Poesia, Dna, Xamanismo & Cura
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POESIA, DNA, HEMISFÉRIOS CEREBRAIS, XAMANISMO & CURA
Escrito por Pedro Ivo B. de Souza
A linguagem que utilizamos no cotidiano é predominantemente linear, analítica,
conceitual e utilitária. O idioma é utilizado de modo quase que exclusivamente
exorreferente sem a atenção para sua materialidade e para outros modos possíveis de
comunicação e expressão. A linguagem poética, por outro lado, é muitas vezes definida
como autorreferente ou metalinguística.
Neurologicamente, as funções da linguagem verbal analítica estão situadas numa
pequena região do córtex cerebral do hemisfério esquerdo. O hemisfério cerebral direito
processa informações de modo holístico, sintético e em termos sensoriais, ou seja, som
(prosódia, ritmo e melodia), cor, textura, etc. Trabalha através de imagens. O estado
ideal de aprendizado, criatividade e saúde mental ocorre quando os dois hemisférios
trabalham em sincronia. Nossa educação e cultura baseiam-se principalmente nas
funções do hemisfério esquerdo. Na leitura convencional (prosa), utilizamos
predominantemente nossa capacidade racional e analítica. Para a leitura de poesia,
precisamos incluir as funções do hemisfério direito e perceber a sonoridade das
palavras, perceber as imagens que evocam. É por esse motivo que a poesia é pouco lida
e muitas vezes mal lida, pois a poesia é feita de palavras – que normalmente
processamos com nossa parte racional verbal analítica – porém a palavra na poesia é
mais do que conceito – é sua materialidade(som, forma) e os eu significado é maleável,
contextual, figurativo e imagético. Portanto, ou lemos poesia parcialmente, ou lemos
com os dois hemisférios do cérebro.
A linguagem poética é a contrapartida, no uso do idioma, da linguagem da vida,
tanto da vida enquanto ecossistema, quanto da vida enquanto código – DNA – que é
uma linguagem autorreferente espirálica que se reproduz. É uma linguagem que gira em
torno de si mesma, como a linguagem poética. Verso significa volta. É uma linguagem
que se volta pra si pra revelar o outro sem se impor... Portanto, ainda que os temas de
ecologia ou DNA não apareçam explícitos numa obra poética, suas formas estruturais se
assemelham e, mesmo que de modo subconsciente, os leitores/ouvintes sensibilizam-se
para a VIDA.
Em Biologia, um dos elementos apontados como estando presentes no que é
vivo é a autopoiesis – autocriação, autogeração... Não é interessante que a palavra
poiesis apareça aí? Poiesis é poesia, é a raiz etimológica que vem do grego e significa
fazer, criar, gerar... Uma das características da vida, talvez a central, é a autopoiesis...
Esta característica se deve talvez à própria forma do DNA, que é uma linguagem
sofisticadíssima, que gira em torno de si mesma, sendo, como a poesia, uma linguagem
autorreferente... Código genético, código poético... Gênese tem também um significado
similar a poiesis... Gerar, criar...
Portanto, a linguagem poética, nesse sentido amplo, é uma linguagem
primordial. É a linguagem do cosmos.
O grande escritor e poeta norte-americano Ezra Pound escreveu que uma das
importantes funções da literatura está no cuidado com a linguagem, numa espécie de
higiene do idioma, higiene necessária e benéfica para toda a nação, e também escreveu
que a paz surge da comunicação.
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Melhorar a comunicação é melhorar as relações. Existem campanhas para que as
pessoas respeitem o meio ambiente e os outros, mas não nos ensinam como respeitar.
Respeitar (re spectare) significa “tornar a ver”. Ver e, em seguida, ver novamente,
conscientizar-se da presença do outro – isso é respeitar. Se nem mesmo enxergamos
algo, não é possível haver respeito.
A poesia é um instrumento de aguçamento da visão. Ela pode nos ajudar a ver as
coisas, a ver o mundo – a natureza, as pessoas. Quando vemos, percebemos uma
presença, podemos cultivar a capacidade de ver beleza. E quando vemos algo belo, não
pensamos em ferir ou jogar lixo em cima. Ver é essencial para o respeito. Reconhecer a
beleza é essencial para o respeito. A arte pode nos ajudar muito mais nisso do que
qualquer ideologia política, religião, filosofia ou ética. A Arte nos ajuda a enxergar a
beleza, a vida, e, a partir disso, respeitar é automático. A Arte pode nos aperfeiçoar
como seres humanos, como percebedores. A arte nos ajuda a sentir. E, quando sentimos,
respeitamos.
