Políticas Da Cognição

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1 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ Centro Ciências da Educação Programa de Pós-Graduação em Educação O que são políticas da cognição? Patrícia Rocha Lustosa 1 Teresina, 30 de setembro de 2014, 8h. Começo a desenhar um texto sobre um tema novo. Confesso que estou cansada, acordei 4h da manhã e não consegui repousar. Por que o tempo que disponho para descansar, as famosas 8 horas de sono como prescrevem os médicos, não parecem sanar o peso sobre meus ombros? Chego à conclusão mais clichê do mundo: “estou trabalhando demais”. Eu, e toda a torcida do flamengo, diria alguém com bom humor. Introdução Quando comecei a ler a introdução do livro, fui convidada a entender um pouco sobre a problematização dos elementos cognitivos e inventivos. Os autores sugerem que pensemos que tudo se trata de processos, não somente como no modelo das ciências exatas, o chamado processamento de dados, acumulação de conteúdo, entrando e saindo informação, mas um processo de criação ou de invenção. Nessa hora eu pensei que estou lendo e processando tanta informação que não encontrei nenhuma brecha para criar. Então, como ampliar esse conceito de cognição como um processar informações e um criar ao conhecer? É nesse ponto em que os autores sugerem que a amplitude desse conceito está intimamente relacionada ao coletivo de ações em prol de devires inventivos, através do que chamam de políticas da cognição. Para os autores, cognição se refere tanto ao processo de produção (pensar) como seu produto (pensamento), isto é, trata-se do processo de conhecer em uma dimensão temporal, e que se transforma, reativando os liames dos regimes cognitivos e de signos, como também de criações de si, de devires cognitivos e da ação ou pragmática da cognição. 1 Professora do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Piauí. Texto apresentado na Disciplina Sociopoética e Cartografia nas Pesquisas em Educação e Saúde, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí.

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    MINISTRIO DA EDUCAO

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU Centro Cincias da Educao

    Programa de Ps-Graduao em Educao

    O que so polticas da cognio? Patrcia Rocha Lustosa1

    Teresina, 30 de setembro de 2014, 8h.

    Comeo a desenhar um texto sobre um tema novo. Confesso que estou cansada,

    acordei 4h da manh e no consegui repousar. Por que o tempo que disponho para

    descansar, as famosas 8 horas de sono como prescrevem os mdicos, no parecem sanar

    o peso sobre meus ombros? Chego concluso mais clich do mundo: estou trabalhando

    demais. Eu, e toda a torcida do flamengo, diria algum com bom humor.

    Introduo

    Quando comecei a ler a introduo do livro, fui convidada a entender um pouco sobre

    a problematizao dos elementos cognitivos e inventivos. Os autores sugerem que

    pensemos que tudo se trata de processos, no somente como no modelo das cincias

    exatas, o chamado processamento de dados, acumulao de contedo, entrando e saindo

    informao, mas um processo de criao ou de inveno.

    Nessa hora eu pensei que estou lendo e processando tanta informao que no

    encontrei nenhuma brecha para criar. Ento, como ampliar esse conceito de cognio como

    um processar informaes e um criar ao conhecer?

    nesse ponto em que os autores sugerem que a amplitude desse conceito est

    intimamente relacionada ao coletivo de aes em prol de devires inventivos, atravs do que

    chamam de polticas da cognio.

    Para os autores, cognio se refere tanto ao processo de produo (pensar) como seu

    produto (pensamento), isto , trata-se do processo de conhecer em uma dimenso temporal,

    e que se transforma, reativando os liames dos regimes cognitivos e de signos, como

    tambm de criaes de si, de devires cognitivos e da ao ou pragmtica da cognio.

    1 Professora do Curso de Psicologia da Universidade Estadual do Piau. Texto apresentado na Disciplina

    Sociopotica e Cartografia nas Pesquisas em Educao e Sade, do Programa de Ps-Graduao em

    Educao da Universidade Federal do Piau.

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    Os autores defendem que uma poltica da cognio deve inclinar-se por uma atitude

    tica (um ethos), de si e do mundo. Caminha entre os livros, mas impele-se para o mundo

    que tomamos para ns, e isso o que concerne o poltico.

