Poesia - Barroco e Arcadismo

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Barroco Antologia potica Gregrio de Mattos Guerra ......... 02 Sermo da Sexagsima .......................................... .... 21 Arcadismo Marlia de Dirceu .................................................. ...... 29

Prof. Rosana Gondim Rezende OliveiraO BARROCO NO BRASIL Poemas de Gregrio de Mattos Guerra1. Pecador contrito aos ps de Cristo crucificado

Ofendi-vos, meu Deus, bem verdade, Verdade , meu Senhor, que hei delinqido, delinqido vos tenho, e ofendido, ofendido vos tem minha maldade. Maldade, que encaminha a vaidade, Vaidade, que todo me h vencido, Vencido quero ver-me e arrependido, Arrependido a tanta enormidade. Arrependido estou de corao, De corao vos busco, dai-me abraos, Abraos, que me rendem vossa luz. Luz, que claro me mostra a salvao, A salvao pretendo em tais braos, Misericrdia, amor, Jesus, Jesus!2. Meu Deus, que estais pendente...

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro em cuja lei protesto de viver, em cuja santa lei hei de morrer animoso, constante, firme e inteiro: neste lance, por ser o derradeiro pois vejo a minha vida anoitecer, , meu Jesus, a hora de se ver a brandura de um pai, o manso cordeiro.2

Mui grande o vosso amor e o meu delito: porm pode ter fim todo o pecar, e no o vosso amor, que infinito. Esta razo me obriga a confiar, Que, por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar. 3. Descreve com mais individuao a fidcia com que os estranhos sobem a arruinar sua repblica Senhora Dona Bahia, nobre e opulenta cidade, madrasta dos naturais, e dos estrangeiros madre. Dizei-me por vida vossa em que fundais o ditame de exaltar os que aqui vm, e abater os que aqui nascem? Se o fazeis pelo interesse de que os estranhos vos gabem, isso os paisanos fariam com conhecidas vantagens. E suposto que os louvores em boca prpria no valem, se tem fora desta sentena, mor fora ter a verdade. (...)

4. Descreve a ilha de Itaparica com a sua aprazvel fertilidade, e louva de caminho ao capito Luis Carneiro, homem honrado, e liberal, em cuja casa se hospedou. Ilha de Itaparica, alvas areias, Alegres praias, frescas, deleitosas; Ricos polvos, lagostas deliciosas, Farta de putas, rica de baleias. As Putas tais, ou quais no so ms preias, Pcaras,ledas, brandas, carinhosas, Para o jantar as carnes saborosas, O pescado excelente para as ceias.3

O melo de ouro, a fresca melancia, Que vem no tempo, em que aos mortais abrasa O sol inquisidor de tanto oiteiro. A costa, que o imita na ardentia, E sobretudo a rica, e nobre casa Do nosso capito Lus Carneiro.5. Aos capitulares do seu tempo

A nossa S da Bahia, com ser um mapa de festas, um prespio de bestas, se no for estrebaria: varias bestas cada dia vemos, que o sino congrega, Caveira mula galega, o Deo burrinha parda, Pereira besta de albarda, tudo para a S se agrega.

6. CIDADE DA BAHIA

Triste Bahia! quo dessemelhante Ests e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu j, tu a mi abundante. A ti trocou-te a mquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado, Tanto negcio e tanto negociante. Deste em dar tanto acar excelente, Pelas drogas inteis, que abelhuda, Simples aceitas do sagaz Brichote. Oh se quisera Deus, que de repente, Um dia amanheceras to sisuda Que fra de algodo o teu capote.4

7. DESCREVE O QUE ERA NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA

A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; No sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, Para o levar praa e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os ps os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que no furtam muito pobres E eis aqui a cidade da Bahia

8. BUSCANDO A CRISTO

A vs correndo vou, braos sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos, Que, para receber-me, estais abertos, E, por no castigar-me, estais cravados. A vs, divinos olhos, eclipsados De tanto sangue e lagrimas abertos, Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por no condenar-me, estais fechados, A vs, pregados ps, por no deixar-me, A vs, sangue vertido, para ungir-me, A vs, cabea baixa, p'ra chamar-me. A vs, lado patente, quero unir-me, A vs, cravos preciosos, quero atar-me, Para ficar unido, atado e firme.5

9. MORALIZA O POETA NOS OCIDENTES DO SOL A INCONSTNCIA DOS BENS DO MUNDO Nasce o Sol, e no dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contnuas tristezas a alegria. Porm se acaba o Sol, por que nascia? Se formosa a Luz , por que no dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza, Na formosura no se d constncia, E na alegria sinta-se tristeza. Comea o mundo enfim pela ignorncia, E tem qualquer dos bens por natureza A firmeza somente na inconstncia.

ANJO BENTO Destes que campam no mundo Sem ter engenho profundo, E, entre gabos dos amigos, Os vemos em papa-figos, Sem tempestade, nem vento: Anjo bento! De quem com letras secretas tudo o que alcana por tretas, Baculejando sem pejo, Por matar o seu desejo, Desde a manh t tarde: Deus me guarde! Do que passeia farfante,6

Muito prezado de amante, Por fora luvas, gales, Insgnias, armas, bastes, Por dentro po bolorento: Anjo bento! Destes beatos fingidos, Cabisbaixos, encolhidos, Por dentro fatais maganos, Sendo nas caras uns Janos, Que fazem do vcio alarde: Deus me guarde! Que vejamos teso andar Quem mal sabe engatinhar, Muito inteiro e presumido, ficando o outro abatido Com maior merecimento: Anjo bento! Destes avaros mofinos, Que pem na mesa pepinos, De toda a iguaria isenta, Com seu limo e pimenta, Porque diz que o queima arde: Deus me guarde!

STIRAS (A um livreiro que havia comido um canteiro de alfaces com vinagre) Levou um livreiro a dente De alfaces todo um canteiro, E comeu, sendo livreiro, Desencadernadamente. Porm eu digo que mente A quem disso o quer tachar: Antes para notar Que trabalhou como mouro,7

Pois meter folhas no couro Tambm encadernar.

10.

(A um msico esbordoado)

Uma grave entonao Vos cantaram, Brs Lus, Segundo se conta e diz, Por solfa de fabordo. Pelo compasso da mo, Onde a valia se apura, Parecia solfa escura: Porque a mo nunca parava, Nem no ar, nem no cho dava, Sempre em cima da figura.

SONETO LRICO Quem viu mal como o meu, sem meio ativo? Pois no que me sustenta e me maltrata, fero quando a morte me dilata, Quando a Vida me tira compassivo! Oh! do meu padecer algo motivo! Mas oh! do meu martrio pena ingrata! Uma vez inconstante, pois me mata; Muitas vezes cruel, pois me tem vivo! J no h, no, remdio, confianas; Que a Morte a destruir no tem alentos, Quando a Vida em penar no tem mudanas: E quer meu mal, dobrando os meus tormentos Que esteja morto para as esperanas, E que ande vivo para os sentimentos.

