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7/26/2019 Política Social, Temas e Questões - Potyara Pereira.pdf http://slidepdf.com/reader/full/politica-social-temas-e-questoes-potyara-pereirapdf 1/19 Conselho Editorial da area de Servico Social Ademir Alves da Silva Diis& Adeodata Bonetti Elaine Rossetti Behring Maria Lticia Carvalho da Silva Maria Lalcia Silva Barroco Potyara A. P Pereira Politica Social Dados Internacionais de Catalogagão na Publicagào CIP)  Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pereira, Potyara A. P. Politica social : temas questries / Potyara A. P. Pereira. — 2. ed. ao Paulo : Cortez, 2009. Bibliografia. ISBN 978-85-249-1391-4 1. Politica social 2. Politica social - Histdria 3. Servico social I. Titulo. 08-02811  CDD-361.2509 Indices para catblogo sistemfitico: 1. Politica social : Histdria : Bermestar social 361.2509 temas questhes 2' edicdo ®EDITORA a CNPq Owribo•Avaelyks NEGPCS

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Conselho Editorial da

area de Servico Social

Ademir Alves da Silva

Diis& Adeodata Bonetti

Elaine Rossetti Behring

Maria Lticia Carvalho da Silva

Maria Lalcia Silva Barroco

Potyara A.

P

Pereira

P olit ica S oc ial

Dados Internacionais de Catalogagão na Publicagào CIP)

 Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pereira, Potyara A. P.

Politica social : temas questries / Potyara A. P. Pereira. — 2. ed.

— a o

Paulo : Cortez, 2009.

Bibliografia.

ISBN 978-85-249-1391-4

1. Politica social 2. Politica social - Histdria 3. Servico social

I. Titulo.

08-02811

 

CDD-361.2509

Indices para catblogo sistemfitico:

1. Politica social : Histdria : Bermestar social 361.2509

temas questhes

2' edicdo

®EDITORA

a

CNPq

Owribo•Avaelyks

N EGP CS

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8

POTYARA PEREIRA

Assim, os direitos tradicionais e os novos direitos nao sdo apenas

incompativeis entre si, mas logicamente discrepantes, pois enquanto os

dois primeiros servem a ideologia do livre mercado e da livre vida indi-

vidual, os tiltimos imptiem limites ao despotismo do mercado e ao indi-

vidualismo possessivo dos cidaddos tradicionais . Não admira, diz

Macpherson (p. 43), que os capitalistas ocidentais se oponham, e os go-

vernos ocidentais se mostrem indiferentes, a reivindicacao dos novos

direitos, e que ambos acolham corn satisfacao qualquer critica a eles en-

derecada, pois, para esses capitalistas, foram as pressOes do Terceiro

Mundo e do mundo comunista que fizeram corn que os direitos sociais

fossem incluidos na Declaracäo Universal dos Direitos Humanos da

Organizacäo das Naceies Unidas (ONU), em 1948. E é no 'Ambito dessa

problematica que o

Welfare State

vem perdendo forca, desde meados

dos anos 1970, e a politica social vem assumindo uma nova configura-

c5o sob o comando do ideario liberal agora revisitado e denominado

neoliberal.

Mas, antes de prosseguir corn a trajetOria da politica social, envere-

dando por caminhos situados para alem do Welfare State,

torna-se im-

portante explicitar o processo referente a contraditOria relacäo entre po-

litica social, Estado e sociedade e diferenciar conceitualmente a politica

social de outras categorias analiticas correlatas.

E

o que sera visto nos

dois prOximos capitulos.

  bordagens tearicos sobre o Estado em sua relacäo

corn a sociedade e corn a politica social

u r {

p A D

Capitu10 111

 

-/

 

)

1 Situando urn enigma

Urn fato que chama a atencao no estudo da relacäo entre Estado e

sociedade é o tardio interesse teOrico para corn o

Estado em agio,

isto

para corn aquele tipo de

Estado dotado de obrigacOes

positivas que

tavelmente o impelem a exercer

regulaciies sociais por meio de politicas.

Tal fato nao deixa de ser intrigante, pois, se do ponto de vista da

liberdade

essa ingerencia pode ser indesejAvel, do ponto de vista da aqui-

sicao de condiciies basicas para o exercicio dessa liberdade, ela a neces-

saria. Ademais, ao se privilegiar a

igualdade

substantiva (e nä°

mera-

mente formal . • • • -

• • • •

 

• Estado faz-se im • rescindivel. Afinal, nao

se persegue a igualdade sem o protagonismo estatal na aplicacäo de

medidas sociais que reponham perdas

moralmente

injustificadas. Da

mesma forma 5

• .

am

direitos sociais sem politicas

pir-

blicas que os concretizem e liberem individuos e gru • os tanto da condi-

cdo de necessidade

quanto do estigma produzido por

atendimentos so-

ciais descomprometidos corn a cidadania.

E

o Estado, alem disso, que,

ao mesmo tempo em que limita a desimpedida KA° individual pode

garantir direitos sociais, visto que a sociedade the confere poderes ex-

clusivos para o exercido dessa garantia. Na pratica, a ingerencia do Es-

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2. ResistenciasteOricas clóssicas e contempordneas) ao

Estado social

100

P O T Y R J E R R

tado na realidade social

e

tao antiga, que so quem nao esteja

disposto

reconhece-la, nä° a percebe. Mesmo nos regimes liberals mais

ortodoxos,

expressamente avessos

a

intervencao estatal, o Estado sempre interveio

politicamente para atender demandas e necessidades, seja da esfera do

trabalho, seja da esfera do capital. A esse respeito Polanyi (1980: 144)

e

certeiro na observacao de que os chamados mercados livres jamais fo-

ram

v

erdadeiramente livres, visto que des nao funcionariam se seg

sem o seu prOprio curso. As ind6strias e os comercios, diz ele, especial-

mente os mais importantes, sempre foram contemplados corn tarefas -

protetoras, corn exportacOes subsidiadas e corn subsidios indiretos dos

salarios (p. 144). 0 prOprio

laissez-faire,

considerado urn dogma do pen-

samento liberal, foi sustentado pelo Estado mediante farta legislacao,

que repelia regulamentacoes restritivas , e robusta burocracia estatal

aparelhada para executar as tarefas estabelecidas pelos adeptos do

beralismo (idem).

Nao ha, portanto, explicacao facil para o fato de o papel ativo do

Estado, imbricado

a

sociedade e mediado por polfticas de intervencao

(sociais e econOmicas), so recentemente vir merecendo tratamento ana-

litico mais amplo e consistente — especialmente no que diz respeito ao

contexto social. Ao certo, sabe-se que esta tendencia remonta a pensa-

dores sociais classicos e que ela nao

a

exclusiva de uma tradicao te6rica

particular. Pelo contrario, guardadas as devidas diferencas, tanto

mar-

xistas

(notOrios criticos da regulacao social do Estado) como

ntio-marxis-

tas,

deixaram,por muito tempo, no limbo essa instigante questao, cone-

sera visto, a seguir, corn o intuito de fornecer informacOes sobre as difi-

culdades teOricas que, desde os cldssicos, o Estado Social enfrenta.

Se se retr iEeder ao pensamento social do seculo XIX ver-se-d que

so de forma indtreta e tangencial ele se referia ao papel afivo do Estado

P O U T I C A S O C I A L

10 1

em sua relacão corn a sociedade. Isso decorria tanto do fato de, naquela

época, a acao estatal ser socialmente restrita, quanto, implicita ou expli-

citamente, haver reservas intelectuais a respeito da possibilidade de o

Estado interferir nos assuntos da sociedade. Alêm disso, como sempre

soi

acontecer, havia a preocupacao analitica de se centrar em fatos que

estavam na ordem do dia, como as extraordinarias

tran

sformacOes e

expansao econOmicas — temporariamente

in

terrompidas pelas revolu-

cOes politicas de 1848 — que constituiram a verdadeira mola propulsora

do capitalism°. Como ob e

 

ob

 

m 2005: 21), a saita, vasta e

a

parentemente ilimitada ex

ta ista mun tar

favoreceu

e

spetacularmente o surgimento de uma nova ordem social e

de ideias e credos prontos a legitima-la e ratifica-la .

Est

abeleceu-se,

com isso, o triunfo do liberalism

°

 burgués sobre ideais socialistas ou

socia

l-democratas, embora os homens que oficialmente presidiram os

 o

(Bismarck,

na Alemanha; Napoleao na Franca) — e usaram_a_Estada_corm c

mite executivo da classe

c

l

o

minante,como, em 1848, Marx e Engels e-

nunciaria

 

o

Mani esto do Partici° Comunista.

Nao de

admirar, pois, que entre eminentes pensadores sociais do seculo XIX —

como Emile

D

urkheim, Max Weber e Karl Marx, para citar os mais visi-

tados — um possivel Estado

Soci

aLrepresentasse seri° perigo ao exerci-

cio da liberdade ou

da

emancipacao dos individuos, grupos ou classes

Da parte de Durkheim (1858-1917) — um dos criadores da sociolo-

gia cientifica, ou de uma ciéncia positiva da sociedade, e da teoria fun-

cionalista — bastante conhecida a resistencia em admitir a importan-

cia da presenca de uma organizacao estatal forte nas sociedades indus-

triais modernas, pelos perigos de controle autoritario que ela poderia

exercer. Para ele, o fato de o Estado nao ser

s

uficientemente capaz de

interesses da burguesia [fossem] profundamente reacionarios

subalternos.

1. Conceito

du

rkheimiano, de raizes gregas (sem lei), usado para caracterizar comportamen-

tos a-sociais (criminosos, por exemplo).

Po

steriOrmente, o conceito passou a ser utilizado por ou-

tros sociOlogos, como Robert Merton (1970), para designar

co

mportamentos desviantes em relacäo

lidar corn o problema da anomia

1

pobrezada moralidade na

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Europa mod erna, exigia que se organizassem corporacoes profissionais,

que se opusessem a m oral do progresso fundado no individualismo, e

supremacia estatal. Nesse sentido, as corporacoes funcionariam como

Orgaos intermediarios entre o Estado e os particulares (os individuos).

Sua principal fur-10o seria a de corrigir patologias causadas pela espe-

cializacäo e pelo

a

perfeicoamento c rescentes requeridos pela sociedade

industrial . E isso so seria possivel por meio da organizacAo d e urn con-

junto articulado e solidario de maneiras de ser, agir e pensar (equivalen-

te ao das sociedades simples), relacionado aos quadros da vida econO-

mica e sobre ela exercendo poder moral. E tendo em vista essa finalida-

de que Durkheim julga as corporacOes como mediacäo imprescindivel

para evitar possiveis abusos de poder do Estado. A serventia dessas

corporacoes consistiria ndo nos servicos econOmicos que poderiam pres-

tar, mas na influencia moral que poderiam exercer — posto que so esse

poder moral seria capaz de

conter os egoismos individuais, de manter no coracâo dos trabalhadores

urn mais vivo sentimento de solidariedade comum, de impedir que a lei

do mais forte se aplique tao brutalmente as relacties industriais e comer-

ciais (Durkheim, 1977: 17).

