Polémica Sobre El Secuestro Del Barroco

11
CONCEPÇÕES DE HISTÓRIA LITERÁRIA NAS POLÊMICAS ENTRE ANTONIO CANDIDO E HAROLDO DE CAMPOS CONCEPTS OF LITERARY HISTORY IN BETWEEN POLEMICS ANTONIO CANDIDO AND HAROLD DE CAMPOS Marcelo Fernando de Lima 1 Resumo Na segunda metade do século XX, a crítica literária brasileira foi dominada por duas formas de compreender a história literária. Uma delas, ligada ao crítico Antonio Candido, concebia a história literária como uma sucessão de obras ao longo do tempo, imbuída por um forte senso de construção de identidade nacional, centrada na produção; a outra tendência, elaborada pelo poeta e crítico Haroldo de Campos, entendia a história literária a partir da sua atualização feita na recepção. O objetivo desse artigo é descrever essas duas tendências e mostrar sua permanência no atual discurso crítico brasileiro. Palavras-chave: Literatura brasileira. Crítica. História literária. Cânone. Abstract In the second half of the 20 th century, Brazilian literary criticism was dominated by two ways of understanding literary history. One of them, linked to Antonio Candido, took history as a succession of literary works throughout the time, imbued with a strong sense of national identity construction, focusing on production; the other trend, established by the poet and critic Haroldo de Campos, understood the literary history as a product of reading response. The aim of this paper is to describe these two trends and to show their permanence in Brazilian criticism. Keywords: Brazilian Literature. Criticism. Literary History. Canon. Introdução Ao longo da segunda metade do século XX, duas formas de classificar a história literária foram dominantes no Brasil, manifestando-se tanto no meio acadêmico, quanto em instâncias de consagração menos especializadas, como o jornalismo cultural. Antagônicas, elas repercutem nos discursos críticos até hoje e ainda influenciam, inclusive, a visão de determinados agentes sobre a tradição literária brasileira. A primeira delas, influenciada pela Sociologia e pela História, busca entender a literatura como um sistema integrado, evolutivo e diacrônico; tem na construção da nacionalidade 1 Graduação em Comunicação Social – Jornalismo (1992, PUC-PR), Mestrado (1998) e Doutorado (2010) em Letras (UFPR). Professor adjunto da UTFPR-Curitiba. E-mail: [email protected]

description

Artículo sobre A. Candido y H. de C.

Transcript of Polémica Sobre El Secuestro Del Barroco

  • CONCEPES DE HISTRIA LITERRIA NAS POLMICAS ENTRE

    ANTONIO CANDIDO E HAROLDO DE CAMPOS

    CONCEPTS OF LITERARY HISTORY IN BETWEEN POLEMICS ANTONIO

    CANDIDO AND HAROLD DE CAMPOS

    Marcelo Fernando de Lima1

    Resumo Na segunda metade do sculo XX, a crtica literria brasileira foi dominada por duas formas de compreender a histria literria. Uma delas, ligada ao crtico Antonio Candido, concebia a histria literria como uma sucesso de obras ao longo do tempo, imbuda por um forte senso de construo de identidade nacional, centrada na produo; a outra tendncia, elaborada pelo poeta e crtico Haroldo de Campos, entendia a histria literria a partir da sua atualizao feita na recepo. O objetivo desse artigo descrever essas duas tendncias e mostrar sua permanncia no atual discurso crtico brasileiro. Palavras-chave: Literatura brasileira. Crtica. Histria literria. Cnone. Abstract In the second half of the 20th century, Brazilian literary criticism was dominated by two ways of understanding literary history. One of them, linked to Antonio Candido, took history as a succession of literary works throughout the time, imbued with a strong sense of national identity construction, focusing on production; the other trend, established by the poet and critic Haroldo de Campos, understood the literary history as a product of reading response. The aim of this paper is to describe these two trends and to show their permanence in Brazilian criticism. Keywords: Brazilian Literature. Criticism. Literary History. Canon.

    Introduo

    Ao longo da segunda metade do sculo XX, duas formas de classificar a

    histria literria foram dominantes no Brasil, manifestando-se tanto no meio acadmico,

    quanto em instncias de consagrao menos especializadas, como o jornalismo cultural.

