Poemas Mario de Sa Carneiro

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ESTÁTUA FALSA Só de ouro falso os meus olhos se douram; Sou esfinge sem mistério no poente. A tristeza das coisas que não foram Na minha'alma desceu veladamente. Na minha dor quebramse espadas de !nsia" #omos de luz em treva se misturam. As sombras que eu dimano não perduram" $omo %ntem" para mim" &o e é dist!ncia. () não estreme*o em face do segredo; Nada me aloira )" nada me aterra+ A vida corre sobre mim em guerra" , nem sequer um arrepio de medo- Sou estrela ébria que perdeu os céus" Sereia louca que dei ou o mar; Sou templo prestes a ruir sem deus" ,st)tua falsa ainda erguida ao ar... Dispersão " /aris" 0 de 1aio de 2324 CARANGUEJOLA Ah" que me metam entre cobertores" , não me fa*am mais nada-... 5ue a porta do meu quarto fique para sempre fechada" 5ue não se abra mesmo para ti se tu l) fores- 6ã vermelha" leito fofo. 7udo bem calafetado... Nenhum livro" nenhum livro 8 cabeceira... 9a*am apenas com que eu tenha sempre a meu lado :olos de ovos e uma garrafa de 1adeira. Não" não estou para mais; não quero mesmo brinquedos. /ra qu < Até se mos dessem não saberia brincar... 5ue querem fazer de mim com estes enleios e medos< Não fui feito pra festas. 6arguemme- =ei emme sossegar-... Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas" , eu aninhado a dormir" bem quentinho> que amor-... Sim+ ficar sempre na cama" nunca me er" criar bolor > /lo menos era o sossego completo... &istória- ,ra a melhor das vidas... Se me doem os pés e não sei andar direito" /ra que heide teimar em ir para as salas" de 6ord< ?amos" que a minha vida por uma vez se acorde $om o meu corpo" e se resigne a não ter eito... =e que me vale sair" se me constipo logo< , quem posso eu esperar" com a minha delicadeza<... =ei ate de ilus@es" 1)rio- :om édredon " bom fogo > , não penses no resto. ) bastante" com franqueza... =esistamos. A nenhuma parte a minha !nsia me levar).

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poemas do artista português Mario de Sá Carneiro, contemporâneo de Fernando Pessoa.

Transcript of Poemas Mario de Sa Carneiro

ESTTUA FALSA

S de ouro falso os meus olhos se douram;Sou esfinge sem mistrio no poente.A tristeza das coisas que no foramNa minha'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de nsia,Gomos de luz em treva se misturam.As sombras que eu dimano no perduram,Como Ontem, para mim, Hoje distncia.

J no estremeo em face do segredo;Nada me aloira j, nada me aterra:A vida corre sobre mim em guerra,E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela bria que perdeu os cus,Sereia louca que deixou o mar;Sou templo prestes a ruir sem deus,Esttua falsa ainda erguida ao ar...

Disperso, Paris, 5 de Maio de 1913

CARANGUEJOLA

Ah, que me metam entre cobertores,E no me faam mais nada!...Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,Que no se abra mesmo para ti se tu l fores!

L vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...Nenhum livro, nenhum livro cabeceira...Faam apenas com que eu tenha sempre a meu ladoBolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

No, no estou para mais; no quero mesmo brinquedos.Pra qu? At se mos dessem no saberia brincar...Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?No fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,E eu aninhado a dormir, bem quentinho que amor!...Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor Plo menos era o sossego completo... Histria! Era a melhor das vidas...

Se me doem os ps e no sei andar direito,Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?Vamos, que a minha vida por uma vez se acordeCom o meu corpo, e se resigne a no ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...Deixa-te de iluses, Mrio! Bomdredon, bom fogo E no penses no resto. j bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha nsia me levar.Pra que hei-de ento andar aos tombos, numa intil correria?Tenham d de mim. Co'a breca! levem-me pr enfermaria! Isto , pra um quarto particular que o meu Pai pagar..

Justo. Um quarto de hospital, higinico, todo branco, moderno e tranquilo;Em Paris, prefervel, por causa da legenda...De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir s quintas-feiras,Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.Agora no meu quarto que tu no entras, mesmo com as melhores maneiras...Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