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A PONDERAO DO DIA DO JUZO FINAL, E UNIVERSAL O alegre do dia entristecido; o silncio da noite perturbado; o resplendor do Sol todo eclipsado; e o luzente da Lua desmentido: Rompa todo o Criado em um gemido: Que de ti, Mundo? adonde tens parado? Se tudo neste instante est acabado, Tanto importa o no ser, como o haver sido! Soa a Trombeta da maior Altura, a que a Vivos e Mortos traz aviso, da desventura de uns, doutros ventura. Acaba o Mundo, porque j preciso: Erga-se o Morto, deixe a Sepultura; porque chegado o Dia do Juzo!

SONETO Pequei, Senhor, mas no, porque hei pecado Da vossa alta piedade me despido: Antes quanto mais tenho delinquido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um s gemido: Que a mesma culpa, que vos h ofendido, Vos tem para o perdo lisonjeado. Se uma ovelha perdida, j cobrada, Glria tal e prazer to repentino Vos deu, como afirmais na Sacra Histria, Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada: Cobrai-a e no queirais, Pastor Divino, Perder na vossa ovelha a vossa glria.

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11. Ao Brao do Mesmo Menino Jesus Quando Apareceu O todo sem a parte no todo, A parte sem o todo no parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, No se diga, que parte, sendo todo. Em todo o Sacramento est Deus todo, E todo assiste inteiro em qualquer parte, E feito em partes todo em toda a parte, Em qualquer parte sempre fica o todo. O brao de Jesus no seja parte, Pois que feito Jesus em partes todo, Assiste cada parte em sua parte. No se sabendo parte deste todo, Um brao, que lhe acharam, sendo parte, Nos disse as partes todas deste todo.

12. Defende Seu Poeta por Seguro, Necessrio e Reto Seu Primeiro Intento sobre Satirizar os Vcios Eu sou aquele, que os passados anos Cantei na minha lira maldizente Torpezas do Brasil, vcios, e enganos. E bem que os decantei bastantemente, Canto segunda vez na mesma lira O mesmo assunto em plectro diferente. (...) A narrao h de igualar ao caso, E se talvez ao caso no iguala, No tenho por Poeta, o que Pegaso. De que pode servir calar, quem cala, Nunca se h de falar, o que se sente? Sempre se h de sentir, o que se fala! Qual homem pode haver to paciente, Que vendo o triste estado da Bahia,10

No chore, no suspire, e no lamente? Isto faz a discreta fantasia: Discorre em um, e outro desconcerto, Condena o roubo, e increpa a hipocrisia. O nscio, o ignorante, o inexperto, Que no elege o bom, nem mau reprova, Por tudo passa deslumbrado, e incerto. E quando v talvez na doce trova Louvado o bem, e o mal vituperado, A tudo faz focinho, e nada aprova. Diz logo prudentao, e repousado, Fulano um satrico, um louco, De lngua m, de corao danado. Nscio: se disso entendes nada, ou pouco, Como mofas com riso, e algazarras Musas, que estimo ter, quando as invoco? Se souberas falar, tambm falaras, Tambm satirizaras, se souberas, E se foras Poeta, poetizaras. A ignorncia dos homens destas eras Sisudos faz ser uns, outros prudentes, Que a mudez canoniza bestas-feras. H bons, por no poder ser insolentes, Outros h comedidos de medrosos, No mordem outros no, por no ter dentes. Quantos h, que os telhados tm vidrosos, E deixam de atirar sua pedrada De sua mesma telha receosos. Uma s natureza nos foi dada: No criou Deus os naturais diversos, Um s Ado formou, e esse de nada.11

Todos somos ruins, todos perversos, S nos distingue o vcio, e a virtude, De que uns so comensais, outros adversos. Quem maior a tiver, do que eu ter pude, Esse s me censure, esse me note, calem-se os mais, chitom, e haja sade.

13.

Epigrama

Juzo anatmico dos achaques que padecia o corpo da Repblica em todos os membros, e inteira definio do que em todos os tempos a Bahia. Que falta nesta cidade?... Verdade. Que mais por sua desonra?... Honra. Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha. O demo a viver se exponha, Por mais que a fama a exalta, Numa cidade onde falta Verdade, honra, vergonha. Quem a ps neste rocrcio?... Negcio. Quem causa tal perdio?... Ambio. E no meio desta loucura?... Usura. Notvel desaventura De um povo nscio e sandeu, Que no sabe que perdeu Negcio, ambio, usura. Quais so seus doces objetos?... Pretos. Tem outros bens mais macios?... Mestios. Quais destes lhe so mais gratos?... Mulatos. Dou ao Demo os insensatos, Dou ao Demo o povo asnal, Que estima por cabedal, Pretos, mestios, mulatos. Quem faz os crios mesquinhos?... Meirinhos.12

Quem faz as farinhas tardas?... Guardas. Quem as tem nos aposentos?... Sargentos. Os crios l vem aos centos, E a terra fica esfaimando, Porque os vo atravessando Meirinhos, guardas, sargentos. E que justia a resguarda?... Bastarda. grtis distribuda?... Vendida. Que tem, que a todos assusta?... Injusta. Valha-nos Deus, o que custa O que El-Rei nos d de graa. Que anda a Justia na praa Bastarda, vendida, injusta. Que vai pela clerezia?... Simonia. E pelos membros da Igreja?... Inveja. Cuidei que mais se lhe punha?... Unha Sazonada caramunha, Enfim, que na Santa S O que mais se pratica Simonia, inveja e unha. E nos frades h manqueiras?... Freiras. Em que ocupam os seres?... Sermes. No se ocupam em disputas?... Putas. Com palavras dissolutas Me concluo na verdade, Que as lidas todas de um frade So freiras, sermes e putas. O acar j acabou?... Baixou. E o dinheiro se extinguiu?... Subiu. Logo j convalesceu?... Morreu. Bahia aconteceu O que a um doente acontece: Cai na cama, e o mal cresce,13

Baixou, subiu, morreu. A Cmara no acode?... No pode. Pois no tem todo o poder?... No quer. que o Governo a convence?... No vence. Quem haver que tal pense, Que uma cmara to nobre, Por ver-se msera e pobre, No pode, no quer, no vence.

14. Padre Antnio Vieira, seu mano Bernardo e o "Boca do Inferno" Soneto que Bernardo Vieira mandou para seu irmo, Padre Antnio Vieira: Se queres ver do mundo um novo mapa, oitenta anos atende desta cepa por onde ramos a cobia trepa, e emaranhada faz do tronco lapa. Morde com dentes por no ter mais papa; com lngua fere, com as mos decepa; soldado e povo livra da carepa, que na tarde e manh raivoso rapa; olhos de gua, as faces de tulipa; cada p de joanete uma garlopa; com um s corpo de chalupa. O bofe muito, e muito pouco a tripa, a minha musa; porque nela topa em apa, epa, ipa, opa, upa.

15. Resposta do Padre Antnio Vieira, pelos mesmos consoantes:

V, Bernardo, da eternidade o mapa deixa do velho Ado a geral cepa, pelo lenho da cruz ao Emprio trepa, comeando em Belm da pobre lapa. Mais que rei pode ser, e mais que papa, quem de seu corao vcios decepa;14

que a grenha de Sanso toda carepa, e a guadanha da morte tudo rapa. A dor da vida se na cor tulipa, de seus anos tambm se faz garlopa, que os corta, como o mar corta a chalupa. No h mister que o ferro corte a tripa, se na parte vital o fado topa, em apa, epa, ipa, opa, upa.