    Antagnicas, elas repercutem nos discursos crticos at hoje e ainda influenciam,

    inclusive, a viso de determinados agentes sobre a tradio literria brasileira. A

    primeira delas, influenciada pela Sociologia e pela Histria, busca entender a literatura

    como um sistema integrado, evolutivo e diacrnico; tem na construo da nacionalidade

    1Graduao em Comunicao Social Jornalismo (1992, PUC-PR), Mestrado (1998) e Doutorado (2010) em Letras (UFPR). Professor adjunto da UTFPR-Curitiba. E-mail: [email protected]

  • e na autonomia do discurso literrio a sua maior referncia. A segunda forma,

    desenvolvida a partir de critrios estticos e parciais, v a histria da literatura de

    maneira sincrnica, a partir de recortes seletivos, levando em conta a recepo das obras

    por determinados grupos de leitores.

    O primeiro modo foi defendido, durante vrias dcadas, nos trabalhos do

    crtico Antonio Candido, desde a Formao de Literatura Brasileira, ttulo publicado

    originalmente em 1959. A segunda foi formulada pelo poeta e crtico Haroldo de

    Campos tambm a partir dos anos 1950. As discusses tericas e ideias de Campos,

    lanadas em artigos de jornal e ensaios em diversos livros durante quatro dcadas,

    confluem em O sequestro do Barroco na Formao de Literatura Brasileira (1989),

    obra em que ataca diretamente a concepo de Candido.

    Esse embate de teorias de um lado o vis sociolgico e a necessidade de

    entender a literatura como tradio e sucesso de obras, bem como instrumento de

    valorizao do nacional; de outro, a valorizao do esttico e de uma potica da

    inveno, desarticulada de qualquer inteno nacionalista foi um dos mais importantes

    da crtica brasileira no sculo XX. A disputa entre essas duas tendncias, tanto na

    universidade, como nas pginas dos suplementos, teve vrios desdobramentos nas

    ltimas dcadas.

    O objetivo deste artigo expor as principais diferenas entre as duas formas

    de encarar a histria literria no Brasil e procurar entender em que medida elas ainda

    influenciam a atual crtica brasileira.

    1 A histria como sistema

    Os dois volumes da Formao da Literatura Brasileira compreendem um

    perodo curto: do Arcadismo ao Romantismo, envolvendo a firmao do sistema

    literrio no Brasil, considerado do ponto de vista sociolgico. Diferente de outros livros

    que discutiam a histria literria at ento, o trabalho de Antonio Candido deu grande

    nfase s anlises de obras. Esse mtodo, embora no alterasse o cnone nacional,

    acrescentou elementos mais elaborados para a sua fixao.

    Influenciada por uma perspectiva de histria literria como elemento de

    autonomia e reflexo da vida poltica do pas, a obra estabelece o cnone a partir da

    relao com a construo da nacionalidade e da independncia quanto s matrizes

    europeias. A noo de dependncia cultural est presente desde o incio do texto;

  • Candido assinala que a literatura brasileira foi, em seu perodo de formao, um galho

    secundrio da literatura portuguesa, esta tambm secundria quanto s literaturas

    francesa e inglesa.

    A crtica dependncia acompanhou diversos escritos de Candido e de seus

    epgonos. No ensaio Literatura e subdesenvolvimento, que apareceu originalmente na

    revista Argumento, em 1973, o crtico destacava:

    As nossas literaturas latino-americanas, como tambm as da Amrica do Norte, so basicamente galhos das metropolitanas. E se afastarmos os melindres do orgulho nacional, veremos que, apesar da autonomia que foram adquirindo em relao a estas, ainda so em parte reflexas. No caso de pases de fala espanhola e portuguesa, o processo de autonomia constitui, numa boa parte, em transferir a dependncia, de modo que outras literaturas europeias no-metropolitanas, sobretudo a francesa, foram se tornando modelo a partir do sculo XIX, o que alis ocorreu tambm nas antigas metrpoles, intensamente afrancesadas (CANDIDO, 2000, p. 151).

