POLÍTICA DE PEDRO COSTA

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POLÍTICA DE PEDRO COSTA Jacques Rancière Como pensar a política dos filmes de Pedro Costa? Num primeiro nível, a resposta parece simples: os seus filmes têm aparentemente como objecto essencial uma situação que está no centro do que está em jogo, em termos políticos, no nosso presente: a sorte dos explor ados, daqueles qu e vi er am de lo nge, das antigas co lónias africanas, para trabalhar nos estaleiros de construção portugueses, que perderam a família, a saúde, por vezes a vida nesses estaleiros; aqueles que se amontoaram ontem nos bairros de lata suburbanos antes de serem expulsos para habitações novas, mais cl ar as, mais modernas, não necessar iamente mais habi veis. A este núcleo fundamental vêm juntar-se outros temas sensíveis: em Casa de Lava, a repressão salazarista que enviava os opositores para campos situados no mesmo sítio de onde partiam os africanos à procura de um trabalho na metrópole; a partir de Ossos, a vida dos jovens lisboetas que a droga e a deriva social enviaram para os mesmos bairros de lata, para aí partilharem a mesma vida. Uma situação social não chega, porém, para fazer uma arte política, como também nãochega uma evidente simpatia pelos explorados e pelos desamparados. Exige-se habitualmente que a i sso se acr escente um mod o d e r epr ese nta ção que tor ne ess a sit uaç ão int eli gív el enq uan to efeito de certas causas, e que a mostre como produzindo formas de consc iência e afectos que a modifiquem. Reclama-se que os procedimentos formais sejam governados pelo esclarecimento das causas e da dinâmica dos efeitos. É aqui que as coisas se complicam. Em nenhum momento a câmara de Pedro Costa faz o trajecto habitual que a desloca dos lugares da miséri apara os lugares onde os dominante s a produzem ou geram; em nenhum momento o poder  económico que explora e dest erra , ou o pode r admi nist rativo e policial que reprim e e desl oca as populações aparece nos seus filmes; em nenhum momento nada que se pareça com umaformulação política da situação ou um afecto de revolta se exprime pela boca das suas personagens . Dantes, alguns cineastas políticos , como Francesc o Rosi, davam-nos a ver a máquina que desterrava ou deslocava os pobres. Outros, como Jean-Marie Straub ainda hoje, tomam o pa r ti d o inv ers o, afas tan do a s ua câma rada“mis éri ado mun do”par a nos dar a ver ,num qua lqu er anfiteatro de verdura, evocador de grandezas antigas e de combates de libertação modernos,homens e mulheres do p ovo que enf ren tam a hi stó ri a e rei vi ndicam org ul hos ame nteo pr oje cto de um mundo just o. Nada di sso em Pedro Costa: nem inscrição do bairro de lata na paisagem do capitalismo em mutação, nem instauração de um palco apropriado à grandeza colectiva. Dir-se-ia que não se trata de uma escolha deliberada, mas da realidade de uma mutaçãosocial: imigrantes cabo-verdianos, brancos de classe social baixa e jovens marginais nãocomp õem nada que se assemelhe ao proletariad o, exp lorado e militante, que era o horizontede Rosi e continua a ser o de Straub. O seu modo de vida, mais do que de explorados, é deentregues a si próprios. Até os polícias estão ausentes do seu universo, tal como os comba-tentes da luta social. Os únicos habitantes do centro que vêm por vezes visitá-los são asenfermeiras:e, ainda assim, é uma fractura íntima que as leva a perderem-se ali, mais doque os cuidados a prestar às populações doentes. E os habitantes das Fontainhas vivem asua condiç ão de um modo que era condenado nos tempos brechtian os, como um destino,que eles discutem no máximo para saberem se foi o céu, a sua escolha ou a sua fraquezaque os submeteu a ele.

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8/3/2019 POLÍTICA DE PEDRO COSTA

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P O L Í T I C A D E P E D R O C O S T A

Jacques Rancière

Como pensar a política dos filmes de Pedro Costa? Num primeiro nível, a respostaparece simples: os seus filmes têm aparentemente como objecto essencial umasituação que está no centro do que está em jogo, em termos políticos, no nossopresente: a sorte dos explorados, daqueles que vieram de longe, das antigas colóniasafricanas, para trabalhar nos estaleiros de construção portugueses, que perderam a família,a saúde, por vezes a vida nesses estaleiros; aqueles que se amontoaram ontem nosbairros de lata suburbanos antes de serem expulsos para habitações novas, maisclaras, mais modernas, não necessariamente mais habitáveis. A este núcleofundamental vêm juntar-se outros temas sensíveis: em  Casa de Lava, a repressãosalazarista que enviava os opositores para campos situados no mesmo sítio de onde partiam osafricanos à procura de um trabalho na metrópole; a partir de Ossos, a vida dos jovens lisboetas quea droga e a deriva social enviaram para os mesmos bairros de lata, para aí partilharema mesma vida.

Uma situação social não chega, porém, para fazer uma arte política, como tambémnãochega uma evidente simpatia pelos explorados e pelos desamparados. Exige-se habitualmenteque a isso se acrescente um modo de representação que torne ess a situação inteligível enquanto efeito decertas causas, e que a mostre como produzindo formas de consciência e afectos quea modifiquem. Reclama-se que os procedimentos formais sejam governados peloesclarecimento das causas e da dinâmica dos efeitos. É aqui que as coisas se complicam. Emnenhum momento a câmara de Pedro Costa faz o trajecto habitual que a desloca dos lugares damisériapara os lugares onde os dominantes a produzem ou geram; em nenhum momento o poder económico que explora e desterra, ou o poder administrativo e policial que reprime e desloca aspopulações aparece nos seus filmes; em nenhum momento nada que se pareça com

umaformulação política da situação ou um afecto de revolta se exprime pela boca das suaspersonagens. Dantes, alguns cineastas políticos, como Francesco Rosi, davam-nos a ver a máquinaque desterrava ou deslocava os pobres. Outros, como Jean-Marie Straub ainda hoje, tomam o partidoinverso, afastando a sua câmara da “miséria do mundo” para nos dar a ver, num qualquer anfiteatro de verdura,evocador de grandezas antigas e de combates de libertação modernos,homens e mulheresdo povo que enfrentam a história e reivindicam orgulhosamente o projecto de um mundo justo. Nada disso emPedro Costa: nem inscrição do bairro de lata na paisagem do capitalismo em mutação, neminstauração de um palco apropriado à grandeza colectiva.

Dir-se-ia que não se trata de uma escolha deliberada, mas da realidade de uma

mutaçãosocial: imigrantes cabo-verdianos, brancos de classe social baixa e jovensmarginais já nãocompõem nada que se assemelhe ao proletariado, explorado emilitante, que era o horizontede Rosi e continua a ser o de Straub. O seu modo devida, mais do que de explorados, é deentregues a si próprios. Até os polícias estãoausentes do seu universo, tal como os comba-tentes da luta social. Os únicoshabitantes do centro que vêm por vezes visitá-los são asenfermeiras:e,ainda assim, é uma fractura íntima que as leva a perderem-se al i , maisdoque os cuidados a prestar às populações doentes. E os habitantes das Fontainhasvivem asua condição de um modo que era condenado nos tempos brechtianos, comoum destino,que eles discutem no máximo para saberem se foi o céu, a sua escolha oua sua fraquezaque os submeteu a ele.