Caracterizando-se, tamb6m, como versa° pessimista a respeito da

intervencdo social do Estado, o pensamento do

al e

mAo-Max_Weber (1864-

/ 1920) — urn dos nomes mais influentes no estudo do cTeseil

lvo virnento

do capitalismo, da racionalizacâo e da compreensao da acdo humana

(inauguradora da sociologia compreensiva ou interpretativa, corn base

em tipos ideais) — ndo privilegia, igualmente, a interyenac

i

social do

Estado, embora ndo compartilhe da visäo funcionalis

 

ta de Durkheim.

Mas esse

d

esprivilegiamento nä° se deve a um desconhecimento de sua

a finalidades e normas previstas por determinados grupos ou sociedades. Corn outras conotacOes,

o conceito vem significando contestacao, revolts, anarquismo, reformismo e ate mesmo

exclusrio

ocial

que, segundo Gough (2000), atualmente resgata a sociologia de Durkheim para explicar o

fent:omen° da aparente excludencia de individuos e grupos dos valores, normas, oportunidades,

politicas e direitos prevalecentes nas sociedadescapitalistas contemporineas.

102

P O T Y A R A P E R E I R A

P O L I T I C A S O C I A L

103

p

ar

t_e_da-realizaidade_politigssosiais

na

Alemanha — considerada ber-

co dessa experiencia sob a egide de Bismarck — mas a uma conviccdo

pessoal refletida no seu propOsito intelectual de se ocupar do desenvol-

vimento de teorias, deixando aos politicos a formulacào e aplicacAo de

medidas praticas.2

Eis porque a teoria de Weber sobre o

 

Estado tern um cunho mais

conceitual e analitico, coerentemente corn sua postura cientffica de pro-

curar conhecer a realidade por meio da apreensao do sentido que os

atores atribuem as suas prOprias acOes. E dal que ele retira elementos

para a construcAo de seus tipos ideais, conferindo ao seu metodo carater

eminentemente analitico e generalizante.

Alem disso, o desinteresse

weber

• • .4 .

 

encia

uma concepcäo de Estado (especialmente do Estado modern()) que o

ass°Fia

a uma

 

a e

etuar

relacOes

de_dominacdo e sujeicAo por

melocitzsaparelhos

militar e

buro-

crAti

a

cculte

cia...corrussiano de sua epoca. Por

isso, para eTe o que diferenciava o Estado d os demais tipos de o rganiza-

cäo sociais e politicas, era urn poder peculiar:

o monopOlio legal da violen-

cia.

Era o exercicio

racional-legal

desse monopOlio — que, na verdade,

nao e o meio normal, nem o linico meio de que se vale o E stado — que

constitui, segundo ele, o elemento d efinidor do poder estatal e garante o

dominio continuado de homens sobre homens em urn dado territ6rio.

Ott melhor, o Estado para Weber 6 a iinica fonte do direito a violencia,

sustentado pelo consentimento dos dominados

e por urn quadro

 

juridi-

co e administrativo que the c onfere, poder, racionalidade e legitimidade.

Assun, quanto mais esenvo vida e industrializada se torna uma socie-

dade mais ela tende a exigir o dominio racional-legal prOprio do Estado

2. Segundo Gabriel Cohn (1979, p. 72), Weber, no inicio do seculo XX e no auge do Estado.

prussiano, participou da Associacao de Politica Social fundada pelos adeptos do chamado Socia-

lismo de CAtedra . Contudo, posicionou-se contra os objetivos principais dessa Associacdo, que

eram os de realizar e promover acOes para enfrentar grandes problemas sociais na Alemanha da

epoca. A seu ver — e isso the custou o afastamento da Associacdo — esta deveria dedicar-se

pesquisa cientffica sem restringir-se ao exame empirico de problemas especfficos para fins praticos

diretos.

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P O L I T I C A S O C I A L

moderno, indicando que a raid() estatal é histOrica, a despeito da ten-

dencia de se tornar cada vez mais burocratizada para evitar que a socie-

dade seja manipulada por interesses pessoais.

D em

 onstrando tambem desconfianca em relacao ao Estado, Marx

(1818-1883) e Engels (1820-1895) igualmente minimizaram a importan-

cia dessal7-

.

Ist--------dt sua capacidade de

-est

ar

 

-

cial — so que guiados por outros pressupostos. De acordo corn a teoria

marxiana do Estado, este se*a t

r

fir

 e emento da superestrutura e, como

rtair

>{m fenOmeno transitOrio. Assim, da mesma forma como o Estado

nao existiu nas sociedades primitivas, quando nao se conhecia a divisao

do trabalho e a estrutura de classes, ele deixaria de existir numa socie-

dade comunista futura quando novamente estaria ausente a divisao de

classes sociais. Sendo assim, o Estado so seria necessario onde uma clas-

se dominante, possuidora dos meios de producao (proprietarios de es-

cravos, senhores feudais e capitalistas) se apropriasse do produto do

trabalho da classe explorada (escravos, servos da gleba e proletarios). Ai

o Estado funcionaria como urn aparato coletivo e, portanto, urn instru-

mento de reproducao das relacOes dominantes.

Implicita nessas postulacOes classicas esta, portanto, a ideia de que

apolitica social

i

 associada a urn Estado ativo, necessariamente nao pro-

move e nem emancipa quem se encontra em

posicao sociaeT--d

 e

esi-

 

ual. Pelo contrario, di tunciona como urn meio para manter a desi-

gua cUaA:le

4

ae r

i)

etuar a dominacao do Estado como urn instrumento

manejavel

105

das pessoas consklet

zac

Ias improdiitivas,mas pela sua reintegasLao ao

processo

produtivo.

Afinal, por baixo e em volta dos empresdrios capita-

l istas, os 'trabalhadores pobres', descontentes e sem Lugar, agitavam-se e

insurgiam-se (Hobsbawm, 2005), no rastro das revolucOes de 1848 .3

Tal estrat6gia de insercao dos pobres no processo produtivo, em

atencao as reivindicacOes das massas, nao se deu, porem, sem dificul-

dades; pois, se por urn lado ela confirmava que

a burguesia

reconhecia

as desigualdades sociais como o resultado de contradic_Oes

estruturais

do sistema capitalista, por outro despertava o temor liberal de esvazia-

 

ento de sua fundamentacao te6rica e ideolOgica e de seu processo de

acumulacao via espoliacao do trabalho. Afinal, transformar a area social

— que engloba a educacao, a sadde, a habitacao, a previdencia social, a

assisténcia — em esfera de responsabilidade publics, significaria afron-

tar o mito do

laissez-faire.

Isso conduziu a constantes reavaliacOes das teorias clâssicas, que

se viram instadas a repensar seus postulados. Mas, enquanto as teorias

nao-marxistas, especialmente as de corte funcional, era enderecada uma

pressao em busca de contribuicOes

justificadoras

cla partici

p

acao do Es-

 

ta c

ona

n

rderasQrial, as teoas marxistas abriram:se yerspectivas de

reflexOes criticas sobre os novos arranjos do capitalismo, incluindo o

Estado,para

se manter dominante.

Mesmo assim, ambas as modernas reformulacOes (marxistas e nao

marxistas) concederam ao Estado Social importancia marginal. Autores

3. Conhecido como a primavera dos‘povos , o periodo em que eclodiram os movimentos

revolucionarios de 1848 na Europa, a partir da Franca, teve como marca principal a revolta das

massas prontas para transformar revolucOes moderadamente liberais em

revolucoes sociais

(Hobsbawm, p. 20). Com efeito, em meio a crise econOrnica, desemprego e insegurarica social —

numa epoca em que o mundo se tomou efetivamente capitalista industrial — as reivindicacOes

revolucionarias francesas por sufrâgio universal, democracia e direitos trabalhistas, deram a

pressâo de ter chegado o moment() da derrocada da velha ordem social europeia e da ascensao de

urn socialismo potencialmente global (Hobsbawm, p. 28). Afinal, os movimentos de 1848 se alas-

traram por varios pafses da Europa (Alemanha, Gracia, Hungria, Belgica, Poli5nia, Italia) e esten-

deram seus tentaculos, segundo Hobsbawm ate Pernambuco (Brasil), corn a insurreicâo de 1848, e,

mais tarde, Colombia. E digna de nota tambem a informacao de que foi com as revolucdes euro-

peias, de 1848, que a classe trabalhadora tomou consciència de si como classe.

elos grupos no poder.

Entretanto, as transformacOes econO micas, sociais e politicas, rela-

cionadas ao avanco industrial, criaram condicOes objetivas para o corn-

prometirnento inadiavel do Estado corn os problemas resultantes das

de i

g

ualdades sociais. "Em certa medida" — salienta

Gouldner_(1970:

78) — o rrescirnento mesmo do Estado Benfeitor [Social] significa que o

problerna tern se tornado tao grande e complexo que ja nao é possivel

deixa-lo sob o controle do mercado e d e outras instituicOes tradicionais .

Em vista disso, e diferente da assisténcia tradicional, cada vez mais a es-

trategia do Estado consistiu em optar nao pelo isolamento dos pobres e

-

 

104

 

P O T Y A R A P E R E I R A

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1 6

POTYARA PEREIRA

POLITICA SOCIAL

 

107

funcionalistas como Parsons (1902-1979) e seu discipulo e colaborador

Smelser — embora tenham incorporado em seus esquemas conceituais

e analiticos elementos explicativos para dar conta de fatos so ciais emer-

gentes — demonstraram escassa preocupacao com a andlise do bem-

estar, ainda que Smelser tenha dado mais atencao a esse aspecto. Parti-

cularmente nesse autor percebe-se a disposicao de aceitar e realcar o

papel preponderante do Estado na ordem social, em contraposicao as

primeiras postulacOes parsonianas de que os sistem

 

dais funciona-

riam melhor se obedecessem a lOgica da auto-regulacao das relaeOes

sociais em economias de mercado.