    Na Formao, Candido estuda a literatura brasileira pela ptica da

    dependncia e da superao de suas fontes europeias. Ele entende, justamente por isso,

    que a histria literria brasileira s teria comeado efetivamente com o Arcadismo,

    perodo em que passaram a operar as condies essenciais para o funcionamento de um

    sistema literrio, com a presena: 1) de polo produtor, 2) um conjunto de leitores e 3)

    um sistema simblico compartilhado. Trata-se da relao de interdependncia autor-

    obra-pblico, na qual se pressupe a ideia marxista segundo a qual as condies

    materiais de uma sociedade (infraestrutura) determinam a sua produo cultural

    (superestrutura). Assim, a literatura brasileira s passou a existir efetivamente depois de

    as condies materiais mnimas terem sido construdas. Alm disso, a abordagem de

    Candido insiste na ideia de que a literatura brasileira est associada ao movimento de

    independncia, influenciado pela Revoluo Francesa, na segunda metade do sculo

    XVIII.

    Autores que desenvolveram suas obras anteriormente ao Arcadismo no so

    contemplados pela Formao de Candido, que entende a inexistncia de um sistema

    literrio local antes desse perodo. A questo mais polmica se deu em torno de

    Gregrio de Matos, que tem obtido destaque na crtica brasileira desde a segunda

    metade do sculo XX. Candido entende que a obra de Matos no faz parte de um

    sistema literrio nacional. O crtico afirma que,

  • [...] embora tenha permanecido na tradio local da Bahia, ele no existiu literariamente (em perspectiva histrica) at o Romantismo, quando foi redescoberto, sobretudo graas a Varnhagen; e s depois de 1882 e da edio de Vale Cabral pde ser devidamente avaliado. Antes disso, no influiu, no contribuiu para formar o nosso sistema literrio, e to obscuro permaneceu sob os seus manuscritos, que Barbosa Machado, o minucioso erudito da Biblioteca Lusitana (1741-1758), ignorava-o completamente [...] (CANDIDO, 1997, p. 24).

    2 Uma histria sincrnica

    A ausncia de Gregrio de Matos na histria literria de Candido foi o

    principal foco da crtica de Haroldo de Campos no ensaio O sequestro do Barroco na

    Formao da Literatura Brasileira, de 1989. Campos apresenta uma concepo de

    histria literria sincrnica, que leva em considerao as vrias leituras a que um

    determinado autor foi submetido, bem como sua influncia na literatura nacional.

    Prezando a recepo, Campos aproxima-se da noo de histria literria defendida pelo

    crtico Hans Robert Jauss, um dos fundadores da Esttica da Recepo.

    Para o terico alemo, a histria literria tradicional, influenciada pelo

    Positivismo, representa apenas uma idealizao da literatura em determinado perodo.

    Assim como a histria tradicional na modernidade tem como propsito a formao da

    identidade nacional, a histria literria torna o cnone submisso a critrios de

    nacionalidade e a esquemas evolutivos. A proposta de Jauss pensar uma nova histria

    literria, levando em considerao o polo da leitura, e no apenas o autor ou a obra. Para

    ele, a literatura no pode ser percebida apenas do ponto de vista diacrnico,

    cronolgico, fixada no passado, mas em movimento, pois a recepo uma forma de

    reabilitar autores e atualizar suas obras (JAUSS, 1994).

    Haroldo de Campos trilha um caminho semelhante, ao sugerir a criao de

    uma histria literria no-linear, que leva em conta a recepo das obras em

    determinada poca. No lugar de um critrio que idealiza a totalidade histrica, admite

    a possibilidade de ela ser abordada de forma seletiva e plural. Fazendo uma crtica

    abordagem de Candido, Haroldo de Campos afirma que, apesar de no ter existido em

    sua poca, Gregrio de Matos fundamental para a formao da literatura brasileira de

    linhagem satrica e inventiva:

    Estamos, pois, diante de um verdadeiro paradoxo borgiano, j que questo da origem se soma a da identidade ou pseudoidentidade de um autor patronmico. Um dos maiores poetas brasileiros anteriores Modernidade, aquele cuja existncia justamente mais fundamental para que possamos

  • coexistir com ela e nos sentirmos legatrios de uma tradio viva, parece no ter existido literariamente em perspectiva histrica. (CAMPOS, 1989, p. 10).