    Ontem mesmo durante a aula sobre as representaes sociais (MOSCOVICI, 2007),

    falvamos da produo de discursos sobre os modos de vida, sua ancoragem no familiar, no

    memorvel, e sua necessidade de concretizar-se como discurso, objetivar em algo que

    podemos conectar ideia e imagem. Isso muito me lembrou o que logo na introduo Kastrup

    et al sobre o aspecto representacional to comemorado nas cincias humanas. Tambm me

    lembrou Foucault (2007) ao problematizar vida, trabalho e linguagem, com o intuito de

    pensar que questes aparentemente distantes podem se atravessar e formar um corpo de

    saber que se prope consistente e inabalvel sobre o homem.

    Ento, dois autores contemporneos, Moscovici e Foucault, construram olhares

    dispares sobre o homem. Para o primeiro, a contribuio de pensar o mundo como social,

    inter-individual, fruto de relaes e compartilhamento de linguagem, de comunicao.

    Representao social o que nos representa, familiariza o discurso para nos manter

    conectados ao mundo (que social). Para Moscovici um processo (ou um fenmeno) em

    ebulio de sentidos. Alguns permanecem por bastante tempo na trama coletiva de sujeitos,

    outros perecem rpido. Sua aposta na explanao do jogo representacional. J o

    segundo, no se satisfaz com uma explicitao dos discursos em voga, mesmo em

    constante mutao. H que se perguntar como alguns saberes foram surgindo, para alm

    dos aspectos representacionais; sua aposta na problematizao entre saberes e formas

    de poder.

    A arqueologia das cincias humanas mostrada por Foucault como uma trajetria

    peculiar que os saberes percorreram at desenharem o homem. To emblemtica sua

    forma de problematizar que a ela retorno e compartilho:

    Uma coisa em todo caso certa: que o homem no o mais velho

    problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano.

    Tomando uma cronologia relativamente curta e um recorte geogrfico

    restrito a cultura europeia do sculo XVI pode-se estar seguro de que o

    homem a uma inveno recente. No foi em torno dele e de seus

    segredos que, por muito tempo, obscuramente, o saber rondou. De fato,

    dentre todas as mutaes que afetaram o saber das coisas e de sua ordem,

    o saber das identidades, das diferenas, dos caracteres, das equivalncias,

    das palavras em suma, em meio a todos os episdios dessa profunda

    histria do Mesmo somente um, aquele que comeou a um sculo e meio

    e que talvez esteja em via de se encerrar, deixou aparecer a figura do

    homem. E isso no constitui liberao de uma velha inquietude, passagem

    conscincia luminosa de uma preocupao milenar, acesso objetividade

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    do que, durante muito tempo, ficaria preso em crenas ou filosofias: foi o

    efeito de uma mudana nas disposies fundamentais do saber. O homem

    uma inveno cuja recente data a arqueologia do nosso pensamento

    mostra facilmente. E talvez o fim prximo.

    Se essas disposies viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por

    algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a

    possibilidade, mas de que no momento no conhecemos ainda nem a forma

    nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do sculo

    XVIII, com o solo do pensamento clssico ento se pode apostar que o

    homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto na areia.

    (FOUCAULT, 2007, p.536)

    Segundo Foucault, vivemos os tempos da epistme moderna, essa em que o homem

    reduplicado e construdo pelo seu avizinhamento a outros territrios de saber, anteriores

    ao homem, mas que a ele couberam como vu que desenha suas curvas.

    A biologia uma de suas roupagens. Hoje falamos mais de cognio do que de

    homem. Minha pergunta consiste em entender porque somos mobilizados a pensar que

    essa parte, a cognio, fala verdadeiramente do humano. E isso me traz de volta ao texto de

    Kastrup sobre a cognio contempornea e a aprendizagem inventiva.

    A cognio contempornea e a aprendizagem inventiva (Virginia Kastrup)

    Kastrup abre seu texto se questionando sobre a atualidade ou o presente. Traz em

    Bergson suas pistas acerca a ontologia do tempo: o presente o instante em movimento,

    tem durao, nos diz Bergson. O presente congrega a virtualidade do passado e a

    imprevisibilidade do futuro.

