Poesia de Luís Amaro - academia.org.br Brasileira 68 - POESIA... · busca escapar-se em momentos...

18

Transcript of Poesia de Luís Amaro - academia.org.br Brasileira 68 - POESIA... · busca escapar-se em momentos...

211

Poesia de Luís Amaro

Nota da redação

De Luís Amaro poder-se-á dizer que é o mais esquivo inte-grante do cenário poético português de uma contempora-

neidade que atravessou o umbral de um novo século. A sua produ-ção lírica se resume a um livro, Diário íntimo, no qual ele compendiou toda a sua larga e vigilante experiência poética.

Ele pertence à linhagem dos poetas que se recusam a aparecer e não estimam as fanfarras, como foi o caso dos brasileiros Joaquim Cardozo, Américo Facó, Dante Milano e Onestaldo de Pennafort. Poetas que preferem a sombra e o silêncio.

Nascido em Aljustrel, no Minho, em 1923 – o que significa, ago-ra, uma existência de 88 anos –, Francisco Luís Amaro pertenceu, estética e cronologicamente, à geração que se agrupou, na década de 50, em torno da revista Árvore – folhas de poesia. A esse grupo perten-ceram, também, outras figuras relevantes da poesia portuguesa do século XX, como Egito Gonçalves, Antonio Luís Moita, António Ramos Rosa, José Terra e Raul de Carvalho.

Quatro fascículos da revista Árvore, lançados entre 1951 e 1953, bastaram para revelar, afirmar e projetar a importância desses poetas.

Po e s i a E s t r a n g e i r a

Nota da redação

212

Como ocorre com Luís Amaro, a poesia então praticada por eles se distingue pela sua subjetividade, atmosfera de magia e desalento, busca de caminhos, e uma melancolia na qual se engasta decerto o soturno clima político do longo período salazarista.

Na vida profissional, Luís Amaro se destacou por uma participação dis-creta mas decisiva na vida cultural portuguesa, a princípio na Portugália Edi-tora e em seguida como secretário de redação (1971-1986), diretor adjunto (1986-1989) e consultor editorial (1989-1996) da famosa revista Colóquio/Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian – decerto uma das publicações culturais mais importantes do Ocidente, dirigida por Jacinto do Prado Coe-lho, David Mourão-Ferreira e atualmente pelo poeta Nuno Júdice. Em sua atuação em Colóquio/Letras, o poeta Luís Amaro se empenhou numa maior aproximação literária e artística entre Brasil e Portugal, estabelecendo um intercâmbio contínuo e produtivo.

A poesia de Luís Amaro tem merecido numerosos louvores, cabendo men-cionar os que lhe foram endereçados por figuras do porte de Vitorino Nemé-sio, Miguel Torga, Jorge de Sena, Júlio Dantas, Agostinho da Silva, Sebastião da Gama, Teixeira de Pascoaes, Pierre Hourcade, Cabral do Nascimento, Ire-ne Lisboa, Castelo Branco Chaves e muitos outros.

Para Jorge de Sena, Luís Amaro é “o poeta dos momentos fugidios, de uma melancolia desencantada, de uma como que prisão de que o espírito busca escapar-se em momentos de revelação, de um sentir da vida como algo precioso que se esvai”. Segundo Vitorino Nemésio, trata-se de uma “poesia repousada na sua constante inquietação, discreta no gosto da profundidade ao revelar o vivido, – enfim uma poesia lírica profunda. No tom, no estilo, recolhe toda a tradição lírica depurada por um gosto sem deslize e passada por uma expressão inequivocamente original”.

Poes ia de Luís Amaro

213

IntermédioAlguém que se ignorapasseia a sua mágoalá pela noite fora.

Já sem saber se existe,entre silêncio e treva,nem alegre nem triste,alguém que a própria sorteenjeita vai absortonum sonho que é a mortee é vida – sendo morto.

Nota da redação

214

Tarde de chuva a Ribeiro Couto

Depois de tanta tristezaque ficou pelo caminho,meu coração desperta.

Depois de tantas palavrase tantos gestos, pesares,instantes despedaçados,horas neutras, incolores,meu coração desperta.

Nem saudade nem amor,nem ternura nem desejos(só vagos sonhos frustrados,informes e nevoentos)acalentaram meu serdias e meses e anosmortos logo ao despontar.

Mas hoje, na tarde sozinha,longínqua, branda, esquecida,ouvindo a chuva cantare deixando meu sentirdeslizar na melodia,entendo melhor a vida.

Poes ia de Luís Amaro

215

Continuação a Daniel Pires e Paulo Samuel

O caminho é longo,a noite obscura.Tanto que andarna terra dura!

Na terra durae povoadade estranhos medos.Só, na estradaincerta e vã,alguém deslizapor entre sombras.

Por entre sombras,quem, pela noite,vai de longada?

De rastos sigoa ver se encontro e sei o fimdo meu caminho.

Nota da redação

216

Conquista a Murilo Mendes

Na miséria mais fundacintila uma estrelaa dizer que a vidaé bela.

No silêncio aflitoda noite (naufrágiodos tristes)alguém sonha e cantavirgens alegrias.

A manhã nascentepara ser merecidatem que ser sangradacom a própria vida.

Poes ia de Luís Amaro

217

Gênese a José Augusto Seabra

O sonho que deixeino meio do caminhonasceu de que estrelafulgindo na noite?

Nasceu de que estrelavelha como o mundoo sonho que esvoaçaem redor de mim?