    Campos critica a Formao por considerar que o estudo de Candido entende

    a histria literria pelo vis evolutivo-teleolgico:

    [...] seja pela ideia condutora de individualidade ou esprito nacional, a operar, sempre com dinamismo teleolgico, num encadeamento de uma sequncia acabada de eventos (e a culmina necessariamente num classicismo nacional), correspondente, no plano poltico, a outro instante de plenitude, a conquista da unidade da nao. (CAMPOS, 1989, p. 13).

    preciso, no entanto, entender o lugar de onde Haroldo de Campos profere

    seu discurso em defesa do Barroco. Mais do que um terico da literatura, ele foi um

    poeta que tentou criar sua prpria linhagem literria, ao inventar seus precursores e

    fazer uma cruzada em nome da incluso de determinados autores e poticas ao cnone

    nacional. Numa potica que, em suas prprias palavras, d grande nfase

    materialidade do signo lingustico, mais ao significante do que ao significado, Haroldo

    de Campos e os intelectuais ligados Poesia Concreta fizeram uma seleo da poesia

    brasileira e mundial, tentando encontrar precursores. Trata-se de um tipo de crtica que

    evidencia o clima de liberdade interpretativa que se instaurou ao longo do sculo XX,

    com a defesa dos objetos artsticos como sendo obras abertas (ECO, 2001).

    A maneira de operar de Campos encontra paralelo na obra crtica de Ezra

    Pound, que privilegiou a formao de uma histria da poesia a partir da leitura

    sincrnica, como pode ser visto no seu ABC da Literatura. Valores como novidade e

    radicalidade so frequentes nos escritos desses dois autores, cuja defesa, no raro,

    assume tom de manifesto e de polmica (PERRONE-MOISS, 1998, p. 153). Pound

    foi um dos precursores de um tipo de histria literria que pressupe a elaborao de um

    paideuma conjunto de obras que se tem como referncia e que tem valor de cnone

    para uso particular ou geral. No livro ABC da Literatura (POUND, 2006), o poeta

    norte-americano adota critrios seletivos e particulares para a leitura da tradio

    literria, buscando superar categorias tradicionais, como as determinaes temporais ou

    geogrficas.

    No embate entre Haroldo de Campos e Antonio Candido, os lugares de fala

    so determinantes. O Movimento da Poesia Concreta, de que Haroldo de Campos foi

    um dos idelogos, representou a busca de um ideal artstico distante das preocupaes

  • tericas de Candido, voltado para uma teoria que apontasse a superao da dependncia

    e da literatura como discurso empenhado do ponto de vista poltico. Uma das

    caractersticas da Poesia Concreta foi a afirmao de uma tradio de autores que

    valorizasse a materialidade da palavra potica. Entende-se por tradio no apenas o

    universo textual da literatura brasileira, mas a produo em diversos idiomas. O

    movimento evidenciou o dilogo com outras tradies culturais, de maneira bastante

    livre, fazendo da traduo ou transcriao, conforme defende Haroldo de Campos

    um dos seus instrumentos mais importantes. A traduo entendida como uma forma

    de leitura, crtica e atualizao.

    A Poesia Concreta buscou a ampliao do conceito de literatura, abrindo-se

    para as tecnologias da sociedade industrial, a oralidade e as artes visuais. Em alguns

    momentos, esteve na linha de frente da produo cultural e terica, como ocorreu, no

    final dos anos 1960, com sua influncia sobre o movimento Tropicalista. O dilogo com

    a msica, as artes plsticas, a publicidade e os produtos de uma sociedade povoada

    pelos novos meios de reprodutibilidade tcnica ajudou a caracterizar a Poesia

    Concreta como uma prtica artstica e terica experimental e inovadora (AGUILAR,

    2005).

    Na definio de Dcio Pignatari, um dos integrantes do grupo, o poeta um

    designer da linguagem, ou seja, um artista capaz de articular, no discurso potico,

    vrias linguagens. Assim, os poetas concretos compuseram diversas antologias e

    revises das tradies poticas, tentando tirar do purgatrio crtico aqueles autores e

    textos pouco valorizados pelo cnone nacional. Os textos resgatados ajudariam a

    iluminar a prpria produo do movimento e inseri-la em uma nova histria literria.

    Uma das estratgias foi a realizao de revises de autores pouco valorizados nas

    histrias literrias seja por meio de ensaios isolados, seja por trabalhos monogrficos.