Contudo, em que pesem esses pequenos avancos te6ricos e a pr6-

pria revisao de Parsons de seus supostos

f

uncional-sistemicos, admitin-

do que a estabil idade soc ial so poderia ser mantida por uma adm inistra-

cao oriunda do subsistema politico e do go verno, o que se tern em mate-

ria de analise funcionalista da politica social e pequeno. E nao poderia

ser de outra forma, ja que o interesse teOrico pela ex ansao do interven-

( cionismo estatal, voltado para a corre ao eloureducdo de desigualda-

des sociais, sigrrificarid

 

a- nu r a existencia de desequi_Kbriosintecos

ao

sist

enradie

r sua prOpria teoria.

Nao o bstante, e possivel detectar no pensamento parsoniano algu-

mas inovacOes. Contra seus primeiros arranjos conceituais, que nao con-

templavam o cardter impositivo da acao social intencional e desconfia-

y

arn do Estado Social que surgia nos Estados U nidos corn as reformas

do

New Deal

durante a Grande Depressao dos a nos 1930, ele teve que

refletir sobre a realidade desse Estado. Mas o fez sempre privilegiando

aspectos sOcio-culturais e conferindo a eles a responsabilidade pelo agra-

vamento dos problemas sociais. Assim, por exemplo, atribuia aos defei-

tos dos sistemas de socializacao a proliferacao desses problemas, dedu-

zindo que o seu ajustamento sistemico exigia novos programas de edu-

cacao e ate.medidas policiais ou castigos mais eficazes. Isso, certamente,

como lembra Gouldner (p. 317), impregnava o seu quadro explicativo

de tensties e impasses, ja que ele nao se prestava ao manejo instrumen-

tal de populacties adultas nas sociedades industriais" modernas. As-

sim, ao mesmo tempo em que a teoria parsoniana "quis adaptar-se ao

Estado Social", tomou-se dificil faze-10 dada a sua enfase na manuten-

cab da ordem social (que teimava em mudar) por ajustamento.

A presenca insofismavel do Estado Social exi u tambem reavalia-

cOes na concepeao marxista desse Estado, detectadas nas analises pio-

neiras

d

e_autor

g

ssontemporaneos como John Savil le, James O'Connor e

orime.ire-Claus_Offe, dentre os mais diretamente envolvidos corria

tematica da politica social. Tais autores, em vez de se prenderem a no-

cao de Estado restrito, presente no pensamento marxiano do seculo XIX,

passaram a considerar urn arco mais amplo de intervened° estatal, dan-

do importancia ao seu carater contraditOrio e a sua dimensao politica

ativa. Urn pensador marxista que pode ser considerado referenda des-

sa nova abordagem (embora nao ao estudo da politica social) e.

__&.to-

nio Gramsciern recai o merit° de ter teorizado a respeito do

Estac

oampliad.o_e_ciaautangmia relativa date, no que foi seguido e

aperfeicoadokem ce.rtos aspectos) por Nicos Poulantzas. Corn isso,

n o

se

quer dizer que esses estudiosos contemporaneos da relacao entre

Estado Social e sociedade tenham rechaeado a perspectiva de "bem-

estar social" de Marx,' mas sim que, confrontados com fenOmenos e

processos inusitados no seculo XX, passaram a atualizar e ampliar o

legado te6rico marxista, mesmo nao apresentando uma contribuicao

homogenea.

De qualquer modo, ainda que analisando o E stado Social de forma

incipiente, esses marxistas contemporaneos comecaram a tecer c onside-

racOes teOricas

sobre ele

e nao somente

contra ele.

Assim, partindo da

ind

e

f

efutaeact_ao_pensamentasodahclemocrata,de que o bem-

estar social foiproduto do movimento-social ista e representou Irma alte-

raiva nore

i

me capitalista (Saville,principalmente), a lite-

ratura marxista foi se preocupando co rn questoes mais densas. Passou a

pOr em relevo a autonomia relativa do Estado e as contradicOes — prin-

cipal e secundaria — na relacao entre Estado e Sociedade (a guisa de

4. Na verdade Marx postula um conceito global de bem-estar, contrapondo ao Estado de Bern-

Es t ar a S o

 s

darle de Bem-Estar, ou seja, a sociedade pOs-revolucionAria onde seria alcancado o

verdadeiro igualitarismo ou a passagem do estado de necessidade para o de liberdade igualitaria.

0>< 0096r5Cv14

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P O U T I C A S O C I A L

Poulantzas); as contradict

5es e crises fiscais do Estado (O'Connor) e os

mecanismos intemos que garantem ao Estado o carater de classe (Claus

Offe). tontudo, como sera visto corn mais detalhes neste capitulo, a con-

, trfi

----

  .

17

 

Acão marxista para a politica social carece de mergulhos mais fun-

1

dos na origem, desenvolvimento,

versatilida

de,institudonalidadefi-

i nanciamento, fiscalidade, ideologias e implicacOes

e

contimciti

cas da politica social — nao obstante esforcos denodadosmente

r e c 7 : 5 1 

eados de autores, como Ian Gough que, nos anos 1970, fez uma

_ ,

radiografia da economia politica do Estado de Bem-estar__ ro eu e es-

 

udou a politica social por urn angulo mais complexo. Nao foi

a

toa que,

nos fins dos anos 1970, circulou na Europa, a partir da Inglaterra, o ter-

mo O'Goffe como urn amalgama (acrossemia)

5

 dos nomes O'Connor,

Gough e Offe para identificar

6

 a "lenda"

(O Goffe s tale)

neo-marxista

dominante no campo da politica social.

Esta é a raid° porque vale a pena falar separadamente, e corn mais

informaceies, do conteticlo das abordagens nao marxista e marxista do

Estado vis-à-vis a sociedade e a politica social, retomando aos classicos.

3. A obo rdagem nao-marxista e a questdo do Estado socia l

Como ja foi dito, as abordagens nap-mancistas, sejam_funcionais,

sejam compreensivas, nao se ocuparam diretamente de examinar o Es-

tado em acao, mormente na esfera social.

Retomando Durkheim, veremos que ele, apesar de fazer mencties

ao Estado interventor e de se contrapor as ideias de outro pensador nao

marxista — Herbert Spencer (1820-1903) — sobre esse terra, muito pou-

co avancou teoricarnente.

Reducdo de palavras, nomes, expressers a letras ou sflabas iniciais para criar um novo

termo composto.

Fato mencionado na aula inaugural proferida por Gough na Universidade de Bath/UK, em

21 de janeiro de 1999.

109

De fato, se se quiser encontrar na obra dos classicos de inspiracdo

funcional maiores consideracties sobre a questa° do Estado, e de suas

implicacOes no ambito do

bem-estar social,

sera por Spencer que se de-

vera comecar. Foi este quem, efetivamente, mais escreveu contra o inter-

venciois

mn

 defendendo, segundo Mishra (1989), tuna especie

de politica social do

laissez-faire.

Embora nao se pretenda enveredar por Spencer nesta reflexao, é

valid() apresentar pontos-chave de seu discurso

anti-social,

pois alguns

deles encontram campo fertil no pensamento liberal contemporaneo.

Em sua opiniao, os processos que se verificam na sociedade vin-

culam-se a ordenamentos sociais "espontaneos" que surgem de forma

"natural". Sendo assim, os homens nao deveriam intervir intencional-

mente nesses processos, haja vista que existem na sociedade mecanis-

mos inatos de co ntrole que os habil itam a selecionar, corn acerto, os mais

aptos. Por essa perspectiva, qualquer medida adotada pelo Estado para

proteger aqueles que se revelam inferiores por estupidez, vicio e ociosi-

dade, podera produzir conseqiiencias desastrosas, ja que so a natureza

possui uma lOgica racional e detern o segredo do enigma de como flui o

progresso. Por isso, interferir nesse processo e violentar a evolucao na-

tural. E dentre as atividades que, para ele, nä° deveriam ser realizadas

pelo Estado, incluem-se aquelas caracterizadas como areas nao produti-

vas como a educacao e a satide.

Todavia, os argumentos de Spencer, a despeito de pretenderem ser

uma justificacâo cientifica do principio do

laissez-faire,

fortalecendo o

ideario

l

iberal-burgués, foram apresentados mais em tom de polemica,

envolvendo juizos de valor. Assim, empenhado em atacar a intervencao

do Estado e em ressaltar as virtudes do

laissez-faire,

ele pouco explicou a

natureza das instituicaes de bem-estar.

No que concerne, porem, ao carater e as funcOes do Estado, ele

forneceu urn esquema explicativo, consoante corn os principios do

darwinismo,

que, apesar de polemic°, marcou a sua presenca no campo

do co nhecimento sociolOgico. Para ele, o Estado, como aparelho regula-

dor, tenderia a regredir na medida em que a sua feicao industrial se

108

 

P O T Y A R A P E R E I R A

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110

POTYARA PEREIRA POLITICA SOCIAL

111

distanciasse da sua feiedo militar, ficando as suas funcOes reduzidas

mera administracdo da Justica (Durkheim, p. 252). Tal pensamento esta

de acordo corn a sua lei da evoluedo, segundo a qual o progresso resulta

da integracdo da materia e de concomitante dissipacdo do movimento;

neste processo, a materia passa de uma homogeneidade indefinida e

incoerente a uma heterogeneidade definida e coerente, e o movimento

retido sofre uma transformacdo paralela (Spencer, 1905). Em suma, a

evoluedo e a passagem do simples para o complexo, atraves de diferen-

ciacOes sucessivas (Spencer, 1896).

Foi corn base nessa lOgica que ele estabeleceu a distilled° entre a

sociedade de tipo militar e a sociedade de tipo industrial . A primei-

ra era caracterizada pelo poder absoluto dos superiores sobre os subo r-

dinados; pelo imperio da lei baseada na religido e nas creneas coletivas;

pela centralizacdo e ausencia de l iberdade e garantias individuals e, por-

tanto, pela submissdo dos individuos ao Estado. Trata-se, como enfatiza

Durkheim, "de urn despotismo organizado que aniquilaria os indivi-

duos (p. 224). Em contraposiedo, na sociedade industrial predominaria

a descentralizacdo, o govern° representativo, a livre iniciativa e a liber-

dade contratual entre os homens, indicando que a vontade dos indivi-

duos e sob erana e que o E stado existe para servi-los. Neste caso,

a solidariedade social nao seria (...) outra coisa senao o acordo de que os

contratos sao expressao natural. 0 tipo d e relacOes sociais seria a relacao

econOmica, desembaracada de qualquer regulamentacao e tal qual como

resultasse da iniciativa inteiramente livre das partes. Numa palavra, a

sociedade nao seria sena° o relacionar de individuos trocando os produ-

tos de seu trabalho, e sem que nenhuma acao propriamente social viesse

regular essa troca (Durkheim, p. 234-5).

