Poder prestígio e imagem no antigo convento de São Domingo… · minha vida, que ainda esteaste a...

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UNIVERSIDADE DO MINHO PÓLO DE AZURÉM – GUIMARÃES Núcleo de Estudos de População e Sociedade Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro Curso de Mestrado em Património e Turismo António José Leandro Costa Ferreira Vol. I

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UNIVERSIDADE DO MINHO PÓLO DE AZURÉM – GUIMARÃES

Núcleo de Estudos de População e Sociedade

Poder, prestígio e imagem no antigo convento de

São Domingos de Aveiro

Curso de Mestrado em Património e Turismo

António José Leandro Costa Ferreira

Vol. I

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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UNIVERSIDADE DO MINHO PÓLO DE AZURÉM – GUIMARÃES

Núcleo de Estudos de População e Sociedade

Poder, prestígio e imagem no antigo convento de

São Domingos de Aveiro

Curso de Mestrado em Património e Turismo

Orientadora

Professora Doutora Maria Manuela Milheiro

Mestrando

António José Leandro Costa Ferreira

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Não há prova possível, mas mesmo assim acredito

que seja verdade: existem lugares no mundo onde à

nossa chegada ou partida se acrescentam, de forma

misteriosa, as emoções de todos os que lá chegaram

ou de lá partiram antes de nós.

Cees Nooteboom,

O (des)caminho para Santiago

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ABREVIATURAS

A.U.C. – Arquivo da Universidade de Coimbra.

FLUC – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

IPPAR – Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico.

IPM – Instituto Português de Museus.

A.N.B.A. – Academia Nacional de Belas Artes.

FEDRAVE – Federação para o Desenvolvimento Regional de Aveiro.

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AGRADECIMENTOS

abe-me neste espaço executar um ante propósito que não se apresenta

menos dificultoso que a elaboração do restante trabalho que adiante se

desenvolverá, pois um labor desta índole leva sempre a auxiliar-nos de

muitos amásios que de uma forma ou de outra, mais ou menos directa, nos arrimam,

empunhando um remo para dilapidarem a nosso lado as ondas que se vão levantando

nas marés mais altercadas e tememos que neste ancho círculo nos esqueçamos de

alguns. Se assim avir fica desde já o meu mais profundo e sincero pedido de desculpas.

Por outro lado, a apresentação sequencial daqueles que gratulo não infere qualquer grau

hierárquico de importância ao meu reconhecimento.

Gostaria primeiramente agradecer a todos os professores dos diversos módulos do

Curso de Mestrado em Património e Turismo que ao longo das suas profícuas lições

foram contribuindo para a nossa riqueza e construção intelectual, permitindo que a

nossa forma de observar e analisar se tornasse mais complexa, por um lado, mas mais

esclarecedora por outro. Conquanto, sou adstrito, correndo o risco, não o realizando, de

cometer uma severa ingratidão, a destacar a minha dilecta orientadora, Professora

Doutora Manuela Milheiro, não só pelas facundas aulas de uma singularidade enleante,

mas também pela forma envolvente e afectuosa, perspicaz e de preponderante acuidade

como me foi orientando e esclarecendo nas dúvidas que me iam sobressaltando.

Aos colegas do mesmo curso que encetaram um desafio semelhante pelas afinadas

demonstrações de incentivo e pelos vivos momentos que me proporcionaram de

saudável discussão sobre os trabalhos que íamos parafusando. Todavia, dentre destes

tenho que aplicar uma especial referência ao, além de colega também amigo, Luís

Pereira porque trilhámos um caminho muito paralelo, amparando-nos mutuamente nos

momentos em que as nossas construções pareciam-nos desabar perante o desânimo.

Ao meu amigo José António Cristo pelos extensos momentos que desquitou para

comigo discutir benignamente diversas hipóteses que iam surgindo em torno de tantas

questões que pareciam não alcançar um enlace credível.

C

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A meu pai por todo o incentivo, a quem os anos o tornaram mais presente e ainda

lhe foram, e vão, concedendo a oportunidade de viver a sua experiência (e função)

paternal a qual tem querido expressá-la, demonstrando que nunca é tarde para aproveitar

tudo o que de bom a vida nos proporciona e que os mais nobres sentimentos mantêm-se

sempre vivos, ainda que por vezes apenas latentes.

Não teria qualquer sentido redigir estas linhas, sempre aquém do devido

merecimento, se não exultasse uma mulher que desempenhou uma importância capital

em todos e todos os sentidos neste longo processo iniciado em Outubro de 2001. À

Carla que se prepara para nos proporcionar, muito brevemente, o mais empíreo

acontecimento da natureza e da nossa vida, isto é, a transformação da existência noutra

essência, singela, inocente e pura, levando-nos à consumação de um outro trabalho

supremo: o caminhar na construção paulatina de uma nova vida humana!

Não quero de forma alguma esquecer aqueles que ao longo de toda a minha vida,

e deste trabalho também, foram um esteio, uma referência e uma impulsão na minha

construção e que a eles muito devo por estar hoje aqui, com desarcado gosto e gratidão,

a agraciá-los: aos meus irmãos, Augusto, Gabi e Zé dos quais não poderei separar os

respectivos consortes que se transformaram noutros fecundos “companheiros

irmanados”: à Mariazinha e ao imperecível Jorge que continuará sempre no nosso seio,

o qual já não poderá compartilhar, cá na Terra, da nossa alegria!

À minha mãe para a qual me vão carecendo as palavras porque quanto melhor

desejamos expressar o nossa agradecimento tanto menor nos aparentam ser todos e

quaisquer termos. Pela sua constante preocupação e atenção maternal ao longo de todos

estes anos da minha vida que permitiram que eu caminhasse livremente devido à sua

omnipresente “fantasmagoria couraçada” à minha retaguarda.

Propositadamente sobejei para as últimas renques aquelas acepções que teimam

em não desapertar do peito muito por culpa do nosso restrito domínio lexical que nem

ousam alcançar a minha verdadeira expressão fraternal e ainda mais por causa das

eternas saudades que vou olvidando com os sorrisos das festivas recordações. Ao Quim,

a quem dedico especialmente este trabalho, efectivo companheiro paternal da viagem da

minha vida, que ainda esteaste a bandeira deste meu labor com agigantado orgulho, mas

que a vida não te assentiu que transpusesses a linha de meta de mãos dadas comigo,

deixando, porém, a alegria de guardar o teu coração sempre ao lado do meu e de me

trajar com as roupagens de toda a tua expressão, ensinamentos e indulgências!

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INTRODUÇÃO

execução deste trabalho apresentava-se como uma aventura de

descoberta e exploração e a sua exequidade nem sempre se apresentava

como um caminho fácil, nem tampouco de respostas claras e directas

às muitas questões que se têm levantado em torno da fundação, existência e vivência

dos frades pregadores na urbe aveirense e do espólio que assinalou a sua presença. É

certo que ao longo dos difusos e lentos anos muitas informações têm sido dadas a lume

da curiosidade e da indagação, mas estas nem sempre contêm uma linha condutora

devido aos muitos espaços em branco que vão teimando em se manter e inquietando o

cógito porque a documentação ou escasseia, ou não responde de forme convincente às

problemáticas levantadas e estudadas. Conquanto, os trabalhos e artigos dispersos que já

foram sendo redigidos, principalmente por ilustres aveirenses que sempre pugnaram

pela identidade da sua região, tais como José Rangel de Quadros, António da Rocha

Madhaíl, Alberto Souto, ou mesmo por aqueloutros, dos quais alguns por esta região se

deixaram encantar, como Pinho Leal, João Almeida ou mais próximo de nós António

Nogueira Gonçalves, começam a carecer de um fio unitário de maneira a revesti-los da

importância merecida que se encontra ainda subvalorizada, sentindo-nos obrigados, pelo

mérito próprio que grangearam, a destacar as desaparecidas e riquíssimas publicações

periódicas do Arquivo do Distrito de Aveiro. Por outro lado, fruto de investigações mais

recentes, como as de Maria João Violante Silva, Inês Amorim, Amaro Neves, João

Gonçalves Gaspar, estes dois últimos autóctones, entre muitos outros, certas lacunas ou

equívocos que eram veiculados em algumas das mais anciãs análises, às quais teremos

sempre que prestar a devida homenagem pelo pioneirismo, capacidade empreendedora e

espírito de investigação, apesar dos alquebrados recursos, começam a contribuir para

um conhecimento mais profícuo e a cooperar para a coesão e identificação histórica

social e cultural da comunidade aveirense.

