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poemas obsessivos

poemas obsessivos

mikaelly andrade

para @s leitor@s, com gratidão e afeto

Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me

atrapalha a vida é escrever.

Clarice Lispector

Nota

Esta série, intitulada Poemas obsessivos, foi

publicada inicialmente na rede social Instagram;

separada em dez partes e com seis poemas cada

uma. Aqui estão publicados apenas metade, ou

seja, trinta dos sessenta poemas que haviam sido

compartilhados. As partes sobre gatos e sobre

Fortaleza ficaram completamente de fora desta

edição. Alguns poemas sofreram uma leve

modificação.

M.

|sobre poemas

*

tenho predileção por poemas

que atravessam a paisagem

o quintal na casa da minha avó

era um poema todo escrito de melancolia

as paredes cinzas

quase cobertas com lodo

seu quarto era algo tão solitário

quanto a sua ausência

a cama sempre arrumada

tudo no lugar

como se ninguém dormisse ali há anos

porém, não havia poeira

mas havia sombras

o corredor me acompanhava até a cozinha

junto com um sentimento

tão preenchido de amor e quentura

que às vezes eu achava ser mormaço

seu rosário atravessa o tempo

que atravessa meu corpo

que atravessa a tristeza

que atravessa a certeza

de que esse poema me atravessa

mas permanece

*

acordar com um poema

saltando das pálpebras

me faz perder o sono

e escrever um poema

é devorar o tempo

por causa dos sonhos

todo dia usar o poema

como remédio para sobreviver

ao cotidiano

*

eu queria escrever um poema

que te atingisse em cheio

e te fizesse sentir uma fisgada

no peito

eu queria escrever um poema

que falasse através do silêncio

e ainda assim fizesse um estardalhaço

eu queria escrever um poema

que pulasse

do

a

b

i

s

m

o

*

peguei uma pedra

e esfreguei

contra a minha bochecha

esfoliei a pele

e fiz um poema na face

*

algum poema poderia salvar o mundo (?)

algum poema te faria feliz (?)

algum poema descreveria a grandiosidade da vida

(?)

algum poema seria importante (?)

algum poema passaria despercebido (?)

algum poema poderia tirar seu fôlego (?)

*

é preciso cair 290 vezes

correr de olhos fechados

e guardar água gelada

na boca

para ter certeza

que um poema

será escrito

mas antes disso

correr o perigo

do poema escapar

e só se conseguir

um joelho esfolado

e as bochechas frias

|sobre saudade

*

a saudade é isso:

“cada vez mais dentro e distante”

*

talvez não seja normal

escutar sua voz quando você nem está

e provavelmente

acordar de sobressalto

por causa do seu toque

pode parecer loucura

contemplar seu olhar em uma fotografia e

jurar que você me observa de volta, também

enquanto sinto seu perfume no ar

e os lábios se movem no ímpeto de te beijar

fico na vontade

sorrio e você me devolve

talvez seja a sonolência

a mesma que você possui

e me envolve

*

eu me lembro do primeiro poema que escrevi, tão

bobo e puro feito o primeiro amor

eu me lembro da primeira vez que me afoguei no

mar e senti a água salgada invadir minhas narinas

e me sufocar

eu me lembro do dia em que minha avó faleceu e do

quanto a dor era insuportável

eu me lembro da primeira vez que adotei um gato

de rua e prometi amá-lo para sempre

eu me lembro do dia em que pari meu filho e a dor

foi uma ferramenta para trazê-lo a esse mundo

imundo

eu me lembro de minha embriaguez exagerada e o

vômito grudado em meus cabelos

eu me lembro da sensação reconfortante de chorar

intensamente até cair no sono depois de brigarmos

eu me lembro de ter desistido inúmeras vezes de

mim mesma

eu me lembro de não querer mais acordar diante de

tanto horror

eu me lembro do dia em que caí de cara no

calçamento e quebrei um dente

eu me lembro também da reação da minha mãe que

me encorajou a levantar e continuar correndo

apesar do sangue e da dor

*

a saudade é muito mais que a ausência da sua

presença

é a sua presença indestrutível em meu ser

porém tão líquida e impossível de tocar

que escorre entre os meus dedos

mas permanece em meu coração

|sobre livros

*

ninguém mais poderá dizer

que livros são bobagens

algo que amplia seu olhar

que modifica seu pensamento

que altera seu comportamento

em nenhum instante pode ser

considerado como supérfluo

alguns livros já transformaram

o meu ser tantas vezes

que eu carrego em mim

todos os sonhos do mundo

*

respira, respira, respira

enquanto sua vaga existência

assombra a si mesmo

direito ao grito

quem tem?

a fome? a moça?

a vida lhe assusta a aparência?

que moça ingênua

consome o cotidiano

com alegria infantil

estampada em sua face opaca

esse tipo de moça

“dorme até o nunca”

e acaba sem cintilar

é uma estrela cadente

|sobre corpo

*

até os dentes caírem

leva muito tempo para entender

que o seu lar é você.

a estrutura não foi

de seu planejamento

e é preciso resistir

à crueldade da sociedade

para se amar de verdade

e ocupar esse lar

que é seu próprio corpo

mesmo que torto

com manchas

e gordurinhas

seu corpo é a sua casinha!

