POLÍTICA MARÍTIMA EUROPEIA - CORE · Resumo Sabemos que dois terços do planeta Terra são...
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Joo Miguel Aleixo Zamith
POLTICA MARTIMA EUROPEIA
Uma poltica medida de Portugal ?
Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra
2011
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II
Joo Miguel Aleixo Zamith
POLTICA MARTIMA EUROPEIA
Uma poltica medida de Portugal ?
Dissertao de Mestrado em Estudos Sobre a
Europa: Europa As Vises do Outro, rea de
especializao em Estudos Europeus, apresentada
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a
orientao da Professora Doutora Maria Manuela de
Bastos Tavares Ribeiro e do Dr. Tiago de Pitta e Cunha.
Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra
2011
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III
Que imprprio chamar Terra a este planeta de oceanos!
Sir Arthur C. Clarke cit. no Livro Verde Para uma futura poltica
martima da Unio : uma viso europeia para os oceanos e os mares
(2006).
Portugal encontra-se na periferia da Europa, mas est
no centro do mundo. () Possumos uma vasta linha de
costa, beneficiamos da maior zona econmica exclusiva
da Unio Europeia. Poderemos ser uma porta por onde a
Europa se abre ao Atlntico, se soubermos aproveitar as
potencialidades desse imenso mar que se estende diante
dos nossos olhos, mas que teimamos em no ver ()
Cit. no discurso de Sua Excelncia o Presidente da Repblica
Portuguesa, Professor Doutor Anbal Cavaco Silva durante a 36
Sesso Comemorativa do 25 de Abril de 2010 na Assembleia da
Repblica.
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IV
in memoriam
Professor Doutor Ernni Rodrigues Lopes
(1942 2010)
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V
Resumo
Sabemos que dois teros do planeta Terra so ocupados pelos Oceanos. Logo,
premente ocuparmo-nos deles da forma mais sustentvel possvel.
E os mares foram desde sempre a seiva da Europa. Os europeus desde h muito
tempo tiveram propenso para se libertarem do mare incognitum. Essa ousadia trouxe
retorno econmico, cultural e cientfico notveis para a Humanidade.
Os espaos martimos e o litoral europeu, so essenciais para o bem-estar e
prosperidade, ligam continentes atravs de rotas comerciais, regulam o clima, so fonte
de alimento, de energia, e de inmeros recursos (muitos ainda desconhecidos) e so
tambm locais privilegiados de residncia e lazer para os cidados.
A Europa preconiza actualmente uma Poltica Martima Integrada reflectindo e
projectando a nossa relao com os oceanos e mares. Esta abordagem inovadora e
holstica refora a capacidade da Europa face aos desafios da globalizao e da
competitividade, s alteraes climticas, autonomia energtica, segurana martima,
entre outras. O leme da Poltica Martima Europeia Integrada foi tomado, em 2005, pelo
Presidente da Comisso Europeia, Duro Barroso, e est ancorada na Agenda de Lisboa
(apela ao crescimento econmico e emprego) e na Agenda de Gotemburgo (apela ao
desenvolvimento sustentvel ambiental, econmico e social).
A nossa longa histrica martima, a lngua e cultura portuguesa, e, o facto de existir
uma Estratgia Nacional para o Mar, em consonncia com a Poltica Martima Europeia
Integrada, podem ser os factores-chave para Portugal concretizar um dos seus maiores
desgnios para o sculo XXI o Mar. Importa referir que iminente o alargamento da
zona econmica exclusiva (equivalente a 43 vezes rea de Portugal Continental), e,
caso seja aceite, teremos seguramente uma nova oportunidade de estar no centro do
mundo.
Esta investigao tem portanto, como objectivo, analisar a poltica martima
europeia e os seus desenvolvimentos em Portugal.
PALAVRAS-CHAVE:
EUROPA, MAR, POLTICA, PORTUGAL, SUSTENTVEL
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VI
Lista de abreviaturas
BEI Banco Europeu de Investimento
BRIC Brasil, Rssia, ndia e China
CCDR-N Comisso de Coordenao de Desenvolvimento Regional do Norte
CdR Comit das Regies
CE Comisso Europeia
CEO Comisso Estratgica dos Oceanos
CESA Associao dos Estaleiros Europeus de Construo e Reparao Naval
CETMAR Centro Tecnolgico del Mar
CIEJD Centro de Informao Europeia Jacques Delors
CIIMAR Centro Interdisciplinar de Investigao Marinha e Ambiental
CLPC Comisso de Limites para a Extenso da Plataforma Continental
CO 2 Dixido de Carbono
COMPETE Programa de Factores de Competitividade
CRPM Conferncia das Regies Martimas da Europa
DEM Dia Europeu do Mar
EBA European Boating Association
EFTA Associao Europeia de Livre Comrcio
EM Estados Membros
EMAM Estrutura de Misso para os Assuntos do Mar
EMEPC Estrutura de Misso para a Extenso da Plataforma Continental
EMODNET Rede Europeia de Observao e de Dados do Meio Marinho
EMSA Agncia Europeia da Segurana Martima
ENM Estratgia Nacional para o Mar
ESPO Organizao dos Portos Martimos Europeus
EuDA European Dredging Association
EUROMIG European Union Recreational Marine Industry Group
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VII
FAO Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura
FEDER Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional
FEM Frum Empresarial da Economia do Mar
FSE Fundo Social Europeu
GIZC Gesto Integrada das Zonas Costeiras
I&D Investigao e Desenvolvimento
I&D&I Investigao, Desenvolvimento e Inovao
IDTI Investigao e Desenvolvimento das Tecnologias de Informao
OEM Ordenamento do Espao Martimo
OGP International Association of Oil and Gas Producers
ONG Organizao No Governamentais
ONU Organizao das Naes Unidas
NEA 2 Nautisme Espace Atlantique 2
PAC Poltica Agrcola Comum
PALOP Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa
PCP Poltica Comum da Pesca
PIB Produto Interno Bruto
PME`S Pequenas e Mdias Empresas
PMIE Poltica Martima Integrada Europeia
POCTEA Programa de Cooperao Transnacional do Espao Atlntico
POCTEP Programa de Cooperao Transfronteirio Espanha-Portugal
POEM Plano Ordenamento do Espao Martimo
QREN Quadro de Referncia Estratgico Nacional
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura
TIC Tecnologias da Informao e da Comunicao
UE Unio Europeia
ZEE Zona Econmica Exclusiva
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VIII
Nota prvia
A realizao desta investigao no teria sido possvel sem a colaborao de
diversas pessoas e entidades, pelo que, lhes dirijo os devidos agradecimentos.
A primeira palavra de agradecimento vai para a minha Orientadora Professora Doutora
Maria Manuela Tavares Ribeiro. Grato pela sua disponibilidade e destreza em aceitar a
tarefa de orientao. Aproveito para a felicitar pelas inmeras iniciativas que organiza e
em que participa elevando o prestgio da nossa Faculdade de Letras a nvel nacional e
internacional.
A segunda palavra, e no menos relevante, vai para o meu co-Orientador, na
qualidade de especialista, Dr. Tiago de Pitta e Cunha. A sua notvel experincia
nacional (Coordenador da Comisso Estratgica dos Oceanos) e europeia (ex-Membro
do Gabinete do Comissrio Europeu para os Assuntos Martimos e as Pescas), aliada a
uma cooperao profcua, diria mesmo perfeita, permitiram que neste trabalho tenhamos
procurado a profundidade e a transversalidade que o tema proposto exige.
O reconhecimento extensvel a todos os Professores da parte curricular pelo
conhecimento adquirido nas aulas, memorveis. Uma palavra particular para o Professor
Doutor Antnio Martins da Silva e outra para o meu colega e amigo Asdrbal
Sotomaior, pois sem eles no teria sido possvel conseguir este objectivo.
Agradeo aos funcionrios do Centro de Informao Europeia Jacques Delors, em
Lisboa, pela simpatia e competncia com que sempre me receberam.
O meu justo agradecimento ainda ao Comit das Regies pelo convite, feito em
2008, para visitar e participar in loco nas sesses plenrias das principais instncias
europeias (Parlamento, Comisso e CdR). Participaram neste evento 27 alunos, em
representao de todos os Estados Membros da UE, oriundos de cursos de 2. Ciclo em
Estudos Europeus.
Finalmente, o meu obrigado sentido aos que esto mais prximos. Agradeo aos
amigos de sempre, Teresinha, ao meu Irmo e ao meu Pai pelos incentivos que sempre
me deram na vida. minha Me sinto-me sempre grato pela sua sabedoria, pacincia e
carinho.
minha futura sobrinha Maria dedico este trabalho.
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IX
ndice
Resumo ............................................................................................................................ V
Lista de abreviaturas .................................................................................................... VI
Nota prvia .................................................................................................................. VIII
Introduo ....................................................................................................................... 1
Cap. I Principais talassocracias europeias breve retrospectiva histrica ........... 4
1.1 Repblicas Martimas Italianas .............................................................................. 6
1.2 O papel de Portugal o pioneiro da globalizao .................................................. 9
1.3 Siglo de oro espanhol ........................................................................................... 13
1.4 O ciclo holands e a hegemonia inglesa ............................................................... 16
1.5 A Burguesia e a Revoluo Industrial .................................................................. 19
Cap. II O Livro Verde da Poltica Martima Integrada Europeia ......................... 21
2.1 Fundamentos da Poltica Martima Integrada Europeia ....................................... 21
2.2 Potencialidades das principais actividades martimas da Unio Europeia ........... 23
2.3 Livro Verde uma viso para os oceanos e os mares ...................................... 27
2.4 reas-chave no Livro Verde ................................................................................. 29
2.5 Participao dos europeus no processo de construo da PMIE .......................... 38
Cap. III O Livro Azul, plano de aco e instrumentos financeiros ........................ 40
3.1 Condies polticas do processo de deciso ......................................................... 40
3.2 Livro Azul e o plano de aco .............................................................................. 43
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X
3.3 Instrumentos econmico-financeiros de apoio PMIE ........................................ 51
3.3.1 A poltica de coeso e a poltica regional europeia ....................................... 51
3.3.2 Fundos estruturais .......................................................................................... 53
3.3.3. Outras fontes de financiamento .................................................................... 55
3.3.4. Programa de apoio ao aprofundamento da PMIE ......................................... 56
Cap. IV Orientaes estratgias para o futuro da PMIE ...................................... 58
4.1 Breve balano ....................................................................................................... 58
4.2 Governao martima e participao das partes interessadas ............................... 59
4.3 Instrumentos transectoriais ................................................................................... 62
4.4 Perspectivas e viso futura da PMIE .................................................................... 65
Cap. V Estratgia Nacional para o Mar .................................................................. 68
5.1 Princpios e objectivos .......................................................................................... 73
5.2 Pilares estratgicos ............................................................................................... 73
5.3 Aces e medidas ................................................................................................. 75
5.4 O Hypercluster da economia do mar .................................................................... 81
5.5 Plano de ordenamento do espao martimo .......................................................... 83
5.6 Programa Polis do Litoral ................................................................................. 85
Cap. VI Agenda Regional do Mar (Norte de Portugal) ......................................... 87
6.1 Pacto regional para a competitividade da regio Norte 2015 ........................... 87
6.2 Linhas estratgicas de desenvolvimento .............................................................. 90
6.3 Modelo de governao para a Agenda Regional do Mar ..................................... 95
6.4 Oceano XXI - Cluster do conhecimento e da economia do mar ..................... 95
6.5 A Nutica como factor de desenvolvimento regional .......................................... 99
Concluses ................................................................................................................... 101
Fontes e bibliografia ................................................................................................... 105
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1
Introduo
A minha relao com o Mar comeou desde h muito.