    Outra ao foi utilizar a transcriao de poemas a partir de diversos idiomas,

    procurando preservar sua inventividade formal nas verses para o portugus.

    Ainda no final da dcada de 1960, Haroldo de Campos passou a dialogar

    com as ideias de alguns tericos e movimentos artsticos para a sua operao de reviso

    da histria literria, entre eles Ezra Pound, Oswald de Andrade, Jacques Derrida e as

    propostas da Esttica da Recepo. Publicado quase trinta anos depois, O sequestro do

    Barroco rene todas essas ideias, formando uma noo de histria literria baseada na

    seletividade e na superao dos modelos europeus a partir da antropofagia oswaldiana.

    Sob a influncia de Pound, Haroldo de Campos entendeu a tradio pelo recorte da

  • inveno; com a antropofagia de Oswald de Andrade, procurou superar a noo de

    dependncia, presente na crtica da poca.

    Quanto ao trabalho de reviso e modificao do cnone nacional, a crtica de

    Haroldo de Campos teve o mrito de ter resgatado vrios autores do limbo a comear

    pelo enfant trrible do Modernismo, Oswald de Andrade, na dcada de 1960. Haroldo

    empreendeu diversos projetos com seu irmo, Augusto de Campos, entre os quais os

    estudos sobre as obras poticas de Sousndrade e de Pedro Kilkerry, autores

    considerados at ento secundrios no cnone nacional. A reviso de Kilkerry

    exemplar. Na sua crtica, o que interessou destacar foi a inventividade do poeta,

    inserindo-o na linhagem de outros poetas-inventores.

    interessante notar, nessa forma de leitura da histria literria, o uso do

    expediente da colagem dadasta. Em uma das montagens grficas de seu O Anticrtico

    (1986), Augusto de Campos pe, uma frente da outra, as imagens de Ezra Pound (p.

    174) e Gertrude Stein (p. 175), no ensaio Gertrude uma Gertrude. As imagens

    mostram semelhanas entre os dois. No ensaio, Augusto faz um paralelo entre as duas

    poticas. A mesma estratgia usada na aproximao entre o poeta simbolista brasileiro

    Maranho Sobrinho (1879-1915) e Stphane Mallarm (1842-1898). O ttulo do ensaio

    Stefnio Maranho Mallarm Sobrinho, fazendo a brincadeira com a colagem dos

    nomes, com a criao de um suposto parentesco entre os dois poetas e a mistura dos

    poemas desses autores. Assim, a leitura de Maranho Sobrinho ajuda Augusto a

    traduzir para o portugus a poesia de Mallarm; a recepo de Mallarm ilumina a

    leitura dos poemas de Maranho Sobrinho, que pertencem a uma linhagem inventiva da

    poesia, assim como gregrio, sousndrade, kilkerry/aos voos da blasfmia esparsos no

    futuro/bright brazilians blasting at bastards (CAMPOS, 1986, p. 154).

    Outro ponto a se considerar o trabalho de traduo do grupo, um dos mais

    importantes da literatura brasileira. Mais do que uma simples atividade intelectual, a

    traduo tem um sentido poltico. Ela serve para reafirmar as linhagens de poetas

    crticos esparsas em vrias literaturas ocidentais e orientais. Assim, principalmente

    Haroldo e Augusto de Campos se dedicaram a traduzir trechos de obras em diversos

    idiomas, muitas delas notrias por sua dificuldade e por nunca terem sido vertidas para

    o portugus. Mais do que enciclopdico, o trabalho tradutrio dos poetas concretos tem

    um sentido seletivo, como sua histria literria, sua biblioteca pessoal.

    Dessa forma, muitas das tradues so parciais, como o caso de excertos

    de obras de James Joyce, Dante, Maiakovski, Rilke, Goethe, Homero, poemas bblicos,

  • provenais, poemas japoneses e chineses. De Joyce, os irmos Campos traduziram

    apenas alguns trechos do Finnegans Wake, compondo um panorama do escritor

    irlands. Haroldo de Campos fez uma nova verso de Eclesiastes, Livro de J e

    Gnesis. De Maiakovski, Haroldo e Augusto de Campos deram preferncia aos

    poemas que destacaram a experincia formal.