Ora, e justamente contra a idea evolutiva e ao individualismo exa-

cerbado de Spencer que D urkheim se posiciona. Se, em principio — como

esclarece na Divisdo do Trabalho Social — Durkheim admite, como

Spencer, que "o lugar do individuo na sociedade, inicialmente nulo, is

aumentando corn a civilizacdo (p. 224), em suas conclusOes opOe-se

frontalmente ao raciocinio spenceriano. Isso porque, em vez de atr ibuir

a anulacdo do individuo nas sociedades primitivas a dominacdo de uma

autoridade despOtica — dado o constante estado de guerra em que se

encontram essas sociedades — Durkheim a explica pela completa au-

sencia de qualquer centralizacdo. Por esta 6tica, o Estado resultaria dos

prOprios progressos da divisdo do trabalho e da transformaedo que teve

como efeito fazer passar as sociedades do tipo segmentar ao tipo orga-

nizado (p. 255). Essa passagem, segundo a lOgica durkheimiana, ocor-

re da seguinte forma: quando a sociedade de tipo segmentar perde a

vitalidade em decorrencia do desaparecimento progressivo da sua orga-

nizacdo peculiar, ela a absorvida pelo

Orgao central.

E isso a assim por-

que este

Orgao, ao nao encontrar mais as

resistencias que freavam a sua

expansdo, desenvolve-se e atrai para si

funciies antes desempenhadas

pelos Orgaos locais. Desse modo, quanto mais vasta e diferenciada for a

sociedade, mais completa sera esta fusäo — o que, em outras palavras,

significa que o Orgao central sera mais volumoso quanto mais as socie-

dades forem avancadas. Todavia, diz Durkheim, nao queremos dizer

que normalmente o Estado absorve em si todos os Orgaos reguladores

da sociedade, quaisquer que eles sejam, mas somente aqueles que sào

da mesma natureza dos seus, isto 6, que presidem a vida geral (p. 256).

As funceies econOmicas, por exemplo, nao estariam absorvidas no Esta-

do,

embora possam estar submetidas

a

sua acao. Corn isso ele queria

salientar que e possivel a existencia de urn conjunto de functies distintas

e relativamente autOnomas ao Estado, sem que a sua coerencia seja des-

truida.

A furled° do Estado estaria vinculada as normas juridicas que

determinam a natureza e as relacOes das ftmcOes estratificadas,

gracas a

divisao

do trabalho. 0 Estado seria "o 'Orgdo do pensamento social',

concentrado, deliberado e reflexivo, distinto da o bscura consciencia co -

letiva (Durkheim, 1950: 95), difundida por toda a sociedade.

Assim, ao co ntrdrici do que propugnava Spencer, Durkheim enten-

dia o Estado com o o Orgd o em relaedo ao qual, nas sociedades avanea-

das, a situacdo de dependencia do individuo vai aumentando, embora a

liberdade deste de crer, querer e agir, seja maior do que nas sociedades

simples. E isso se daria porque cada corpo d e normas juridicas, que cabe

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POTYARA PEREIRA

112

POLITICA SOCIAL

113

ao Estado administrar, esta acompanhado por urn corpo de normas

morais. Sao estas que refreiam os apetites, regulam e conectam as espe-

cializaceies profissionais, fazendo corn que os homens aceitem volunta-

riamente fungOes e recompensas desiguais Esta incluida af a idea de

primazia da consciencia coletiva sobre a individual, mas agora configu-

rada na gab do Estado e no papel fundamental das crencas e sentimen-

tos coletivos, mormente da moral e da religido, o que demonstra que,

em se tratando do Estado, o conceito de consciencia coletiva de Durkheim

foi sendo substitufdo pelo de representagdo coletiva. E esse conceito (li-

gado a concepgao de que é pela representagao que o grupo se concebe a

si mesmo em sua relagao corn os objetos que o afetam) que permitiria

distinguir melhor "entre crencas cognitivas e crencas morais, entre di-

ferentes crencas e sentimentos e entre crencas e sentimentos associa-

dos a estagios diferentes do desenvolvimento de uma sociedade"

(Luckes, 1977: 18).

Ve-se, assim, que a principal discordancia entre Spencer e Durkheim

nao recai tanto na expansào do Estado, mas nas conseqUencias dessa

expansdo. No que diz respeito a este fato, sou inclinada a acreditar, corn

M ishra, que Durkheim ai se posiciona de forma dilematica, pois se, como

filOsofo, parecia nao ver corn bons olhos o aumento das atividades esta-

tais, confiando mais nas corporacOes (revelando uma nostalgia pelas

sociedades simples), como cientista social ele teria que reconhecer e ex-

plicar esse fato. E foi com o cientista — mais precisamente, como soc iblo-

go — que ele se contrapes a Spencer. Rejeitando a visa() contratual e

utilitaria deste, referente a ordem social nas sociedades industriais, as-

sim como a sua nogao do jogo livre dos interesses individuais, Durkheirn

acredita que a regulagao social efetuada por um Orgdo central modera-

dor constrangeria os individuos na defesa de interesses prOprios. Con-

tudo, embora se subentenda do seu raciocinio que as sociedades moder-

nas poderiam executar a solidariedade sem atender a questao da desi-

gualdade social, ele pouco se deteve neste aspecto. Sua preocupacao

principal residiu mais em descobrir os meios de restringir os desejos

dos homens e de seus apetites individuais do que pensar nas formas do

atendimento de suas necessidades.

Diferente de Durkheim, a preocupacao de Weber volta-se para ou-

tra diregao e envolve concepgeies distintas no que concerne aos valores

morais e a insergao dos individuos na cultura utilitaria, prOpria do Esta-

do moderno. Destarte, ao destacar a importancia das ideias em geral e

da aka religiosa em particular, como influencias fundamentais sobre o

desenvolvimento do mundo ocidental, ressalta a importancia e a auto-

nomia das ideias dos individuos sobre a sociedade. Isso nao so contra-

diz o pensamento de Durkheim — segundo o qual a acao social é expli-

cada pelas fungOes que desempenha no atendimento de certas necessi-

dades da sociedade — como se choca corn a maxima de Marx de que a

consciencia é determinada pela existencia.

E corn base nesses pressupostos que Weber, em vez de considerar

os valores morais como fatores restritivos dos apetites humanos — com o

faz Durkheim — os ve como estimuladores dos esforgos individuais

para alterar padrdes sociais estabelecidos. Portanto, se a preocupacao

de Durkheim corn o desenvolvimento do Estado moderno, correspon-

dente ao crescimento da industrializac5o, era corn a destruicäo da or-

dem social, a de W eber era corn a rotinizagao da vida humana em d ecor-

rencia do dominio da burocracia total. A este causava temor, nao a pos-

sibilidade de desordem social, mas a predominancia de uma ordem social

tab poderosa que inibisse o individuo de participar corn paixäo da sua

vida e do seu destino.

Em suma, ao mesmo tempo em que Weber confiava na importan-

cia da eficiéncia e da racionalidade da peculiar burocracia do Estado

moderno — ja que isso garantiria o fortalecimento e autonomia da na-

cdo — ele temia a sua supremacia sobre a vontade dos individuos.

A possibilidade de que isso viesse a acontecer se explica pela se-

guinte sintese do raciocinio weberiano: o quadro administrativo tfpico

da dominacao rational-legal, ou seja, a burocracia, constittii urn elemen-

to intermediario entre dominantes e dominados, tendo em vista assegu-

rar a adequada efetivagäo do mandato dos dominantes. Contudo, como

esta burocracia nao exerce a mediacäo entre os dois termos, no sentido

de propiciar a passagem de urn a outro e, em conseqiiencia, desapare-

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114

POTYARA PEREIRA

POLTI CA SOCIAL

 

115

cer, estabelece-se a possibilidade do instrumento apropriar-se da corn-

petencia e do poder daqueles que o usam e transformar-se de meio em

fim. Neste caso, os dominantes perdem grande parte do controle exter-

no sobre a burocracia, ao mesmo tempo em que os dominados passam a

ser, em grande medida, submetidos aos seus designios. E isso, para urn

intelectual que privilegiava a participacao do indivicluo na histOria da

humanidade, nao deixava de causar certo desencanto.

Percebe-se que as teorias ate aqui apresentadas, apesar de terem

levado em conta o E stado, o seu crescimento e a sua complexidade, nao

se ocuparam de suas politicas e

i

nstitucionalidades, sobretudo daquelas

voltadas para protecao social. Dessa forma, tem-se a impressao de que,

no que tange a este particular, tais teorias sao relevantes apenas como

marcos referenciais as formulacOes que co ndenam a intervencao estatal ,

as quais reaparecem nas concepcOes contemporaneas tratadas a seguir.

Tomando Parsons como um expoente contemporaneo do pensa-

mento sociolOgico, no marco da analise nao-marxista, constata-se que as

suas preocupacOes corn o

Welfare tate

so ocorreram a partir da decada

de 1960.

Antes disso (fins da decad a de 1 930), seu interesse tecir ico assenta-

va-se no propOsito d e criar urn quadro conceitual geral para a analise da

ordem social, sem basear-se em evidencias empiricas. Combinando o

voluntarismo, de inspiracdo weberiana, corn a visao durkheimiana se-

gundo a qual os ordenamentos sociais sac) vistos como urn sistema de

elementos inter-atuantes, Parsons concebeu um esquema explicativo do

cardter sistémico da sociedade, sem relegar ao segundo piano os indivf-

duos. Desse modo, contrariando D urkheim, nao privilegiou o social so-

bre o individual, nem a consciencia com um sobre as orientacties subjeti-

vas das pessoas. Mas, seguindo W eber, destacou o papel das ideias como

estimuladoras das awes, se bem que dentro de uma (Aka mais otimista

acerca do potencial positivo dessas ideas.

Entretanto, como esclarece Gouldner (p. 134), depois da Segunda

Guerra Mundial, a teoria de Parsons, assim como, de modo geral, as

teorias vinculadas a tradicdo de analise funcional, passou a valorizar o

aspecto social. Tanto foi assim que, em o "Sistema Social", livro publi-

cado em 1951, Parsons deu enfase a indole da interdependencia sistemi-

ca das forcas estabil izadoras do sistema, bem como aos mecanismos que

o mantem em equilibria tomando subsidiario o carater estimulante dos

valores e ideias. Foi a partir dal que ele destacou a existencia de quatro

requerimentos funcionais necessarios a sobrevivencia de uma socieda-

de ou de qualquer sistema social: a manuterigio de padroes,

a

obtengio de

metas, a adaptactio

e a

integracao.

A

manutencao de padrOes relaciona o sistema cultural ja que este,

segundo Parsons, se organiza em torno das caracteristicas de comple-

xos de significado simbOlico, que contribuem para a continuidade dos

padroes de valores hisicos.