Foram muitas obras dos supracitados e ainda de análogos autores que nos

serviram de base para a nossa esquadrinhadura de forma a compilar as informações

A

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dispersas num epítome que desenvolvesse o que tem sido abordado, como a fundação e

a evolução arquitectónica do edifício eclesiástico, por um lado; por outro, analisando e

criticando, algumas vezes contrariando opiniões já expressas e até um pouco cimentadas

e, consequentemente, apresentando a exigida argumentação justificativa, nomeadamente

no que se refere ao espólio herdado dos frades que se mantém no actual templo

catedralício, mas também no que concerne a pequenas questões históricas e até

construtivas; e, ainda por mais outro lado, aprofundado outras contendas, não muito

bem esclarecidas, e campos e temáticas que até agora não lhes tem sido dada relevância,

como é o caso da pintura.

Perante tal, decidimos dividir o trabalho em duas latas partes: uma dedicada à

evolução arquitectónica, sem deixar de realizar as abordagens estritamente necessárias

ao contexto histórico que levou à implantação dos dominicanos no seio desta

comunidade e ao processo de fundação e reconhecimento, mas antecedido de pequenos

intróitos expressos à história da urbe, ao fundador, Senhor de Aveiro e Duque de

Coimbra, o Infante D. Pedro e também um apêndice histórico da ordem religiosa, a sua

apropinquada ao nosso território nacional e a prédica e prática daqueles frades. A outra

parte do labor foi destinada a algum espólio, mormente o de maiores dimensões e que

desempenhava importantes funções eucarísticas, apelativas e exegéticas, nomeadamente

a talha dourada e policroma, a retabulária em pedra e as pinturas que com estes

elementos se ligam e que contribuem para a sua composição material e religiosa.

Relativamente à documentação contemporânea dos séculos da existência cenobita

ela rareia: no Arquivo Nacional Torre do Tombo encontram-se, à sua guarda, alguns

documentos régios, mas estes também estão disponíveis, em treslados, no conjunto

documental do Arquivo da Universidade de Coimbra. Estes livros são o fundo que

adveio do próprio convento, pois foi concedida autorização aos frades para possuírem o

seu “cartório”, levando a cabo, a partir dos inícios do século XVII, um trabalho

manuscrito de tresladar e coligir toda a documentação avulsa existente conhecida

referente ao agregado religioso. As actas camarárias anteriores ao século XIX, que

supostamente pudessem estabelecer qualquer relação, também são poucas e muito

dispersas cronologicamente, não havendo qualquer afinidade destas com o mosteiro

dominicano, excepto após a extinção da ordem e consequente nacionalização dos bens

daqueles conventuais que acabaram por vir a desempenhar outras funções. Nos fundos

notariais do Arquivo Distrital de Aveiro não nos deparámos com qualquer nova

informação relevante para o nosso trabalho, muito por culpa de Domingos Pinho

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Brandão que já havia pesquisado aqueles manuscritos e publicado alguma

documentação. Por vezes encontram-se alguns documentos ligados com frades

dominicanos, mas tratando-se de actos isolados, independentes e desligados da sua

comunidade, somente ressalvando que eram religiosos de São Domingos.

Foi, efectivamente, o fundo conventual que ainda se encontra no Arquivo da

Universidade de Coimbra, divulgado por António da Rocha Madhaíl quando foi director

daquela instituição, que nos deu alguma informação para a nossa pesquisa. Não se

encontram no desejável estado de conservação e inclusivamente um dos volumes

intitulado Livro do Tombo de São Domingos d’ Aveiro dos casais da Ventosa e Eirol,

feito no ano de 1810 parece ter desaparecido apesar de se encontrar incluso na lista

apresentada por aquele director supra identificado e na própria catalogação e

inventariação actual do arquivo. Contudo, os livros são muito mais de índole económica

e de património fradesco: são autos de reconhecimento e delimitação de terrenos rurais

e urbanos, desde vinhas, milheiros a outros tipos de campos agrícolas, marinhas,

terrenos baldios, pardieiros e casas, até às rendas e tenças auferidas devido ao

arrendamento e aforamento desse património. A justificação para a messe daquelas

posses permitem-nos perceber como as adquiriram, sendo a forte maioria bens oriundos

de mão-morta. Serão deveras interessantes e importantes para uma história económica

monacal ou para o estudo da fé, da crença e da morte e suas relações e repercussões

sociais. Apesar disto retirámos algumas informações que nos pareceram consideráveis

para o âmbito e campo da nossa investigação.

Todas estas dispersas, distantes, no tempo, e parcas informações, nomeadamente

nalguns campos históricos e artísticos, foram o basilar da nossa procura, da nossa

análise e da nossa comparação com uma acentuação mais marcante na arte, na imagem,

na exegese, no espírito catequético e no prestígio demonstrado pelos anacoretas de São

Domingos. Qual a imagem religiosa que transmitiam à urbe? Qual a forma imagética

aplicada na catequização da comunidade social? Quais os meios sacros utilizados neste

processo? Para isso foi necessário explorar os instrumentos sacralizados, como a

retabulária, em madeira e pétrea, e a pintura de capital importância neste processo de

prédica. Mas todos estes auxiliares estavam abrigados numa edificação que necessitou

ser explorada, com largas suposições, principalmente no que diz respeito às demolidas

dependências conventuais e nesta viagem temporal o nosso companheiro foi José

Rangel de Quadros que ao longo de diversos anos foi escrevendo os seus Apontamentos

Históricos na comunicação social local, fontes essas que mereciam mais e melhor

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atenção por parte do poder local. A Câmara Municipal ainda editou, no ano dois mil, a

compilação Aveirenses históricos, mercê de forte empenho e labor de Monsenhor João

Gonçalves Gaspar, mas ainda se encontram à espera de solução idêntica os intitulados

apenas Aveiro que descrevem os restos da muralha, dos conventos e mosteiros e ainda

de outros templos seculares e edifícios de destaque; recortes de jornais que foram

fotocopiados e compilados por aquela distinta figura aveirense, nascido em Eixo, e que

são a única fonte e único exemplar que a Biblioteca Municipal detém para consulta.

Desta forma, foi de somenos a nossa preocupação com a autoria e datação exacta

das peças, mas mais a preocupação com a função e intencionalidade da sua realização e

encomenda, o enquadramento nuns limites modelar e cultural, a integração num período

de criação artística e de desenvolvimento histórico e a identificação e identidade das

peças com as envolventes litúrgica e religiosa, social e comunitária e ideológica e

mental. Esperamos que a leitura das linhas que se vão seguir permitam um mais

esclarecido entendimento e que tenham alcançado a postura do enquadramento

sequencial da comunidade religiosa que ao longo dos quatrocentos e onze anos da sua

existência foi também contribuindo para a formação de uma mais firme identidade

social e cultural de Aveiro.