Foi graas s actividades nuticas, em ambiente martimo, que aprendi a valorizar e
a respeitar a natureza, a partilhar valores sociais, a estabelecer novas amizades e at a
conhecer novos continentes. Tudo comeou por prazer/lazer e hoje em dia o MAR faz
parte da minha profisso e ser sempre, seguramente, uma fonte de inspirao e energia
para a vida.
Depois da formao na rea da engenharia e cincias econmicas decidi matricular-
me no Curso de Mestrado Estudos Europeus na Faculdade Letras da Universidade de
Coimbra, de forma de aprofundar os meus parcos conhecimentos (histricos, polticos e
institucionais) sobre a Europa. Foi uma experincia enriquecedora e gratificante que
ultrapassou largamente as minhas aspiraes iniciais.
Contudo, confrontado com a necessidade de elaborar uma tese de dissertao, no
mbito do Mestrado, ocorreu-me explorar uma temtica actual e transversal que se
espera poder unir os europeus a uma causa o Mar.
Assim, este trabalho de investigao intitulado Poltica Martima Europeia Uma
poltica medida de Portugal ? pretende ser um contributo para a pesquisa e reflexo
sobre as questes europeias e a sua relao com o mar e os oceanos, matria que, como
todos nos temos vindo a aperceber cada vez mais, se reveste de grande importncia para
Portugal.
Foi com o esprito de para antever o futuro temos de conhecer o passado que
procurei, ao longo do primeiro captulo, debruar-me sobre as fontes de riqueza material
e imaterial que, estando relacionadas com o mar, contriburam para a formao e
desenvolvimento da Europa. Neste mbito, debruo-me sobre as expedies martimas
italianas que, apesar de confinadas ao mediterrneo, foram extremamente importantes
para os descobridores que se seguiram. Entre estes ltimos destacarei o papel de
Portugal, o siglo de oro espanhol, o ciclo holands e a hegemonia martima inglesa.
Para terminar o enquadramento histrico, fao referncia emergncia da burguesia
europeia e s suas origens nas actividades martimas.
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2
No segundo captulo, procuro analisar transversalmente o Livro Verde da Poltica
Martima Integrada Europeia. Assim, apresentarei os fundamentos e as potencialidades
da Europa no domnio martimo, a viso europeia para o futuro dos oceanos e os
mares, e ainda, as rea-chave nele apontadas. No final deste captulo, abordarei a
consulta pblica que possibilitou aos europeus participarem, directa e activamente, no
processo de construo da PMIE.
Saliento que, pela primeira vez, a dimenso martima da Europa assumiu a posio
de real prioridade poltica, ou seja, na histria da Unio Europeia, os oceanos e os mares
como um todo, tornaram-se assunto de foco poltico ao mais alto nvel. A PMIE foi uma
iniciativa de Jos Manuel Duro Barroso aquando da sua primeira nomeao para a
Presidncia da Comisso Europeia em 2004. No programa Barroso I, a PMIE foi
apresentada como uma necessidade premente, chegando mesmo a ser instituda, em
2004, a pasta dos Assuntos Martimos atribuda, na altura, ao malts Joe Borg (ex-
Comissrio Europeu).
No terceiro captulo, comearei por salientar as condies polticas, ao nvel das
instncias europeias, que permitiram a consolidao da PMIE. Este destaque poltico
concedido ao Mar o reconhecimento do seu valor estratgico em diferentes dimenses:
econmica, ambiental, cultural, de segurana, de investigao e de lazer. Desta vontade
poltica declarada emergiu o Livro Azul acompanhado de um plano de aco. No final
deste captulo sero apresentados os instrumentos financeiros comunitrios de suporte
PMIE.
Apesar da jovem idade - cinco anos - a PMIE j conseguiu obter resultados notveis
escala europeia. Por isso, no quarto captulo proponho-me fazer uma breve anlise s
actividades decorrentes da PMIE tendo em conta a governncia martima. E as aces
estratgicas para o futuro da poltica martima europeia sero ainda apresentadas neste
captulo.
No quinto captulo, passarei a analisar a Estratgia Nacional para o Mar (ENM),
resultante do apelo da Unio Europeia (UE) aos Estados-membros (EM) no sentido de
aplicarem abordagens holsticas e transversais para o uso sustentvel dos oceanos.
Realo que Portugal, a par de Espanha e Frana, foi um dos principais impulsionadores
da poltica martima europeia. Destacarei ainda a importncia do Hypercluster da
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3
Economia do Mar, o plano de ordenamento do espao martimo (POEM), actualmente
em discusso pblica, e tambm o programa Polis do Litoral.
No captulo seguinte, o sexto, destacarei a Agenda Regional para o Mar que, para
alm de ser enquadrada na ENM e PMIE, responde visivelmente s especificidades
latentes na regio Norte de Portugal. No final deste captulo, sero abordados ainda a
plataforma Oceano XXI e o estudo estratgico intitulado A Nutica como factor de
desenvolvimento da regio Norte.
Neste trabalho procuro dar um contributo acadmico sobre a PMIE, registando a
ausncia de estudos sobre esta matria, congratulo-me com o estudo que to
entusiasticamente me comprometeu e espero que o mesmo possa servir de
inspirao/orientao a TODOS aqueles que se revejam no todo ou em parte do exposto
ou, simplesmente, aos que se interessem pelas temticas abordadas.
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4
Cap. I Principais talassocracias europeias breve retrospectiva histrica
Como forma de introduzir a influncia dos assuntos martimos na formao da
Europa, resolvi reflectir sobre os aspectos histricos que considero mais relevantes,
protagonizados no perodo compreendido entre os sculos XIV e XX, pelas maiores
potncias de ento.
Sero abordadas neste captulo, primeiramente, as repblicas italianas (Gnova e
Veneza), seguindo-se a expanso portuguesa, passando pela aventura castelhana e
terminando com a aco holandesa e inglesa. No final deste captulo, fao uma
abordagem formao de uma nova classe social a burguesia oriunda das
actividades martimas mercantis que foi o motor de arranque para a Revoluo
Industrial.
Os maiores imprios at ao sculo XV foram de dois tipos:
Continentais, como o imprio Alexandrino (euro-asitico, no sculo IV
a.C.) e o Mongol (no sculo XIII, que se estendia do Oceano Pacfico ao Mar
Negro);
Outros, centrados estrategicamente numa bacia martima que j foi tida
como o centro econmico do mundo. A este tipo pertenciam o imprio Romano
(com o apogeu nos sculos I e II a.C., em que o Mediterrneo chamado Mare
Internum era um lago romano, o Mare Nostrum), e o imprio Islmico (que
teve o seu apogeu entre os sculos VIII e XIII, que se estendia desde a Pennsula
Ibrica ndia) e permitiu transformar o Oceano ndico num lago muulmano
at ao momento da chegada dos portugueses.
Houve tambm outros imprios, tais como:
Egpcio (com o apogeu no sculo XV a.C.);
Persa (sculos VI a IV a.C., que se estendia da ndia Grcia);
Chins (o Chin do sculo III a.C., o Han do sculo II ou o Tang do
sculo VIII);
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5
Como nota comum, todos estes imprios ocupavam uma extenso continental
contgua.
No entanto, outros modelos de expanso surgiram ainda na Antiguidade incluindo
as colonizaes mediterrneas dos cretenses, fencios e gregos, assentes numa rede
litoral e descontnua da orla do Mediterrneo e do mar Negro. De referir, entre estes
casos, a importncia do imprio ateniense (com o auge no sculo V a.C.), uma
talassocracia1 por excelncia, baseada na projeco naval e na descontinuidade
continental.
Este ltimo tipo de expanso naval replicou-se mais tarde nas projeces
mediterrnicas das repblicas martimas italianas, com destaque para Gnova e Veneza
e na monarquia dual catalo-aragonesa.
Apesar das diferenas, havia um denominador comum nestas talassocracias
europeias o mar Mediterrneo. Como sublinha a historiadora genovesa Gabriela
Airaldi2, a actividade martima era o elemento que interligava e dinamizava a
civilizao mediterrnica.
A esse ambiente mediterrnico peculiar associou-se, na Idade Mdia:
Uma revoluo comercial e financeira, com uma economia de mercado
predominantemente virada ao exterior, assente numa dispora de mercadores e
banqueiros;
Uma projeco geopoltica criando imprios martimos descontnuos;
A disponibilidade para alianas polticas operativas, pragmticas,
libertas dos preconceitos ideolgico-religiosos da poca.
Ora, como refere Airaldi3, esta interdependncia estratgica entre a Europa do Sul e
o lago mediterrnico originou um novo tipo de estado as repblicas martimas
assentes numa oligarquia mercantil-financeira, distintas do sistema monrquico-
senhorial dominante na Europa medieval.
