Poemas Beckett

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[ três poemas de amor] cascando 1 fosse apenas o desespero da ocasião da descarga de palavreado perguntando se não será melhor abortar que ser estéril as horas tão pesadas depois de te ires embora começarão sempre a arrastar-se cedo de mais as garras agarradas às cegas à cama da fome trazendo à tona os ossos os velhos amores órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do que nunca com a fome negra a manchar-lhes as caras a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado nem nove meses nem nove vidas 2 a dizer outra vez se não me ensinares eu não aprendo a dizer outra vez que há uma última vez mesmo para as últimas vezes últimas vezes em que se implora últimas vezes em que se ama em que se sabe e não se sabe em que se finge uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz se não me amares eu não serei amado se eu não te amar eu não amarei palavras rançosas a revolver outra vez no coração

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poemas

Transcript of Poemas Beckett

[ trs poemas de amor]

cascando

1

fosse apenas o desespero daocasio dadescarga de palavreado

perguntando se no ser melhor abortar que ser estril

as horas to pesadas depois de te ires emboracomearo sempre a arrastar-se cedo de maisas garras agarradas s cegas cama da fometrazendo tona os ossos os velhos amoresrbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teussempre todas perguntando se ser melhor cedo de mais doque nuncacom a fome negra a manchar-lhes as carasa dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amadonem nove mesesnem nove vidas

2

a dizer outra vezse no me ensinares eu no aprendoa dizer outra vez que h uma ltima vezmesmo para as ltimas vezesltimas vezes em que se imploraltimas vezes em que se amaem que se sabe e no se sabe em que se fingeuma ltima vez mesmo para as ltimas vezes em que se dizse no me amares eu no serei amadose eu no te amar eu no amarei

palavras ranosas a revolver outra vez no coraoamor amor amor pancada da velha batedeirapilando o soro inalterveldas palavras

aterrorizado outra vezde no amarde amar e no seres tude ser amado e no ser por tide saber e no saber e fingire fingir