A

obtencao d e metas relaciona a personalidade dos individuos, pois

o sistema de personalidade e a "agencia primordial dos processos de

agar) (Parsons, 1974: 14).

Ao organismo conductual relaciona a adaptacao, visto que se trata

de urn subsistema que

inclui urn conjunto de condicoes a que as awes devem a daptar-se e corn-

preende o mecanismo primario de inter-relacâo com o ambiente fisico,

sobretudo mediante a entrada e o processamento de informacäo no siste-

ma nervoso central e a atividade motora para enfrentar-se as exigencias

do amb iente fisico (Parsons, p. 15).

A

integracao relaciona o sistema social, destacando-se neste pre-

requisito funcional a preocupacao corn a coordenacao das unidades cons-

titutivas do sistema

e

corn o estabelecimento da harmonia e cooperacao

entre as partes.

7.

Mais ou menos nessa mesma epoca, tambem a verse° do funcionalismo oferecida por

Robert K. Merton manifestou uma tendencia a restaurar o utilitarismo social. Merton encarou as

orientacoes subjetivas das p‘

 

ccnas (o componente voluntarista) de tuna maneira totalmente 'secula-

rizada; ao considerà-las como so urn entre muitos fatores analiticos, desprovido de todo

p t os

especial, adotou explicitamente como ponto de partida as conseqUencias funcionais de diversas

pautas socials (Gouldner,

p.

134).

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Analisadas por essa lOgica, as instituicOes de bem-estar pertencem

ao subsistema integrativo, já que a sua principal funcao consiste em

manter o conflito e a desarmonia social em niveis mais baixos possiveis.

Este e urn raciocinio que permeia grande parte das analises atuais sobre

politica social.

Mas a intervencao social institucionalizada, com vista ao bem-

estar, e urn fato que entrou posteriormente nas elaboracOes teOricas de

Parsons e, mesmo assim, de forma tangencial. Na verdade, tal assunto

so veio a merecer maiores consideracOes na obra de seu discipulo

Smelser.

Consoante corn o esquema sistemico parsoniano, pode-se deduzir

que o bem-estar assumido pelo Estado trata-se de urn evento relaciona-

do as mudancas nos arranjos institucionais prevalecentes e, como tal,

algo que deve ser explicado dentro do processo de diferenciacdo social,

responsavel pela maior especializacdo das funcOes de integrac5o. Essa

explicacdo conduz, necessariamente, a se procurar relacionar a teoria

parsoniana corn a realidade histOrica do Estado Social nos Estados Uni-

dos, pois, se esta teoria relutava em reconhecer relevOncia ao

Welfare

State —

que ganhava corpo na prO pria patria de Parsons — e interessan-

te saber o que o levou, posteriormente, a mudar de ideia.

Sabe-se que na decada de 1930, durante a Grande Depressao eco-

nOmica, a teoria de Parsons quase nada tinha a ver corn os requeri-

mentos exigidos por urn incipiente Estado Social. "Como ndo acredita-

va ser possivel resolver a crise corn os intentos da ajuda social do

N ew

Deal,

a sociologia voluntarista de Parsons se orientou a determinar que

era necessario integrar a sociedade apesar das privacOes gerais"

(Gouldner, p. 137).

Contudo, as marcas da Grande Depressäo continuaram nos Esta-

dos Unidos, mesmo apOs a Segunda Guerra Mundial, no inicio dos anos

1940, e a consequente prosperidade econ6mica americana. "A legislacao

do

New Deal

havia promovido novas expectativas e novos interesses

criados entre os profissionais da classe media, assim como da classe

oper.iria que havia captado um vislumbre do que o Estado podia fazer

por ela (Gouldner, p. 136). Foi al que o Estado social ganhou visibilida-

de nos E stados Unidos e se impOs como fato social aos cientistas sociais.

Em vista disso, o enfoque sistemico de Parsons teve de incorporar

novos elementos, ate entäo ndo estudados de forma sistematica, tais

como: o

poder,

o

governo

e sua relacâo corn os

direitos de cidadania.

Nesta

fase aparece de maneira mais clara a sua disposicdo de privilegiar o sis-

tema sobre os individuos, em vista de sua manutencdo, apoiado no con-

sentimento de seus integrantes.

Essa visa° da solidariedade societal correspondia ao interesse pratico do

Estado Bem -Feitor em achar maneiras de obter lealdade e conformidade,

e a sua premissa operativa segundo a qual a estabilidade da sociedade se

reforca mediante a conformidade as expectativas "legitimas" de estratos

sociais despossuldos, dos quais se espera, por sua vez, que aceitem vo-

luntariamente a etica convencional (Gouldner, op. cit., p. 138).

Esta é a razdo porque,

so depois da Segunda Guerra Mundial,

Parsons se interessou por teorias como a do ingles T. H. Marshall, que

inclula nos direitos de cidadania os direitos sociais, reconhecendo, da

mesma forma que o autor ingles, serem estes alvo de atencao

Alem disso, ad rnite ser necessaria a existencia de urn governo mais forte

do que os tradicionalmente existentes e a confianca nele depositada pelo

povo (Parsons, 1960).

Isso, sem chivida, representou uma m udanca significativa nos pon-

tos de vista de Parsons, embora nao indique uma reestruturacdo de seu

esquema teOrico. Na verdade, mesmo admitindo novas categorias ana-

liticas, os seus quatro pre-requisitos funcionais permaneceram os mes-

mos para todas as sociedades, em qualquer moment° histOrico. 0 que

mudou foram as suas explicacOes dos arranjos institucionais por meio

dos quais novas e d iferentes funcOes seriam executadas, como pode ser

atestado na sua andlise sobre poder.

Ai, o seu exame girou em torno do sistema politico, como um

subsistema teoricamente correspondente ao da economia, dando gran-

 

POTYARA PEREIRA

POLITICA SOCIAL

 

117

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118

POTYARA PEREIRA

POL:TICA SOCIAL

119

de enfase a comparabilidade entre o conceito econOmico de mediacao

(no sentido de

distribuicao)

e o de poder politico. Neste particular tem-se

a impressao de que ele pretendeu solucionar o velho dilema referente

natureza do poder, que e o de definir se ele e urn fenOmeno de

coergio

ou

de

consenso.

Na sua Otica, entretanto, o poder seria as duas coisas, ja

que, em sua estrutura lOgica, e urn meio generalizado do processo poli-

tico, tal como o dinheiro e um meio general izado do processo econOmi-

co. Sendo assim, o poder e por ele considerado urn meio simbOlico ge-

neralizado que circula e opera no processo de interacao social, nao the

interessando saber

quem a

dominante e dominado, qual o grau de poder

do dom inante, ou que conseqiiencias decorrem dessa polarizacao. 0 que

mais the interessa demonstrar e que o poder, como o dinheiro, e urn

insumo

(input)

que pode ser combinado corn outros elementos para pro-

duzir certos tipos de produtos

(outputs)

funcionais (Gouldner).

Percebe-se, assim, que mesmo sofisticando a sua analise a respeito

do poder, a integracao social continua sendo uma necessidade imperio-

sa em sua teoria, a qual devem estar submetidos todos os fatos sociais

emergentes, inclusive o bem-estar.

Demonstrando maior preocupacao corn a analise do bem-estar,

Smelser desenvolveu urn raciocinio que, embora continue privilegian-

do a integracao social , encara o desenvolvimento como uma relacao con-

flituosa entre diferenciacao e integracao, redundando na uniao entre

estruturas diferenciadas de sociedades, sobre novas bases.

Assim, para Smelser, a mudanca da inthistria domestica para a da

producao fabril, por exemplo, criou problemas de integracao. Os meca-

nismos integradores que funcionavam no ambito domestico, mediados

por parentes, vizinhos e conjuntos pre-modernos de relacties, tornaram-

se obso letos ante o desenvolvimento industrial . Contudo, esse processo

deu nascimento a varias instituicties e organizactles que, embora dife-

rentes

das anteriores, cumpriram funcao integradora tao eficaz quanto a

exercida por aquelas. E o caso das Agencias de Recrutamento e Inter-

cannbio, dos Sindicatos, da regulacao do governo por meio de politicas

— inclusive a social

 

das Sociedades de Cooperacao (M ishra, 1989).

Implicita nessa visao de mudanca, via processo de diferenciacao e

recomposicao da integracao sobre novas bases, esta a analise do bem-

estar como mecanismo integrador nas sociedades complexas, mas em

interdependencia corn as demais funcOes bAsicas do sistema. Desse mod o,

nas sociedades industrializadas, diferentes instituicOes desenvolvem o

bem-estar como reforco adicional a famflia e aos grupos de parentesco,

que ainda permanecem como uma estrutura importante de suporte aos

individuos. Esta e a razao porque varias organizacties formais e infor-

mais, de cunho religioso ou laico, oferecem resposta as necessidades

que, nas sociedades primitivas, dada a ausencia de especializacao, eram

supridas pela comunidade e pelo parentesco. Nesse estagio de desen-

volvimento, a religiao, segundo Smelser, assumia urn papel importante

no processo de integracao, poise justamente ela — como

organizagio

conjunto de crencas —

que simboliza e articula a ideia de comunidade.

Nessa fase, portanto, ela apresenta functies diferentes das que exercia

nas sociedades simples, nas quais era vista mais como

conjunto de cren-

gas

do que

organizacao

preocupada corn o bem-estar (M ishra).

Todavia, na so ciedade industrial , conforme salienta Smelser, novas

modificacOes foram introduzidas. Aumentou a especializacao no traba-

lho ao tempo em que se intensificaram a complexidade social, a mobili-

dade espacial e oc upacional, fazendo corn que a farnil ia, a com unidade e

a prOpria igreja se enfraquecessem como organizacOes integradoras. Em

compensacao, novas estruturas especializadas e institucionalizadas sur-

giram e se ocuparam do bem-estar, vinculadas nao so ao Estado, mas

tambem a empresa e a varias associacties voluntarias. Foi nesse estagio

que se destacou a intervencao do Estado Social, acompanhada da acao

assistencial de organizacOes particulares como o mecanismo integrador

por excelencia da sociedade industrializada.

Esta e a visa() funcional mais divulgada do papel do Estado Soc ial,

chegando a influenciar analises que, mesmo se autodenominando de

antifuncionais, enredaram-se nas malhas do raciocinio l inear e evolutivo,

ate agora desenvolvido por significativa parcela dos mais atuais esfor-

cos teOricos.