1 O termo vem do grego e uma juno do vocbulo mar (thlassa) e de poder (krcia). Aplica-se a
todos os Estados no qual o poder se exerce baseado na expanso martima, garantida por uma projeco
naval. 2 AIRALDI, 2007: 9
3 AIRALDI, ibidem: 99
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Os muulmanos e os chineses tinham, no entanto, criado uma inovao que o
historiador Felipe Fernndez-Arnesto4 sintetiza na diferenciao entre civilizaes:
Civilizaes da beira-mar ou no meio do mar moldadas pelo elemento
martimo (assim eram as talassocracias at ento existentes);
Civilizaes que domesticaram os grandes mares, que geravam
verdadeiras civilizaes ocenicas. Como aquele historiador demonstra em
Civilizations, o Islo foi a primeira civilizao a projectar-se poltica e
economicamente usando os caminhos ocenicos, transformando o ndico num
lago seu, domnio secular que foi beliscado pela curta expanso chinesa do
inicio do sculo XV5.
Essa confluncia dos dois movimentos tornou o ndico num espelho precoce da
revoluo que ocorreria mais tarde e que foi a razo pela qual a histria de Portugal se
inscreveu na Histria universal.
1.1 Repblicas Martimas Italianas
Os genoveses, venezianos e catales dominavam o Mediterrneo, com destaque
para as duas Repblicas italianas que lideraram o mundo poltico euromediterrnico a
partir do final do sculo XIII.
Gnova perderia o poder hegemnico em 1380 na batalha naval de Chioggia,
entrada da grande laguna veneziana, o que a levou sair do Adritico e a perder a
liderana mediterrnea para Veneza, conhecida como a Serenissima Repubblica.
Gnova, La Superba, havia dominado a regio desde que derrotara Pisa, em 1320, e
criara um imprio mediterrnico e uma rede comercial e financeira transnacional.
Perderia, em 1397, a autonomia poltica, passando a ser uma zona de confronto entre a
4 Felipe Fernndez-Arnesto exerce actualmente o magistrio na ctedra Prncipe das Astrias na
Universidade de Tufts, Departamento de Histria, e membro do claustro de Queen Mary, na
Universidade de Londres. 5 FERNNDEZ-ARNESTO, Felipe 2001: 381
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Frana e o Ducado de Milo ao longo do sculo XV. No entanto, nunca se apagou a
chama empreendedora pioneira.
A individualidade genovesa foi, de facto marcante o seu esprito de orizzonti
aperti (horizontes abertos) foi pioneiro no sculo XIII. Foi nesta repblica martima que
mais transparente se tornou o choque entre, por um lado, o lobby das cruzadas e da
bandeira poltica da recuperao de Jerusalm e, por outro lado, a burguesia mercantil
mais arrojada, ligada ao Banco di S. Giorgio (criado em 1407) e s 28 famlias
poderosas que compunham os Albergui6. A Escola genovesa de almirantado, onde
sobressai a figura de Emanuele Pessagno (conhecido pelo portugueses como Manuel
Peanha7), criou fama e uma gerao marinai erranti (marinheiros errantes). No
entanto, veio para Portugal no incio do sculo XIV para servir as navegaes de
outros em Quatrocentos e Quinhentos.
A nsia genovesa de projeco para alm do lago mediterrnico ficou conhecida.
As navegaes de Benedetto Zacaria, em 1277, abriam oficialmente a rota
mediterrnico-atlntica para a Flandres, anulando o significado das feiras de
Champagne e valorizando estrategicamente o estreito de Gibraltar bem como a costa
portuguesa e galega. Mais tarde, os irmos Ugolino e Valdino Vivaldi, com duas gals
armadas por Tedisio Doria, em 1291, aventuraram-se no Mar Oceano (o Atlntico) para
circum-navegarem frica e chegarem s partes da ndia e trazerem mercadorias
lucrativas, mas nunca mais houve notcias deles. Especula-se que eles teriam como
objectivo, provavelmente, no a verdadeira ndia das especiarias, mas a regio do ouro
da frica Ocidental, que, na Idade Mdia, muitos incluam na designao genrica de
ndia8.
Nos genoveses sentiu-se precocemente a necessidade de procurar chegar s fontes
asiticas de commodities de alto valor, por via do Ocidente, em oposio ao domnio
que os venezianos e rabes detinham sobre as vias mediterrnicas do Levante para o
Oriente. E o sentido de risco dos cls financeiros genoveses daria corpo ao primeiro elo
do que viria a designar de Repubblica Internazional del Denaro.
6 Agregao artificial de vrias famlias da oligarquia genovesa. Os Alberghi teriam entre 1600 a 1700
membros, 40% dos quais estavam regularmente expatriados. 7O monarca D. Dinis, em 1317, tornaria Manuel Peagno de Gnova Almirante-mor do reino, um cargo
hereditrio. 8 ALBUQUERQUE, 2001: 148
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8
Mais prximos geograficamente dos portugueses, os catales, apesar da sua
expanso mediterrnica entre 1229 e 1412 (um imprio que no seu auge inclua as
Baleares, Malta, Sardenha, Siclia e os Ducados de Atenas e Neoptria, na Grcia, bem
como um relacionamento especial com o Chipre) e de se terem afirmado como uma
potncia martima mediterrnica, dispunham de um dos centros cartogrficos mais
importantes da poca, situado em Maiorca, onde deu cartas a escola de cartgrafos da
famlia judia Cresques9 e a quem atribudo um Atlas de 1375. Estes nunca desafiaram
a hegemonia genovesa e posteriormente a veneziana. Mas como os italianos, os catales
tambm fundaram colnias mercantis muito fortes em Alexandria, Beirute, Damasco e
em diversos pontos do Magrebe.
Os venezianos, por seu lado, consumada a paz com Gnova, em 1381, e
secundarizao geopoltica desta repblica rival, expandiram os seus domnios de mar
atravs da ocupao de pontos estratgicos na costa adritica, grega e no Mediterrneo
(ilhas como Chipre, Corfu ou Creta). Tambm estabeleceram fortes comunidades
mercantis os fundaci nos portos e placas giratrias comerciais estratgicas (como
Constantinopla, Tana, Sinope, Tebisonda, Alexandria e Damasco) dos pases com que
negociavam.
A partir dessa rede dominaram o comrcio do que ento chamavam mercanzie
sottili (mercadorias finas), as commodities de alto valor da poca que vinham da ndia,
da China, do Ceilo e das Molucas que chegavam a Veneza trazidas pelas mude,
comboios martimos que vinham das placas giratrias que eram Constantinopla,
Alexandria e os portos da Sria. Este comrcio internacional movimentava 20 milhes
de ducados por ano. A frota veneziana dispunha de 300 grandes navios, 45 gals e 3.000
pequenos barcos e envolvia 36.000 marinheiros.
A Europa vivia literalmente enfeitiada pelas especiarias, dominada por
fetichismo das commodities de luxo, como ironizou o historiador Fernand Braudel.
Paradoxalmente, os europeus medievos consumiam produtos made in Oriente mas
desconheciam de todo onde ficavam exactamente e como eram os pases e as gentes de
onde se importavam tais luxos. Da a propagao de mitos e contos fantsticos sobre as
ndias e China. Apenas alguns viajantes aventureiros chegavam s fontes Marco Polo
fora um deles.
9 Um dos filhos desta famlia catal, Jafuda Cresques, cristianizado como Jaume (Jaime) Ribes, seria um
dos expoentes mximos do grupo conselheiro do Infante Henrique.
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9
Veneza soube gerir tambm o saco de gatos que era a Europa do final da Idade
Mdia. O grande cisma no papado entre 1378 e 1417, num perodo em que chegou a
haver mais do que um centro de poder papal (Roma e Avignon), com pontfices em
conflito apoiados por diferentes potncias deu uma ajuda a esta cidade-Estado que
cultivava teimosamente a sua independncia. De referir tambm a intermitente Guerra
dos Cem Anos (1337-1453) que consumia as candidatas potenciais de ento ao
hegemonismo da Europa continental, a saber Inglaterra e Frana10
.
No demais sublinhar que o conhecimento acumulado e as inovaes geopolticas
surgidas com a expanso das repblicas martimas mediterrnicas seriam aprimoradas, a
uma escala global, pelos portugueses.
1.2 O papel de Portugal o pioneiro da globalizao
O facto geopoltico que abriria, nas dcadas seguintes, a janela de oportunidade aos
portugueses, ocorreria bem longe do Mediterrneo Oceano ndico considerado o
centro econmico do mundo.
Ainda o Infante D. Henrique no fazia jus ao seu cognome de Navegador, j os
chineses da dinastia Ming haviam lanado, a partir de 1405, sete expedies em
direco ao ndico, muito para alm da sua tradicional esfera de influncia ocenica. Foi
seu Almirante-Mor era Zheng He (1371-1433), a cujo nome ficou associado a
navegaes de longa distncia anteriores s portuguesas. Aquele movimento de
expedies era o que chamaramos hoje de projeco de poder, sublinhou Edward
Dreyer na sua obra Zheng He11
. O argumento utilizado era um cruzamento hbil de
diplomacia e demonstrao do seu poder naval, sem ser necessrio exerc-lo, a no ser
excepcionalmente: a sua armada era suficientemente intimidante e raramente
necessitava de combater de facto, mas estar preparada para o fazer era a sua misso
primria, diz Dreyer.
As navegaes chinesas acabariam abruptamente em 1433. A expanso foi travada
por um movimento reaccionrio da burocracia de Beijing e ocorreu no meio de uma
10
RODRIGUES & DEVEZAS, 2009: 53-59 11
DREYER, 2007: 3
-
10
crise de hiperinflao, com o colapso do papel-moeda chins to generosamente
espalhado pela sia. Este recuo deixaria a porta aberta para os navegadores que, a
seguir, chegassem ao ndico12
.