    3 Literatura como misso

    A posio de Antonio Candido, que iniciou suas atividades como crtico

    literrio nos anos 1940, bastante diversa. De formao sociolgica e pertencente a

    uma gerao influenciada pelas mudanas polticas da dcada de 1930, em que o debate

    sobre a identidade nacional passou a ser chave para a cultura brasileira (MOTA, 1994),

    Candido entende a literatura brasileira do pondo de vista evolutivo e da formao da

    nacionalidade. Trata-se, no seu entendimento, de um sistema que se constri em

    paralelo ao das literaturas europeias, que lhes serviram de modelo. A primeira questo a

    se notar que Candido admite a existncia de dependncia de um sistema hegemnico

    representado pelo agente externo. A literatura brasileira, galho secundrio da

    portuguesa, repleta de gosto provinciano e falta do senso de propores, vista

    deliberadamente como inferior: Comparada s grandes, a nossa literatura pobre e

    fraca. Mas ela, e no outra, que nos exprime. Se no for amada, no revelar sua

    mensagem; e se no a amarmos, ningum o far por ns (CANDIDO, 1997, p. 10). Sua

    proposta crtica comprometida com a construo de uma literatura nacional de

    qualidade.

    Essa postura estratgica no pensamento de Candido e se desdobra em

    estudos realizados posteriormente publicao da Formao. A misso do crtico

    mostrar que a literatura brasileira, desde a sua formao como sistema, busca a

    independncia em relao matriz europeia. Essa independncia, conforme sinaliza

    Candido, s foi conquistada no sculo XX, sob um projeto brasileiro de modernidade

    mais amplo, envolvendo vrios setores da sociedade. O grande passo para a conquista

    da autonomia artstica nacional, conforme o projeto de Candido, teria sido o

    Modernismo, responsvel pela criao de uma linguagem literria brasileira. Cabe

    destacar que boa parte da trajetria de Candido e de seu trabalho como orientador, pela

    Universidade de So Paulo, de muitos pesquisadores da literatura, foi construir um

    discurso crtico reforando o papel do Modernismo na formao da nacionalidade.

  • A noo de superao da dependncia est presente de forma destacada no

    ensaio Literatura e subdesenvolvimento, em que Candido localiza a autonomia do

    discurso literrio latino-americano a partir da segunda metade do sculo XX, com a

    formao de uma conscincia aguda em relao ao subdesenvolvimento. nesse

    perodo que alguns pases da Amrica Latina produziram obras de importncia no

    cenrio local e tiveram visibilidade internacional, superando a noo de cpia das

    matrizes culturais europeias.

    Outro ponto importante e que decisivo para a escolha dos autores e do

    cnone literrio o carter empenhado da literatura brasileira conforme a postulao

    de Candido. Para o crtico, o desenvolvimento da literatura como sistema diz respeito s

    questes polticas de afirmao da identidade nacional. Trata-se de uma questo de

    contedo referencial e no necessariamente de procedimento esttico. Segundo

    Candido, os produtores da literatura brasileira na fase da sua formao tinham [...] a

    conscincia, ou a inteno, de estar fazendo um pouco da nao ao fazer literatura

    (CANDIDO, 1997, p. 18).

    Esse fato continua Candido resultou numa caracterstica geral bastante

    marcante dessa literatura, que a constatao de que seus textos so fceis, objetivando

    a comunicao imediata com o leitor. Feita em seus primrdios mais para ser ouvida do

    que lida, a literatura brasileira no tem em suas origens, na opinio do crtico, autores

    que utilizem a linguagem de maneira engenhosa e difcil. Dessa forma, privilegia o

    contedo referencial, em detrimento da experimentao da linguagem.

    Outro ponto a ser destacado a certido de nascimento da literatura

    brasileira. Para Candido, nos sculos XVI e XVII as manifestaes literrias que

    ocorreram no pas no chegaram a compor um sistema articulado. Ela s foi se tornar

    um sistema literrio, defende Candido, no final do sculo XVIII, em virtude do

    surgimento do engajamento literrio dos poetas ligados ao Arcadismo. A emergncia do

    sistema literrio brasileiro coincide, diz Candido, com o movimento de luta pela

    independncia. O crtico defende que a literatura produzida nessa poca tinha objetivo

    duplo: promover a conscientizao poltica e criar uma linguagem brasileira, que se

    diferenciasse da produo da metrpole:

    A literatura do Brasil, como a dos outros pases latino-americanos, marcada por esse compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstncia que inexiste nas literaturas dos pases da velha cultura. Neles, os vnculos neste sentido so os que prendem necessariamente as produes do esprito ao conjunto das produes culturais; mas no a conscincia, ou a inteno, de

  • estar fazendo um pouco da nao ao fazer literatura. (CANDIDO, 1997, p. 18).