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DE ALAVARIUM A CAPITAL DE DISTRITO

cidade de Aveiro é sede de concelho e capital de um distrito que já

ultrapassa bem os 700 mil habitantes numa vasta superfície que se

estende por 2710 Km2. Sempre esteve intimamente ligada aos recursos

marítimos, bem patente na evolução da sua economia e no desenvolvimento das

indústrias com eles relacionados, apesar de muitas diferentes continuarem a emergir e

outras a desenvolverem, mas, também, se encontra fortemente adjunta ao imenso e

deleitante estuário do rio Vouga, que se esparge de Espinho até Mira, com todos os seus

canais (nos quais, felizmente, algumas barcas turísticas recomeçam aprazivelmente a

navegar), constituindo aquele leito parte fundamental e estrutural desta magnífica terra.

Há mesmo quem lhe conceda a invocação “Veneza de Portugal”.

As origens de Aveiro são bastante remotas e não existem verdadeiras provas,

documentais ou achados arqueológicos consistentes, que possam provocar consenso nas

várias opiniões dos historiadores ou daqueles que se interessam vivamente por esta

magnífica urbe, mas “...supõe-se que o povoamento humano do território litoral de

Leiria, Coimbra e Aveiro começou precisamente entre os princípios do quarto milénio

até aos primeiros séculos do segundo milénio antes da nossa era”1 e a herança

patrimonial e arqueológica dos povos megalíticos dispersa pela região aveirense atesta a

passagem daquelas comunidades pré-históricas, tal como alguns topónimos2. João de

Almeida atribui a fundação de Aveiro ao período de transição do Neolítico para a época

dos metais pelos Transcodanos3 e o ilustre historiador aveirense, João Gonçalves

Gaspar, corrobora esta ideia e explica-a4. Aqueles mesmos autores referem ainda as

trocas comerciais que os Fenícios aqui realizaram, estabelecendo uma feitoria próximo

1 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história. Aveiro. Edição da Câmara Municipal de Aveiro. 1997.

p. 15. 2 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... pp. 15-16. 3 ALMEIDA, João – Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Vol. II. Lisboa. s/e. 1946. p. 9. 4 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... p. 16.

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do Canal do Cojo e afirmam também que os Gregos, posteriormente, por aqui

circularam5. Ainda na opinião de João Almeida foram os Lusitanos, já misturados com

os Celtas, que, cerca do século IX a. c., deram o nome a esta povoação, intitulando-a

Aviobriga6, mas João Gonçalves Gaspar discorda com a designação atribuída7. Outro

autor defende que este nome foi alatinizado pelos Romanos, começando a pronunciar-se

Talabrica8, influenciado pela enumeração das cidades da Lusitania feita por Plínio, mas,

ao que parece, esta associação entre as duas designações está errada, pois foi

fundamentada na distancia entre Talabrica e Aeminium, marcada por Antonino Pio no

seu itinerário, que é precisamente a mesma que separa a cidade de Aveiro da de

Coimbra9, apesar de existir uma via romana que ligava Lisboa a Braga que passava por

Aeminium e próximo da actual cidade de Aveiro. Reforçando este equívoco é ainda o

próprio Pinho Leal que afirma “na egreja de Fermedo está uma inscripção do anno 28

de Cesar que falla em Aviobriga”10. E o erro inclui também a datação da lápide

funerária porque não se refere ao ano 28 de César como a supra citação aparenta

demonstrar, mas, sim, ao tumulado que faleceu com 28 anos11. Quer Talabrica, quer

Aviobriga não nos parecem terem existido no núcleo a partir do qual se desenvolveu a

actual cidade.

Contudo, a primeira alusão concreta referindo-se à comunidade de Aveiro

encontra-se no testamento da famosa Condessa Mumadona Dias, datado de 959,

apelidando-a de Alavario12, o que demonstra que a sua fundação será anterior àquela 5 ALMEIDA, João – Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Vol. II... p. 12 e GASPAR, João

Gonçalves – Aveiro na história.... p. 19. 6 ALMEIDA, João – Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Vol. II... p. 12. João Gonçalves

Gaspar afirma que os Celtas já se teriam misturados com os Iberos quando contactaram com os Lusitanos

e refere também alguns povos do calcolítico que teriam aportado por estas bandas com fins económicos.

GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... pp. 17-19. 7 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... pp. 27-28. 8 LEAL, Pinho – Portugal Antigo e Moderno. Lisboa. Livraria Editora de Matos Moreira & Cª. 1873. p.

259. 9 OLIVEIROS, Albertina Valentim – “Aveiro no Século XV”. in Boletim Municipal de Aveiro. n.º 4.

Aveiro. Câmara Municipal de Aveiro. 1984. p. 17. 10 LEAL, Pinho – Portugal Antigo e Moderno... p. 259. 11 Conferir transcrição em ALARCÃO, Jorge de – Portugal romano. Lisboa. Verbo. 1983. 2ª edição. p.

195. 12 SOUTO, Alberto – A arte em Portugal. Aveiro. Porto. Editora Marques Abreu. 1956. p. 5. Este

documento encontra-se publicado em Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae com o

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data e que nos finais da alta idade média já existia aqui uma povoação consistente e

organizada, comunidade que desde 990 ficaria sob a jurisdição do governador de

Coimbra, D. Sisnando. A partir de então as referências começam a ser mais frequentes e

no inventário dos bens de Gonçalo Ibn Egas e de sua mulher Dona Flâmula, datado de

1050, é designado por Alaveiro já com a categoria de vila13, a mesma etimologia que se

encontrava na doação de Recemundo Mourel de 104714, verificando-se que em pouco

menos de cem anos a grafia da sua nomenclatura sofreu uma ligeira variação.

Naturalmente com a estabilidade militar, consequentemente política e das fronteiras, e

com a recuperação económica e comercial que se fez sentir em toda a Europa este

núcleo foi conhecendo um crescendo ao longo do decurso medieval.

Todavia, a importância de Aveiro fez-se sentir, principalmente, durante todo o

século XV, período dos Descobrimentos, partindo desta nobre terra alguns navegadores,

como João de Albuquerque, de quem adiante falaremos mais particularmente, e o piloto

João Afonso de Aveiro que acompanhou Diogo Cão na viagem à costa de África,

aquando da descoberta do Congo e Zaire15. É durante esta centúria que serão

construídas as muralhas, começadas por D. João I, ainda antes de 1413, e bastante

desenvolvidas pelo seu filho, o Infante D. Pedro16, primeiro Senhor de Aveiro e

restauradas, mais tarde, pelos reis D. Manuel e D. João V. Durante muitos anos esta

urbe foi conhecendo vários donatários, quer nobres, quer eclesiásticos, pertencendo à

coroa apenas no reinado de D. Dinis e no do cognominado O de Boa Memória, o qual a

entregou ao seu filho, o supracitado Infante D. Pedro, em data anterior a 1431. D.

Afonso V, sobrinho daquele Infante, reinado durante o qual o próprio D. Pedro foi

regente na sua menoridade entre os anos de 1438 e 1446, entregou a Vila de Aveiro, em

1448, apenas um ano antes da fatídica Batalha de Alfarrobeira, a seu tio por doação

número 76. O nome Alaveiro como o autor utiliza não é o mais fiel, pois o documento redigido em latim

mostra a grafia Alavarium. Uma pequena transcrição do documento original corroborando a nossa

afirmação encontra-se em OLIVEIROS, Albertina Valentim – “Aveiro no Século XV”... p. 17. 13 SOUTO, Alberto – A arte em Portugal. Aveiro... p. 5. Encontra-se igualmente publicado em

Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae com o número 378. 14 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... p. 29. 15 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. s.v. “Aveiro”. Vol. I. Lisboa. Editorial Enciclopédia.

s/d. p. 811. 16 SILVA, Maria João Violante – Aveiro Medieval. Aveiro. edição da Câmara Municipal de Aveiro. 1991.

p. 27.