*

meu corpo vai caindo

conto os segundos

e confesso que no trajeto da queda

a cabeça pesa mais que todo o resto

os problemas vão me corroendo

a angústia continua me sugando

catorze segundos

saiu o coração pela boca

e parou

diante da complexidade

de existir

*

seu líquido invade meu corpo

como uma correnteza

o líquido vai se transformando

em grande onda

tsunami

que arrebenta-se em mares

inunda florestas

e proclama liberdade

*

um corpo cria cai e quebra

um corpo sob um corpo sobre um corpo é só um corpo

exposto vigiado estudado analisado corrompido petrificado

“um corpo é um corpo” mas nem sempre autorizado a mostrar-se como corpo

quebra cai um corpo no chão, exposto

|sobre (a)mar

*

quando te senti navegando

em alto-mar – meu próprio corpo

rebelei-me em redemoinho

e tu

ao perceber que a embarcação

afundava

procurou botes

mas já era tarde

tu já estava mergulhado

em (minha) profundidade

perdendo o fôlego

e engolindo

a minha saliva-espuma

*

suas lágrimas vêm e vão

em ondas

espumantes

na margem da sua órbita

e desfazem

suas expressões

como na beira-mar

*

o sol

o sal

o mar

amar

agora

*

a respiração

descontrolada

misturando-se

ao descompasso

do coração

quase a morrer

nesse mar

de perdição

|sobre cotidiano

*

um copo quebrado

habita o chão da cozinha

junto com o vinho

espalhado e escorrendo

como se fosse um rio calmo

que se une ao mar

vermelho de sangue

a mulher ali

estática

o homem a observá-la

cava dentro de si mesmo

uma cova rasa

*

virar-se de costas

e perceber

que dentes, facas e garfos

estão cravados

em você

virar-se de costas

e partir

como se as traições

decepções e mentiras

não estivessem

sendo carregadas

em suas próprias costas

feito uma mochila

*

vez em quando

preciso me recolher em uma trincheira

para impedir que alguns acontecimentos

não me sangrem por inteira

faço-me de fuzileira

esboço uma estratégia

e habito nesse abrigo

que só serve aos combatentes

*

paredes atravessam

a minha rotina como labirintos

esbarro de cara em muitas delas

deixo o instante que corrói

a tinta do meu quarto

e esqueço de atingir o que é

voraz

|sobre infância

*

a casa

o quintal

(onde havia um cachorro de sorriso engraçado e

fácil)

o quarto de minha mãe

(onde agora choro no escuro)

a cozinha

(onde passei todas as manhãs de minha infância,

reparando no zelo de minha mãe e o esmero com

que ela preparava a nossa comida)

a sala

(dando boas-vindas aos objetos)

o meu quarto

(agora vazio e sem significado)

o quarto do meu irmão

(onde meu filho agora dorme)

a varanda

(toda claridade e cheia com os meus gatos)

a escada

(onde caí várias vezes e aprendi a chorar em

silêncio)

*

férias de julho

subíamos no pé de goiaba (?)

não lembro se era goiaba ou...

porém recordo-me da algazarra

no quintal enorme

do suor forte

escorrendo pelo corpo

recordo-me das estórias

mal-assombradas

dos passos pela casa

e o converseiro nervoso

pela noite

lembro-me da reza forçada

e das bengaladas

que estralavam nos ossos...

|sobre mulheres

*

no entardecer do horário

mais temido e admirado – ocaso

pendo o pescoço para o lado

os olhos reviram

em tentativas fracassadas

de fuga [de busca (?)]

um delírio

me prende a atenção

meu estado é líquido

vermelho-amargo

que tinge todo o céu

e invade os teus olhos

incendiários

*

abrir os olhos

e preparar-se

para colidir com

tempos traiçoeiros

uma pausa breve

diante do assombro

de existir

depois disso

alcançar o êxtase

de se tornar

a mulher que você

sempre quis ser

*

é preciso que haja intervenção

para que a sua “receita de mulher”

não se torne uma forma padrão

para me significar

pelo contrário,

só me faz sufocar

deveria eu criar alternativas

depois de despejar

a minha selvageria

pois ostentar certezas

não elimina a fraqueza

nem as derrotas

dessa batalha

e se rasgo minha pele

com dentes afiados

para caber dentro da imensidão

em que me tornei

é porque transbordei

retirar fiapos da minha pele

que restam entre os meus dentes

me incomodam

mas é um momento necessário

para o esvaziamento

da imundície que antes me habitava

limpo a sujeira de mim mesma

e a devoro

*

sangue que escorre:

entre as pernas por dentro das veias se esvai do peito

encharca o chão de concreto e te faz lamber os beiços

será que também te faz lembrar

que eu sou eu sou

eu sou

mulher-humana não-objeto mais que bunda e peito não sou produto

de consumição não estou à venda

nem à vontade com essa forma de você utilizar sua “expressão”

que me come com os olhos e me fere com as mãos

sobre a autora

Mikaelly Andrade (10 de março de 1990) é natural

de Quixeramobim (CE). É poeta e contista. Publicou seu primeiro livro, Descompasso, de forma

independente. Além de Descompasso, a autora tem em seu portfólio a participação na Antologia de contos Literatura BR (Editora Moinhos, 2016) e Coletânea de contos Sesc (2017), o zine Alguns versos pervertidos e outros indecorosos (Independente, 2016) e colaborações em publicações literárias. A poeta também criou o

projeto literário Escritoras Cearenses (@escritorasce) e organizou a Antologia de poemas eróticos – Escritoras cearenses. Poemas obsessivos é o seu segundo livro.

© Mika Andrade, 2017

Projeto Gráfico, Capa e Diagramação

Mika Andrade

Revisão

Renata Arruda

1ª edição. Fortaleza. 2017

Nesta edição, respeitou-se o novo

Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Andrade, Mika

Descompasso | Mika Andrade

I. Poesia II. Poesia brasileira

[2017]

Todos os direitos reservados à

Mika Andrade.

Contato:

Email: [email protected]

Instagram: @miklandrade

www.mikaandrade.wordpress.com