16. Soneto Por consoantes que me deram forados Gregrio de Mattos Guerra, o "Boca do Inferno", entra na conversa: Neste mundo mais rico o que mais rapa; quem mais limpo se faz, tem mais carepa; com sua lngua, ao nobre o vil decepa; o velhaco maior sempre tem capa. Mostra o patife da nobreza o mapa; quem tem mo de agarrar, ligeiro trepa; quem menos falar pode, mais increpa; quem dinheiro tiver, pode ser Papa. A flor baixa se inculca por tulipa; bengala hoje na mo, ontem garlopa; mais isento se mostra o que mais chupa; para a tropa do trapo vo a tripa, e mais no digo; porque a Musa topa em apa, em epa, em ipa, em opa, em upa.

17.

A UMAS SAUDADES

Parti, corao, parti, navegai sem vos deter, ide-vos, minhas saudades a meu amor socorrer.15

Em o mar do meu tormento em que padecer me vejo j que amante me desejo navegue o meu pensamento: meus suspiros, formai vento, com que me faais ir ter onde me apeteo ver; e diga minha alma assi: Parti, corao, parti, navegai sem vos deter. Ide donde meu amor apesar desta distncia no h perdido constncia nem demitido o rigor: antes to superior que a si se quer exceder, e se no desfalecer em tantas adversidades, Ide-vos minhas saudades a meu amor socorrer.

18.

MORTE DE AFONSO BARBOSA DA FRANCA

Alma gentil, esprito generoso, Que do corpo as prises desamparaste, E qual cndida flor em flor cortaste De teus anos o pmpano vioso. Hoje, que o slio habitas luminoso, Hoje, que ao trono eterno te exaltaste, Lembra-te daquele amigo a quem deixaste Triste, absorto, confuso, e saudoso. Tanto tua virtude ao cu subiste, Que teve o cu cobia de gozar-te, Que teve a morte inveja de vencer-te. Venceste o foro humano em que caste, Goza-te o cu no s por premiar-te, Seno por dar-me a mgoa de perder-te.16

19.

A MARIA DOS POVOS

Discreta e formosssima Maria, Enquanto estamos vendo a qualquer hora Em tuas faces a rosada Aurora, Em teus olhos e boca o Sol e o dia, Enquanto com gentil descortesia O ar, que fresco Adnis te namora, Te espalha a rica trana voadora Quando vem passear-te pela fria, Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo trata a toda ligeireza, E imprime em toda a flor sua pisada. Oh no aguardes, que a madura idade, Te converta essa flor, essa beleza, Em terra, em cinza, em p, em sombra, em nada.

20.

INCONSTANCIA DOS BENS DO MUNDO

Nasce o Sol, e no dura mais que um dia, Depois da Luz se segue a noite escura, Em tristes sombras morre a formosura, Em contnuas tristezas a alegria. Porm, se acaba o Sol, por que nascia? Se to formosa a Luz, por que no dura? Como a beleza assim se transfigura? Como o gosto da pena assim se fia? Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza, Na formosura no se d constancia, E na alegria sinta-se tristeza. Comea o mundo enfim pela ignorncia, E tem qualquer dos bens por natureza A firmeza somente na inconstncia.17

21.

CONFUSO DO FESTEJO DO ENTRUDO

Filhs, fatias, sonhos, mal-assadas, Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro, Os perus em poder do pasteleiro, Esguichar, deitar pulhas, laranjadas; Enfarinhar, pr rabos, dar risadas, Gastar para comer muito dinheiro, No ter mos a medir o taverneiro, Com rstias de cebolas dar pancadas; Das janelas com tanhos dar nas gentes, A buzina tanger, quebrar panelas, Querer em um s dia comer tudo; No perdoar arroz, nem cuscuz quente, Despejar pratos, e alimpar tijelas: Estas as festas so do Santo Entrudo.

22.

DESCREVE A VIDA ESCOLSTICA

Mancebo sem dinheiro, bom barrete Medocre o vestido, bom sapato Meias velhas, calo de esfola-gato Cabelo penteado, bom topete; Presumir de danar, cantar falsete, Jogo de fidalguia, bom barato, Tirar falsdia ao moo do seu trato, Furtar a carne ama, que promete; A putinha alde achada em feira, Eterno murmurar de alheias famas, Soneto infame, stira elegante; Cartinhas de trocado para a freira,18

Comer boi, ser Quixote com as damas, Pouco estudo: isto ser estudante.

23.

DESAIRES DA FORMOSURA

Rubi, concha de perlas peregrina, Animado cristal, viva escarlata, Duas safiras sobre lisa prata, Ouro encrespado sobre prata fina. Este o rostinho de Caterina; E porque docemente obriga e mata, No livra o ser divina em ser ingrata E raio a raio os coraes fulmina. Viu Fbio uma tarde transportado Bebendo admiraes, e galhardias A quem j tanto amor levantou aras: Disse igualmente amante e magoado: Ah muchacha gentil, que tal serias Se sendo to formosa no cagaras!

24.

A UMA QUE LHE CHAMOU PICA-FLOR

Se Pica-flor me chamais Pica-flor aceito ser mas resta agora saber se no nome que me dais meteis a flor que guardais no passarinho melhor. Se me dais este favor sendo s de mim o Pica e o mais vosso, claro fica que fico ento Pica-flor.

25.

AOS CARAMURUS DA BAHIA19

Um calo de pindoba meia zorra Camisa de urucu, mantu de arara, Em lugar de cot arco e taquara Penacho de guars em vez de gorra. Furado o beio, e sem temor que morra O pai, que lho envasou cuma titara Porm a Me a pedra lhe aplicara Por reprimir-lhe o sangue que no corra. Alarve sem razo, bruto sem f, Sem mais leis que a do gosto, quando erra De Paiai tornou-se em abait. No sei onde acabou, ou em que guerra: S6 sei que deste Ado de Massap Procedem os fidalgos desta terra.

26.

(AO MESMO ASSUNTO)

Um pai de Monai, bonzo bram Primaz da cafraria do Pegu, Quem sem ser do Pequim, por ser do Acu, Quer ser filho do sol, nascendo c. Tenha embora um av nascido l, C tem tres pela costa do Cairu, E o principal se diz Paraguau, Descendente este tal de um Guinam. Que fidalgo nos ossos cremos ns, Pois nisso consistia o mor braso Daqueles que comiam seus avs. E como isto lhe vem por gerao, Tem tomado por timbre em seus teirs Morder nos que provm de outra nao.

27.