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120

 

P O T Y A R A P E R E I R A

4

Abordagem marxista e a questôo do Estado social

Alicercada em outros pressupostos, a teoria aqui chamada de mar-

xista coincide, pelo menos num ponto, corn as teorias tratadas na secao

anterior: seu pequeno interesse pela artalise do Estado Social.

Mas, antes de se apreciar a contribuicao que essa teoria, ainda que

indiretamente, Iegou ao estudo da politica social, convem fazer um es-

clarecimento a respeito do que se esta denominando de abordagem

marxista. Trata-se, sem dl vida, do prOprio pensamento de Marx e da-

queles autores que, mesmo introduzindo em seus estudos novas cate-

gorias de andlise, mantem suas ideas basicas alicercadas no pensamen-

to marxiano.8

Partindo de Marx, tem-se que a discussao a respeito do bem-estar

desloca-se do ambito do Estado para o da sociedade. Isso porque, pre-

vendo a extingdo do Estado , Marx nä°

y

e como se d aria o bem-estar no

marco das atividades estatais. 0 Estado, para ele, tern o mesmo efeito

dominador em qualquer regime, nao importam as formas de governo

que venha a apresentar: é sempre urn instrumento de dominacao e de

manutencao da estrutura de classes. Assim, somente quando o Estado

for superado e substituido por uma soc iedade sem classes, conhecer-se-d

o bem-estar.

Entretanto, alem de suas conviccOes intelectuais e politicas contra o

Estado e, conseqiientemente, contra o capitalismo, urn outro fato deve

ter contribuido para o desinteresse de Marx pela analise do Estado So-

cial: em sua epoca, tanto as instituicOes de bem-estar quarto as prOprias

politicas sociais eram escassamente desenvolvidas, apesar da expressao

que a intervencao estatal vinha ganhando desde os fins do seculo XIX.

8. Tal ressalva justifica-se dada a multiplicidade de tendencias marxistasque se desenvolve-

ram atraves dos tempos — cada uma delas julgando-se a verdadeira interprete de Marx — a ponto

de o marxismo se constituir, hoje em dia, em campo de disputas entre correntes competitivas. E por

isso que, mesmo ciente de que a escolha dos autores que irei analisar nao esteja imune a criticas,

acredito que a convergencia de postulados basicos e o rnelhor criterio de identificacâo de afinida-

des entre fundadores e seguidores desse paradigma.

Corn efeito, se se quiser detectar o interesse de Marx por algum

aspecto relacionado

a

Nä° interventora do E stado, no campo social , sera

na legislacao fabril que se devera deter (Mishra). Ai ele parece ter sido

impar, dentre os principais teOricos classicos, no empenho em analisar

corn detalhes os A tos de Fabrica e retirar frutiferas i lacOes a respeito das

possibilidades de desenvolvimento do bem-estar nas sociedades capita-

l istas. Foi nesse trabalho, caracterizado com o uma especie de estudo de

caso, que Marx da a impressao de reconhecer na legislacao fabril um

passo positivo em direcao a reformas sociais no capital ismo. Para ele, de

fato, a legislacao fabril foi a primeira reacao consciente e sistematica dos

trabalhadores contra as condicOes espoliadoras de vida e de trabalho a

que estavam subjugados (Marx, 1975a: 402), nä° importa que outros

grupos e classes sociais tenham apoiado (estrategicamente) tal legisla-

cao — como foi o caso d a aristocracia agraria. 0 significativo para ele foi

a acao da classe trabalhadora na conquista dessa legislacao.

No entanto, essa postura de Ma rx em relacao ao carater reformista

da legislacao fabril constitui urn ponto polemic° quando a comparamos

corn as suas propostas de mudanca revolucionaria.

9

 Como diz Mishra,

urn exame menos a tento, neste particular, parece indicar que M arx pos-

sui duas visOes de mudanca: uma, revolucionaria, resultante do con-

fronto entre forcas produtivas e relacOes de producao (corn superacao

desta) e, outra, reformista que, no caso da legislacao fabril, parece indi-

car urn processo desenvolvimentista em que as mudancas se dariam

gradualmente, mediante a Ka° da classe trabalhadora dentro da pro-

pria lOgica do sistema capital ista.

De fato, Marx encara c om otimismo as reivindicacties dos trabalha-

dores contra o Estado, no seculo XIX, para que este criasse medidas

9. Por reformismo entende-se (...) uma corrente politica dentro do movimento operario que

nega a necessidade de luta de classe, da revolucao socialista e da ditadura do proletariado e pensa

que pode conseguir o socialismo unicamente corn reformas, em colaboracdo corn outras classes

(...). Como exemplo das primeiras correntes reformistas, tern-se, entre outras, a dos bernsteinianos

e kautskianos, na Alemanha; os economistas e os mencheviques na Russia; e os austromarxistas, na

Austria (Kerning, 1975: 11).

P O U T I C A S O C I A L

 

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POLITICA SOCIAL

123

122

POTYARA PEREIRA

limitadoras dos abusos nas relacOes de trabalho da epoca, mas o faz corn

reservas. Para ele, tal mobilizacao trabalhista representou urn passo ini-

cial para a explicitacao de contradicOes no capitalismo, cujo enfrenta-

mento era considerado urn ca minho histOrico importante para a disso-

lucao dessa forma de producao e estruturacao de uma nova forma (Marx,

p. 90). Corn isso, torna-se evidente que, na visa° de Marx, a legislacao

por si so nao traria a justica almejada pelos trabalhadores, ja que ela

seria administrada por frac

 

6es da burguesia que fazem parte do prO prio

Estado como seu comite executivo. Dal as dernincias por ele feitas ao

descumprimento das leis corn a complacencia do Estado, bem como das

martipulacOes e das formas capciosas de se apurar irregularidades, pra-

ticadas pelas autoridades parlamentares, em detrimento dos interesses

dos trabalhadores.

Disso resultou o seu ceticismo nao so a respeito da eficacia da legis-

lacao fabril , mas de toda e qualquer medida de b em-estar real izada numa

sociedade de classes, porque, neste tipo de so ciedade, a ausencia de pro-

tecao social efetiva das massas, ou mesmo dos trabalhadores, constitui

urn fenOmeno prOprio do modo de producao c apitalista. Por isso, neste

sistema, havers sempre pobres, nao obstante a utopia das reformas das

condicOes b urguesas de exploracao. Seguridade para todos, no seu pon-

to de vista, so ocorrera quando existir a propriedade coletiva dos meios

de producao, o que significa que, do produto total do trabalho se obte-

nham os meios para o sustento dos incapazes de trabalhar e para a ma-

nutencao de instituicOes co mo escolas e hospitais (M arx, 1975b).

Contudo, ao mesmo tempo em que ressalta o poder do Estado so-

bre a classe trabalhadora e o controle que aquele exerce sobre esta, por

meio de medidas reguladoras de reproducao so cial, Marx deixa claro na

sua analise sobre o Estado que este e necessario ao m ovimento histOrico

que conduzird a uma sociedade sem c lasses. Em outros termos, coeren-

te corn a sua iclëia central de que a passagem para o socialismo se daria

quando se concretizassem todas as etapas do processo de formacao do

capitalismo, ele

y

e a existencia do Estado burgues — resultante da rela-

cao entre forcas econOrnicas e formas politicas — como uma superestru-

tura importante que, ao garantir a reproducao ampliada do capital e a

acumulacao, acentua as contradicOes d o sistema capitalista, contribuin-

do para a sua deterioracao. E mais, que nesse contexto relacional entre

estrutura e superestrutura, o Estado nao se constitui urn fato superfluo

e separado da sociedade civil.

Na

verdade, a sociedade civil, isto e, as relacties econOmicas, vivem no

quadro de um Estado determinado, na medida em que o Estado garante

aquelas relacOes econOmicas. Pode-se dizer que o Estado 6 parte essen-

cial da estrutura econOmica, 6 urn elemento essencial da estrutura econO-

mica, justamente porque a garante (Gruppi, 1987: 27).

Ha, portanto,

na dinarnica do funcionamento do Estado capital ista,

a existencia de co ntradicOes, assim configuradas: a maquina estatal ser-

ve amplamente aos interesses da classe dominante, mas a sua prOpria

universalizacao exige que ele de atencao a sociedade como um todo.

Assim, da mesma forma que ele ajuda a explorar os trabalhadores, tem

de atender as suas reivindicacOes.

Esta implicita neste raciocinio a ideia da existencia de dois niveis

de contradicO es que vao ser exploradas pelos seus seguidores, especial-

mente Poulantzas (1981): o das

contradicaes principais,

resultantes da luta

entre classes antagOnicas, e o das

contradiccies secunddrias,

resultantes d as

relacOes contraditOrias entre classes e fracOes de classes no prOprio seio

do E stado. Estas contradicOes sao agucadas pelas

principais

que, por sua

vez, sac) as responsaveis reais pelas mudancas revolucionarias que de-

verao ocorrer no sistema capitalista, redundando na sua extincao. E foi a

este tipo de contradicao que M arx deu maior atencao.

Ve-se, entao, que a idêia de

revolucdo

em M arx e a pedra angular de

sua teoria e esta presente, de forma coerente, em toda a sua obra, in-

cluindo os escritos de sua juventude.

Tal ideia parte do

principio da critica

desenvolvido pela esquerda

hegeliana, mas tornado por Marx em sentido mais amplo e dentro da

perspectiva materialista. Para Marx, o poder material deve ser destrui-

do pelo poder material, viabilizando-se tal destruic ao pela praxis revo-

lucionaria". Eis por que, no seu ponto de vista, a revolucao precisa de

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POUTICA SOCIAL

 

125

24

 

POTYARA PEREIRA

urn protagonista que seja capaz de empreender o ato da auto-realizacao

do homem. Esse protagonista e o proletariado que, por ser injusticado,

converte-se em libertador dos oprimidos, depois de superada a sua auto-

alienacao.

Nessa postura humanistica do jovem M arx, detectavel em suas ob ras

A Quest Judaica e a Critica a

Filosofia do Direito de Hegel, ja se vislumbra

o principio da luta de classes que, posteriormente, vai constituir urn dos

fundamentos de sua postura revolucionaria. Mas, nessa postura perce-

be-se, tambem, ao lado da perspectiva objetiva da revolucao, urn rasgo

subjetivo, haja vista que, no seu entender, a revolucao é determinada

por condicOes materiais, porem reforcada por elementos imateriais en-

tre os quais a vontade. Esta a uma outra questao polemica em torno de

Marx, ja que a sua referencia

a

vontade no processo revolucionario tern

sido alvo das mais diferentes interpretacOes.