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régia perpétua17. Deve-se a este último também a construção do primeiro cenóbio

aveirense, pertença dos frades dominicanos, no qual incide este trabalho, e ainda no

mesmo século, de fronte deste, em 1461, surge legalmente a primeira comunidade

clerical feminina no Mosteiro de Jesus, também da Ordem de São Domingos18, não

obstante a sua existência anteceder a 24 de Novembro de 145819, que ficaria famoso por

ter albergado, desde 1472, a Princesa Santa Joana, actualmente padroeira desta cidade,

irmã de D. João II, que nele faleceu a 12 de Maio de 1490 e que viria a ser beatificada

em 1613. Foi o próprio Príncipe Perfeito que em 19 de Agosto de 1485 doou de forma

irrevogável a vila à princesa20, sua irmã, que alborcou o luxo da corte pela clausura e

humildade das freiras dominicanas de Aveiro, pois, anteriormente, D. Afonso V, após a

batalha de Alfarrobeira que opôs o rei e o seu tio, o Senhor de Aveiro, Infante D. Pedro,

tinha entregue a vila ao Conde de Odemira, D. Sancho de Noronha a 13 de Junho de

144921. Até à formação destes dois cenóbios a referência a outro clero é um pouco vaga,

exceptuando-se o prior e raçoeiros ligados à igreja de São Miguel, da qual há algum,

escasso ainda assim, conhecimento e que deteve o padroado da vila até 152722.

Prova da riqueza social e cultural que Aveiro tinha granjeado no final da época

medieva, e que perdurou pelo período humanista, é a concessão de foral, a 4 de Agosto

de 1515, por D. Manuel23, porém desconhece-se se este seria o primeiro ou a

confirmação de algum anterior24. A nomeação de D. Fr. Duarte Nunes para primeiro

Bispo da Índia em 1519 é a confirmação da importância que a vila ia adquirindo nesta

época. Este clérigo, natural de Aveiro, ingressou na Ordem dos Pregadores no Convento

de Nossa Senhora da Misericórdia da sua cidade, tendo aí professado e, regressado de

17 SILVA, Maria João Violante – “Aveiro”. in Atlas de cidades medievais portuguesas. Vol. I.

Coordenação de MARQUES, A. H. de Oliveira, GONÇALVES, Iria e ANDRADE, Amélia Aguiar.

Lisboa. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa. 1990. p. 43. 18 A fundação canónica deste mosteiro foi concedida pela Bula papal de Pio II a 16 de Maio de 1461.

GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro – História e Arte. Aveiro. Edição da Paróquia de Nossa

Senhora da Glória. 1979. p. 3. 19 CABELLO, Jorge (editor coordenador) – Grandes Museus de Portugal. Lisboa. Público. Editorial

Presença. 1992. p. 330. 20 OLIVEIROS, Albertina Valentim – “Aveiro no Século XV”... p. 24. 21 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. s.v. “Aveiro”... p. 801. 22 SILVA, Maria João Violante – Aveiro Medieval... pp. 134-136. 23 LEAL, Pinho – Portugal Antigo e Moderno... p. 260. 24 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. s.v. “Aveiro”... p. 801.

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além mar, escolhido o mesmo cenóbio para finalizar os seus dias25. Ainda nesta

centúria, em 1524, fundou-se o Convento de Santo António de frades Franciscanos26,

situado na parte sul já fora das muralhas, perto da porta de Vagos. Por outro lado,

Aveiro conhece o seu primeiro duque, D. João de Lencastre, cerca de 154527, o que

atesta o crescimento deste núcleo urbano, não só em termos populacionais, como

também na importância económica e social, religiosa e cultural. A partir da dominação

Filipina, pela provisão de 13 de Maio de 1581, do punho de D. Filipe I, a invocação a

esta terra passa a ser feita da seguinte forma: "…Nobre e notável vila de Aveiro…"28.

Também emblemático da importância que esta vila ia adquirindo é a implantação de

outros três conventos ao longo do século XVII: em 1613 é fundado o Convento de

Nossa Senhora do Carmo pelos frades Carmelitas Descalços; no chamado lugar de Sá levantou-se o Convento da Madre de Deus, pertença das religiosas da Ordem Terceira

de São Francisco, fundado em 1644; finalmente em 1658 é erigido o Mosteiro das

Carmelitas Descalças, de invocação a São João Evangelista29.

Conquanto, a centúria setecentista revestir-se-ia ainda de bastante importância e

regozijo para os aveirenses devido a dois grandes motivos: em primeiro lugar por ter

alcançado a categoria oficial de cidade por alvará datado de 11 de Abril de 1759 e

assinado por D. José30, em reconhecimento da fidelidade dos seus habitantes perante a

tentativa de regicídio, no qual estiveram implicados, supostamente, alguns cidadãos de

Aveiro, incluindo o próprio Duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas e

consequentemente foi restaurada a comarca de Aveiro que fora criada em 1523, pelo

Rei D. João III, mas que poucos anos tinha perdurado31; em segundo lugar pela criação

do Bispado de Aveiro por decreto de 12 de Abril de 1774 e pelo Breve Militantis

Ecclesiai Gubernacula assinado pelo Papa Clemente XIV32. De realçar que a categoria

25 LENCART, Maria Lucília – “O primeiro Bispo Português na Índia nasceu em Aveiro”. in Boletim

Municipal de Aveiro. n.º 13/14. Aveiro. Câmara Municipal de Aveiro. 1989. pp. 27 a 29. 26 COSTA, António Carvalho da – Chorografia Portugueza. Braga. 2ª edição. Tipografia Domingos

Gonçalves. 1868. Tomo II. Livro I. Tratado III. Capítulo II. pp. 68 e 69. 27 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. s.v. “Aveiro”. Vol. I... p. 808. 28 SOUTO, Alberto – A arte em Portugal. Aveiro... p. 5. 29 COSTA, António Carvalho da – Chorografia Portugueza... pp. 69 a 72. 30 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. s.v. “Aveiro”... p. 799. 31 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... p. 203. 32 RESENDE, João Vieira – “A Diocese de Aveiro. Um documento de 1778”. in Arquivo do Distrito de

Aveiro. Vol. XIII. Aveiro. 1947. p. 236.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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de cidade foi conferida antes da criação do bispado, facto que não era usual desde a

Idade Média e que se mantinha em prática ainda neste século. A Igreja da Misericórdia

viu-se, então, elevada a Sé em 177533 por uma portaria de 10 de Março34, mas já a 18 de

Abril do ano anterior tinha sido nomeado Bispo D. António Freire Gameiro de Sousa

que já houvera sido sagrado em Lisboa a 25 de Setembro de 177735, porém, só iniciou

as suas funções no ano seguinte36. Aquele templo manteve-se como Catedral até 1826,

ano em que foi transferida para a Igreja do antigo Recolhimento de São Bernardino37,

pois tinha sido extinto um ano antes e fundado em 168038. No entanto, a Diocese seria

extinta a 30 de Setembro de 1881 pela Bula Gravissumum de Leão XIII, mas viria a ser

restaurada em 1938 pela Bula de Pio XI Omnium Eclesiarum de 24 de Agosto39, sendo

a Sé instituída na Igreja de Nossa Senhora da Glória, património descendente do antigo

Convento de São Domingos.