Assim, Portugal aproveitou uma janela de oportunidade nica no incio de
Quatrocentos, pois a China, ento a maior economia do mundo, recuou no seu projecto
de expanso ocenica. As Repblicas Italianas (nomeadamente Veneza, ento potncia
hegemnica) e a Catalunha no dispunham de estratgias ou de inovaes para irem
alm do seu espao tradicional de projeco de poder, que era o Mediterrneo. E as
potencias regionais e os poderes locais, que dominavam os checkpoints e as rotas de
commodaties de alto valor em frica, no prximo e Mdio Oriente e no ndico, no
dispunham de poder naval para enfrentar um intruso expansionista.
Alavancado o mito do Preste Joo, a elite portuguesa de Quatrocentos, em
particular os dois irmos infantes Henrique o Navegador e Pedro o Cosmopolita
e o monarca D. Joo II (considerado um Prncipe exemplar do Renascimento)
idealizaram uma estratgia tenaz de cerco pelas traseiras ao elo mais fraco da poca: o
arco muulmano fragmentado, que dominava as rotas de commodities at Alexandria,
principal porto do Mediterrneo, agora nas mos dos mamelucos e com quem Veneza
negociava. Esta estratgia portuguesa foi evolutiva e de geometria varivel: ora
procurando vias pela costa e rios de frica Ocidental ao encontro do potencial aliado
Preste Joo e do estratgico Nilo, ora recorrendo ao uso de espionagem e intelligence,
at procura de um rota martima alternativa para uma das fontes de especiarias (a
ndia).
A procura do Preste Joo pelos navegadores portugueses foi infrutfera durante
longas dcadas. Apenas entre 1508 e 1514, se realizaram os primeiros encontros oficiais
entre as cortes etope e lisboeta. Entretanto, dois caminhos se abriram, dois ciclos
sucessivos de uma nova especializao econmica portuguesa internacional, onde
entrou o ouro, o ignbil trfico de escravos, e as especiarias. Esta nova especializao
mudou o padro tradicional da economia do pas e foi responsvel por uma revoluo
no comrcio internacional.
12
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 60-61
-
11
O sucesso no estabelecimento da nova rota martima para a ndia deveu-se tanto a
inovaes tcnicas e cientficas (como a caravela e a nova cartografia), como gesto
do conhecimento global da poca (o centro de aco do Infante Henrique e o war room
de D. Joo II), e tambm a inovaes estratgicas para a projeco de poder (rede das
primeiras feitorias e fortificaes, de plataformas ocenicas e de novas cidades, e de um
modelo de colonizao) e ainda jurdicas (estabelecimento da doutrina do Mare
Clausum e assinatura dos primeiros tratados de diviso do mundo em zonas de
influncia). Foi este conjunto de inovaes que permitiu o surgimento de um novo e
longo ciclo geopoltico e substituir Veneza na liderana mundial13
.
Portugal criou, portanto, um novo tipo de imprio o imprio ocenico em rede
baseado na mobilidade e poder naval, pois viabilizou o domnio de uma vasta rea do
planeta e uma forma de comrcio verdadeiramente internacional. Este network lanou as
bases para a criao da aldeia global, fenmeno hoje sobejamente conhecido como
globalizao.
Os portugueses introduziram o uso sistemtico do conhecimento cientfico como
um activo indispensvel para alcanar objectivos polticos geoestratgicos. Tal facto
gerou os alicerces do Renascimento cientfico europeu, e transformou radicalmente a
viso do mundo como um planeta composto por massas continentais banhadas por um
conjunto de oceanos interligados. Foi graas expanso martima portuguesa que surgiu
a concepo de um globo terrestre e uma nova cartografia14
.
Apesar das fortes razes empricas da expanso portuguesa, do carcter pragmtico
e do forte improviso, os lderes de Quatrocentos e de Quinhentos desenvolveram a
gesto de conhecimento de forma eficiente. Este foi o capital intelectual que afirmou
um esplio singular que destacou Portugal, elevando-o escala mundial. So exemplos
deste perodo os primeiros centros de aco de expanso martima, uma vaga de
publicaes cientficas originais, a revoluo na cartografia e na cincia da construo
naval e uma evoluo da arte militar.
A construo da hegemonia portuguesa foi, claramente, um processo evolutivo de
aprendizagem que abarcou vrias geraes. Isto foi sucedendo desde a poca inicial dos
infantes D. Henrique e D. Pedro com a chegada Costa da Mina e linha do Equador,
13
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 175-176 14
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 184-185
-
12
mais tarde com a passagem do Cabo da Boa Esperana, at chegada ndia, Brasil,
China e Japo.
Concluda a chegada ndia (1498), j no tempo do rei D. Manuel I, a estratgia de
projeco mundial foi tripla:
Afirmao de um poder naval sem contestao mundial no Atlntico e
ndico;
Concluso da maior rede mundial de checkpoints existentes at ento;
Campanha de marketing internacional junto do papado (poder
transnacional reconhecido pelos europeus).
Portugal caiu num dilema entre a focalizao num espao controlvel do ndico
(ligado rota das especiarias) e a tentao de uma extenso rpida, incluindo um
projecto imperial universal, embebido numa ideologia cruzadista e de expanso
messinica.
A capacidade inovadora dos portugueses foi de tal forma abrangente que se pode
afirmar que nos sculos XV e XVI Portugal inovou na arte de inovar. Isto provocou
uma ruptura tectnica na histria do mundo e no foi um mero acidente, relegado para
segundo plano por muitos historiadores e analistas face ao mediatismo criado em torno
das viagens de Colombo Amrica Central15
.
Segundo Daniel Boorstin16
() como empreendimento organizado e de longo
prazo, a conquista dos Portugueses foi a mais moderna, mais revolucionria, do que as
largamente celebradas exploraes de Colombo (...).
15
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 331 16
BOORSTIN, 1986: 83 Daniel Boorstin faleceu em 2004. Estudou em Oxford, Harvard e Yale, foi autor de 20 livros e
bibliotecrio do Congresso norte-americano de 1975 a 1987. Foi director do Museu Nacional de Histria
e Tecnologia e da Smithsonian Institution, entidades norte-americanas. A Trilogia sobre a Histria
Mundial que escreveu ficou clebre. E nela incluiu Os Descobridores. Foi um dos acadmicos que
destacou a originalidade portuguesa de Quatrocentos e Quinhentos.
-
13
1.3 Siglo de oro espanhol
O sculo de ouro foi o apogeu da cultura espanhola desde o Renascimento do
sculo XV at ao perodo Barroco do sculo XVII. Marcado por acontecimentos-chave,
abrangeu o perodo desde a publicao da gramtica Castellana de Nebrija em 1492 at
a morte de Caldern de la Barca em 1681.
Nos finais do sculo XVIII j se havia popularizado a expresso Sculo de Ouro,
com a qual Lope de Vega aludia a si prprio e que suscitava a admirao de Don
Quixote de la Mancha no seu famoso discurso sobre a Idade de Ouro.
Com a unio dinstica, os Reis Catlicos, Fernando e Isabel, delinearam um Estado
politicamente forte que foi consolidado posteriormente, cujos xitos foram invejados
por alguns intelectuais contemporneos, como por exemplo o italiano Nicolau
Maquiavel. Porm, esse Estado politicamente forte esteve ideologicamente dominado
pela inquisio eclesistica. Os judeus que no se cristianizaram foram expulsos em
1492 e dispersaram-se, fundando colnias hispnicas pela Europa, sia e Norte de
frica. A cultivaram a sua lngua e escreveram livros em castelhano, emergindo figuras
notveis como o economista e escritor Jos Penso de La Vega, Miguel de Barrios, Juan
de Prado, Isaac Cardoso, Abraham Zacuto, Isaac Orobio e Manuel de Pina. Em Janeiro
de 1492 Castela conquista o bastio mouro de Granada, finalizando a etapa poltica
muulmana peninsular, ainda que uma minoria mourisca a continuasse a habitar, mais
ou menos tolerada, at ao reinado de Felipe III.
Em Outubro desse mesmo ano, Cristvo Colombo chega Amrica. A chegada s
ndias por ocidente foi considerado, pelo historiador Pierre Vilar17
, o gesto mais
extraordinrio da histria da Humanidade. Ainda nesse ano foi celebrado o Tratado de
Tordesilhas entre D. Joo II e os Reis Catlicos. Como o nome indica, este Tratado foi
assinado na povoao castelhana de Tordesilhas, a 7 de Junho de 1494, celebrado entre
o Reino de Portugal e o Reino da Espanha para dividir as terras "descobertas e por
descobrir". Este tratado surgiu na sequncia da contestao portuguesa s pretenses da
Coroa espanhola resultantes da viagem de Cristvo Colombo, que ano e meio antes
17
Pierre Vilar foi um historiador francs. Est considerado uma das mximas autoridades no estudo da
Histria de Espanha, tanto no perodo do Antigo Regime como na Idade Contempornea.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Renascimentohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Barrocohttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Nebrija&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Calder%C3%B3n_de_la_Barcahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Don_Quixotehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Don_Quixotehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Reis_cat%C3%B3licoshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolau_Maquiavelhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolau_Maquiavelhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Inquisi%C3%A7%C3%A3ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1492http://pt.wikipedia.org/wiki/Europahttp://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81siahttp://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81fricahttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Jos%C3%A9_Penso_de_La_Vega&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Miguel_de_Barrios&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Juan_de_Prado&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Juan_de_Prado&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Isaac_Cardoso&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Abraham_Zacuto&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Isaac_Orobio&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Manuel_de_Pina&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Filipe_III_de_Espanhahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Crist%C3%B3v%C3%A3o_Colombohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Am%C3%A9ricahttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pierre_Vilar&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Tordesilhashttp://pt.wikipedia.org/wiki/7_de_Junhohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1494http://pt.wikipedia.org/wiki/Reino_de_Portugalhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Espanhahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Crist%C3%B3v%C3%A3o_Colombohttp://pt.wikilingue.com/es/Historiadorhttp://pt.wikilingue.com/es/Hist%C3%B3ria_de_Espanhahttp://pt.wikilingue.com/es/Antigo_Regimehttp://pt.wikilingue.com/es/Idade_Contempor%C3%A2nea -
14
chegara ao chamado Novo Mundo, reclamando-o oficialmente para Isabel a Catlica. O
tratado foi ratificado pela Espanha a 2 de Julho e por Portugal a 5 de Setembro de 1494.