    Quando leio o texto, vejo-me nessa trans-form-ao. Escrevo sobre o que eu li, e isso

    para estar no passado? Escrevo para levar para a turma meu entendimento do texto, no

    alm da leitura. O que ficar em mim? O que me habitar? Certamente sinto o tempo

    correndo enquanto me fixo na tarefa de escrever. Existir um campo movente.

    com Nietzsche e Foucault que a autora sugere nos defrontarmos com a questo do

    atual e do histrico. Para Nietzsche o atual converge ao histrico e tensiona o inatual-

    filosfico. Foucault, a seu turno, entende que, para operar uma histria do presente,

    precisamos considera o choque entre a histria (o que somos) e a atualidade (o Outro ou o

    devir). Significa que, quando construmos um campo de saber sobre a loucura, no para

    resgatar seu museu de ideias que constituram e inventaram esse sujeito mas,

    precisamente, como se promove uma ao sobre a loucura hoje. Construmos um saber

    sobre a loucura, saber memorvel, para agir sobre ela hoje, prever a loucura, rever a

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    loucura no quadro de alterao da normalidade. Sim, uma definio de normalidade tambm

    me parece certa cristalizao da existncia.

    A sexualidade, a loucura, a delinquncia, campos de saber-poder apresentados por

    Foucault revestem-se daquilo que Deleuze percebe como estratos histricos, daquilo que

    sedimentou e que dali saram diversos modos de subjetivao. Mas so com base nessas

    categorias sedimentadas, estabilizadas na histria que podemos nos impactar com as

    subjetividades contemporneas. Posto isto, ento nosso grande desafio pensar como a

    epistme moderna, essa que conecta os objetos de estudo de Foucault nos falam de uma

    inveno de discursos que esbarram na vida, na linguagem e no trabalho (FOUCAULT,

    2007), o que vai operar a tenso entre o que est memorvel o que se planta na era

    moderna e como isso provoca nossa atualidade, que se configura nada alm de um esboo

    indefinido, ou um rosto desenhado na areia.

    na diferena que constitumos o movimento que reifica incessantemente a

    atualidade. Pensar, no atual, poder desbravar o imprevisvel. Por isso Deleuze fala que

    pensar experimentar. Experimentar no vem do nada, e a lembramos da abertura do texto

    com Bergson sobre tempo em conexo.

    A autora comea ento a problematizar a cognio contempornea, ancorada na

    perspectiva ambientalista. Ou seja, a cognio como produto da relao com o ambiente. O

    ambiente dado. A aprendizagem cognitiva seria, para a psicologia da aprendizagem e do

    desenvolvimento, fruto da evoluo e do progresso. Para Kastrup, esse modelo

    hierarquizado de aprendizagem e desenvolvimento aproxima-se de uma equilibrao, isto ,

    aponta para a homogeneizao; consequentemente, acabamos estabelecendo padres

    melhores, funcionais em contraponto a processos de aprendizagem ruins ou disfuncionais.

    De encontro a essa perspectiva, podemos falar de devires cognitivos, multifacetados. Tais

    so as pistas que a autora perscrutou quando procurou ler a Teoria da Autopoiese de

    Maturana e Varela, realizando o exerccio de interlocuo com a ideias de Deleuze e

    Guattari.

    Kastrup se interessa em problematizar a cognio enveredando pelas condies de

    possibilidade de existncia de saberes sobre a cognio. Ela est igualmente interessada

    em dispor a cognio como atravessamento ou experimentao, no plural do tempo

    movente.

    Os estudos tradicionais sobre a cognio dividem-se em dois eixos: 1) perspectivas

    que apontam elementos estruturais e imutveis para analisar o processo cognitivo. Isso

    parece at contraditrio, posto pensar o desenvolvimento cognitivo alinhado percepo,

    pensamento e memria. 2) o segundo eixo delineia a evoluo da cognio como fruto da

    relao com a histria, que afeta o desenvolvimento cognitivo bem como sua estrutura de

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    funcionamento. Interessante frisar que ambos os eixos esto amparados pelo modelo

    biolgico e ambiental.