ltimos Poemas, Paris, Novembro 1915

MANUCURE

Na sensao de estar polindo as minhas unhas,Sbita sensao inexplicvel de ternura,Tudo me incluo em Mim piedosamente.Entanto eis-me sozinho no Caf:De manh, como sempre, em bocejos amarelos.De volta, as mesas apenas ingratasE duras, esquinadas na sua desgraciosidadeBocal, quadrangular e livre-pensadora...Fora: dia de Maio em luzE sol dia brutal, provinciano e democrticoQue os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinosNem podem tolerar e apenas forcadosSuportam em nuseas. Toda a minha sensibilidadeSe ofende com este dia que h-de ter cantoresEntre os amigos com quem ando s vezes Trigueiros, naturais, de bigodes fartos Que escrevem, mas tm partido polticoE assistem a congressos republicanos,Vo s mulheres, gostam de vinho tinto,De peros ou de sardinhas fritas...E eu sempre na sensao de polir as minhas unhasE de as pintar com um verniz parisiense,Vou-me mais e mais enternecendoAt chorar por Mim...Mil cores no Ar, mil vibraes latejantes,Brumosos planos desviadosAbatendo flechas, listas volveis, discos flexveis,Chegam tenuamente a perfilar-meToda a ternura que eu pudera ter vivido,Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,Todos os cenrios que entretanto Fui...Eis como, pouco a pouco, se me focaA obsesso dbil dum sorrisoQue espelhos vagos reflectiram...Leve inflexo a sinusar...Fino arrepio cristalizado...Inatingvel deslocamento...Veloz falha atmosfrica...

E tudo, tudo assim me conduzido no espaoPor inmeras interseces de planosMltiplos, livres, resvalantes.

l, no grande Espelho de fantasmasQue ondula e se entregolfa todo o meu passado,Se desmorona o meu presente,E o meu futuro j poeira...

Deponho ento as minhas limas,As minhas tesouras, os meusgodetsde verniz,Os polidores da minha sensao E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,Varar a sua Beleza sem suporte, enfim! Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,Alastra e expande em vibraes:Subtilizado, sucessivo perptuo ao Infinito!...

Que calotes suspensas entre ogivas de runas,Que tringulos slidos pelas naves partidos!Que hlices atrs dum voo vertical!Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de tnis! Que loiras oscilaes se ri a boca da jogadora...Que grinaldas vermelhas, que leques, se a danarina russa,Meia nua, agita as mos pintadas da SalomNum grande palco a Oiro! Que rendas outros bailados!

Ah! mas que inflexes de precipcio, estridentes, cegantes,Que vrtices brutais a divergir, a ranger,Se facas de apache se entrecruzamAltas madrugadas frias...E pelas estaes e cais de embarque,Os grandes caixotes acumulados,As malas, os fardos ple-mle...Tudo inserto em Ar,Afeioado por ele, separado por eleEm mltiplos interstciosPor onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...

beleza futurista das mercadorias!

Sarapilheira dos fardos,Como eu quisera togar-me de Ti! Madeira dos caixotes,Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!E os pregos, as cordas, os aros... Mas, acima de tudo,Como bailam faiscantes,A meus olhos audazes de beleza,As inscries de todos esses fardos Negras, vermelhas, azuis ou verdes Gritos de actual e Comrcio & IndstriaEm trnsito cosmopolita:

FRGIL! FRGIL!

843 AG LISBON

492 WR MADRID

vido, em sucesso da nova Beleza atmosfrica,O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorv-la minha volta. E a que mgicas, e m verdade, tudo baldeadoPelo grande fluido insidioso,Se volve, de grotesco clere,Impondervel, esbelto, leviano... Olha as mesas... Eia! Eia!L vo todas no Ar s cabriolas,

Em sries instantneas de quadradosAli mas j, mais longe, em losangos desviados...E entregolfam-se as filas indestrinavelmente,E misturam-se s mesas as insinuaes berrantesDas bancadas de veludo vermelhoQue, ladeando-o, correm todo o Caf...E, mais alto, em planos oblquos,Simbolismos areos de herldicas tnuesDeslumbra m os xadrezes dos fundos de palhinhaDas cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,V l, se erguem tambm na sarabanda...

Meus olhos ungidos de Novo,Sim! meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,No param de fremir, de sorver e faiscarToda a beleza espectral, transferida, sucednea,Toda essa Beleza-sem-Suporte,Desconjuntada, emersa, varivel sempreE livre em mutaes contnuas,Em insondveis divergncias... Quanto minha chvena banal de porcelana?

Ah, essa esgota-se em curvas gregas de nfora,Ascende num vrtice de espirasQue o seu rebordo frisado a oiro emite...

no ar que ondeia tudo! l que tudo existe!...

...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,Agora, chegam teorias de vrtices hialinosA latejar cristalizaes nevoadas e difusas.Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,Bailam no espao a tingi-lo em fantasias,Laos, grifos, setas, ases na poeira multicolor .

Poemas Dispersos, Lisboa Maio de 1915

CRISE LAMENTVEL

Gostava tanto de mexer na vida,De ser quem sou mas de poder tocar-lhe...E no h forma: cada vez perdidaMais a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a genteNo ter juzo nos meus livros masChegar ao fim do ms sempre com asDespesas pagas religiosamente.