O século XIX trás algumas alterações à cidade devido ao seu desenvolvimento

económico, alterações urbanísticas que se vinham sentindo desde o reinado de D. Maria,

nomeadamente na Praça do Município e na sua envolvente, denominada então por Adro

de São Miguel devido à localização da Igreja Matriz dedicada àquele santo, mas que era

comummente conhecida por Largo da Cadeia40, e que nos finais da centúria setecentista

levou à erecção do actual edifício da câmara41. A ruína era patente em diversos edifícios

públicos e em Abril de 1802 grande parte da muralha, que se encontrava bastante

degradada, foi demolida e a pedra aproveitada para a construção da desejada barra42

dirigida pelo francês Reinaldo Oudinot e por Luíz Gomes de Carvalho, após outros

33 GASPAR, João Gonçalves – A Diocese de Aveiro no século XVIII. Aveiro. Edição da Cura Diocesana

de Aveiro. 1974. p. 10. 34 GOMES, João Augusto Marques – Memórias de Aveiro. Aveiro. s/e. 1875. p. 139. 35 RESENDE, João Vieira – “A Diocese de Aveiro. Um documento de 1778”... p. 236. 36 GASPAR, João Gonçalves – A Diocese de Aveiro no século XVIII... p. 12. 37 GOMES, João Augusto Marques – Memórias de Aveiro... p. 139. 38 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... p. 198. 39 LOBO, José Luciano – “A restauração da Diocese de Aveiro”. in Arquivo do Distrito de Aveiro. Vol.

IV. Aveiro. 1938. p. 241. 40 QUADROS, José Reinaldo Rangel de – Aveiro. Origens, brasão e antigas freguesias. Aveiro.

Paisagem Editora. 1984. p. 43 41 Sobre a construção do edifício da câmara consultar AMORIM, Inês – A construção da Câmara de

Aveiro nos finais do século XVIII. Aveiro. Edição da Câmara Municipal de Aveiro. 1997. 42 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. s.v. “Aveiro”... p. 802.

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engenheiros, desde o século anterior, terem visto as suas tentativas goradas, sendo

aberta a nova barra a 3 de Abril de 1808. Todavia, a obra não ficaria concluída e só no

século seguinte, após muitos desassisos e controvérsias, se assistiria à sua total

finalização43. A cidade tinha crescido para fora das muralhas e um novo bairro, a que a

população chamava Vila Nova, despontava próximo do rocio e envolvendo a Igreja da

Vera Cruz, acabando por se apropriar daquela designação religiosa. Em 1834 triunfaria

o liberalismo em Portugal e Aveiro estaria ao lado de D. Maria II, como antes o tinha

feito quando a 16 de maio de 1828 os Liberalistas aveirenses aclamaram a Rainha, o que

lhes valeu o enforcamento44, mas por outro lado o distrito seria decretado a 18 de Julho

de 183545, apesar de a nova divisão administrativa do país estar já consagrada na

Constituição de 1822 e confirmada na Carta Constitucional de 1826. Por seu turno, as

quatro freguesias da cidade foram reduzidas a apenas duas por alvará emanado pelo

Governador Civil a 11 de Outubro de 183546. De acordo, também, com a nova

legislação extinguem-se os conventos e mosteiros e no ano de 1838 já tinha sido

construído o cemitério municipal num antigo terreno, conhecido entre o povo pelo

Campo, incluído na cerca dos dominicanos47, terreno este que tinha sido solicitado pela

Câmara Municipal para o efeito em 1836 (Portaria de 11 de Março) e confirmando a sua

posse na Resolução de 2 de Abril de 183848. Esta realização foi de encontro às novas

ideias sobre saúde pública e aos novos decretos de 21 de Setembro de 1835, que

legalizou os cemitérios públicos, e de 18 de Setembro de 1844, que proibia os

enterramentos dentro das igrejas e capelas49. Mais tarde a própria cerca do convento foi

requisitada pela Câmara Municipal para alargamento do cemitério50.

43 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. s.v. “Aveiro”... pp. 805-806. 44 SOUTO, Alberto – A arte em Portugal. Aveiro... pp. 7-8. 45 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... p. 204. 46 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... p. 205. 47 NEVES, Francisco Ferreira – “Memória de Aveiro no século XIX”. in Arquivo do Distrito de Aveiro.

Aveiro. 1940. vol. VI. p. 180. Porém, QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos históricos.

Aveiro. Compilação fotocopiada por João Gonçalves Gaspar. 1978. Vol. IV. p. 116. afirma que o

cemitério e a capela deste foram benzidos a 10 de Novembro de 1839. 48 MADAHIL, António Gomes da Rocha – “Livro dos títulos do Convento de São Domingos da cidade

de Aveiro”. in Arquivo do Distrito de Aveiro. Aveiro. 1961. Vol. XXVII. p. 235. 49 Conferir esta vaga de legislação em TORRES, Ruy de Abreu – s.v. “Enterramentos”. in Dicionário de

História de Portugal. direcção de Joel Serrão. vol. V. Porto. Livraria Figueirinhas. 1985. pp. 402-403. 50 MADAHIL, António Gomes da Rocha – “Livro dos títulos do Convento de São Domingos...”. p. 235.

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A reforma educativa implementada por Passos Manuel reflectiu-se do mesmo

modo na cidade com a construção do Liceu em 1856 que beneficiou também da pedra

da destruída muralha, no local do desaparecido Hospital de Jesus Rei Salvador,

apelidado por Albergaria de São Brás, existente desde 145751, e nove anos mais tarde

foi estabelecida na biblioteca do antigo mosteiro de São Domingos, após algumas obras

municipais de beneficiação, a escola primária masculina que também funcionava como

escola nocturna para operários. Em 1864 o caminho de ferro chega à cidade a par de

novas ligações rodoviárias que se iam desenvolvendo; a cultura também não se aparte,

construindo-se o Teatro Aveirense e tendo sido fundada a 25 de Novembro de 1858 a

Associação Comercial de Aveiro52, demonstrando o incremento do comércio e da sua

industria. Aveiro sentia o fervilhar do crescimento, tinha sido elevada a capital de

distrito após a definitiva implantação do regime constitucional e a figura de José

Estevão, que lutou pelas alas de D. Pedro IV, eleva-se nas guerras políticas

parlamentares, destacando-se como um exímio orador e contribuindo para a execução

das referenciadas obras estruturais de comunicação.

51 GASPAR, João Gonçalves – Aveiro na história... p. 100. 52 Sobre a fundação e o papel desempenhado por esta instituição consultar ROGRIGUES, Manuel

Ferreira – A fundação da Associação Comercial de Aveiro e o estado da barra em meados do século XIX.

Aveiro. Associação Comercial de Aveiro. 1998.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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D. PEDRO, O INFANTE DAS SETE PARTIDAS

isboa, 9 de Dezembro de 1392. A Rainha D. Filipa de Lencastre dava à

luz o seu quarto filho, aquele que, provavelmente, seria o mais dado às

letras e artes e de mais nobre formação: “…Foy Pryncype de grande

conselho, prudente, e de viva memoria, e foy bem latinado, e assaz mistyco em ciencias

e doutrinas de letras, edado muyto ao estudo…”53, nas palavras do cronista Ruy de Pina,

“... contemplativo, cavalheiresco, benigno, prudente, sábio. Era louro. Tinha nas veias o

sangue da mãe, e no rosto assinalada a ascendência” 54, assim o descreveria, mais tarde,

um dos mais importantes pensadores da “Geração de 70”, Oliveira Martins.

