Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão...

7

Transcript of Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão...

Page 1: Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão barrada com manteiga e açúcar amarelo. Podes zangar-te comigo por eu ter rasgado as
Page 2: Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão barrada com manteiga e açúcar amarelo. Podes zangar-te comigo por eu ter rasgado as

PoesiaA poesia é uma coisa tirada de dentro de outra coisa ainda mais dentro. Dizia o homem, poisando o jornal na mesa da esplanada. A poesia não é uma explicação da vida, não é um método expositivo de apresentar factos ou contar histórias. Os poetas desaproveitam as palavras já gastas pelo uso e vão peneirando até encontrarem aquelas que lhes conseguem tapar todos os buracos da alma. Haverá palavras que cheguem? Mas a esplanada não lhe responde. Se não é fácil saber quantas palavras existem, muito mais difícil é contar os buracos que as pessoas trazem dentro da alma. E quando acham as palavras sobreviventes, os poetas apontam-lhes a luz do desassossego, medem-lhes a substância, pesam-nas, e como se fossem ostras de papel, abrem-nas com a faca da imaginação e encontram-lhes o sumo e o sémen, o sentido e o significado. Anseiam poder dizer tudo com poucas palavras, quanto menos melhor, quanto menos mais, o pouco é muito. Almejam consertar o mundo com meia dúzia de versos, transcender a realidade com vocábulos alados. Cortam a carne da gramática até alcançarem o osso da essência. Atropelam vírgulas e concordâncias e baralham a sintaxe. Roubam sujeitos aos predicados, escondem o género e engolem os pontos finais. Na poesia, o quase nada pode ser tudo.

Page 3: Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão barrada com manteiga e açúcar amarelo. Podes zangar-te comigo por eu ter rasgado as

Liberdade

A liberdade é como o oxigénio, dizia o homem enquanto mexia o café. Os pulmões da alma precisam de a respirar, porque se não o fizerem morrem. Mesmo que o corpo não morra, a alma morre. E uma pessoa sem alma não é uma pessoa, é apenas um esqueleto coberto de carne. Mas como é que um homem ou uma mulher sabem se são realmente livres? Porque vivem em democracia, porque votam, porque podem dar opinião e discordar? Não chega, não é suficiente, não me interessa, isso tudo é uma perspetiva social e política. Eu refiro-me à existência interior de cada um. A tudo aquilo que nos prende e nos amordaça. À escuridão que se põe dentro da gente, ao receio de falharmos, às dúvidas antes de cada passo, ao medo da doença e do sofrimento, à ditadura da rotina, à opressão contra o desejo. É isso que me preocupa, são essas coisas que a não serem resolvidas impedem os homens e as mulheres de serem realmente livres. A mente é que manda, a mente é que liberta a alma. Sem isso, sem essa condição, sem essa clarividência, sem esse respirar, mesmo que vivamos em democracia, mesmo que votemos, mesmo que demos opinião e discordemos, estamos encarcerados dentro de nós. E se antes de tentamos libertar o mundo não nos libertarmos primeiro, não nasce nenhum dia inteiro e limpo, não floresce nenhum cravo, não voa nenhuma gaivota.

Page 4: Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão barrada com manteiga e açúcar amarelo. Podes zangar-te comigo por eu ter rasgado as

Ir sem mimPrometo que qualquer dia me vou embora sem mim. Solto-me, deixo-me para trás, abandono a minha parte que não quer ir, largo-a, ela que fique sentada no sofá a contar as hipóteses, os receios, a pensar se vale a pena, a medir as consequências e a duvidar se algum dia conseguirei chegar a algum lado. Não tenho que me preocupar com quem não merece, não tenho que ser indivisível, nem uno, nem fiel. Já esperei demasiado tempo. É isso, qualquer dia vou-me embora e não me despeço sequer da minha dúvida, não vá ela olhar-me nos olhos e fazer-me vacilar. Nunca abri porta nenhuma para sair do meu dentro. E dentro de mim é uma coisa funda. O meu pensamento sempre foram quatro paredes altas, altas até para os pássaros, e eu fiquei continuamente quedo e mudo à espera que o mundo acontecesse, à espera da vida vir ter comigo, à espera do amor e à espera de tudo o que nós gostamos de ler nos livros. Hoje decidi que os quero para a minha metade insurgente. Essa metade feita de carne e pele e desejo. Nunca abri a porta de nada e foi sempre pelo postigo dos olhos que eu vi o mundo a acontecer. Estou farto de não ser. Já não há outra saída a não ser renunciar a mim próprio. Tenho de deixar de morar em mim para conseguir viver. Acho que é chegada a hora de me fugir.