    J a teoria da poieses de Maturana e Varela, pode-se situar a coexistncia entre o

    passado (histria) e o atual deleuziano que remexem as configuraes histricas, libert-las

    das estruturas que a encapsulam e da histria que a reifica. A proposta de articular

    Maturana, varela, Deleuze e Guattari consiste em retomar o estatuto inventivo da cognio,

    perceber nas franjas de saberes solenes, aquilo que de in-fame pode se espraiar, no

    recorrer a um esquadrinhamento do atual na estrutura ou na histria, mas trabalhar com as

    rupturas em relao estrutura e histria.

    O conceito de breakdown (perturbao ou problematizao) de Varela exprime essa

    vontade de potncia da inveno cognitiva, metaforizada no artista como aprendiz:

    A aprendizagem no ento a adaptao a um ambiente dado nem

    obteno de um saber, mas experimentao, inveno de si e do mundo. A

    inveno da obra de arte correlata da produo do prprio artista

    (KASTRUP, 2008, p.101)

    Nessa viso, Varela entende que o ser vivo faz e conhece numa articulao visceral e

    ontolgica. Ao invs de acachaparmos a cognio em fatores invariantes, podemos indicar a

    abertura da cognio para sua atualizao. Gosto de pensar a cognio como inveno,

    pois sempre que me convocam a falar do louco, do adolescente em conflito parece que

    querem uma resposta: como lidar (entenda-se, como corrigir) com esse pblico. Ora, a

    loucura e o conflito significam discrepncia, e no grande museu dos saberes normais, isso

    no funciona muito bem. Ento: vamos acabar com o discrepante!

    Maturana e Varela trazem o elemento estrutural, mas ele nunca vai poder determinar a

    potncia do atual, uma problematizao que precede toda a ao (KASTRUP, 2008,

    p.103). Trata-se de um estado de prontido cognitiva, observado nas pesquisas em

    neurocincias, essas oscilaes sinpticas super rpidas produzem, intempestivamente a

    abertura para a ao que Varela chama de recognio.

    A cognio pulsao mente e corpo, uma atuao (enaction) encarnada e que

    pode acessar elementos no categorizados nos modelos tradicionais que evocam

    percepo, linguagem e memria, possvel de ser inventada. Enaction conecta-se ao

    conceito de agenciamento de Deleuze e Guattari. Agenciamentos, para estes, confere o

    estatuto processual, a emergncia de devires atuais. Bastante interessante a proposta de

    uma aprendizagem inventiva, rompida incessantemente pela atuao e pelo agenciamento

    maqunico. Gosto da ideia de aprender como pensar o novo, pensar o corpo aprendendo,

    pensar as conexes ainda por se formularem. Portanto, parafraseando Maturana e Varela:

    conhecer viver. rachar as coisas para dali emergir outra coisa.

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    Gostaria de parar por aqui, j so 12:20, pensando como meu trabalho, como

    professora, pode ser atravessado por essas polticas da cognio: quando digo para os

    alunos que no tenho aula pronta, pode parecer pura desorganizao. Mas no que eu

    no tenha percorrido os textos bases para a aula, s que eu preciso me encontrar com

    eles, sazonalmente, pois assim estou sempre me permitindo um novo encontro, no tempo

    que vivo, nas problematizaes. E quando os estagirios me perguntam qual a melhor

    tcnica que eles podem encontrar nos manuais de dinmica de grupo, visando preencher a

    atividade que so implicados a fazer com determinados grupos, peo que eles inventem. E

    quando eles se empolgam, eles inventam e acaba acontecendo um encontro feliz entre eles

    e o grupo, ambos inventando.

    REFERNCIAS

    FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 9 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2007.

    KASTRUP, Virgnia; PASSOS, Eduardo; TEDESCO, Silvia. A cognio contempornea e a

    aprendizagem inventiva. Polticas da Cognio. Porto Alegre: Sulina, 2008, p.93-111.

    MOSCOVICI, Serge. O fenmeno das representaes sociais. Representaes Sociais:

    investigao em psicologia social. 5 ed. Petrpolis RJ: Vozes, 2007. p.7-111.