DEFINE A SUA CIDADE20

De dous ff se compe esta cidade a meu ver, um furtar, outro foder. Recopilou-se o direito, e quem o recopilou com dous ff o explicou por estar feito e bem feito: por bem digesto e colheito, s com dous ff o expe, e assim quem os olhos pe no trato, que aqui se encerra, h de dizer que esta terra De dous ff se compe. Se de dous ff composta est a nossa Bahia, errada a ortografia a grande dano est posta: eu quero fazer aposta, e quero um tosto perder, que isso a h de perverter, se o furtar e o foder bem no so os ff que tem Esta cidade a meu ver. Provo a conjetura j prontamente com um brinco: Bahia tem letras cinco que so BAHIA, logo ningum me dir que dous ff chega a ter pois nenhum contm sequer, salvo se em boa verdade so os ff da cidade um furtar, outro foder. *********************************************************************************************1. Sermo da Sexagsima, de Padre Antnio Vieira (Fragmentos)

Pregado na Capela Real, no ano de 165521

Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11 I E se quisesse Deus que este to ilustre e to numeroso auditrio sasse hoje to desenganado da pregao, como vem enganado com o pregador! Ouamos o Evangelho, e ouamo-lo todo, que todo do caso que me levou e trouxe de to longe. Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que saiu o pregador evanglico a semear a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. No s faz meno do semear, mas tambm faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe ho-nos de medir a semeadura e ho-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus no assim. Para quem lavra com Deus at o sair semear, porque tambm das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho h uns que saem a semear, h outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear so os que vo pregar ndia, China, ao Japo; os que semeiam sem sair, so os que se contentam com pregar na Ptria. Todos tero sua razo, mas tudo tem sua conta. Aos que tm a seara em casa, pagar-lhes-o a semeadura; aos que vo buscar a seara to longe, ho-lhes de medir a semeadura e ho-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juzo! Ah pregadores! Os de c, achar-vos-eis com mais pao; os de l, com mais passos: Exiit seminare. [...] Ser bem que o Mundo morra fome? Ser bem que os ltimos dias se passem em flores? -- No ser bem, nem Deus quer que seja, nem h-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princpio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermo, tratarei nele uma matria de grande peso e importncia. Servir como de prlogo aos sermes que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma. II Semen est verbum Dei. O trigo que semeou o pregador evanglico, diz Cristo que a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, so os diversos coraes dos homens. Os espinhos so os coraes embaraados com cuidados, com riquezas, com delcias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras so os coraes duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, no cria razes. Os caminhos so os coraes inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vo, outras que vm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa so os coraes bons ou os homens de bom corao; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta22

fecundidade e abundncia, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum. Este grande frutificar da palavra de Deus o em que reparo hoje; e uma dvida ou admirao que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao plpito. Se a palavra de Deus to eficaz e to poderosa, como vemos to pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e j eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermes se convertera e emendara um homem, j o Mundo fora santo. Este argumento de f, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experincia, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histrias eclesisticas, e ach-laseis todas cheias de admirveis efeitos da pregao da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudana de vida, tanta reformao de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? -- Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregaes, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como to pouco o fruto? No h um homem que em um sermo entre em si e se resolva, no h um moo que se arrependa, no h um velho que se desengane. Que isto? Assim como Deus no hoje menos omnipotente, assim a sua palavra no hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus to poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque no vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, to grande e to importante dvida, ser a matria do sermo. Quero comear pregando-me a mim. A mim ser, e tambm a vs; a mim, para aprender a pregar; a vs, que aprendais a ouvir.

III Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de trs princpios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermo, h-de haver trs concursos: h-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; h-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; h-de concorrer Deus com a graa, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, so necessrias trs coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e cego, no se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e de noite, no se pode ver por falta de luz. Logo, h mister luz, h mister espelho e h mister olhos. Que coisa a converso de uma alma, seno entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista so necessrios olhos, e necessria luz e necessrio espelho. O pregador concorre com o espelho, que a doutrina; Deus concorre com a luz, que a graa; o homem concorre com os olhos, que o conhecimento. Ora suposto que a converso das almas por meio da pregao depende destes trs concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do23

pregador, ou por parte de Deus? [...] Quando o semeador do Cu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamaes, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus at dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus at nas pedras, at nos espinhos nasce; no triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos coraes, no por culpa, nem por indisposio dos ouvintes. Supostas estas duas demonstraes; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, no fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequncia clara, que fica por parte do pregador. E assim . Sabeis, cristos, porque no faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque no faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpa nossa.

IV Mas como em um pregador h tantas qualidades, e em uma pregao tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistir esta culpa? -- No pregador podem-se considerar cinco circunstncias: a pessoa, a cincia, a matria, o estilo, a voz. A pessoa que , e cincia que tem, a matria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstncias temos no Evangelho. Vamolas examinando uma por uma e buscando esta causa. Ser porventura o no fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstncia da pessoa? Ser porque antigamente os pregadores eram santos eram vares apostlicos e exemplares, e hoje os pregadores so eu e outros como eu? -- Boa razo esta. A definio do pregador a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho no o comparou ao semeador, seno ao que semeia. Reparai. No diz Cristo: saiu a semear o semeador, seno, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia h muita diferena. Uma coisa o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa o semeador e outra o que semeia; uma coisa o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador nome; o que saneia e o que prega ao; e as aes so as que do o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, no importa nada; as aes, a vida, o exemplo, as obras, so as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao plpito, qual cuidais que ? o conceito que de sua vida tm os ouvintes. Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se no converte ningum? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra so tiros sem bala; atroam, mas no ferem. [...]

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V Ser porventura o estilo que hoje se usa nos plpitos? Um estilo to empeado, um estilo to dificultoso, um estilo to afectado, um estilo to encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razo tambm esta. O estilo h-de ser muito fcil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo arte: na msica tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmtica tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear no assim. uma arte sem arte caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. [...] J que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? -- O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o cu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum -- diz David. Suposto que o cu pregador, deve de ter sermes e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermes; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais so estes sermes e estas palavras do cu? -- As palavras so as estrelas, os sermes so a composio, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do cu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro semear; a terra semeada de trigo, o cu semeado de estrelas. O pregar h-de ser como quem semeia, e no como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas esto por sua ordem; mas ordem que faz influncia, no ordem que faa lavor. No fez Deus o cu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermo em xadrez de palavras. Se de uma parte h-de estar branco, da outra h-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra ho-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra ho-de dizer subiu. Basta que no havemos de ver num sermo duas palavras em paz? Todas ho-de estar sempre em fronteira com o seu contrrio? Aprendamos do cu o estilo da disposio, e tambm o das palavras. As estrelas so muito distintas e muito claras. Assim h-de ser o estilo da pregao; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que parea o estilo baixo; as estrelas so muito distintas e muito claras, e altssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; to claro que o entendam os que no sabem e to alto que tenham muito que entender os que sabem. O rstico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegao e o matemtico para as suas observaes e para os seus juzos. De maneira que o rstico e o mareante, que no sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemtico, que tem lido quantos escreveram, no alcana a entender quanto nelas h. Tal pode ser o sermo: -- estrelas que todos vem, e muito poucos as medem. [...]25