Page 5: Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão barrada com manteiga e açúcar amarelo. Podes zangar-te comigo por eu ter rasgado as

Bata brancaDeixa-me segurar-te a mão uma última vez. Uma derradeira vez antes de tudo acabar. Não te vás já embora, aguarda só mais um bocadinho, espera que eu chegue da escola com a minha bata branca e os lápis de cor. Hoje não me demoro, assim que a escola acabe, eu prometo que venho a correr, hoje venho logo, pois sei que é tarde, tão tarde para ti e para mim. Diz ao céu para esperar, tenta esquecer o teu cansaço, mantém a luz acesa dentro dos teus olhos, mantém o castanho vivo dentro dos teus olhos. Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão barrada com manteiga e açúcar amarelo. Podes zangar-te comigo por eu ter rasgado as calças, obriga-me a fazer os trabalhos de casa, não me deixes ver televisão e proíbe-me de ir brincar, que eu não me importo. De qualquer forma, hoje não vou brincar, hoje vou ficar aqui ao pé de ti a guardar o castanho dos teus olhos, a tomar conta da tua respiração, a cuidar do bater do teu coração. Diz-me que ficas e que amanhã me acordas à hora do costume com um beijo e tens uma bata lavada para eu vestir e me fazes o lanche para eu comer no recreio. Diz-me que ainda é possível termos mais tempo. Permanece, por favor permanece. Promete-me. Ainda é tão cedo para partires. Se te fores embora, não levarei a bata branca vestida.

Page 6: Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão barrada com manteiga e açúcar amarelo. Podes zangar-te comigo por eu ter rasgado as

Mais agoraParece mentira, mas parece-me que te sei amar mais agora. Dantes, lá no princípio de nós, havia uma paixão à solta, sem trela, que nos saltava para o colo e nos lambia a cara e nos fazia festas nos cabelos até adormecermos. Era uma coisa desmedida, ansiosa, um bicho guloso a comer qualquer espaço que restasse entre nós. A pele em febre, a carne a arder, os olhos a não conseguirem ver mais nada. As noites sem ti que não passavam, os dias contigo que não chegavam, a aflição de não estares, o contentamento de vires. Mas agora confesso que não sei se nesse tempo te sabia amar. Não tenho a certeza se o encantamento não era apenas uma vertigem. Não sei sequer se os poemas tinham as palavras certas ou as suficientes. Não sei se a absoluta necessidade de estar contigo era amor ou se era apenas a absoluta necessidade de saciar o meu egoísmo. Confesso que agora não o sei. Passou tanto tempo e eu era tão novo, tão inábil, que achava que o amor era aquilo que eu te dava. De jorro. Os homens jovens, e que se supõem serem eternos, têm este problema, interpretam mal o amor, principalmente o possível. A nossa vida tem sido longa, está-nos escrita na pele e por isso tenho a certeza que sei amar-te mais agora do que quando te amava perdidamente.

Page 7: Poesia - static.fnac-static.com · Prepara-me o copo de leite com Ovomaltine e a fatia de pão barrada com manteiga e açúcar amarelo. Podes zangar-te comigo por eu ter rasgado as

CalorA noite não consegue matar o calor. É em vão que o tenta dominar. De nada servem as estrelas e a escuridão. Antes de abalar, o sol convenceu-o a não desistir ainda que a noite lhe cante canções de embalar. E por isso, animado pelo cantar dos grilos, o calor é uma manta feita de ar que abafa e não deixa dormir. O escuro bem que tenta levantar o vento, invocar uma brisa, mas a aragem não se mexe, com esta calma todo o movimento está morto. As casas são fornos acesos e as janelas abertas são bocas inventadas para os corpos poderem respirar. A nudez dá voltas nos lençóis à procura do sono, más são estas noites para quem matuta. E de madrugada, quando o calor parece cansado e até algumas janelas já se fecharam, ainda os grilos não se calaram e as pessoas mal adormeceram, já a aurora vem soprando uma luz quente. E pouco depois, em descargas de absoluta claridade, o céu desenha novamente outro silêncio azul e pastoso. Os pássaros voam e vão poisar nos ramos das sombras e as pessoas fogem para dentro do coração das casas porque lá fora o ar coze o oxigénio. Depois de almoço os olhos murcham e os corpos sucumbem. É a hora da faísca, da insolação, é a hora da brasa. O calor é um incêndio que só a água fresca e uma folga conseguem apagar.