblicos, limpeza da

    cidade... Estas questes so discutidas pelo poder legislativo do Municpio, com nfase em aspectos

    que demandam cuidado com a vida biolgica dos indivduos de Canoinhas. Portanto, percebe-se

    presente no poder legislativo a plena manifestao da racionalidade governamental biopoltica.

    Observa-se tambm que o poder Executivo e o Legislativo se confundem em suas funes polticas,

    no entanto, como poderes constitutivos da razo de Estado que se constitui na modernidade,

    operam a partir de uma razo de governo eminentemente biopoltica, desencadeando polticas

    pblicas e administrativas de individualizao e ao mesmo tempo de potencializao da vida

    biolgica da populao.

  • 80

    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Jan/Fev/Mar/Abr. 2011. N 1

    Referncias

    ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo III Totalitarismo, o paroxismo do poder. Traduo. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Ed. Documentrio, 1979. _______________. A Condio Humana. Traduo Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Ed. Forense

    Universitria, 1991.

    _______________. O Que Poltica? Traduo Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil,

    1998.

    ARISTTELES. tica a Nicmaco. Traduo.: Estudo Bibliogrfico e Notas Edson Bini. Bauru: Ed. EDIPRO, 2002. ______________. A Poltica. Traduo Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006. ESPOSITO, Roberto. BOS. Biopoltica y filosofia. Traduccin de: Carlo R. Molinari Marotto. 1 ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. FASSIN, Didier. Biopoltica (In) RUSSO, Marisa; CAPONI, Sandra (Org.). Estudos de filosofia e histria das cincias biomdicas. Traduo Maria das Graas de Souza. So Paulo: Discurso Editoral, 2006. FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do Collge de France (1970-1982). Traduo. Andra Daher. Rio

    de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1997.

    ______________. Em defesa da Sociedade: Curso no Collge de France (1975-1976). Traduo

    Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999.

    ______________. Omnes et Singulatim: Para uma crtica da razo poltica. Trad.: Selvino Jose Assmann. Desterro Brasil: Ed. Nephelibata, 2006. ______________. Segurana, territrio, populao: curso dado no Collge de France (1977-1978). Traduo Eduardo Brando; reviso da traduo de Claudia Berliner. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008. ______________. Nascimento da biopoltica: curso dado no Collge de France (1978-1979). Traduo. Eduardo Brando; reviso da traduo Claudia Berliner. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008.