VI [...] De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um s assunto; e ns queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso no pregamos nenhum. O sermo h-de ser de uma s cor, h-de ter um s objecto, um s assunto, uma s matria. H-de tomar o pregador uma s matria; h-de defini-la, para que se conhea; h-de dividi-la, para que se distinga; h-de prov-la com a Escritura; h-de declar-la com a razo; h-de confirm-la com o exemplo; h-de amplific-la com as causas, com os efeitos, com as circunstncias, com as convenincias que se ho-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; h-de responder s dvidas, h-de satisfazer s dificuldades; h-de impugnar e refutar com toda a fora da eloquncia os argumentos contrrios; e depois disto h-de colher, h-de apertar, h-de concluir, h-de persuadir, h-de acabar. Isto sermo, isto pregar; e o que no isto, falar de mais alto. No nego nem quero dizer que o sermo no haja de ter variedade de discursos, mas esses ho-de nascer todos da mesma matria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma rvore tem razes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim h-de ser o sermo: h-de ter razes fortes e slidas, porque h-de ser fundado no Evangelho; h-de ter um tronco, porque h-de ter um s assunto e tratar uma s matria; deste tronco ho-de nascer diversos ramos, que so diversos discursos, mas nascidos da mesma matria e continuados nela; estes ramos ho-de ser secos, seno cobertos de folhas, porque os discursos ho-de ser vestidos e ornados de palavras. H-de ter esta rvore varas, que so a repreenso dos vcios; h-de ter flores, que so as sentenas; e por remate de tudo, h-de ter frutos, que o fruto e o fim a que se hde ordenar o sermo. De maneira que h-de haver frutos, h-de haver flores, h-de haver varas, h-de haver folhas, h-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um s tronco, que uma s matria. Se tudo so troncos, no sermo, madeira. Se tudo so ramos, no sermo, so maravalhas. Se tudo so folhas, no sermo, so versas. Se tudo so varas, no sermo, feixe. Se tudo so flores, no sermo, ramalhete. Serem tudo frutos, no pode ser; porque no h frutos sem rvore. Assim que nesta rvore, que podemos chamar rvore da vida, h-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um s tronco e esse no levantado no ar, seno fundado nas razes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como ho-de ser os sermes, eis aqui como no so. E assim no muito que se no faa fruto com eles.

VII26

Ser porventura a falta de cincia que h em muitos pregadores? Muitos pregadores h que vivem do que no colheram e semeiam o que no trabalharam. Depois da sentena de Ado, a terra no costuma dar fruto, seno a quem come o seu po com o suor do seu rosto. Boa razo parece tambm esta. O pregador h-de pregar o seu, e no o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e no o alheio, porque o alheio e, o furtado no bom para semear, ainda que o furto seja de cincia. Comeu Eva o pomo da cincia, e queixava-me eu antigamente desta nossa me; j que comeu o pomo, por que lhe no guardou as pevides? No seria bem que chegasse a ns a rvore, j que nos chegaram os encargos dela? Pois por que no o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio bom para comer, mas no bom para semear: bom para comer, porque dizem que saboroso; no bom para semear, porque no nasce. Algum ter experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, no h-de deitar razes, e o que no tem razes no pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores no fazem fruto; porque pregam o alheio, e no o seu: Semen suum. O pregar entrar em batalha com os vcios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ningum deram vitria. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele no as quis aceitar. Com armas alheias ningum pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul s servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda prpria, que a espada e a lana alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, no hajais medo que derrube gigante. [...]

VIII Ser finalmente a causa, que tanto h buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem s vezes mais os brados que a razo. Boa era tambm esta, mas no a podemos provar com o semeador, porque j dissemos que no era ofcio de boca. Porm o que nos negou o Evangelho no semeador metafrico, nos deu no semeador verdadeiro, que Cristo. Tanto que Cristo acabou a parbola, diz o Evangelho que comeou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e no arrazoou sobre a parbola, porque era tal o auditrio, que fiou mais dos brados que da razo. Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definio do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e no voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e no pelo arrazoar; no pela razo, seno pelos brados? Porque h muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razo, e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava.27

[...]

IX As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristos, a causa por que se faz hoje to pouco fruto com tantas pregaes? porque as palavras dos pregadores so palavras, mas no so palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) to poderosa e to eficaz, que no s na boa terra faz fruto, mas at nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores no so palavras de Deus, que muito que no tenham a eficcia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Esprito Santo: Quem semeia ventos, colhe tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega vaidade, se no se prega a palavra de Deus, como no h a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto? Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje no pregam do Evangelho, no pregam das Sagradas Escrituras? Pois como no pregam a palavra de Deus? Esse o mal. Pregam palavras de Deus, mas no pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, so palavras de Deus; mas pregadas no sentido que ns queremos, no so palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demnio. Tentou o Demnio a Cristo a que fizesse das pedras po. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentena era tirada do captulo VIII do Deuteronmio. Vendo o Demnio que o Senhor se defendia da tentao com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo XC, diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: Deita-te da abaixo, porque prometido est nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomaro nos braos, para que te no faas mal. De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras so palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razo porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido so palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, so armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, so defesa, tomadas no sentido em que Deus as no disse, so tentao. Eis aqui a tentao com que ento quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pinculo do templo. O pinculo do templo o plpito, porque o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambio; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa a tentao de que mais padece hoje a Igreja, e que em28

muitas partes tem derrubado dela, seno a Cristo, a sua f. [...]

X [...] Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saeis do sermo muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que sareis muito descontentes de vs. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermes: no que os homens saiam contentes de ns, seno que saiam muito descontentes de si; no que lhes paream bem os nossos conceitos, mas que lhes paream mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambies e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de ns. Si hominibus placerem, Christus servus non essem, dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, no seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de no fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja h tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das tribunas dos reis, esto as tribunas dos anjos, est a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos h-de julgar. Que conta h-de dar a Deus um pregador no Dia do Juzo? O ouvinte dir: No mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que no disse o que convinha! No seja mais assim, por amor de Deus e de ns. Estamos s portas da Quaresma, que o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vcios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os dios, contra as ambies, contra as invejas, contra as cobias, contra as sensualidades. Veja o Cu que ainda tem na terra quem se pe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda h na terra quem lhe faa guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda est em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum. ********************************************************************************************* O ARCADISMO NO BRASIL Marlia de Dirceu Toms Antnio Gonzaga PARTE I Lira I Eu, Marlia, no sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado;29

De tosco trato, dexpresses grosseiro, Dos frios gelos, e dos sis queimado. Tenho prprio casal, e nele assisto; D-me vinho, legume, fruta, azeite; Das brancas ovelhinhas tiro o leite, E mais as finas ls, de que me visto. Graas, Marlia bela, Graas minha Estrela! Eu vi o meu semblante numa fonte, Dos anos inda no est cortado: Os Pastores, que habitam este monte, Respeitam o poder do meu cajado: Com tal destreza toco a sanfoninha, Que inveja at me tem o prprio Alceste: Ao som dela concerto a voz celeste; Nem canto letra, que no seja minha, Graas, Marlia bela, Graas minha Estrela! Mas tendo tantos dotes da ventura, S apreo lhes dou, gentil Pastora, Depois que teu afeto me segura, Que queres do que tenho ser senhora. bom, minha Marlia, bom ser dono De um rebanho, que cubra monte, e prado; Porm, gentil Pastora, o teu agrado Vale mais qum rebanho, e mais qum trono. Graas, Marlia bela, Graas minha Estrela! Os teus olhos espalham luz divina, A quem a luz do Sol em vo se atreve: Papoula, ou rosa delicada, e fina, Te cobre as faces, que so cor de neve. Os teus cabelos so uns fios douro; Teu lindo corpo blsamos vapora. Ah! No, no fez o Cu, gentil Pastora, Para glria de Amor igual tesouro. Graas, Marlia bela, Graas minha Estrela! Leve-me a sementeira muito embora O rio sobre os campos levantado: Acabe, acabe a peste matadora, Sem deixar uma rs, o ndio gado. J destes bens, Marlia, no preciso: Nem me cega a paixo, que o mundo arrasta;30

Para viver feliz, Marlia, basta Que os olhos movas, e me ds um riso. Graas, Marlia bela, Graas minha Estrela! Irs a divertir-te na floresta, Sustentada, Marlia, no meu brao; Ali descansarei a quente sesta, Dormindo um leve sono em teu regao: Enquanto a luta jogam os Pastores, E emparelhados correm nas campinas, Toucarei teus cabelos de boninas, Nos troncos gravarei os teus louvores. Graas, Marlia bela, Graas minha Estrela! Depois que nos ferir a mo da Morte, Ou seja neste monte, ou noutra serra, Nossos corpos tero, tero a sorte De consumir os dois a mesma terra. Na campa, rodeada de ciprestes, Lero estas palavras os Pastores: "Quem quiser ser feliz nos seus amores, Siga os exemplos, que nos deram estes. Graas, Marlia bela, Graas minha Estrela! [...]