Porem, o que e nitido e pacffico em sua obra é a c oncepcao de que

a revolucao e o resultado de urn processo hist6rico que se desenvolve

dialeticamente, gracas ao choque entre forcas produtivas e relacOes de

producao, sem descartar o papel das

faros vivas no movimento da his-

tOria. Disso se conclui que a histOria e a vontade sac) dois elementos

presentes na teoria revolucionaria de Marx e do marxismo, podendo ser

detectados, juntos ou nao, em varias passagens do pensamento do mes-

tre e de seus seguidores, o que afasta qualquer laivo de mecanicismo

nestes autores. Assim, na pol'emica travada corn Proudhon em A Miseria

da Filosofia,

M arx fala da oposicao entre proletariado e burguesia como a

luta de classe contra classe que, levada a sua mais alta expressao, signi-

fica a revolucao total na qual aparece o choque do "homem contra o

homem como U ltima solucao . E no prOlogo de 0 Capital,

ele fala da lei

econ6mica do movimento da moderna sociedade como uma tendencia

que nao comporta saltos nem variacOes fora das fases naturais de seu

desenvolvimento.

Corn Engels, Marx refere-sea revolucäo como urn processo com-

post° de elementos econOmico s, culturais e politicos que se influenciam

mutuamente, tendo, porem, no econOmico, o determinante principal.

Nesse sentido, sac) as mod ificacOes das forcas prod utivas que revolucio-

nariam o processo de trabalho, derivando dal repercussoes sobre outras

instancias. Todavia, essas modificacOes nao sac) produtos de processos

naturais que se realizam independentemente da vontade; para que haja

transformacao das forcas produtivas, a necessaria a participacao cons-

ciente das classes subalternas. A mobilizacao das massas trabalhadoras,

imersas no progresso eco nOmico, cid-se justamente pela tomada de cons-

ciencia da miseria crescente do proletariado nessa situacao de progres-

so. A necessaria e crescente consciéncia do homem

no

processo de traba-

lho se converte na consciencia

do

processo de trabalho. Dal que o cho-

que entre as forcas produtivas e relacOes d e producao se caracteriza tanto

como urn processo revolucionario que se da objetivamente como uma

acao subjetivamente conduzida.

Dessas colocacOes deduz-se que, para Marx, a pobreza e a riqueza

sao resultantes do modo de producao de uma dada sociedad e e que, sob

a exploracao capitalista, o bem-estar é sempre uma conquista da classe

trabalhadora. Isso porque, no sistema capitalista, a gestao da riqueza

deixada a merce dos mecanismos impessoais do mercado, nao leva em

conta as necessidades humanas e o principio da cooperacdo. Pelo con-

trail°, impera, sob tal regime, a coercao e a competicao. Sendo assim, os

valores do bem-estar nä° podem fazer parte desse tipo de sociedade.

Para que haja prevalencia desses valores torna-se necessario que a pro-

ducao seja regida por urn

criterio social

e a distribuicao pelos imperati-

vos das

necessidades humanas.

Isso, por seu turno, requerera que o domi-

nio do mercado, da propriedade privada dos meios de producao e da

producao para o lucro seja extinto e haja o controle comunal sobre as

condicOes de trabalho e de vida. As condicOes para tal transformacao,

segundo Marx, ja estao presentes na prOpria sociedade capitalista, de-

vendo apenas ser acionadas. Esta deve ter sido a raid() por que Marx

prestou pouca atencao as

Poor Laws

e as politicas de saale, de educacao

pdblica, e de habitacao, realizadas no sec ulo XIX, preferindo, ao

cOntra-

rio, encarar

os problemas que as ensejaram como pecas de acusacao c on-

tra o sistema capitalista e contra a plausibilidade das reformas sociais.

Mas, a meu ver, esti justamente ai o embriao de uma possivel teoria

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POTYARA PEREIRA

marxista da sociedade de bem-estar que, embora negadora do Estado,

encontra-se na b ase desta Instituied

 

o. Esta ai tambern a explicacdo fun-

damental para que se possa entender os dilemas e as l imitacOes da poli-

tica social no ca pitalismo, trabalhados mais p

r

ofundamente pelos segid-

dores de Marx.

Pode-se dizer que foi a partir dos anos 1960 que houve no campo

marxista um despertar de interesse te6rico pela intervenedo social do

Estado e,

conse

quentemente, pelo chamado Estad o de Bem-E star. Afi

nal, as mudancas verificadas na estrutura e nas competencias do Esta-

do, inexistentes na epoca de Marx, precisavam agora ser explicadas,

dando-se enfase aos aspectos politicos e sociais presentes no funciona-

mento do Estado capitalista. Assim, os

de

senvolvimentos teOricos mar-

xistas tern procurado compensar a falta de teorizacdo acerca das insti-

tuieOes politicas corn urn debate que, nä° muito diferente das preocupa-

eOes l iberais a respeito da controversia entre el itismo

versus

pluralismo,

visualiza o Estado ora como um Estado capitalista

tout court,

ora como

urn Estado

na

sociedade capitalista, rechacando as duas principais pos-

turas hoje consideradas limitadas: a que considera a mudanca politica

como puro resultado da Na() das classes sociais; e a que

y

e o Estado

como o co ndutor de todo o processo de mudanca porque as classes so-

ciais sdo debeis.

No cerne dessas preoc upacoes esta., sem chivida, a postura teOrica

e metodolOgica de, ao rechacar as po laridades entre Estado e Sociedade,

ou a mera luta de classes contra classes, delinear o espaco ou as arenas

dentro das quais ocorrem relacOes contraditOrias de pod er, ou relacOes

de forcas deco rrentes das contradicOes principais e secunddrias, a guisa

de Poulantzas (1981), bem como a maneira como se ddo essas relacOes.

Poi essa visa°, nao apenas deverd ser privilegiado o processo histOrico

da intervened() do Estado — como ja e usual nas analises mais recentes

do

d

esenvolvimento politico, por parte daqueles que comecaram a ne-

gar a eficdcia explicativa das teorias sistemicas — mas analisar as cone-

10. È o caso de Huntington, Apter, Barrington Moore

Jr.

entre outros.

POLITICA SOCIAL

 

127

x6es entre os que tern poder (dentro do aparato do Estado) e os que se

encontram alijados dele. Ou seja, interessa saber quais sdo e como se

ddo os mecanismos especificos de poder no contexto do capitalismo

avancado.

A d escoberta dos trabaihos de Gramsci foi, inegavelmente, o fator

decisivo para a adocdo dessa postura analitica. Foi a partir dele que se

comecou a questionar a validade de se pensar a esfera politica como

uma deducdo quase que automatica da infra-estrutura econOmica. Corn

Gramsci foi possivel conceber o Estado como uma esfera passive! de

possuir autonomia, mesmo que relativa, colocando-se acima e alem da

sociedade civil em sit-LINO

es de crise de hegemo nia e, portanto, de insta-

bil idade. M as, tal autonomia, ao mesmo tempo em que decorre da capa-

cidade organizacional do E stado frente as foreas soc iais confl itantes, re-

sulta tambern do apoio que este recebe dos estratos sociais mais impor-

tantes sediados no pacto de do minacdo. Sendo assim, tal autonomia ndo

pode ser vista dissociada da sociedade.

Foi com base nessas formulaeOes que grande parte dos marxistas

preocupados corn a questdo do bem-estar desenvolveu as suas reflexaes.

Uma das mais antigas andlises marxistas sobre o

welfare state e

de

John Saville (Mishra, 1982). Combatendo, como ja comentado, a visa°

social-democrata do

welfare state

do segundo p6s-guerra, de que este

seria urn produto do m ovimento social ista e que, no que tange a seguri-

dade e a igualdade, teria alcaneado avaneos significativos, apresenta

argumentos que contradizem essa visdo. Para ele, o desenvolvimento

do Estado Social e o resultado da interacdo de tres principais fatores: a

luta da classe trabalhadora contra a sua exploracdo; a necessidade do

capitalismo industrial em possuir uma forca de trabalho cada vez mais

produtiva; e o reconhecimento da classe proprietdria de que a necessa-

r io pagar urn preeo pela seguranca politica do regime. Eis porque, mes-

mo sendo urn resultado da luta operdria — fato que Savil le, como m ar-

xista, enfatiza — as politicas de bem-estar, a seu ver, ndo deixam d e ser

um arranjo da burocracia estatal (e, portanto, da classe media que a corn-

poe) a servico da acumulacdo e

da estabilidade politica. Sendo

assim

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POTYARA PEREIRA

alem de tais politicas nao afetarem, absolutamente, a estrutura de classe

da sociedade capitalista, elas ainda oneram a classe trabalhadora, ja que

sao, em grande parte, financiadas por essa classe (Saville, 1996).

De forma sem elhante, autores como D omhoff, que elegeram como

foco de artal ise o contexto norte-americano do

New Deal,

chegam a mes-

ma conclusao de que a intervencao do Estado, inclusive na esfera social,

visa a manutencao e a reproducao do sistema capitalista

Contudo, os argumentos marxistas em torno do intervencionismo

estatal foram tornando-se mais complexos e passaram a incorporar ca-

tegorias analiticas que, por nao estarem explicitas na teoria de Marx e

Engels, sac) consideradas desenvolvimentos dessa teoria. E o caso de

Poulantzas, corn a retomada da ideia gramsciana de autonomia relativa

do E stado; de O'Connor, corn a sua referencia as crises fiscais do Estado

bem-feitor; de Clauss Offe, com a sua reflexao sobre os mecanismos se-

letivos do processo de dominacao estatal, e de Gough, considerado por

Saville (1996) o realizador da melhor abordagem marxista da economia

politica do

Welfare State,

nos fins dos anos 1970.

Vejam-se, sucintamente, as contribuiceies de Poulantzas e O'Connor

para, a seguir, falar-se do primeiro

ll

 Claus Offe — que deu grande aten-

cao aos processos internos do Estado (que the garantem carater de clas-

se) — e de Ian Gough, urn dos neo-marxistas europeus que, como ja

indicado, formou corn O'Connor e O ffe urn grupo de criticos do sistema

capitalista, conhecido como O'Goffe — amalgama (acrossemia) das pri-

meiras silabas dos sobrenomes dos tres autores.

Poulantzas (1981: 91), extrapolando as formulacOes marxianas de

que o Estado e produto da base material, admite-o, em certos casos, tal

como Gramsci, como dotado de autonomia relativa. Desse modo, argu-

menta que o Estado nao é urn utensilio ou urn instrumento de capitalis-

tas individuais que ocuparam o aparelho do Estado, mas esta compro-

metido (mais politica do que economicamente) com os interesses da classe

11. Claus Offe identificado como marxista. Hoje ele defende urn socialismo que nao rompe

corn a lOgica do mercado, denominado socialismo pOs-industrial (ver Little, 1998).