Após uma cuidada educação o Infante D. Pedro tomou parte na expedição e

conquista de Ceuta, em 1415, ao lado dos seus irmãos onde foram sagrados cavaleiros

por seu pai, o rei D. João I - O de Boa Memória e no regresso, em Tavira, D. Pedro foi

intitulado Duque de Coimbra55. Entre os anos de 1425 e 142856 viajou por toda a

Europa: Inglaterra, Flandres – onde visitou as mais importantes cidades da Borgonha,

nomeadamente Bruges –, esteve em Nuremberga, Ratisbona e Viena. Lutou ao lado de

Sigismundo contra os Hussitas e contra os Otomanos, depois passou por Belgrado,

Budapeste e pela Transilvania. De seguida realizou um périplo pelos reinos italianos,

conhecendo as cidades de Veneza, Pádua, Ferrara, Bolonha e Roma, na qual, em Maio

53 PINA, Ruy – Chronica do senhor Rey D. Affonso V. Lisboa. Academia Real das Sciencias. 1901. p.

433. 54 MARTINS, Oliveira – Os filhos de D. João I. Lisboa. Editora Ulisseia. 1998. p. 89. 55 DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra”. in

Biblos. vol. LXIX. Coimbra. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 1993. p. 491. 56 MADAHIL, António Gomes da Rocha – “Livro dos títulos do Convento de São Domingos da cidade

de Aveiro”... pp. 87-100. Neste artigo o autor levanta a problemática acerca dos anos em que o Infante

esteve ausente do país e acaba por demonstrar claramente esse período: D. Pedro ainda se encontrava em

Portugal em meados de Junho de 1425, mas em Outubro do mesmo ano já tinha iniciado a sua demanda

europeia, em data não precisa, e em Outubro de 1428 já se achava novamente na sua pátria.

L

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de 142857, foi recebido pelo Papa Martinho V, o mesmo que lhe concedera a autorização

pontifícia para a fundação do Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia na então vila

de Aveiro no ano de 142558, ofertando-lhe “...como presente da passagem a bula que

concedia aos reis de Portugal o serem ungidos na sua coroação, como os de França e de

Inglaterra, e o poderem os infantes reger o reino como filhos primogénitos e haver coroa

de rei”59. No retorno desta enriquecedora e profícua aventura aproveitou para uma nova

estada em Castela, Barcelona e Valência, cidade onde conheceu e acordou o casamento

com D. Isabel de Urgel, filha de D. Jaime II60.

No ano seguinte à chegada ao seu país casou com a dita D. Isabel de quem obteve

seis filhos: D. Pedro - O Condestável - que lutou a seu lado em Alfarrobeira e seria Rei

da Catalunha; D. Isabel que foi Rainha e esposa de D. Afonso V; D. Jaime, Bispo de

Arras e Cardeal de Santo Eustáquio; D. João que seria Rei de Chipre; D. Brites e D.

Filipa. Nesse mesmo ano casaria a sua irmã, a Infanta D. Isabel, com Filipe, O Bom da

Borgonha, fundador da famoso e misteriosa Ordem do Tosão de Ouro e com o qual o

Infante tinha privado numa passagem durante a sua delonga caminhada. Todos os seus

filhos tiveram uma grande formação e educação de acordo com os conhecimentos

adquiridos na prolongada viagem que lhe valeu o cognome de Infante das Sete Partidas,

pois “…custumava mandar ler proveitosos lyvros, e ter praticas e disputa, de que se

tomava muyto ensyno e doutrina…”61 e foi o promotor da tradução de várias obras

modernas, chegando mesmo, ele próprio, a traduzir algumas. De facto, a educação

esmerada deverá ter sido à imagem europeia, pois aquela que ministrou ao seu sobrinho,

o futuro D. Afonso V, foi regida “…por conceituados mestres estrangeiros, e para a

escolha destes terá usado como critério a preocupação de abertura que manifestavam os

57 MARTINS, Oliveira – Os filhos de D. João I... p. 116. 58 Sobre a problemática da data da autorização pontifícia conferir o capítulo “A fundação e o século XV”

deste trabalho. 59 MARTINS, Oliveira – Os filhos de D. João I... pp. 116-117. 60 DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro...”. pp. 491-492 e

FERREIRA, Maria Emília Cordeiro – s.v. “Pedro, Infante D”. in Dicionário de História de Portugal.

direcção de Joel Serrão. vol. V. Porto. Livraria Figueirinhas. 1985. pp. 29-30. Ambos os autores

defendem que a viagem do Infante durou apenas três anos (provavelmente o primeiro autor apoiou-se no

segundo), mas MARTINS, Oliveira – Os filhos de D. João I.... pp. 90-117 descreve as suas viagens,

estendendo-as por um período de dez anos. 61 PINA, Ruy – Chronica do senhor Rey D. Affonso V... p.434.

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ideais humanistas”62, explicando-se, assim, facilmente a escolha que recaiu em Mateus

Pisano para preceptor do futuro monarca63.

A longa digressão que fez pela Europa possibilitou-lhe efectuar uma regência,

durante a menoridade de D. Afonso V, desde os seis aos catorze anos, filho do irmão D.

Duarte que faleceu prematuramente em 1438, que ia de encontro à política humanista

europeia. Por outro lado, a regência angariou-lhe muitos inimigos, nomeadamente na

nobreza que viam perder a sua força em favor do poder régio, situação que era comum a

muitos outros estados europeus, nomeadamente nos da Península Ibérica e nos da

Península Itálica e para aumentar a tensão da sua governação D. Pedro teve conflitos

com D. Leonor, esposa de D. Duarte, porque esta queria assumir o poder, tal como o seu

esposo tinha deixado prescrito em testamento, sendo apoiada pelas hostes da nobreza.

Conquanto, e mercê do apoio popular, D. Pedro viu confirmada a sua regência nas

Cortes de Lisboa em Dezembro de 1439, levando ao declinar das pretensões da viúva

rainha que regressou à sua origem. O Infante, enquanto Regente do reino, foi

representante da burguesia, percebendo que este grupo poderia ser o motor de

desenvolvimento económico do país à semelhança das outras economias europeias,

efectuando para isso reformas nas finanças e à imagem do novo espírito humanista

cerrou fileiras à autoridade senhorial almejando centralizar o poder, reformou a

administração, preocupou-se com a formação do clero devido à renovação dos doutrinas

eclesiásticas que estavam a vogar nos estados mais abertos aos novos ideais da época

moderna, reformou a Universidade e é, também, neste período que Portugal se lança

verdadeiramente na epopeia dos Descobrimentos, esteando o seu irmão, o Infante D.

Henrique, Duque de Viseu nas tarefas dos descobrimentos marítimos64. Para alcançar os

seus objectivos empreendeu o casamento de sua filha, D. Isabel com o futuro monarca,

o que viria a concretizar-se a 6 de maio de 1447, entregou a direcção dos exércitos a seu

filho D. Pedro, o Condestável e coligiu as Ordenações Afonsinas com o intuito de “...

nivelar a Pátria com as outras nações, onde o sistema feudal acabara os seus dias ou

62 MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas” in Biblos. Vol. LXIX.

Coimbra. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 1993. p. 460. 63 FERREIRA, Maria Emília Cordeiro – s.v. “Pedro, Infante D”... p. 29. 64 FERREIRA, Maria Emília Cordeiro – s.v. “Pedro, Infante D”... pp. 29-31. GASPAR, João Gonçalves –

A Princesa Santa Joana e a sua época (1452-1490). Aveiro. Edição da Câmara Municipal de Aveiro.

1988. 2ª edição. pp. 20-22.

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apressadamente agonizava”65. Quando o Infante entregou o poder ao seu sobrinho, nas

Cortes de Lisboa em 1446, não obstante de inicialmente se manter como conselheiro do

jovem rei a pedido do próprio, a nobreza fomentou, por todos os ardis, intrigas de forma

a que D. Pedro perdesse o poder que possuía junto do novo monarca, tendo este

dispensado-o nos inícios de 1448.