Lira XIII Minha bela Marlia, tudo passa; A sorte deste mundo mal segura; Se vem depois dos males a ventura, Vem depois dos prazeres a desgraa. Esto os mesmos Deuses Sujeitos ao poder do mpio Fado: Apolo j fugiu do Cu brilhante, J foi Pastor de gado. A devorante mo da negra Morte Acaba de roubar o bem, que temos; At na triste campa no podemos Zombar do brao da inconstante sorte. Qual fica no sepulcro,31

Que seus avs ergueram, descansado; Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos Ferro do torto arado. Ah! enquanto os Destinos impiedosos No voltam contra ns a face irada, Faamos, sim faamos, doce amada, Os nossos breves dias mais ditosos. Um corao, que frouxo A grata posse de seu bem difere, A si, Marlia, a si prprio rouba, E a si prprio fere. Ornemos nossas testas com as flores. E faamos de feno um brando leito, Prendamo-nos, Marlia, em lao estreito, Gozemos do prazer de sos Amores. Sobre as nossas cabeas, Sem que o possam deter, o tempo corre; E para ns o tempo, que se passa, Tambm, Marlia, morre. Com os anos, Marlia, o gosto falta, E se entorpece o corpo j cansado; Triste o velho cordeiro est deitado, E o leve filho sempre alegre salta. A mesma formosura dote, que s goza a mocidade: Rugam-se as faces, o cabelo alveja, Mal chega a longa idade. Que havemos de esperar, Marlia bela? Que vo passando os florescentes dias? As glrias, que vm tarde, j vm frias; E pode enfim mudar-se a nossa estrela. Ah! No, minha Marlia, Aproveite-se o tempo, antes que faa O estrago de roubar ao corpo as foras E ao semblante a graa. [...] Lira XIX Enquanto pasta alegre o manso gado, Minha bela Marlia, nos sentemos sombra deste cedro levantado. Um pouco meditemos32

Na regular beleza, Que em tudo quanto vive, nos descobre A sbia natureza. Atende, como aquela vaca preta O novilhinho seu dos mais separa, E o lambe, enquanto chupa a lisa teta. Atende mais, cara, Como a ruiva cadela Suporta que lhe morda o filho o corpo, E salte em cima dela. Repara, como cheia de ternura Entre as asas ao filho essa ave aquenta, Como aquela esgravata a terra dura, E os seus assim sustenta; Como se encoleriza, E salta sem receio a todo o vulto, Que junto deles pisa. Que gosto no ter a esposa amante, Quando der ao filhinho o peito brando, E refletir ento no seu semblante! Quando, Marlia, quando Disser consigo: " esta De teu querido pai a mesma barba, "A mesma boca, e testa. Que gosto no ter a me, que toca, Quando o tem nos seus braos, co dedinho Nas faces graciosas, e na boca Do inocente filhinho! Quando, Marlia bela, O tenro infante j com risos mudos Comea a conhec-la! Que prazer no tero os pais ao verem Com as mes um dos filhos abraados; Jogar outros a luta, outros correrem Nos cordeiros montados! Que estado de ventura! Que at naquilo, que de peso serve, Inspira Amor, doura. [...] Lira XXI33

No sei, Marlia, que tenho, Depois que vi o teu rosto; Pois quanto no Marlia, J no posso ver com gosto. Noutra idade me alegrava, At quando conversava Com o mais rude vaqueiro: Hoje, Bela, me aborrece Inda o trato lisonjeiro Do mais discreto pastor Que efeitos so os que sinto? Sero efeitos de Amor? Saio da minha cabana Sem reparar no que fao: Busco o stio aonde moras, Suspendo defronte o passo. Fito os olhos na janela, Aonde, Marlia bela, Tu chegas ao fim do dia; Se algum passa, e te sada, Bem que seja cortesia, Se acende na face a cor. Que efeitos so os que sinto? Sero os efeitos de Amor? Se estou, Marlia, contigo, No tenho um leve cuidado; Nem me lembra se so horas De levar fonte o gado. Se vivo de ti distante, Ao minuto, ao breve instante Finge um dia o meu desgosto: Jamais, Pastora, te vejo Que em teu semblante composto No veja graa maior. Que efeitos so os que sinto? Sero os efeitos de Amor? Ando j com o juzo, Marlia, to perturbado, Que no mesmo aberto sulco Meto de novo o arado. Aqui no centeio pego, Noutra parte em vo o sego: Se algum comigo conversa, Ou no respondo, ou respondo Noutra coisa to diversa,34

Que nexo no tem menor. Que efeitos so os que sinto? Sero os efeitos de Amor? Se geme o bufo agoureiro, S Marlia me desvela, Enche-se o peito de mgoa, E no sei a causa dela. Mal durmo, Marlia, sonho Que fero leo medonho Te devora nos meus braos: Gela-se o sangue nas veias, E solto do sono os laos fora da imensa dor. Ah! que os efeitos, que sinto, S so efeitos de Amor. [...] Lira XXVI Tu no vers, Marlia, cem cativos Tirarem o cascalho, e a rica terra, Ou dos cercos dos rios caudalosos, Ou da minada terra. No vers separar ao hbil negro Do pesado esmeril a grossa areia, E j brilharem os granetes de ouro No fundo da bateia. No vers derrubar os virgens matos; Queimar as capoeiras ainda novas; Servir de adubo terra a frtil cinza Lanar os gros nas covas No vers enrolar negros pacotes Das secas folhas do cheiroso fumo; Nem espremer entre as dentadas rodas Da doce cana o sumo. Vers em cima da espaosa mesa Altos volumes de enredados feitos; Ver-me-s folhear os grandes livros, E decidir os pleitos Enquanto revolver os meus consultos, Tu me fars gostosa companhia,35

Lendo os fatos da sbia mestra histria, E os cantos da poesia Lers em alta voz a imagem bela, Eu vendo que lhe ds o justo apreo, Gostoso tornarei a ler de novo O cansado processo Se encontrares louvada uma beleza, Marlia, no lhe invejes a ventura, Que tens quem leve mais remota idade A tua formosura. [...] Lira XXVII O destro Cupido um dia Extraiu mimosas cores De frescos lrios, e rosas, De jasmins, e de outras flores. Com as mais delgadas penas Usa de uma, e de outra tinta, E nos ngulos do cobre A quatro belezas pinta. Por fazer pensar a todos No seu liso centro escreve Um letreiro, que pergunta: "Este espao a quem se deve? Vnus, que viu a pintura, E leu a letra engenhosa, Ps por baixo "Eu dele cedo; "D-se a Marlia formosa. Lira XXVIII Alexandre, Marlia, qual o rio, Que engrossando no inverno tudo arrasa, Na frente das coortes Cerca, vence, abrasa As cidades mais fortes. Foi na glria das armas o primeiro; Morreu na flor dos anos, e j tinha Vencido o mundo inteiro.