Decerto não foidesta luz clara,nítida, real,que nasceu o sonho.

Escurece e embala,encanta e magoa,alegra, entristece,e veio de que estrelaperdida na noite?

Nota da redação

218

Dádiva a Raul de Carvalho

Lá muito ao fundodaquela estradauma luz cintila.Será a vida?

A meio da noiteescura que existedentro de nós mesmos,uma luz cintila.

Densa névoa envolveminha sombra indecisa:mas, pura, lá surgea luz que cintila.

Tudo a vida negaà sede antiga e ardente.Só não se apaga nuncaa pequenina estrela.

Poes ia de Luís Amaro

219

Tarde a Cabral do Nascimento

Vago sabor de outonoe de coisas extintas.Nem desejos nem dor...Meu coração esquece.

No ar parado vogatalvez uma saudadede tudo que perdi,de tudo que não sei.

Ninguém chama por mim,nem chamo por ninguém.Instante calmo e breve...Como a vida está longe!

No dia úmido caium silêncio dormente.Certa música ausentemeu coração embala.

Nota da redação

220

Um fio de música a João Rui de Sousa

Um fio de músicaque me libertedo peso escuroque trago em mim.

Um fio de músicaque me transmita(e a alma inunde),mãe, teu perdão!

Um fio de músicaque vá ao fundodo ser dorido,qual uma bênção,

e sagre e embalemeu coraçãodas trevas preso:um fio de luz

que me redimadaquele instantee varra, afastea vil lembrança.

Um fio de músicaa dar-me o alentode olhar de frentea luz do dia.

Poes ia de Luís Amaro

221

A Augusto Frederico SchmidtAve ferida, minha almanecessita de silênciopara voar liberta da aridez dos dias,e vai morrendo ausenteda luz do alto onde quiserapairar sem nome e sem destino...

Ave ferida e desertade esperanças, vai ficandosaudosa dos longes, da distância,e suas asas retraem-se, doridas,de encontro às grades frias, lisas,dum cárcere obscuro.

Ave ferida e sedentados livres horizontes, das palavrasque crepitam nos astros e fluemdos corações amantes, das montanhas,minha alma necessita de silêncioe refletindo na noite a sua imagemir ao fundo das coisas, desprendida.

Nota da redação

222

Nos confusos recantos a Alberto de Lacerda

Nos confusos recantos onde o sonhose espraia e vive, sem dizer seu nome,pulsa num coração o ritmo do mundo.

Ignorado, longe, intranquilo,do grande mar rasgando a imensidadevoga no vento um clamor, um grito

que a noite guarda abandonadamentee o coração anônimo adivinhaalém da névoa persistente, triste...

E do silêncio emerge uma voz pura,já liberta de lágrimas, cantandona luz, oculta, o despontar da vida.

InscriçãoEu nada te pedi,tu nada me pediste.

Deram-se as nossas almassem que nunca o soubessea carne triste.

Poes ia de Luís Amaro

223

Retrato II a António Ramos Rosa

Sutil e translúcidaimagem que flutua.

Os gestos descrevemno ar um segredo

que paira e ondulamusical e breve...

Uma queixa exala,flébil, seu sorriso.

Ó voz imprecisa,receosa, e sempre

traindo o remorsode existir no mundo.

Insegura florque os ventos oscilam:

alma que esconde,ignota, seu mistério.

Nota da redação

224

Uma voz secreta para Joana Morais Varela

Na feira com sol,música, alegria,esta sombra insonefui ver se esquecia.

Os outros bailavam.Quis entrar tambémna roda: entreguei as mãos a alguém.

Ia o dia em meio,o sol esplendia.Rubra flor, o sonhonas almas abria...

Mas, súbito, ouviuma voz secreta(o preço do meucoração de poeta)

a dizer que a festaque doirava o diaduma luz de esperançanão me pertencia.

Poes ia de Luís Amaro

225

Os outros a José Gomes Ferreira

Rumores do dia que findoue nada foivêm de longe e são a vidaque lá deixei.

Rumores confusos que atravésos muros oiço:falam do mundo e tomam possedo meu silêncio.

Rumores, tumulto, confusãoda rua ao longe– como fugir ao vosso apelofraterno e áspero?

Por mais que tente construiruma outra vida no silêncio e na noite esconda a face obscurado errado destino,

só vós dizeis ao coraçãoque a vida é dádiva de amor,esperança que arde e flutuanuma longínqua voz perdida.

Nota da redação

226

Liberdade a António Cândido Franco e Fernando Botto Semedo

Viver sem alarde,obscuramente,suportar sozinhoo peso dos sonhos,

fugir do tumultoque os outros impõemturvando o silênciodo nosso mistério,

sem gritos nem gestosou palavras vãsir por entre as turbasdos olhos vendados,

ouvir só a vozdo nosso segredo(mas nunca indiferenteàs lágrimas doutrem)

e erguido bem altoo muro dos sonhos,ah! pode enfimpassar livremente.

Poes ia de Luís Amaro

227

A José RégioNa alta luz tão purados versos que deixasteprocuro a voz que em mim,informulada, existe.Procuro a voz das coisasda noite, ao abandono,quando o silêncio oprimeesta morada obscura(ou alma, ser, deserto)onde não chega nuncao Deus que nos teus ritmospresente está. Entantoa sede permaneceoculta, sufocadana teia que não ousadizer seu nome jamais.