    Com esse fato, Candido justifica a excluso de Gregrio de Matos da

    Formao da Literatura Brasileira, fato entendido por Haroldo de Campos no como

    questo de mtodo, mas como uma plataforma poltica e, de certa forma, incoerente

    com a prpria obra de Candido. O argumento de Campos que Candido sequestrou o

    Barroco de sua histria literria por privilegiar uma tradio literria que tinha por meta

    a comunicao fcil, sem oferecer obstculos ao leitor.

    Segundo Campos (1989), o autor da Formao teria secundado a

    importncia das funes da linguagem mais ligadas inveno literria, como a funo

    potica e metalingustica, destacando, em vez disso, a literatura empenhada do

    Arcadismo e do Romantismo. Campos aponta ainda contradies no ensaio Dialtica

    da Malandragem, estudo de Candido sobre Memrias de um sargento de milcias, de

    Manuel Antonio de Almeida. Para Campos, existe uma relao visceral entre a literatura

    de Almeida e a de Gregrio de Matos, que no apontada no texto de Candido:

    Nesse novo desenho, no constelar, mosaical, o antes inexistente Boca do Inferno passa a ter voz e vez. ele agora um dos precursores da comicidade malandra em nossa literatura, valorizado, nessa ptica renovada, no pelo seu veio srio-esttico da poesia lrica, amorosa, religiosa, mas pela stira desabusada. (CAMPOS, 1989, p. 72).

    Consideraes finais

    difcil comparar as concepes de histria literria apresentadas acima, j

    que evidenciam pontos muito diversos: Antonio Candido, influenciado pelo discurso

    sociolgico e pela ideia de totalidade histrica, classifica as obras literrias a partir de

    sua representatividade do social; Haroldo de Campos, assumindo uma posio

    deliberadamente fragmentada, destaca o recorte da inveno e da radicalidade da

    linguagem.

    Apesar disso, possvel afirmar que a noo de histria literria total,

    como a defendida por Candido, entrou em crise nas ltimas dcadas. Em seu lugar, na

    esteira das teorias ps-modernas e do culturalismo, a tendncia atual vislumbra uma

    histria literria cada vez mais fragmentada, como a defendida por Haroldo de Campos.

    Assim, a histria literria deixa de ser pensada de forma fechada, em torno de conceitos

    totalizantes, para constantes revises e definies do cnone.

  • Hoje, a histria literria, influenciada pela histria das mentalidades, no se

    resume apenas literatura erudita, mas apresenta um dilogo constante com a histria

    cultural e acompanha o movimento dos estudos literrios em questionar as intenes

    polticas na firmao dos cnones. Assim, trata-se da coexistncia de histrias literrias,

    que buscam entender as manifestaes literrias no plural.

    Referncias

    AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. So Paulo: Edusp, 2005. CAMPOS, Augusto de. O anticrtico. So Paulo: Companhia das Letras, 1986. CAMPOS, Haroldo de. O sequestro do Barroco na Formao da Literatura Brasileira. Salvador: Fundao Casa de Jorge Amado, 1989. CANDIDO, Antonio. Formao da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 2 volumes. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: Educao pela noite e outros ensaios. Rio de Janeiro: tica, 2000. ECO, Umberto. Obra aberta. So Paulo: Perspectiva, 2001. JAUSS, Hans Robert Jauss. A histria da literatura como provocao histria literria. So Paulo: tica, 1994. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). So Paulo: tica, 1994. PERRONE-MOISS, Leyla. Altas literaturas: escolha e valor na obra crtica de escritores modernos. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. WAIZBORT, Leopoldo. Esquema (parcial) de Antonio Candido. Novos Estudos Cebrap, n. 64. nov. 2002, p. 177-188.