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Mas este bom soldado, cujo nome No h poder algum, que no abata, Foi, Marlia, somente Um ditoso pirata, Um salteador valente. Se no tem uma fama baixa, e escura, Foi por se pr ao lado da injustia A insolente ventura. O grande Csar, cujo nome voa, sua mesma Ptria a f quebranta; Na mo a espada toma, Oprime-lhe a garganta, D Senhores a Roma. Consegue ser heri por um delito; Se acaso no vencesse, ento seria Um vil traidor proscrito. O ser heri, Marlia, no consiste Em queimar os Imprios: move a guerra, Espalha o sangue humano, E despovoa a terra Tambm o mau tirano. Consiste o ser heri em viver justo: E tanto pode ser heri pobre, Como o maior Augusto. Eu que sou heri, Marlia bela, Segundo da virtude a honrosa estrada: Ganhei, ganhei um trono, Ah! no manchei a espada, No roubei ao dono. Ergui-o no teu peito, e nos teus braos: E valem muito mais que o mundo inteiro Uns to ditosos laos. Aos brbaros, injustos vencedores Atormentam remorsos, e cuidados; Nem descansam seguros Nos palcios cercados De tropa, e de altos muros. E a quantos nos no mostra a sbia histria A quem mudou o Fado em negro oprbrio A mal ganhada glria. Eu vivo, minha Bela, sim, eu vivo Nos braos do descanso, e mais do gosto: Quando estou acordado37

Contemplo no teu rosto De graas adornado: Se durmo, logo sonho, e ali te vejo. Ah! nem desperto, nem dormindo sobe A mais o meu desejo. [...]

PARTE II Lira I J no cinjo de louro a minha testa; Nem sonoras canes o Deus me inspira: Ah! que nem me resta Uma j quebrada, Mal sonora Lira! Mas neste mesmo estado, em que me vejo, Pede, Marlia, Amor que v cantar-te: Cumpro o seu desejo; E ao que resta supra A paixo, e a arte. A fumaa, Marlia, da candeia, Que a molhada parede ou suja, ou pinta, Bem que tosca, e feia, Agora me pode Ministrar a tinta. Aos mais preparos o discurso apronta: Ele me diz, que faa do p de uma M laranja ponta, E dele me sirva Em lugar de pluma. Perder as teis horas no, no devo; Vers, Marlia, uma idia nova: Sim, eu j te escrevo, Do que esta alma dita Quando amor aprova. Quem vive no regao da ventura Nada obra em te adorar, que assombro faa: Mostra mais ternura Quem te ensina, e morre Nas mos da desgraa.38

Nesta cruel masmorra tenebrosa Ainda vendo estou teus olhos belos, A testa formosa, Os dentes nevados, Os negros cabelos. Vejo, Marlia, sim, e vejo ainda A chusma dos Cupidos, que pendentes Dessa boca linda, Nos ares espalham Suspiros ardentes. Se algum me perguntar onde eu te vejo, Responderei: No peito, que uns Amores De casto desejo Aqui te pintaram, E so bons Pintores. Mal meus olhos te viram, ah! nessa hora Teu retrato fizeram, e to forte, Que entendo, que agora S pode apag-lo O pulso da Morte. Isto escrevia, quando, Cus, que vejo! Descubro a ler-me os versos o Deus louro: Ah! d-lhes um beijo, E diz-me que valem Mais que letras de ouro. [...] Lira V J, j me vai, Marlia, branquejando Louro cabelo, que circula a testa; Este mesmo, que alveja, vai caindo E pouco j me resta. As faces vo perdendo as vivas cores, E vo-se sobre os ossos enrugando, Vai fugindo a viveza dos meus olhos; Tudo se vai mudando. Se quero levantar-me, as costas vergam; As foras dos meus membros j se gastam, Vou a dar ela casa uns curtos passos, Pesam-me os ps, e arrastam.39

Se algum dia me vires destas sorte, V que assim me no ps a mo dos anos: Os trabalhos, Marlia, os sentimentos, Fazem os mesmos danos. Mal te vir, me dar em poucos dias A minha mocidade o doce gosto; Vers burnir-se a pele, o corpo encher-se, Voltar a cor ao rosto. No calmoso Vero as plantas secam; Na Primavera, que os mortais encanta, Apenas cai do Cu o fresco orvalho, Verdeja logo a planta. A doena deforma a quem padece; Mas logo que a doena faz seu termo, Torna, Marlia, a ser quem era dantes, O definhado enfermo. Supe-me qual doente, ou mal a planta, No meio da desgraa, que me altera; Eu tambm te suponho qual sade, Ou qual a Primavera. Se do esses teus meigos, vivos olhos Aos mesmos Astros luz, e vida s flores, Que efeitos no faro, em quem por eles Sempre morreu de amores? [...] Lira VII Vou-me, Bela, deitar na dura cama, De que nem sequer sou o pobre dono: Estende sobre mim Morfeu as asas, E vem ligeiro o sono. Os sonhos, que rodeiam a tarimba, Mil coisas vo pintar na minha idia; No pintam cadafalsos, no, no pintam Nenhuma imagem feia. Pintam que estou bordando um teu vestido; Que um menino com asas, cego, e louro, Me enfia nas agulhas o delgado, O brando fio de ouro.40

Pintam que nos conduz dourada sege nossa habitao; que mil Amores Desfolham sobre o leito as molhes folhas Das mais cheirosas flores. Pintam que desta terra nos partimos; Que os amigos saudosos, e suspensos Apertam nos inchados, roxos olhos Os j molhados lenos. Pintam que os mares sulco da Bahia; Onde passei a flor da minha idade; Que descubro as palmeiras, e em dois bairros Partida a gr Cidade. Pintam leve escaler, e que na prancha O brao j te of'reo reverente; Que te aponta c'o dedo, mal te avista, Amontoada gente. Aqui, alerta, grita o mau soldado; E o outro, alerta estou, lhe diz gritando: Acordo com a bulha, ento conheo, Que estava aqui sonhando. Se o meu crime no fosse s de amores, A ver-me delinqente, ru de morte, No sonhara, Marlia, s contigo, Sonhara de outra sorte. [...] Lira XVIII Eu, Marlia, no fui nenhum Vaqueiro, Fui honrado Pastor da tua aldeia; Vestia finas ls, e tinha sempre A minha choa do preciso cheia. Tiraram-me o casal, e o manso gado, Nem tenho, a que me encoste, um s cajado. Para ter que te dar, que eu queria De mor rebanho ainda ser o dono; Prezava o teu semblante, os teus cabelos Ainda muito mais que um grande Trono. Agora que te oferte j no vejo Alm de um puro amor, de um so desejo.