Na sua longa viagem moldou o seu espírito aos novos ideais e a uma visão

cosmogónica bastante alargada, tendo adquirido outros hábitos e absorvido novas

práticas que eram comuns no estrangeiro: preocupou-se com a administração efectiva

do seu ducado e teve os seus próprios artistas, tal como seu pai também tinha tido, numa

atitude mecenática. Protegeu-os, patrocinou obras e concedeu mercês, ou confirmou as

concedidas anteriormente, como por exemplo ao pintor António Florentin e a Pero

Affonso Gallego que já tinha trabalhado para seu pai66. Outros artistas trabalharam para

o Infante, como Luis Dantas, Lourenço Martins e Mestre Pedro, contudo teve o seu

pintor de câmara que foi Afonso Gonçalves67 e além destes, também escultores, ourives,

calígrafos, mestres de obras e cronistas produziram obras de sua encomenda68. D. Pedro

patrocinou imensas obras arquitectónicas como o seu Paço em Tentugal, a igreja da

Senhora do Mourão na mesma vila, o Convento no qual este trabalho incide, a

continuação das obras da muralha de Aveiro, o restauro da igreja de São Miguel de

Penela; protegeu o Convento franciscano de Tentugal, instituiu uma capela no Mosteiro

de Odivelas e preocupou-se com obras de caracter público, como muros, fontes, pontes

e até imaginou um aqueduto na capital do seu ducado69.

Em relação ao seu senhorio de Aveiro, o qual recebeu, provavelmente, depois da

fundação do mosteiro dominicano, apenas se desconhecendo se antes ou depois da

longa viagem de três anos, o Infante, como é fácil de observar, teve bastante apreço

porque a fundação daquela cenóbio e a entrega a frades tão eruditos como os

dominicanos demonstra a preocupação que ele nutria relativamente à ausência de boa

65 GASPAR, João Gonçalves – A Princesa Santa Joana e a sua época (1452-1490)... p. 22. 66 DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro...”. pp. 495-496. 67 DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro...”. pp. 496-497. 68 DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro...”. pp. 498-501 e

MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”... p. 461. Embora nenhum

destes autores se refira concretamente a arquitectos, somos da opinião que alguns fariam parte do seu

séquito artístico, pois, como se sabe, patrocinou e encomendou muitas obras arquitectónicas. 69 MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”... pp. 459-490.

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formação naquela vila, pois o único clero de que se tinha conhecimento era o da igreja

de São Miguel e que não poderia responder às novas exigências desta terra em clara

expansão. A continuação da muralha em termos políticos e estratégicos não era

primordial, pois neste tempo já a reconquista estava concluída, todavia, aquela continha

outro significado: era como que um emblema de uma grande terra, conferindo-lhe

dignidade. É pois com grande verdade que Francisco Pato de Macedo afirma que “… o

desenvolvimento de Aveiro acelerou-se com o Infante D. Pedro.”70.

Após ter sido dispensado do governo e temendo que seria afastado da corte

dedicou-se ao seu ducado, mas nem por isso o conluio dos senhores nobres abrandava,

apesar de muitas vozes se levantarem em sua defesa. Pelas suas terras ia distribuindo o

seu tempo, a sua atenção e o seu cógito, entre Aveiro, Mira, Tentúgal, Coimbra e

Penela, terras de diferente geomorfologia, mas todas de encantada inspiração que o

guiaram à elaboração do Livro da virtuosa benfeitoria e que, nas palavras do historiador

Salvador Dias Arnaut, foi “...amparado, estimulado por paisagens de maravilha”71. O

Infante faleceu a 20 de Maio de 1449 depois de ter saído de Coimbra e de ter

confessado a “…Frey Antam Prior do Moesteiro de Aveiro, e outro Frey Dinis que

despois foi confessor d'ElRey…”72 as razões da sua partida, confrontando-se com um

grande exército do rei que o impediu de ir explicar-se ao monarca e tentar dissipar as

vis, mas comuns, intrigas palacianas e, assim, “Alfarrobeira significa o triunfo da

nobreza feudal terratenente frente ao projecto que aponta para o engrandecimento do

estado e o aumento da capacidade de intervenção dos homens das cidades”73. O seu

ducado e os seus senhorios regressaram à posse da coroa, mas, por intercessão da

rainha, sua filha, e de muitos protestos de famílias reais e principescas europeias e

mesmo do Vaticano, a 20 de Julho de 1455, D. Afonso V concedia-lhe o perdão e

reabilitava, em posses e cargos, todos os seus descendentes e a própria memória do 70 MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”... p. 466. 71 ARNAUT, Salvador Dias e DIAS, Pedro – Penela. História e arte. Penela. Edição da Câmara

Municipal de Penela. 1983. p. 91. O autor referia-se à paisagem de Penela, mas nós ousamos

apropriarmo-nos da adjectiva expressão para a estender a todo o seu ducado que bem merece este

reconhecimento. 72 PINA, Ruy – Chronica do senhor Rey D. Affonso V... p. 410. O “Frey Antam” referido por Ruy de Pina

é o Prior do Mosteiro de Nossa Senhora da Misericórdia, Frei Antão de Santa Maria de Neiva. 73 MORENO, Humberto C. Baquero – “Evolução política”. in Nos confins da Idade Média. Arte

portuguesa dos séculos XII-XV (catálogo). Coordenação de MATOS, Maria Antónia Pinto de. Porto.

Secretaria de Estado da Cultura/Instituto Português de Museus. 1992. p. 26.

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Infante74. Tinha morrido o Príncipe, mas a sua memória ficaria perpetuada na sua vasta

cultura e erudição, na sua acção política e económica que tentara empreender, na sua

percepção de estado e sentido político visionário e nas importantes obras que

desenvolveu e que os séculos seguintes não conseguiriam silenciar.

74 GASPAR, João Gonçalves – A Princesa Santa Joana e a sua época (1452-1490)... p. 29.

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A MENSAGEM DOMINICANA: DA FUNDAÇÃO

AOS TEMPOS DA MUDANÇA HUMANISTA

espanhol Domingos de Gusmão nasceu em Caleruega, província de

Burgos, decorria o ano de 1170. Pertencia à pequena nobreza e era

filho de Félix Fernan Ruiz, também conhecido por D. Félix de

Gusmão, e de Joana Aza. Desde cedo foi preparado para ingressar na vida eclesiástica e

aos quatorze anos foi para a escola da Catedral de Palência estudar Teologia e Filosofia,

recolhendo-se, por volta dos vinte e quatro anos, no Cabido dos Cónegos Regrantes da

Catedral de Osma e passado pouco tempo foi ordenado sacerdote, tornando-se

posteriormente superior do Cabido75.

Em 1203, o Bispo de Osma, Diogo de Acebes ou D. Azevedo, como também era

conhecido, convidou-o para o acolitar numa embaixada à Dinamarca a fim de tratar dos

esponsais do filho do Rei D. Afonso VIII de Castela. É nesta viagem que, ao

atravessarem o sul de França, mais precisamente na região do Languedoc, contactam

com os albigenses e que, da mesma forma, tomam conhecimento da grande missionação

a que se devotava o clero Dinamarquês. Perante este contexto e luculentos pela ardência

de tamanha fé, em 1206, dirigem-se à Santa Sé, incumbindo-lhes o Papa Inocêncio III a

tarefa devocional de evangelização no seio da comunidade daquela região francesa.

Percorrem, então, toda a área pregando e argumentando contra os heréticos, elevando a

devotio como o seu principal poder e obtendo alguns resultados: um grupo de mulheres

converteu-se e os missionários para o seu recolhimento fundam um mosteiro em

Prouille, na zona de Fangeaux, sendo o primeiro de Dominicanas da segunda ordem.

Todavia, o Bispo falece em Dezembro de 120776.

Apesar desta adversidade Domingos de Gusmão não descorçoou e reuniu seis

75 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores. Porto. Secretaria da Família

Dominicana. 1985. p. 16. 76 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores... pp. 16-18.