No Ter receio de seguir pequenasE convid-las para me pr nelas minha Torre ebrnea abrir janelas,Numa palavra, e no fazer mais cenas.

Ter fora um dia pra quebrar as roscasDesta engrenagem que empenando vai. No mandar telegramas ao meu Pai, No andar por Paris, como ando, s moscas.

Levantar-me e sair no precisarDe hora e meia antes de vir pr rua. Pr termo a isto de viver na lua, Perder afroussedas correntes de ar.

No estar sempre a bulir, a quebrar coisasPor casa dos amigos que frequento No me embrenhar por histrias melindrosasQue em fantasia apenas argumento

Que tudo em fantasia alada,Um crime ou bem que nunca se cometePor meu Azar ou minha Zoina suada...

Poemas Dispersos, Paris Janeiro

O FANTASMA

O que farei na vida o EmigradoAstral aps que fantasiada guerra,Quando este Oiro por fim cair por terra,Que ainda Oiro, embora esverdinhado?

(De que Revolta ou que pas fadado?) Pobre lisonja, a gaze que me encerra...Imaginria e pertinaz, desferraQue fora mgica o meu pasmo aguado?

A escada suspeita e perigosa:Alastra-se uma ndoa duvidosaPela alcatifa os corrimes partidos...

Tapam com rodilhas o meu norte, As formigas cobriram minha Sorte, Morreram-me meninos nos sentidos...

Paris 21 Janeiro 1916.

EL-REI

Quando chego o piano estala agoiroE medem-se os convivas logo, inquietos Alargam-se as paredes, sobem tectos:Paira um Luxo de Adaga em mo de moiro.

Meu intento porm todo loiroE a cor-de-rosa, insinuando afectos.Mas ningum se me expande... Os meus dilectosFrenesis ningum brilha! Excesso de Oiro...

Meu Dislate a conventos longos ora:Pra medir minha Zoina, aqum e alm,S mstica, de alada, esguia cora.

Quem me convida mesmo no fez bem:Intruso ainda quando, viva fora,A sua casa me levasse algum.

Paris 30 Janeiro 1916.

AQUELOUTRO

O dbio mascarado o mentirosoAfinal, que passou na vida incgnitoO Rei-lua postio, o falso atnito;Bem no fundo o covarde rigoroso.

Em vez de Pajem bobo presunoso.Sua Ama de neve asco de um vmito.Seu nimo cantado como indmitoUm lacaio invertido e pressuroso.

O sem nervos nem nsia o papa aorda,(Seu corao talvez movido a corda...)Apesar de seus berros ao Ideal

O corrido, o raimoso, o deslealO balofo arrotando Imprio astralO mago sem condo, o Esfinge Gorda.

Paris Fevereiro 1916.

LTIMO SONETO

Que rosas fugitivas foste ali:Requeriam-te os tapetes e vieste... Se me di hoje o bem que me fizeste, justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolviQuando entraste, nas tardes que apareceste Como fui de percal quando me desteTua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansao Que seria entre ns um longo abraoO tdio que, to esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa ? Se deixasteA lembrana violeta que animasteOnde a minha saudade a Cor se trava?...

Indcios de Oiro, Paris Dezembro 1915

DISTANTE MELODIA

Num sonho de ris morto a oiro e brasa,Vem-me lembranas doutro Tempo azulQue me oscilava entre vus de tule -Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.

Ento os meus sentidos eram cores,Nasciam num jardim as minhas nsias,Havia na minha alma Outras distncias -Distncias que o segui-las era flores...

Caa Oiro se pensava Estrelas,O luar batia sobre o meu alhear-me... Noites-lagoas, como reis belasSob terraos-lis de recordar-me!...

Idade acorde de Inter-sonho e Lua,Onde as horas corriam sempre jade,Onde a neblina era uma saudade,E a luz anseios de Princesa nua...

Balastres de som, arcos de Amar,Pontes de brilho, ogivas de perfume...Domnio inexprimvel de pio e lumeQue nunca mais, em cor, hei-de habitar...

Tapetes de outras Prsias mais Oriente...Cortinados de Chinas mais marfim...ureos Templos de ritos de cetim...Fontes correndo sombra, mansamente...

Zimbrios-pantees de nostalgias,Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...Escadas de honra, escadas s, ao ar...Novas Bizncios-Alma, outras Turquias...

Lembranas fluidas... Cinza de brocado...Irrealidade anil que em mim ondeia... Ao meu redor eu sou Rei exilado,Vagabundo dum sonho de sereia..