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Se o rio levantado me causava, Levando a sementeira, prejuzo, Eu alegre ficava apenas via Na tua breve boca um ar de riso. Tudo agora perdi; nem tenho o gosto De ver-te aos menos compassivo o rosto. Propunha-me dormir no teu regao As quentes horas da comprida sesta, Escrever teus louvores nos olmeiros, Toucar-te de papoulas na floresta. Julgou o justo Cu, que no convinha Que a tanto grau subisse a glria minha. Ah! minha Bela, se a Fortuna volta, Se o bem, que j perdi, alcano, e provo; Por essas brancas mos, por essas faces Te juro renascer um homem novo; Romper a nuvem, que os meus olhos cerra, Amar no Cu a Jove, e a ti na terra. Fiadas comprarei as ovelhinhas, Que pagarei dos poucos do meu ganho; E dentro em pouco tempo nos veremos Senhores outra vez de um bom rebanho. Para o contgio lhe no dar, sobeja Que as afague Marlia, ou s que as veja. Se no tivermos ls, e peles finas, Podem mui bem cobrir as carnes nossas As peles dos cordeiros mal curtidas, E os panos feitos com as ls mais grossas. Mas ao menos ser o teu vestido Por mos de amor, por minhas mo cosido. Ns iremos pescar na quente sesta Com canas, e com cestos os peixinhos: Ns iremos caar nas manhs frias Com a vara envisgada os passarinhos. Para nos divertir faremos quanto Reputa o varo sbio, honesto e santo. Nas noites de sero nos sentaremos Cos filhos, se os tivermos, fogueira; Entre as falsas histrias, que contares, Lhes contars a minha verdadeira. Pasmados te ouviro; eu entretanto Ainda o rosto banharei de pranto.42

Quando passarmos juntos pela rua, Nos mostraro co dedo os mais Pastores; Dizendo uns para os outros: "Olha os nossos "Exemplos da desgraa, e so amores. Contentes viveremos desta sorte, At que chegue a um dos dois a morte. [...] Lira XXIV Que diversas que so, Marlia, as horas, Que passo na masmorra imunda, e feia, Dessas horas felizes, j passadas Na tua ptria aldeia! Ento eu me ajuntava com Glauceste; E sombra de alto Cedro na campina Eu versos te compunha, e ele os compunha sua cara Eulina. Cada qual o seu canto aos Astros leva; De exceder um ao outro qualquer trata; O eco agora diz: "Marlia terna; E logo: "Eulina ingrata. Deixam os mesmos Stiros as grutas. Um para ns ligeiro move os passos; Ouve-nos de mais perto, e faz a flauta Cos ps em mil pedaos. "Dirceu, clama um Pastor, ah! bem merece "Da cndida Marlia a formosura. "E aonde, clama o outro, quer Eulina "Achar maior ventura? Nenhum Pastor cuidava do rebanho, Enquanto em ns durava esta porfia. E ela, minha Amada, s findava Depois de acabar-se o dia. noite te escrevia na cabana Os versos, que de tarde havia feito; Mal tos dava, e os lia, os guardavas No casto e branco peito. Beijando os dedos dessa mo formosa, Banhados com as lgrimas do gosto,43

Jurava no cantar mais outras graas, Que as graas do teu rosto. Ainda no quebrei o juramento, Eu agora, Marlia, no as canto; Mas inda vale mais que os doces versos A voz do triste pranto. [...] Lira XXXVIII Eu vejo aquela Deusa, Astria pelos sbios nomeada; Traz nos olhos a venda, Balana numa mo, na outra espada. O v-la no me causa um leve abalo, Mas, antes, atrevido, Eu a vou procurar, e assim lhe falo: Qual o povo, dize, Que comigo concorre no atentado? Americano Povo! O Povo mais fiel e mais honrado! Tira as Praas das mos do injusto dono, Ele mesmo as submete De novo sujeio do Luso Trono! Eu vejo nas histrias Rendido Pernambuco aos Holandeses; Eu vejo saqueada Esta ilustre Cidade dos Franceses; L se derrama o sangue Brasileiro; Aqui no basta, supre Das roubadas famlias o dinheiro... Enquanto assim falava, Mostrava a Deusa no me ouvir com gosto; Punha-me a vista tesa, Enrugava o severo e aceso rosto. No suspendo contudo no que digo; Sem o menor receio, Fao que a no entendo, e assim prossigo: Acabou-se, tirana, A honra, o zelo deste Luso Povo? No aquele mesmo, Que estas aes obrou? outro novo? E pode haver direito, que te mova44

A supor-nos culpados, Quando em nosso favor conspira a prova? H em Minas um homem, Ou por seu nascimento, ou seu tesouro, Que aos outros mover possa fora de respeito, fora douro? Os bens de quantos julgas rebelados Podem manter na guerra, Por um ano sequer, a cem soldados? Ama a gente assisada A honra, a vida, o cabedal to pouco, Que ponha uma ao destas Nas mos dum pobre, sem respeito e louco? E quando a comisso lhe confiasse, No tinha pobre soma, Que por paga, ou esmola, lhe mandasse! Nos limites de Minas, A quem se convidasse no havia? Ir-se-iam buscar scios Na Colnia tambm, ou na Bahia? Est voltada a Corte Brasileira Na terra dos Suos, Onde as Potncias vo erguer bandeira? O mesmo autor do insulto Mais a riso, do que a temor me move; Dou-lhe nesta loucura, Podia-se fazer Netuno ou Jove. A prudncia trat-lo por demente; Ou prend-lo, ou entreg-lo Para dele zombar a moa gente. Aqui, aqui a Deusa Um extenso suspiro aos ares solta; Repete outro suspiro, E sem palavra dar, as costas volta. Tu te irritas! lhe digo e quem te ofende? Ainda nada ouviste Do que respeita a mim; sossega, atende. E tinha que ofertar-me Um pequeno, abatido e novo Estado, Com as armas de fora, Com as suas prprias armas consternado? Achas tambm que sou to pouco esperto,45

Que um bem to contingente Me obrigasse a perder um bem j certo? No sou aquele mesmo, Que a extino do dbito pedia? J viste levantado Quem sombra da paz alegre ria? Um direito arriscado eu busco, e feio, E quero que se evite Toda a razo do insulto, e todo o meio? No sabes quanto apresso Os vagarosos dias da partida? Que a fortuna risonha, A mais formosos campos me convida? Daqui nem ouro quero; Quero levar somente os meus amores. Eu, cega, no tenho Um grosso cabedal, do mais herdado: No o recebi no emprego, No tenho as instrues dum bom soldado, Far-me-iam os rebeldes o primeiro No imprio que se erguia custa do seu sangue, e seu dinheiro? Aqui, aqui de todo A Deusa se perturba, e mais se altera; Morde o seu prprio beio; O stio deixa, nada mais espera. Ah! vai-te, ento lhe digo, vai-te embora; Melhor, minha Marlia, Eu gastasse contigo mais esta hora.

Soneto Obrei quando o discurso me guiava, Ouvi aos sbios quando errar temia; Aos bons no gabinete o peito abria, Na rua a todos como iguais tratava. Julgando os crimes nunca os votos dava Mais duro, ou pio do que a Lei pedia; Mas devendo salvar ao justo, ria, E devendo punir ao ru, chorava.

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No foram, Vila Rica, os meus projetos Meter em frreo cofre cpia douro Que farte aos filhos, e que chegue aos netos: Outras so as fortunas, que me agouro, Ganhei saudades, adquiri afetos, Vou fazer destes bens melhor tesouro.

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