eu e todos os outros que te ho-de amarse te amarem

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a no ser que te amem

Textos para nada #4*

Samuel Beckett

Onde iria eu, se pudesse ir, o que seria, se pudesse ser, que diria, se tivesse uma voz, quem fala assim, dizendo-se eu? Responda simplesmente, algum responda simplesmente. o mesmo desconhecido de sempre, o nico para quem eu existo, na cova de minha inexistncia, da sua, da nossa, eis uma resposta simples. No pensando que ele me encontrar, mas que pode ele fazer, vivo e perplexo, sim, vivo, diga o que disser. Esquecer-me, ignorar-me, sim, seria o mais sensato, ningum melhor do que ele o sabe. Por que esta sbita amabilidade aps tanto abandono, fcil de compreender, o que ele se diz, mas no compreende. No estou na cabea dele, em lugar algum de seu velho corpo, e no entanto estou ali, para ele estou ali, com ele, donde toda a confuso. Isso deveria lhe bastar, ter-me encontrado ausente, mas no, ele me quer ali, com uma forma e um mundo, como ele, apesar dele, eu que sou tudo, como ele que no nada. E quando ele me sente sem existncia da sua que ele me quer privado, e vice-versa, louco, louco, ele est louco. Na verdade, ele me procura para me matar, para que esteja morto como ele, morto como os vivos. Tudo isso ele sabe, mas no adianta nada, sab-lo, eu no o sei, no sei nada. Ele se probe de raciocinar, mas no faz seno raciocinar, falso, como se isso pudesse ajudar. Ele cr balbuciar, cr balbuciando apreender meu silncio, calar-se de meu silncio, gostaria que fosse eu quem o fizesse balbuciar, claro que ele balbucia. Ele conta sua histria a cada cinco minutos, dizendo no ser sua, admitam que malicioso. Ele gostaria que fosse eu que o impedisse de ter uma histria, claro que ele no tem histria, isso razo de tentar impingir-me uma? Eis como ele raciocina, margem, tudo bem, mas margem de qu, isso que preciso ver. Ele me faz falar dizendo que no sou eu, admitam que excessivo, ele me faz dizer que no sou eu, eu que no digo nada. Tudo isso realmente grosseiro. Se ao menos me concedesse a terceira pessoa, como a suas outras quimeras, mas no, ele no quer seno a mim, para seu eu. Quando me tinha, quando me era, ele se apressou em me abandonar, eu no existia, ele no gostava daquilo, aquilo no era vida, claro que eu no existia, ele tampouco, claro que no era vida, agora ele a tem sua vida, que a perca, se quer paz, ainda assim... Sua vida, falemos dela, ele no gosta disso, ele compreendeu, de modo que no a dele, no ele, vocs pensam, fazer isso com ele, bom para Molloy, para Malone, eis os mortais, os felizes mortais, mas ele, vocs nem imaginam, passar por aquilo, ele que nunca se mexeu, ele que eu, considerando bem as coisas, e que coisas, e como consideradas, s tinha que no ter ido. assim que ele fala, esta noite, que me faz falar, que ele se fala, que eu falo, s tem eu, com minhas quimeras, esta noite, aqui, na terra, e uma voz que no emite som, porque no vai na direo de ningum, e uma cabea repleta de guerras cansadas e de mortos logo de p, e um corpo, j o ia esquecendo. Esta noite, digo esta noite, talvez de manh. E todas essas coisas, que coisas, minha volta, no mais as quero negar, no vale mais a pena. Se a natureza talvez rvores e pssaros, eles vo juntos, gua e ar, para que tudo possa continuar, no preciso saber os detalhes. Estou talvez sentado sob uma palmeira. Ou um quarto, mobiliado, tudo o que preciso para tornar a vida cmoda, mal iluminado, por causa do muro na frente da janela. O que fao, falo, fao falar minhas quimeras, s pode ser eu. Tenho que me calar tambm, e escutar, e ouvir ento os rudos do lugar, os rudos do mundo, vejam que esforo fao, para ser razovel. Eis minha vida, por que no, uma, se quiserem, se insistem absolutamente, no digo no, esta noite. Tem de haver uma, ao que parece, a partir do momento em que h fala, no preciso histria, uma histria no obrigatrio, somente uma vida, eis o engano que tive, um dos enganos, ter-me desejado uma histria, enquanto que a vida por si s basta. Estou progredindo, j era tempo, acabarei por conseguir calar minha boca suja, salvo previsto. Mas aquele que vai e vem, que d um jeito para mudar de lugar, sozinho, embora nada lhe acontea, evidentemente, aquele ali. De minha parte fico aqui, sentado, se estou sentado, frequentemente me sinto sentado, s vezes de p, um ou outro, ou deitado, eis outra possibilidade, frequentemente me sinto deitado, um dos trs, ou ajoelhado. O que conta estar no mundo, pouco importa a postura, desde que se esteja na terra. Respirar, tudo o que se pede, perambular no uma obrigao, receber tampouco, pode-se at crer-se morto condio de p-lo em evidncia, que regime mais tolerante pode ser imaginado, no sei, no imagino. Intil nestas condies me dizer noutro lugar, um outro, tal qual sou tenho tudo o que necessito mo, para fazer o que, no sei, o que tenho que fazer, eis-me novamente enfim s, que alvio deve ser isso. Sim, existem momentos como este momento, como esta noite, onde quase pareo restitudo ao factvel. Depois passa, tudo passa, estou de novo longe, tenho ainda uma longnqua histria, espero por mim ao longe para que minha histria comece, para que ela se acabe, e de novo esta voz no pode ser a minha. onde eu iria, se pudesse ir, aquele que seria, se pudesse ser.

RESPIRAO*

Samuel Beckett

________CORTINA1. Luz fraca sobre palco coberto de lixo de vrios tipos misturados. Mant-la aproximadamente cinco segundos.2. Choro fraco curto e, imediatamente, inspirao junto a um lento aumento de luz alcanando o ponto mximo de ambos em aproximadamente dez segundos. Silncio - mant-lo por aproximadamente cinco segundos.3. Expirao junto a uma lenta diminuio de luz, ambos alcanando o ponto mnimojuntos (luz como em 1), em aproximadamente dez segundos e, imediatamente, choro comoanteriormente. Silncio mant-lo por aproximadamente cinco segundos.CORTINA________LIXONada colocado verticalmente, tudo espalhado jazendo no cho.CHOROInstante do vagido de um recm-nascido gravado. Importante que os dois vagidos sejam idnticos; som ligado e desligado em perfeita sincronia com a luz e a respirao.RESPIRAOGravao amplificada.GRAU MXIMO DE LUZNo totalmente iluminado. Se 0 = escurido e 10 = total luminosidade, a luz deve mudar de3 a 6 e vice-versa.)