POLITICA SOCIAL

 

9

capitalista. Nesta perspectiva, o Estado capitalista expressa urn carater

de classe, possibilitando, dessa forma, a dominacao politica da burgue-

sia sobre a sociedad e, ja que esta seria incapaz de governar diretamente.

Em vista disso, a autonomia do Estado nao se daria como algo externo

as classes representadas no bloco no poder, mas resultaria da dinamica

interna do Estado ou das c ontradicOes secundarias presentes no seu in-

terior — que contrapOem fracties de classes entre si .

Esta autonomia se manifesta concretamente pelas diversas medidas con-

traditOrias que cada uma dessas classes e fraceies, pela estrategia especi-

fica de sua presenca no Estado e pelo jogo de contradicOes que resulta

disso, conseguem introduzir na politica estatal, mesmo sob a forma de

medidas

negativas:

a saber, por mein de oposicoes e resistencias a tomada

ou execucäo efetiva de medidas em favor de outras fracOes no bloco do

poder (e, particularmente o caso, hoje em dia, das resistencias do capital

nao monopolista frente ao capital monopolista). Essa autonomia do Esta-

do em relacâo a tal ou qual frac

 

do do bloco no poder existe, pois, concre-

tamente como autonomia relativa de tal ou qual setor, apareiho ou rede

do Estado em relacdo aos outros (Poulantzas, p. 155-6).

M ais interessado em apontar as contradicOes e crises do Estado de

Bem-Estar, O'Connor (1977) argumenta que as duas principais funcOes

por ele assumidas — a acumulacdo,

visando o crescimento econOmico

mais generalizado, e a

legitimactio,

visando a criacao de condicOes de

harmonia social — sao mutuamente contraditOrias. Isso porque, enquan-

to que os gastos do E stado relacionados as primeiras funcOes tendem a

crescer, as possibilidades de se levantar recursos adequados e suficien-

tes para arcar corn esses gastos tendem a diminuir, ja que o excedente

econOm ico continua sendo apropriado pelos grupos privados. Ha, por-

tanto, uma tendencia dos gastos palicos a crescer mais rapidamente

do que os meios para financia-los, gerando crise fiscal. Tal crise, entre-

tanto, tende a exacerbar-se pela pressao d e varios interesses especificos

sobre o o rcamento pablico, visto que nao s6 o s pobres, os desemprega-

dos e os trabalhadores exigem participacao nos gastos estatais, mas tam-

bent as corporaco es e as indÜstrias. E desde que tais exigencias

sao

rea-

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POTYARA PEREIRA

lizadas por meio do sistema politico (e ndo so do mercado) ndo ha o

equilibrio idealizado; ha, sim, crise e instabilidade fiscal, ameacando a

prOpria base produtiva.

Essa 6, segundo M ishra (1989), uma das raras contribuicoes a eco-

nomia politica do Estado Social, de corte m arxista.

Offe, por sua vez, no intento de

it

mais alem das explanapies ge-

rais sobre o papel do Estado capital ista e das relacOes de poder tratadas

por outros autores

c

ontemporaneos, construiu urn modelo de analise da

estrutura interna do Estado e da sua racionalidade admin

 

istrativa (Offe,

1972).

Este autor introduz a ideia da dominacan estatal atraves de processos

seletivos, o que implica dizer que o Estado tern que extrair de interesses

muito limitados e especfficos dos grupos dominantes urn interesse de

classe geral, ao mesmo tempo em que assegura a exclusdo de interesses

anticapital istas — o segundo mecanismo selet ivo (Boschi, 1979: 44) .

Em outras palavras, esses mecanismos que envolvem uma ampla

gama de arranjos institucionais dentro do aparelho do Estado, operam

em urn sistema hierarquizado de filtro contendo quatro niveis

(estrutu-

ra, ideologic, processo e repressdo)

cada urn servindo para excluir os ele-

mentos ndo filtrados pelas instancias anteriores. Assim, a

estrutura

de

cada sistema politico constitui um espaco consolidado institucionalmente

onde co existem formalmente premissas e bloqueios a ac äo institucional.

Dessa forma, ela inclui elementos como garantias constitucionais a pro-

priedade privada, excluindo, portanto, uma ampla variedade de politi-

cas anti-capitalistas da agenda do Estado.

Se, porem, algumas politicas escapam a

estrutura,

elas podem ser

controladas por mecanismos ideolOgicos caracterizados por normas ideo-

lOgicas e culturais que restringem certas medidas sancionadas pela es-

trutura. Desse modo, "somente tuna parte da politica estruturalmente

possivel pode ser atualizada, no contexto das restricoes normativas vi-

gentes" (Offe, p. 15). Alem disso, regras processuais, ou seja, procedi-

mentos de tomada de decisào politica criam condicOes mediante as quais

POLITICA SOCIAL

131

assegurado tratamento preferencial a certos temas e grupos de interes-

ses, em detrimento de outros. Relacionado a esse procedimento esta o

conceito de

ndo-decisdo,

segundo o qual uma serie de questOes nunca

chega a arena decisOria relevante, sendo, por isso, el iminada ou relegada

a segundo plano pelo sistema politico.

Finalmente, o aparelho repressivo entra ern cena para excluir cer-

tas alternativas que escapam ao controle dos demais niveis, por meio da

repressao direta realizada por O rgaos policiais, exercito ou justica.

Para dar conta d esse tipo de explicacdo, Offe da especial atencäo ao

sistema administrativo, embora ndo meno spreze o sistema econOmico e

o politico. Resulta clara, assim, a sua énfase no funcionamento do apa-

relho do Estado como uma forma de apreender os arranjos institucio-

nais que estäo por tras da definicao de determinadas politicas. Nesse

sentido, ele oferece tambem uma andlise dos mecanismos de selecäo

positivos do Estado caso essa selecdo favoreca determinada classe. Con-

tudo, a seu ver, dadas as contradicOes in-terms ao Estado, 6 dificil o esta-

belecimento de uma politica no interesse de todas as classes ou frac-6es

de classe que

compOem

o Estado. E por isso que o Estado tende a plane-

jar corn vista ao interesse do capitalismo com o um tod o, o que determi-

na a sua natureza de classe.

Em que pese as dificuldades de demonstrar empiricamente o fun-

cionamento desses mecanismos, ern periodos nao atravessados por c ri-

ses, Offe mostra que tais mecanismos transformam o Estado

na

socie-

dade capitalista em urn Estado capitalista .

No que se refere ao

W elfare State,

Offe, assim como os demais auto-

res marxistas revisados, entende que, nas sociedades capitalistas avan-

cadas, (independentemente de elas serem Estados de Bem-Estar adian-

tados ou atrasados) ha a co existéricia contraditOria da pobreza e da afluén-

cia e, consequentemente, da lOgica da producäo industrial voltada para

o lucro, e da lOgica das necessidades humanas, sem que a politica social

resolva essa contradicdo. Efetivamente, se o desenvolvimento do politi-

ca social não pode

ser

explicado, exclusivamente, a partir das necessida-

des, interesses e demandas sociais, mas pela transformacdo dessas exi-

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  32

 

POTYARA PEREIRA

gencias em politicas, pela maquina estatal, resulta Obvio que tais politi-

cas nao podem cumprir sua promessa de igualdade, de socializacao dos

bens produzidos na sociedade e nem estimular sentimentos de confian-

ca, lealdade e esperanca por parte dos despossuidos. Tal socializacao,

quando ha, tende a visar muito mais as empresas, o que, procedendo-se

uma avaliacao de quem mais se beneficia corn a politica social, desco-

bre-se que o

Welfare State

é melhor definido como o capitalismo para os

pobres e socialismo para os ricos" (p. 213).

Quanto a Gough (1979, edicao inglesa; 1982, edicao espanhola), sua

abordagem da economia politica do bem-estar fez ressurgir, conforme

Cabrero (1982), estudos dessa natureza no ambito da politica social. Sua

grande contribuicao consistiu em reorientar o predominio da analise

marxista, de corte funcional, a respeito das origens, processamento e

conseqiiencias da chamada crise do Estado de Bem-Estar, nos fins dos

anos 1970, dando realce ao seguinte fato: de que o desenvolvimento do

Estado de Bem-Estar nas sociedades capitalistas avancadas reflete a na-

tureza da dinamica dessas sociedades e de suas contradicOes. Sao essas

contradicOes, segundo ele, que permitem considerar o Estado de Bern-

Estar como urn instrumento a servico tanto dos interesses dos capitalis-

tas quanto das lutas politicas da classe trabalhadora organizada — rom-

pendo corn a visa° de que este Estado estaria apenas comprometido

corn a burguesia. Nesse aspecto, Gough, a semelhanca de O'Connor e

Offe, corn os quais constituiu uma corrente de pensamento afim, confir-

ma o que sobre a sua producao se expressou Peter Leonard (1979):

todo trabalho marxista sensato e cuidadoso a respeito do Estado e da

economia tern que evitar cair tanto no funcionalismo quanto no volunta-

rism°, ou seja, tern que evitar contemplar o Estado de Bem-Estar como

totalmente opressivo ou como urn bastiao do socialismo dentro de uma

economia capitalista (p. 4).

Mem disso, do ponto de vista metodolOgico, Gough demonstrou

que o estudo da politica social imprescinde do conhecimento critic° da

relacao entre economia e histOria, assim como da compreensao das leis

POLITICA SOCIAL

 

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do movimento do capital , por meio da qual o processo de co nstituicao e

desenvolvimento dessas politicas — incluindo as lutas de classes — pode

ser adequadamente captado. Nao foi a toa, pois, que este autor elegeu

como seu paradigma de analise o materialismo hist6rico.

* * *

Sao estas, para efeitos de introducao a analise das teorias sociais

das politicas de bem-estar, as principais abordagens (marxistas e nao-

marxistas) selecionadas, dada a sua presenca, direta ou indireta, nas di-

ferentes tematizacOes dessa materia ao longo do tempo. M as, alem des-

tas, outras aproximacoes teOricas, de cunho mais politico, sac) compul-

sadas no estudo da relacao contraditOria entre Estado e sociedade, da

qual decorre a politica social como processo c ontraditoriamente estrate-

g,ico. E corn o ob jetivo de abarcar um arco mais amplo de analise sobre

as precondicOes para o surgimento da politica social que se desenvolve-

rd, no prOximo capitulo, uma reflexao sobre o Estado

versus

Sociedade,

pondo de relevo, igualmente, as principais analises classicas e contem-

poraneas.

E isso sera feito corn a intencao de fornecer explicacifies teOricas

mais amplas sobre um tema que, de regra, tern sido pensado e tratado

de forma pragmatica.