Durante o apogeu cultural e econmico desta poca, Espanha alcanou prestgio
internacional e influenciou culturalmente a Europa. Tudo quanto provinha de Espanha
foi amide imitado, e divulgou-se a aprendizagem e estudo do castelhano.
As reas culturais mais cultivadas foram a literatura, as artes plsticas, a msica, e a
arquitectura. O saber foi-se acumulando e disseminado pelas prestigiadas universidades
de Salamanca e Alcal de Henares.
As cidades mais importantes foram Sevilha, por receber as riquezas coloniais e dos
comerciantes e banqueiros europeus, Madrid, como sede da corte, e ainda as cidades de
Toledo, Valncia e Saragoa.
Com a anexao dinstica e a formao da monarquia dual ibrica, sob a coroa dos
Habsburgo, a dinastia dos Felipes tenta criar o maior imprio global no final do sculo
XVI e primeira metade do sculo XVII18
.
Com o nascimento do mito do El Dorado (um suposto rei de uma regio aurfera,
inventado pelos nativos colombianos), em 1538 acelerou-se a corrida aos metais
preciosos da Amrica pelos conquistadores espanhis. Em 1547, o famoso mineiro de
Potosi, nos Andes, comeava a sua explorao intensiva de prata e, em 1560, a inveno
de um novo mtodo de refinao com mercrio, vindo das minas espanholas, levou ao
disparo do negcio superando a produo de ouro.
O pico da importao de prata para Espanha ocorre no quinqunio de 1591-159519
.
No Oriente, os castelhanos estabeleceram-se em Cebu desde 1565 e dois Navios da
Armada Miguel Lopez de Legazpi conseguiram estabelecer uma nova rota transpacfica
mais a norte para o Mxico. Em 1571 ocupavam a baa de Manila e em 1574
exploravam as ilhas Bornu e a Nova Guin. A carreira regular entre o Mxico e as
Filipinas, entre Acapulco e Manila, pretendeu pr em xeque a carreira da ndia
portuguesa20
.
Felipe II sofreu, em larga medida, do messianismo de seu av portugus D. Manuel
I e viu em seu redor desenvolver-se uma retrica imperialista e universalista herdada de
seu pai Carlos V. O poeta-soldado Hernando de Acua anunciara, num poema dirigido a
18
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 358 19
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 348-349 20
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 349
http://pt.wikipedia.org/wiki/Novo_Mundohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Isabel_I_de_Castelahttp://pt.wikipedia.org/wiki/2_de_Julhohttp://pt.wikipedia.org/wiki/5_de_Setembrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Espanhahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Literaturahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Artes_pl%C3%A1sticashttp://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Arquiteturahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Salamancahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Alcal%C3%A1_de_Henareshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Sevilhahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Madridhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Toledohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Val%C3%AAncia_(Espanha)http://pt.wikipedia.org/wiki/Sarago%C3%A7a -
15
Carlos V, que estava prximo o dia em que se realizaria a mxima universal: um
monarca, um imprio e uma espada.
Espanha atingia, ento, o auge de seu Siglo de Oro, com um imprio onde el Sol
no se pona, desde o Virreinato de Nueva Espaa (Amrica Norte e Central) at s
Filipinas, o que levava os estrategos da Corte dos Felipes a sonhar com uma monarquia
mundial. Mais tarde, o aristocrata andaluz Gaspar Felipe de Gzman, o famoso Conde-
Duque de Olivares, adoptando uma expresso de Gil Vicente, afirmou Dios es espaol
y est de parte de la nacin estos dias (Deus espanhol e faz parte da nao nos dias de
hoje).
Ainda na vigncia do reinado de Felipe II (1556-1598), so de salientar os
acontecimentos que iriam dar incio ao processo de decadncia deste siglo:
Incio dos ataques sistemticos dos corsrios ingleses s possesses
espanholas das Amricas;
O desastre da Grande y Felicssima Armada (mais conhecida como
Invencvel Armada), que partira de Lisboa em 1588 (levando boa parte da
armada portuguesa, que no regressou) para invadir e subjugar a Inglaterra;
A derrota frente aos ingleses na batalha naval do estreito de Gibraltar em
159021
.
Depois da morte de Felipe II, uma atmosfera de desengao, de desiluso nacional,
apoderou-se de Espanha segundo Elliot, a obra imortal El Inginioso Hidalog Don
Quixote de La Mancha (1605 e 1614), de Miguel de Cervantes Saavedra, ,
provavelmente, o expoente dessa poca de declnio estratgico que se iria estender pelo
reinado do filho e neto de Felipe II22
.
Na realidade, o Siglo de Oro espanhol durou menos de sessenta anos. A decadncia
comeou na aclamao de Felipe II, em 1581, como rei portugus nas Cortes de Tomar
e termina nas dcadas de 1630 e 1640 com Felipe IV (III em Portugal). Este ltimo,
coroado aos dezasseis anos de idade, entregou o governo do imprio ao Conde-Duque
de Olivares. Durante o vintnio compreendido entre 1623 e 1643, o Conde-Duque de
Olivares que exercer o controlo efectivo sobre o Estado espanhol. A notria rivalidade
com o cardeal de Richelieu (Frana) arrastou a Espanha para a Guerra dos Trinta Anos,
e a diversos conflitos paralelos com a Itlia e com os Pases Baixos. O desgaste causado
21
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 358-360 22
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 373
http://pt.wikipedia.org/wiki/Estadohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Cardeal_de_Richelieuhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_dos_Trinta_Anoshttp://pt.wikipedia.org/wiki/It%C3%A1liahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Pa%C3%ADses_Baixos -
16
pelos vrios conflitos, o declnio da indstria e do comrcio devido ao esgotamento dos
recursos das colnias espanholas, e a restaurao da coroa portuguesa (em 1640),
desacreditaram a sua gesto. Destitudo do cargo, exilou-se no norte de Espanha e
passou seus ltimos anos submetido s investigaes da Inquisio, at seu falecimento,
em 1645.
Sucedeu-se ainda um quadro de desaires no final da Guerra dos Trinta Anos (1618-
1648) de que passo a citar os mais importantes:
As derrotas infligidas na batalha naval ao largo de Downs no canal da
Mancha; Esta derrota naval considerada, pelos prprios estrategos espanhis,
como o momento de perda da hegemonia naval;
Em 1639, a infligida pelos holandeses comandados por Maarten Tromp;
Em 1643, em Rocroi, derrotados pelos franceses;
A reconquista da Independncia dos portugueses em 1640;
A revolta da Catalunha, que se converte num protectorado francs;
A derrota de Lens, em 1648, de novo s mos dos franceses.
1.4 O ciclo holands e a hegemonia inglesa
Se Portugal de Quinhentos foi o pioneiro do verdadeiro comrcio internacional,
foram os hegemonistas seguintes, holandeses e ingleses, que souberam inovar para dele
tirar proveito efectivo.
Alguns historiadores desenharam esta imagem sugestiva o papel dos portugueses
foi, ento, o de lanarem ces para espantarem a caa, que depois foi apanhada por
outros23
.
No foi por acaso que os holandeses ficaram conhecidos no sculo XVII como os
carreteiros do mar, com uma frota que era o dobro da de Inglaterra e Frana juntas24
.
Lanaram-se ao mar e tornaram-se os transportadores das mercadorias mundiais. Os
23
BOXER, 2001: 32 Imagem atribuda por Charles R. Boxer ao capito holands Willem Bosman. 24
RODRIGUES, 1997: 280 (volume I)
O contraste, no perodo de 1600-1700, foi brutal: a frota comercial portuguesa baixou de uma mdia de
700 navios (no perodo de Quinhentos) para quase metade e a holandesa disparou de menos de 100 para
1770, contra 811 ingleses e 155 franceses.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ind%C3%BAstriahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Com%C3%A9rciohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Restaura%C3%A7%C3%A3o_da_Independ%C3%AAnciahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Inquisi%C3%A7%C3%A3o -
17
barcos holandeses iam a toda a parte levando mercadoria de todo o mundo, a todo o
lugar, dizia Leo Huberman25
.
Aos holandeses e ingleses caberia inovarem no empreendorismo capitalista,
justamente onde falhou o capitalismo monrquico portugus, o que gerou a crnica
desvantagem competitiva, que marcaria a evoluo do comrcio a partir dos comeos do
sculo XVII.
A esse conjunto de inovaes anglo-holandesas, entre 1600 e 1700, poderemos
chamar de revoluo de softpower mais poderoso do que o militarismo religioso
apelidado de dilatao da f que os portugueses e espanhis pretenderam usar como
arma ideolgica de consolidao das Descobertas26
.
O primeiro aspecto inovador do softpower da potncia emergente foi jurdico27
. A
doutrina do Mare Clausum, defendida e aplicada pelos portugueses, foi contestada. O
holands Hugo Grotius formulou em De Jure Pradae28
(1604) e Mare Liberum (1609),
a ideia de que haveria um direito natural de navegao livre no mar alto. O oceano seria
um bem pblico comum, onde no se aplicavam os direitos de conquista nem a lei
consuetudinria. Em virtude deste direito (de mar livre), o comrcio est aberto a toda
a gente, afirma Grotius, que termina a sua obra Mare Liberum dizendo que preciso
no recuar perante a guerra, se os portugueses mantiverem a sua doutrina do Mare
Clausum. Grotius respondia tambm a uma deciso de James I de Inglaterra que, no
incio de 1609, decretara a obrigatoriedade de licenas nos mares, em redor das costas
inglesas, o que prejudicou seriamente os holandeses.
O segundo aspecto foi poltico-comercial. Foram, por sua vez, os ingleses que
criaram um novo tipo de companhia trading, baseada numa sociedade por aces, em
que a prpria rainha da altura, Elizabeth I, participava como accionista, e sem a
dependncia do circuito dos banqueiros alemes e italianos. A primeira dessas
companhias, em finais de 1600, tinha o estranho nome de Governador e Companhia
dos Aventurosos Mercadores para a descoberta de regies, domnios, ilhas e lugares
desconhecidos e contava, em Londres, com 240 accionistas que investiram 25 libras
25
HUBERMAN, 1970: 45 26
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 397 27
O debate entre o Mare Clausum e o Mare Liberum est muito bem documentado no livro de Wilhelm
Grewe intitulado The Epochs of International Law, republicado pela editora Walter de Gruyer, em 2000,
Berlim e Nova York. 28
Grotius refere nesta obra supracitada a captura em Malaca de um barco portugus por um navio da
companhia holandesa VOC.