A função do poeta, daquele que trabalha a linguagem no seu nível mais essencial
e explora suas vastas possibilidades de comunicação e expressão, é e pode ser muito
mais abrangente do que tem sido reconhecida:
“Em qualquer civilização viva e florescente, sobretudo nas culturas
arcaicas, a poesia desempenha um papel vital que é social e liturgia
ao mesmo tempo (...) A verdadeira designação do poeta arcaico é
Vates, inspirado por Deus, em transe. Estas qualificações implicam
ao mesmo tempo que ele possui um conhecimento extra-ordinário.
Ele é um sábio, sha’ir, como lhe chamavam os árabes (...) Todos os
poetas gregos arcaicos revelam vestígios de seu progenitor comum.
Sua função é eminentemente social; falam como educadores e guias
do povo; São os líderes da nação, cujo lugar mais tarde foi
usurpado pelos sofistas.” (HUIZINGA, 2004, pp 134-135)
O estudo etimológico nos revela que, quanto mais voltamos à raiz de um
vocábulo, encontramos algo concreto e uma imagem. Por exemplo, a palavra
“pergunta”, que hoje para nós é um conceito abstrato, surge através da analogia com um
objeto e uma ação concreta. Perguntar provém do latim “percontáre”. O prefixo “per”
indica movimento para os lados e “contus” era um bastão utilizado por barqueiros para
ir tocando o fundo do rio e evitar o encalhe. Trata-se do mesmo bastão que também foi e
é utilizado por cegos para “tatear” o ambiente e guiar-se em suas trajetórias. Daí
sacamos o significado de perguntar – sondar o fundo, o desconhecido, o que não vemos
ou sabemos, para nos movimentarmos. Perguntar é de algum modo buscar conhecer o
que ainda não está ao nosso alcance...
Não há como negar que trazer uma imagem atrelada a um conceito o enriquece e
amplia – e é isso que faz a poesia. No parágrafo anterior, ilustramos a formação de um
novo conceito através da analogia de função – a função de sondar com o bastão o
ambiente físico é análoga à função de sondar com questões o ambiente informacional
conceitual. Os exemplos são inúmeros. Idiomas como o chinês demonstram, com mais
clareza, esse processo de analogia dentro do idioma, que é vital e inerente à linguagem.
Este é o processo básico da criação poética. Vemos, portanto, que o nascimento
e o desenvolvimento de um idioma obedecem aos mesmos princípios que regem a
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criação poética. Realçar a etimologia e se comunicar de maneira figurativa revitalizam o
idioma e a cultura:
“Os conceitos, prisioneiros das palavras, são sempre inadequados
em relação à torrente da vida; portanto é apenas a palavra-imagem,
a palavra figurativa, que é capaz de dar expressão às coisas e, ao
mesmo tempo, banhá-las com a luminosidade das ideias: ideias e
coisas são unidas na imagem. Mas, enquanto a linguagem vulgar,
que em si mesma é um instrumento prático e útil, está
constantemente gastando as imagens contidas pelas palavras, e
adquirindo uma existência superficial própria (que só
aparentemente é lógica), a poesia continua cultivando as qualidades
figurativas, ou seja, portadoras de imagens, de maneira
deliberada(...) Na cultura arcaica, a linguagem dos poetas é o mais
eficaz dos meios de expressão, desempenhando uma função muito
mais ampla e vital do que a mera satisfação das aspirações
literárias.” (HUIZINGA, 2004, pp 149)
Nas culturas ditas arcaicas, a função do poeta assemelha-se, quando não se
sobrepõe ou mescla, à do xamã, curador e porta-voz poético das diversas camadas da
psique coletiva e além:
“A „fala-pensamento‟, um complexo conjunto de fórmulas poéticas
articulados pelos xamãs em seus rituais e conversas noturnas,
constitui o núcleo duro dessa „tradução xamanística‟ (...) É através
dela que um xamã, aprendiz ou avançado, pode conhecer
efetivamente os cantos-mito e os cantos de cura (...) Tal „fala-
pensamento‟ possui diversas semelhanças com a conhecida
„linguagem torcida‟ (tsai yoshtoyoshto) yaminawa estudada por
Townsley (1993: 460), empregada „para examinar as coisas com
cuidado – para vê-las com clareza‟ (ibidem), como explicava um
xamã ao autor.