-
18
cada um (na poca uma soma de certa importncia29
). Esta deu origem, mais tarde, ao
aparecimento da famosa Companhia Inglesa das ndias Orientais Honourable East India
Company. Em 1602 foi a vez de os holandeses criarem a Companhia das Indias
Orientais, a conhecida VOC (acrnimo de Verenidge Oost-indische Compagnie), que
agrupou nove companhias por aces, depois do ensaio com a inicial Compagnie Van
Verre (Companhia das Terras Longnquas), criadas em 1594.
Estas companhias no eram meramente comerciais, eram bem mais do que isso.
Funcionavam como uma ferramenta poltica multifuncional, pois no s criavam a
infra-estrutura para o comrcio internacional, como tambm serviam de arma poltico-
ideolgica (exercendo softpower), coerciva (cobrando impostos) e militar (aplicando o
hardpower)30
. Por alguns so consideradas exemplos de actores no estaduais, com
dimenso multinacional, a quem os monarcas atribuam poderes soberanos nas regies
de expanso, ao contrrio dos ibricos que exerciam o poder ultramarino atravs de
vice-reis. Posteriormente, os franceses copiaram o modelo anglo-holands na sua
projeco nas Amricas e na ndia, mas com menos sucesso devido sua inferioridade
na projeco ocenica.
Em 1609, os holandeses fundaram o Amesterdamsche Wisselbank (Banco de
Amesterdo), sobre o qual Adam Smith escreveu vrios pargrafos na sua obra mais
clebre31
e, em 1694, surgiu o Bank of England32
.
De salientar ainda a mudana no exerccio de hardpower nos mares. um aspecto a
que muitos historiadores designaram revoluo militar ocorrida ao longo da primeira
metade do sculo XVII, visto que os ingleses e holandeses inovaram em termos de
velocidade, flexibilidade (aperfeioamento da capacidade de bolinar) e posicionamento
da artilharia a bordo dos navios33
.
29
HUBERMAM, ibidem: nt 12 30
HUTTON, 2006: 70 31
SMITH, 1776: livro IV, captulo 3, parte I 32
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 398-400 33
RODRIGUES & DEVEZAS, ibidem: 402
-
19
1.5 A Burguesia e a Revoluo Industrial
O incremento do comrcio martimo permitiu que os produtos do Oriente
chegassem Europa e vice-versa. Este comrcio, apesar do risco implcito nas viagens,
era altamente rentvel (bastava uma caravela chegar do Oriente com especiarias para
cobrir os custos totais da frota).
As transaces comerciais realizadas pelos europeus, atravs das suas rotas
martimas, permitiram o enriquecimento das classes sociais vigentes e contriburam
ainda, em grande escala, para o aparecimento de uma nova classe social endinheirada
a Burguesia.
Os burgueses eram os habitantes dos burgos, que eram pequenas cidades
protegidas por muros. Eram gentes de elevado estatuto econmico, embora de baixo
nvel cultural e social. Por isso se compreende, luz da poca, que tenham sido
ostracizados pela nobreza.
Com o mundo e o comrcio ligado em rede mercado global a procura mundial
disparou e, consequentemente, tornou-se mais premente aumentar a oferta.
O negcio martimo, indissocivel da burguesia, favoreceu a acumulao de
capitais na Europa. Posteriormente, esta acumulao de capital serviu de suporte
financeiro Revoluo Industrial.
A Revoluo Industrial consistiu num conjunto de mudanas tecnolgicas34
com
profundo impacto no processo produtivo que se reflectiu no desenvolvimento
econmico e social na Europa. A era industrial provocou uma ruptura com o passado.
Foi iniciada em Inglaterra em meados do sculo XVIII e rapidamente se expandiu a
partir do sculo XIX.
Entre as novas aplicaes tecnolgicas saliento a importncia da aplicao do
motor a vapor em navios, que veio encurtar a distncia entre os portos e,
simultaneamente, aumentar a capacidade de circulao de pessoas e mercadorias. Este
momento marcou o declnio do ciclo de navegao comercial vela.
A Revoluo Industrial o ponto culminante de uma evoluo tecnolgica,
econmica e social, que se vinha processando na Europa desde a Idade Mdia, com
34
James Watt, em 1765, introduz na Gr-Bretanha o condensador na mquina de Newcomen, componente
que aumenta, consideravelmente, a eficincia da mquina a vapor.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Burgohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Cidadehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Murohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Tecnologiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Produ%C3%A7%C3%A3ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Economiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedadehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Inglaterrahttp://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_XVIIIhttp://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_XIXhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Europahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Idade_M%C3%A9dia -
20
maior nfase nos pases onde a Reforma protestante tinha conseguido destronar a
influncia da Igreja Catlica. Nos pases fiis ao catolicismo, a Revoluo Industrial
eclodiu, em geral, mais tarde.
O sculo XIX, no plano das relaes internacionais, foi marcado pela hegemonia
mundial britnica de expanso colonialista e pelo aparecimento das primeiras lutas e
conquistas dos trabalhadores. O trono britnico foi ocupado pela rainha Vitria (1837-
1901), razo pela qual, esse perodo denominado por Era Vitoriana. No final deste
sculo, a busca de novas regies, para colonizar e descarregar os produtos (maciamente
produzidos pela revoluo industrial), levou a uma acirrada disputa entre as potncias
industrializadas, causando diversos conflitos e um crescente esprito armamentista que
culminou, mais tarde, na ecloso da Primeira Guerra Mundial (1914).
Statue of Prince Henry the Navigator Belgrave Square London35
35
Esttua em homenagem ao Infante D. Henrique, Belgrave Square, em Londres
http://pt.wikipedia.org/wiki/Reforma_Protestantehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_Cat%C3%B3licahttp://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_XIXhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Rela%C3%A7%C3%B5es_Internacionaishttp://pt.wikipedia.org/wiki/Vit%C3%B3ria_do_Reino_Unidohttp://pt.wikipedia.org/wiki/1837http://pt.wikipedia.org/wiki/1901http://pt.wikipedia.org/wiki/Era_Vitorianahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Primeira_Guerra_Mundialhttp://pt.wikipedia.org/wiki/1914 -
21
Cap. II O Livro Verde da Poltica Martima Integrada Europeia
2.1 Fundamentos da Poltica Martima Integrada Europeia
Partimos da definio de fundamento: o que d consistncia e segurana, o que
d coeso s partes do todo que ele mesmo estrutura e sustenta36
.
No captulo precedente, dedicado a um breve enquadramento histrico, destaquei as
principais naes europeias que contriburam fortemente para identidade martima da
Europa. Facto que hoje em dia, em pleno sculo XXI, inconcebvel olhar para
Europa e imagin-la sem mar, ou negar a sua importncia no quotidiano dos europeus.
De referir que na Unio Europeia a 27, apenas 5 Estados-membros no so pases
costeiros, o que demonstra, desde logo, a importncia da temtica martima no contexto
europeu. Este , sem dvida, um dos desafios que a Europa enfrenta e que passo a
apresentar neste captulo dedicado ao Livro Verde da Poltica Martima Integrada
Europeia.
Qualquer cidado europeu se lembrar dos relatos das grandes viagens de
descobrimentos que revelaram aos nossos antepassados a vastido, a diversidade de
culturas e a riqueza de recursos do nosso planeta. O xito destas viagens, que na sua
maioria eram martimas, exigia quase sempre esprito de abertura a ideias novas e um
planeamento meticuloso, alm de extraordinria coragem e forte determinao. Graas a
elas, no s foram sendo desvendadas ao longo do tempo regies do mundo antes
desconhecidas, como tambm apareceram novas tecnologias, como por exemplo: o
astrolbio (instrumento naval usado para medir a altura dos astros acima da linha do
horizonte), o cronmetro martimo (destinado a calcular a longitude exacta) e a turbina a
vapor (que permitiu escapar tirania dos ventos dominantes).
A densidade populacional nas zonas do litoral europeu foi sempre elevada. No mar
encontraram um meio de subsistncia pescadores e marinheiros, mas tambm sade e
prazer, novos horizontes para sonhar e um rico reportrio de vocbulos e metforas
36
Enciclopdia Luso Brasileira, vol. 8: 1794
http://pt.wikipedia.org/wiki/Instrumentohttp://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%A1uticahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Astrohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Horizonte -
22
presentes tanto na literatura como no quotidiano. Fonte de romance, de unio, mas
tambm de separaes, perigos desconhecidos e sofrimento, o mar um desafio
permanente e suscita em ns uma vontade profunda de melhor o conhecer.
A Europa possui mais de 70.000 km de orla costeira, est rodeada por numerosas
ilhas, por quatro mares (Mediterrneo, Bltico, do Norte e Negro) e por dois oceanos
(Atlntico e rctico). O continente europeu uma pennsula com uma orla costeira de
milhares de quilmetros maior do que a de outras grandes massas continentais, como
os Estados Unidos ou a Federao da Rssia. Dada esta configurao geogrfica, mais
de dois teros das fronteiras da UE so de orla martima. E os espaos martimos sob
jurisdio dos Estados-Membros so mais vastos do que os seus espaos terrestres.
Graas s suas regies ultraperifricas, para alm do Oceano Atlntico, a Europa est
igualmente presente no Oceano ndico e no mar das Carabas. Os desafios colocados por
estas regies no plano martimo so numerosos e afectam a Unio Europeia no seu todo.
A Europa desde tempos imemoriais, essencialmente devido sua geografia, sempre
teve uma relao privilegiada com os oceanos, sendo estes determinantes no
desenvolvimento da sua cultura, identidade e histria.
Assim continua a ser hoje em dia. Num momento em que a Unio Europeia procura
veementemente revitalizar a economia, importante reconhecer o potencial econmico
da dimenso martima. Estima-se que 3% a 5% do produto interno bruto (PIB) europeu
gerado pelas indstrias e servios do sector martimo, sem contar com o valor de
matrias-primas como o petrleo, o gs ou o pescado. As regies martimas europeias
representam mais de 40% do PIB da Unio Europeia.
No obstante, os cidados europeus nem sempre esto bem conscientes da
importncia dos oceanos e mares na sua vida. Embora saibam que a gua um bem
crucial, podero desconhecer que provm dos oceanos sob a forma reciclada de chuva
ou de neve, por exemplo. Preocupam-se com as alteraes climticas, mas nem sempre
sabem at que ponto so moduladas pelos oceanos. Beneficiam da possibilidade de
comprar produtos baratos de todo o mundo, sem se aperceberem da complexidade da
rede logstica que o torna possvel37
.
37
COM (2006) 275 final, vol. II: 3
-
23
O desenvolvimento sustentvel, como se sabe, ocupa um lugar preponderante na
agenda de trabalhos da Unio Europeia. O desafio consiste em assegurar o reforo
mtuo do crescimento econmico, da coeso social e da proteco do ambiente.
Ora, a PMIE tem a oportunidade de aplicar aos oceanos o princpio do
desenvolvimento sustentvel. Para esse efeito, pode tirar partido dos trunfos que sempre
estiveram na base da supremacia no domnio martimo: conhecimento dos oceanos,
larga experincia e capacidade para enfrentar novos desafios, conjugados com um forte
empenho na proteco dos seus recursos38
.
A Europa depois de sculos de ligao aos mares e oceanos assume, a partir de
2007, a coordenao das polticas pblicas ligadas ao espao martimo e costeiro
europeu. Todavia, o objectivo de alcanar uma poltica martima mais integrada no
exclusivo da Europa, algo que tem vindo a ser implementado igualmente por pases de
outras regies do mundo, como a Austrlia, o Canad ou os Estados Unidos.
2.2 Potencialidades das principais actividades martimas da Unio Europeia
A Unio Europeia a primeira potncia martima mundial, especialmente no que
diz respeito ao transporte martimo, s tcnicas de construo naval, ao turismo costeiro,
energia offshore, incluindo as energias renovveis e servios associados. No futuro,
segundo um estudo do Irish Marine Institute39
, os sectores com maior potencial de
crescimento sero o sector dos cruzeiros e porturio, a aquicultura, as energias
renovveis, as telecomunicaes submarinas e a biotecnologia marinha.
O transporte martimo e os portos so essenciais para o comrcio internacional, pois
90% do comrcio externo da Unio Europeia e mais de 40% do seu comrcio interno
efectuado por via martima. A Unio Europeia, com 40% da frota mundial,
incontestavelmente o lder deste sector global. Anualmente, 3,5 mil milhes de
toneladas de mercadorias e 350 milhes de passageiros transitam pelos portos martimos
europeus. Cerca de 350.000 pessoas trabalham nos portos e nos servios associados,
38
COM (2006) 275 final, vol. II: 4 39
Para mais informaes sobre o Irsih Marine Institute: http://www.marine.ie
http://www.marine.ie/ -
24
que, no seu conjunto, geram um valor acrescentado de aproximadamente 20 mil milhes
de euros40
.
Com o aumento do volume do comrcio mundial e o desenvolvimento do
transporte martimo de curta distncia e das auto-estradas martimas, as perspectivas
para estes sectores so de crescimento contnuo. O transporte martimo um catalisador
para outros sectores, nomeadamente a construo naval e os equipamentos martimo-
porturios.
Os servios martimos associados como os seguros, a banca, a intermediao, a
classificao e a consultoria, so mais um domnio em que a Europa deve manter a sua
liderana.
Os oceanos e os mares geram igualmente receitas graas ao turismo. Estima-se que
o volume de negcios directo do sector do turismo martimo na Europa tenha sido de 72
mil milhes de euros em 2004. Os turistas que passam frias no litoral usufruem do mar,
da praia e da zona costeira de formas muito diversas. Muitos destinos tursticos devem a
sua popularidade proximidade do mar e dependem da qualidade ambiental deste. Para
a sustentabilidade do turismo em geral e, em particular, do ecoturismo, sector que se
encontra em rpida expanso , pois, crucial prever um elevado nvel de proteco das
zonas costeiras e do meio marinho. O turismo gera ainda trabalho para a indstria da
construo naval.
O sector europeu dos cruzeiros tambm se desenvolveu fortemente nos ltimos
anos, registando uma taxa de crescimento anual superior a 10%. Os navios de cruzeiro
so praticamente todos construdos na Europa. O turismo de cruzeiro contribui para o
desenvolvimento das zonas costeiras e insulares.
O sector da nutica de recreio registou igualmente um aumento constante nos
ltimos anos, prevendo-se que o seu crescimento anual na Unio Europeia seja de 5 a
6%41
. Nenhuma outra forma de lazer colectivo abrange um leque to grande de idades,
interesses e locais42
.
O mar desempenha um papel essencial na competitividade, no desenvolvimento
sustentvel e na segurana do aprovisionamento energtico, os quais constituem
40
Contributo da Organizao dos Portos Martimos Europeus (ESPO) para o Livro Verde. 41
Contributo da European Union Recreational Marine Industry Group (EURMIG) para o Livro Verde.
Este sector inclui, nomeadamente, a construo de embarcaes, a electrnica de ponta para fabrico de
motores e equipamentos martimos, o financiamento e a construo e explorao de infra-estruturas. 42
Contributo da European Boating Association (EBA) para o Livro Verde.
-
25
objectivos essenciais, identificados pela Comisso Europeia43
e pelos Chefes de Estado
e de Governo44
. O mar do Norte , depois da Rssia, dos Estados Unidos e da Arbia
Saudita, a quarta maior fonte de petrleo e de gs no mundo45
. Os mares em torno da
Europa desempenham tambm um importante papel no sector da energia, na medida em
que permitem o transporte, por um nmero crescente de navios-tanque, de uma grande
parte do petrleo e do gs consumidos na Europa.
Por outro lado, o vento, as correntes ocenicas, as ondas e mars representam uma
vasta fonte de energia inesgotvel. Convenientemente explorados, estes tipos de
energias poderiam assegurar uma importante parte do abastecimento de electricidade em
muitas zonas costeiras da Europa, e contribuir assim para o desenvolvimento econmico
e a criao de emprego, com carcter duradouro.
As empresas europeias desenvolvem know-how na rea das tecnologias marinhas,
no s no domnio da explorao de hidrocarbonetos no mar, como tambm nos dos
recursos marinhos renovveis, das actividades em guas profundas, da investigao
oceanogrfica, dos veculos e robs subaquticos, das obras martimas e da engenharia
costeira. Essas tecnologias so cada vez mais utilizadas e estimularo o crescimento do
sector europeu das tecnologias marinhas, especialmente nos mercados mundiais de
exportao.
Por fim, a Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a Agricultura
(FAO)46
indica que caber aquicultura satisfazer a nova procura mundial no mercado
de consumo de pescado. A dificuldade consiste em gerir este aumento de procura de
uma forma sustentvel e compatvel com o ambiente. A competio pelo espao pode
tambm constituir um importante problema em algumas zonas costeiras. A aquicultura
poder distanciar-se da costa o que exigir novos trabalhos de investigao e
desenvolvimento da tecnologia de cultura em jaulas offshore47
.
A Unio Europeia uma das principais potncias de pesca ao nvel mundial, e o
maior mercado de produtos transformados base de peixe. Embora o nmero de
pescadores na Unio Europeia tenha vindo a baixar ao longo dos anos, o sector das
43
COM (2006) 105 final 44
Concluses da Presidncia do Conselho Europeu de 23 e 24 de Maro de 2006. 45
Contributo da International Association of Oil and Gas Producers (OGP) para o Livro Verde. 46
O estado das pescas e da aquicultura no mundo, FAO 2004. 47
COM (2002) 511 final
-
26
pescas, no seu conjunto, emprega ainda cerca de 526.000 pessoas48
. So proporcionados
numerosos postos de trabalho, no s no sector da captura, como na indstria da
transformao, acondicionamento, transporte e comercializao, bem como nos
estaleiros, fbricas de artes de pesca, empresas de abastecimento e de manuteno. Estas
actividades tm uma importncia considervel no tecido econmico e social das zonas
pesqueiras. A transio gradual para pescarias mais sustentveis, prevista pela Unio
Europeia, e o aumento da procura de peixe enquanto alimento saudvel, conduzem a
uma maior estabilidade, rentabilidade e, inclusiv, crescimento econmico em certos
segmentos do sector das pescas49
.
Como verificamos, as actividades martimas ainda que dispersas ou dvidas por
sectores, so efectivamente importantes para o desenvolvimento econmico da Europa.
No entanto, sendo a Europa um continente proeminentemente martimo, questiono-
me porque que s a partir de 2006 surge uma inteno de abordar os assuntos
martimos como um todo e de forma integrada? A resposta complexa. Talvez seja o
reflexo de uma Europa tradicionalmente sectria, baseada nos interesses individuais dos
Estados-membros e com a dificuldade em falarem a uma s voz. Apesar de tardia a
PMIE pode ser uma referncia para a Europa, na forma como desenvolve e implementa
polticas axiolgicas e integradas, contribuindo simultaneamente para uma Europa de
direitos e com valores50
dando assim, a todos, uma melhor perspectiva de futuro.
48
Factos e nmeros sobre a Poltica Comum da Pesca (PCP), CE 2004. 49
COM (2006) 275 final, volume II: 7-9 50
A dignidade humana, a liberdade, a democracia, a igualdade, o Estado de Direito, o respeito pelos
direitos do Homem so os valores fundamentais da UE consagrados no Prembulo do Tratado de Lisboa.
So comuns a todos os EM e qualquer pas europeu que queira tornar-se membro da UE tem de os
respeitar. Defender estes valores, bem como a paz e o bem-estar dos povos da Unio so agora os
objectivos principais da UE. Estes objectivos gerais so complementados por objectivos mais especficos,
como a promoo da justia e da proteco sociais e a luta contra a excluso social e as discriminaes.