Válida, sobretudo, por indicar o caráter necessário do emprego
metafórico da linguagem no xamanismo, uma vez que ele oferece
ao xamã o conhecimento sobre o surgimento (wenía) ou a formação
(shovia) de todos os entes do cosmos – conhecimento, aliás, cujos
elos de transmissão estão ameaçados nos dias de hoje. É por
desconhecerem tal emprego da linguagem, por exemplo, que os
jovens adoecem: adoecem porque ‘não têm pensamento’ (china
yama); não conhecem as entidades existentes em sua completude e
estão, portanto, permanentemente sujeitos às ameaças do campo
sociocósmico.” CESARINO, 2012
O trecho citado acima e especialmente as partes em negrito e sublinhadas
ilustram muito bem um dos aspectos centrais deste projeto – a linguagem como agente
de cura e educação, como aspecto crucial de coesão individual e comunitária.
De fato, o xamã/pajé pode ser visto como protopoeta, e sua função dentro da
comunidade pode ser encarada de modo similar.
O poeta se aproxima da figura do pajé, do xamã, que cura através de uma
linguagem especial – cantada e poética, que revela novos horizontes e modelos
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perceptivos e comportamentais. Uma das funções do pajé é comunicar-se com as forças
não humanas da natureza e intermediar a comunicação com a tribo. A linguagem é o
elemento indispensável de sua função, uma linguagem bem específica – a linguagem do
cântico, a linguagem metafórica e simbólica, que é exatamente a linguagem da poesia.
As “belas palavras”, como as chamam os guaranis; a “fala-pensamento”, como dizem os
marubo; a linguagem torcida (que gira em torno de si mesma), como dizem os
yaminawa...
A tendência da nossa cultura é analítica e linear, que levou a uma fragmentação
do conhecimento. Conseguimos pesquisar o detalhe do detalhe, mas perdemos as
conexões e a totalidade. Perder a percepção da conexão e interdependência de tudo é o
que está nos levando à crise nos mais diversos aspectos: no aspecto social, ecológico,
educacional, político, etc.
Como ter realmente consciência ecológica – ou seja, consciência da conexão e
interdependência de toda a vida, se não utilizamos de maneira adequada a linguagem da
arte, que é a linguagem que revela as conexões, a linguagem da síntese, a linguagem que
unifica?
A poesia é a linguagem de retorno. É a linguagem da integração neural; da
unificação do intelecto com o sentimento e a imaginação, com as linguagens trans-
pessoais. Linguagem musical por ressonância. consciência ecológica através da ecologia
da linguagem.
A linguagem poética tem a propriedade de conectar as funções dos dois
hemisférios cerebrais, enriquecendo a vida e a percepção de quem está em contato com
ela. Tem a capacidade de ajudar na integração de camadas diferentes da psique, já que
se utiliza de símbolos e metáforas, a linguagem natural do inconsciente. Ao fazer isso
através da obra, o poeta recupera uma função que foi se perdendo ao longo do tempo – a
função de curador-educador da comunidade. A poesia tem um efeito similar ao dos
cânticos e mitos dos povos orais indígenas. Hoje, estamos buscando resgatar e integrar
essas culturas, mas, para que possamos realmente entender essas outras culturas, temos
que entrar em contato e entender a linguagem mítico-poética que é a linguagem base de
suas comunidades, e em essência trans-cultural.
No Japão, o haicai - que foi explorada bastante no início do modernismo,
principalmente no que diz respeito à forma – concisão, síntese e imagem - mas que em
seu exercício original estava indissoluvelmente ligado à meditação. “O haiku
transforma-se e converte-se na anotação rápida – verdadeira recriação – de um
momento privilegiado: exclamação poética, caligrafia, pintura e meditação, tudo junto.
O haiku de Bashô é um exercício espiritual.” (PAZ, 2003)
O exercício poético é uma das técnicas arcaicas do êxtase, um dos métodos
atemporais e transculturais de conhecimento e expansão da consciência
exercício espiritual. Sua elaboração, como no oriente e nas sociedades tribais,
envolve silêncio, contemplação da natureza, atenção direcionada às imagens interiores,
dança, música, etc... Simultaneamente, no nosso caso moderno, é um trabalho
intelectual de pesquisa cognitiva, antropológica, psicológica e artística.
Em suma, trata-se do trabalho com a linguagem como experiência meditativa e a
linguagem como resultado da experiência meditativa.