-
27
2.3 Livro Verde uma viso para os oceanos e os mares
() torna-se especialmente necessrio termos uma poltica martima abrangente,
orientada para o desenvolvimento de uma economia martima florescente e para a
plena explorao do potencial das actividades centradas no mar, e de uma forma
sustentvel para o ambiente. Esta poltica deve assentar na excelncia da investigao
cientfica, da tecnologia e da inovao martima. Cit. nos objectivos estratgicos da
Comisso Europeia para 2005-2009.
A Comisso Europeia, em Junho de 2006, apresentou um Livro Verde sobre os
diferentes aspectos de uma futura poltica martima comunitria. Esta obra realou a
identidade e a supremacia martimas da Europa que devem ser preservadas, num
perodo em que as presses sobre o ambiente comprometem a perenidade das
actividades martimas. A poltica martima deve, consequentemente, ter por objectivo a
formao de um sector martimo inovador, competitivo e respeitador do ambiente. Para
alm das actividades martimas, a abordagem proposta integra tambm a qualidade de
vida nas regies costeiras. O Livro Verde teve como objectivo lanar um debate sobre
uma futura poltica martima para a Unio Europeia, caracterizado por uma abordagem
holstica dos oceanos e dos mares.
Ele tornou claro que, num perodo em que os recursos esto ameaados por
presses fortes e pela crescente capacidade tecnolgica de os explorar, s uma atitude
de profundo respeito pelos oceanos e pelos mares nos permitir continuar a desfrutar
dos benefcios que eles nos oferecem. A reduo acelerada da biodiversidade marinha
devido, nomeadamente, poluio, ao impacto das alteraes climticas e sobrepesca
, desde j, um sinal de alarme inequvoco que no se pode ignorar.
Assim, o Livro Verde baseou-se nas polticas e iniciativas da UE existentes e
insere-se no contexto da Estratgia de Lisboa, procurando estabelecer o justo equilbrio
entre as dimenses econmica, social e ambiental.
Como tal, contribuiu largamente para que os europeus adquirissem uma nova
conscincia da grandeza do seu patrimnio martimo, da importncia dos oceanos e do
potencial dos oceanos para melhorar o bem-estar e aumentar as oportunidades
econmicas.
-
28
A Comisso Europeia postulou que a poltica martima comunitria deve alicerar-
se em dois pilares fundamentais.
Em primeiro lugar, deve estar ancorada na Estratgia de Lisboa, estimulando o
crescimento e a criao de mais e melhores empregos. O investimento permanente no
conhecimento e nas competncias um factor essencial para manter a competitividade e
garantir empregos de qualidade.
Em segundo lugar, deve manter e melhorar o estado do recurso em que se baseiam
todas as actividades martimas, ou seja, o oceano propriamente dito.
Embora a utilizao destes pilares como base para a nova poltica martima possa
parecer relativamente simples, h que no descurar duas caractersticas especficas do
meio marinho.
A primeira consiste na natureza global dos oceanos, que faz com que as relaes
entre pases sejam, ao mesmo tempo, complementares e concorrenciais. Para regular as
actividades martimas, no interesse do desenvolvimento sustentvel ao nvel mundial,
necessrio elaborar regras aplicveis universalmente. Contudo, cada parcela de oceano e
de mar singular e pode exigir as suas prprias regras e uma gesto mais especfica.
Esta aparente contradio ilustrativa do motivo pelo qual a natureza global dos
oceanos representa um to grande desafio para os decisores polticos.
O outro desafio que se oferece a uma boa governao martima, directamente
ligado ao aspecto anterior, prende-se com a multiplicidade dos intervenientes.
Numerosas so as polticas sectoriais que surgiram e que existem a todos os nveis de
poder: comunitrio, nacional, regional e local. Pode acontecer que intervenientes de
agncias e pases diferentes ou organizaes internacionais estejam melhor colocados
para adoptar as propostas de aco. Contudo, para que as decises sejam tomadas a um
nvel mais prximo dos interessados, cumprindo-se o princpio da subsidiariedade, s
devem ser desenvolvidas aces ao nvel da Unio Europeia, se tal conferir valor
acrescentado s actividades de outros51
.
51
COM (2006) 275 final, volume II: 5-6
-
29
2.4 reas-chave no Livro Verde
Do Livro Verde constam diversas reas-chave que passamos a analisar.
Meio marinho
O meio marinho enfrenta, nomeadamente, os seguintes problemas: diminuio
acelerada da biodiversidade (consequncias na realizao do potencial da
biotecnologia azul), explorao excessiva dos recursos (consequncias para a pesca),
alteraes climticas (consequncias para a pesca e para o turismo costeiro), poluio
com origem terrestre, acidificao da gua do mar e a poluio provocada pelas
descargas dos navios e os acidentes martimos (na falta de melhor segurana martima).
Para diminuir o impacto destes fenmenos no meio-ambiente marinho dever reforar-
se a legislao no domnio da segurana martima, introduzir-se a avaliao de riscos na
elaborao das polticas e aplicar novas tecnologias ao nvel do tratamento de guas de
lastro52
.
Investigao
A investigao essencial para se poder definir estratgicas e tomar decises com
conhecimento de causa. Todavia, os EM podem ir mais longe, coordenando os seus
programas de investigao nacionais, a fim de realizar uma investigao pan-europeia e
racionalizando meios. A cooperao entre investigadores e criadores de novas
tecnologias assume tambm especial importncia.
Inovao
A inovao pode ajudar a encontrar solues em domnios em franca mutao,
como o caso das energias e das alteraes climticas. As solues encontradas podem
tambm beneficiar pases terceiros, quando estes optarem por um desenvolvimento
sustentvel, e assim, podero constituir uma vantagem competitiva para estes. A energia
52
gua de lastro a gua do mar captada pelo navio para garantir a segurana operacional e estabilidade
do mesmo. Em geral, os tanques so preenchidos com maior ou menor quantidade de gua para aumentar
ou diminuir o calado dos navios durante as operaes porturias. A gua de lastro um risco pelo facto de
transportar espcies exticas dentro dos tanques dos navios. Os seres vivos introduzidos pela gua de
lastro podem variar entre organismos milimtricos at peixes com 30 centmetros. So inmeros os
registos de bioinvaso por meio da gua de lastro no mundo inteiro.
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81guahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Marhttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Portu%C3%A1rias&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/Navioshttp://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81guahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Bioinvas%C3%A3o -
30
elica, as turbinas movidas pelas correntes de mar e os recursos de gs e de petrleo
dos grandes fundos marinhos podem representar novas fontes de energia.
Mo-de-obra saber-fazer
As actividades martimas precisam de atrair pessoas altamente qualificadas. No
entanto, embora, no seu conjunto, o emprego no sector martimo europeu seja estvel53
,
o nmero de martimos europeus est a diminuir. Ou seja, apesar de diminuir o nmero
de trabalhadores no sector das pescas, o sector foi compensado por pujantes servios
martimos tais como turismo e transporte martimo.
O recrutamento, em nmero suficiente, de martimos e outros profissionais bem
formados e competentes essencial para garantir a sobrevivncia do sector martimo,
assim como para manter a vantagem concorrencial da Europa.
O ensino e a formao no domnio martimo, devem ter por objectivo conferir aos
potenciais candidatos as mais elevadas competncias, que possam abrir mltiplas
perspectivas profissionais.
A excelncia dos candidatos a emprego s ser garantida se se conseguir atrair para
o ensino e formao no domnio martimo os jovens mais capazes. nesse quadro que
importa lutar contra a imagem do sector. essencial oferecer aos martimos, homens e
mulheres, condies de vida e de trabalho adequadas, ao nvel das expectativas a que os
europeus se habituaram, com toda a legitimidade.
Formao de clusters54
O desenvolvimento de uma percepo comum das articulaes possveis entre os
diferentes sectores martimos permitir melhorar a imagem e aumentar a atractividade e
produtividade destes. Estes agrupamentos de empresas e de profissionais, que abrangem
todos os sectores de actividade, podem assumir diversas formas. Assim, no domnio
martimo preciso distinguir os clusters nacionais que servem frequentemente de
53
Ver o documento Employment, social and training aspects of maritime and fishing industries and
related sectors http://ec.europa.eu/maritimeaffairs/pdf/SEC(2006)_689%20_2.pdf 54
Remetendo em ingls para a noo de conjunto, o termo cluster designa um agrupamento de
empresas do mesmo sector, presentes na maior parte das vezes numa mesma bacia de emprego. Mais
precisamente, segundo Michael E. Porter, da Universidade de Harvard, um cluster uma concentrao
de empresas ligadas entre si, de fornecedores especializados, de prestadores de servios e de instituies
associadas (universidades, associaes comerciais, etc.).
http://ec.europa.eu/maritimeaffairs/pdf/SEC(2006)_689%20_2.pdf -
31
transmissores de opinio para certos ramos ou profisses martimas dos clusters
regionais. Estes ltimos consagram-se ao desenvolvimento da economia martima
atravs da inovao e da aproximao entre investigao, formao e a indstria55
.
Os clusters podem contribuir para estimular a competitividade de todo um sector ou
grupo de sectores. o que acontece se se partilhar conhecimentos, realizar projectos
comuns de investigao e inovao (desenvolvimento de produtos), unir esforos no
ensino e na formao, partilhar mtodos de organizao inovadores dentro de um grupo
de empresas (aquisio e distribuio em comum) ou estratgias de promoo comuns,
nomeadamente em matria de marketing e publicidade.
A explorao do potencial oferecido pela formao de clusters pertinente em
sectores com cadeias de abastecimento complexas, que envolvem produo e servios, e
tambm com um grande nmero de pequenas e mdias empresas. esse o caso da
construo naval. Na construo naval moderna, mais de 70% do navio acabado
resulta do trabalho de uma vasta rede de fornecedores de sistemas, equipamentos e
servios56
. possvel disseminar as boas prticas ligando estes sectores entre si e
transformando-os em redes de excelncia martima, que abranjam todos os sectores
martimos, incluindo o dos servios.
Qualidade de vida nas regies costeiras
O litoral europeu foi em tempos povoado por comunidades que viviam da pesca.
Com o desenvolvimento do transporte martimo local e internacional, foram-se
construindo portos e emergiram novas actividades nas periferias. A procura de