O

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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companheiros para continuarem a perseverante acção prédica e em 1215 já estavam

cientes da ordem religiosa que queriam formar, tendo o Bispo Foulques de Toulouse

recolhido-os na sua diocese e confiou-lhes a igreja de S. Romain. Convicto do

importante papel que queria desempenhar na evangelização, o futuro São Domingos

dirigiu-se ao IV Concílio de Latrão a fim de confirmar a constituição da sua ordem,

confrontando-se, no entanto, com uma proposta para proibir a fundação de novas ordens

religiosas. Perante este entrave, o mesmo com que se deparou Francisco de Assis, pois

teve a mesma intenção que o clérigo espanhol, mas na medida em que o objectivo era o

impedimento, mais especificamente, da aprovação de novas regras eclesiásticas,

Domingos de Gusmão viu-se obrigado a escolher uma regra já existente, elegendo a de

Santo Agostinho, à qual adjudicou estatutos próprios. É, então, redigida a Regula ad

servus Dei que expressa verdadeiramente o ideal de perfeição cristã que São Domingos

preconizou, porém o Liber Consuetudinum consigna especificamente os verdadeiros

pilares dominicanos77. Inocêncio III aprovou, então, a ordem, Honório III confirmou-a a

22 de Dezembro de 1216 e em 21 de Janeiro do ano seguinte é aprovada a fundação

com a designação de Ordem dos Pregadores78.

A pregação continuava a ser a missão especial e o dever primo, mas para o

desenvolvimento desta apostólica tarefa era necessário os pregadores terem um

aprofundado conhecimento da literatura bíblica, o que tornava imperioso o estudo

profundo das Sagradas Escrituras, para isso, Domingos de Gusmão fomentou o ingresso

nas Universidades (entenda-se Universidade segundo o conceito medieval de

corporação de estudos religiosa79) e concedeu dispensas individuais para facilitar tal

ministério, a salvação dos homens e principalmente o estudo e análise dos escritos

religiosos. É por este altruísta e compulsório motivo que alguns dos primogénitos

conventos são fundados próximos de Universidades80 e muitos outros passam a integrar 77 MADAHIL, António Gomes da Rocha – “Constituições que no século XV regeram o Mosteiro de Jesus

de Aveiro da Ordem de São Domingos”. in Arquivo do Distrito de Aveiro. Vol. XVII. Aveiro, 1951. pp.

67-68. 78 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores... pp. 20 - 21. 79 Sobre a diferença do conceito de Universidade consultar ALMEIDA, Manuel Lopes de – “Méritos e

deméritos da história dominicana em Portugal. in Actas do I Encontro sobre história dominicana. Porto.

Arquivo Histórico Dominicano Português. 1979. Vol. II. p. 20. 80 COELHO, Maria Helena da Cruz e MATOS, João José da Cunha – “O Convento Velho de S.

Domingos em Coimbra. Contributo para a sua história”. in Actas do II Encontro sobre História

Dominicana. Vol. III. Tomo 2. Porto. Arquivo Histórico Dominicano Português. 1984. p. 42.

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uma Universidade81. São Domingos fundiu os elementos tradicionais da Igreja, que

ainda vigoravam na baixa Idade Média, mas não por muitos séculos como a prática de

muitos clérigos viriam a demonstrar, numa unidade equilibrada de pobreza, penitência e

pregação, aditando-lhe o estudo rigoroso, bem patente na exigência, no Capítulo Geral

de 1220, de um professor graduado em cada convento82. Esta fusão unitária de

elementos sacrossantos seria quase um percursor de alguns ideais que caracterizariam o

final da era medieval, que como todas as épocas de crise ideológico-cultural exacerbam

o sentimento religioso entrecruzado com práticas profanas, e se explanaria na literatura

coeva na qual “a vida da corte e a pretensão aristocrática são denegadas em favor da

solidão, do trabalho e do estudo”83. No ano seguinte, a 6 de Agosto de 1221, morria o

fundador da ordem e, logo de seguida, a 3 de Julho de 1234 Gregório IX canonizou-o.

A ordem continuou a sua senda com os seus preceitos e teve alguns grandes

teólogos, tais como: Alberto Magno, Pedro de Tarentaise, Raimundo de Peñaforte,

Santo Antonino e Savonarola, a quem o célebre pintor renascentista Boticelli dedicou,

segundo alguns historiadores, a sua obra crítico-alegórica intitulada A Calúnia,

conquanto o mais importante de todos terá sido Tomás de Aquino, cujas ideias, uma

verdadeira filosofia teológica, foram muito seguidas durante a Idade Média. O século

XIII foi, sem dúvida, o século de ouro dos dominicanos, mas no final do período

medieval os franciscanos apresentam-se como os seus grandes opositores, apesar de

terem sido fundados durante o mesmo concílio, de serem, também, uma ordem

mendicante e de os ideários de São Francisco de Assis serem muito semelhantes aos de

São Domingos de Gusmão, havendo, mesmo, algum paralelismo nas suas Regulas.

Contudo, se os dominicanos assemelhavam-se a Jesus Cristo e aos seus apóstolos na

humildade da pregação e da evangelização, os franciscanos, por seu lado, imitavam O

Messias no anúncio e pregação da Boa-Nova, mas destas “... disputas surgiu um grande

respeito e amor mútuos”84.

Os dominicanos chegaram a Portugal no ano de 1217 através de Frei Sueiro

Gomes (o qual foi um dos iniciadores da comunidade e primeiro Provincial da Ordem

81 ALMEIDA, Manuel Lopes de – “Méritos e deméritos da história dominicana em Portugal”... pp. 20-21. 82 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores... pp. 13-14 e 27. 83 HUIZINGA, Johan – O declínio da Idade Média. Braga. Editora Ulisseia. 1996. p. 135. 84 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores... p. 61.

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na Península Ibérica85) enviado por Domingos de Gusmão para a Hispânia, tal como

Frei Pedro de Madrid, Frei Miguel de Ucero e Frei Domingos, "O pequeno"86, e logo no

ano seguinte parece ter fundado um convento na airosa Serra de Montejunto, nas

proximidades de Alenquer87. Todavia, não há consenso quanto à localização do

primeiro cenóbio, porque António Rosário afirma que o primeiro convento dominicano

foi fundado na cidade de Santarém nesse mesmo ano de 121888, o que de alguma forma

está mais de acordo com a característica de comunidade religiosa urbana porque

Santarém, seria, à época, uma das cidades mais populosas de Portugal. Por outro lado

Sousa Costa afirma que o primeiro mosteiro foi fundado em 1217 próximo de Alenquer

e transferido para Santarém em 122589. Quanto ao segundo mosteiro da ordem, já com

certezas mais firmes, foi levantado na cidade de Coimbra, encontrando-se já construído

no ano de 1227, mas os frades dominicanos já se tinham humildemente instalado e

pregavam na cidade do Mondego desde 121890, pois foi neste mesmo ano que o Bispo

de Coimbra, D. Pedro Soares, o mesmo que denunciou D. Sancho I à Cúria Papal de se

aconselhar com uma feiticeira albergada na sua própria corte, autorizou a Frei Sueiro

Gomes a prédica aos dominicanos nas áreas sob sua jurisdição permitindo que

repreendessem os excessos aí cometidos91. A expansão dos pregadores e o combate às

heresias e excessos levou à concepção dos decretos laicales e abriu hostilidades entre o

Provincial dos dominicanos e o rei D. Afonso II que proibira os Estatutos ao frade

85 CAEIRO, Francisco da Gama – “Os primórdios dos frades pregadores em Portugal. Enquadramento

histórico-cultural”. in Actas do II encontro sobre história dominicana. Vol. III, Tomo 1. Porto. Arquivo

Histórico Dominicano Português. 1984. p. 161. 86 ROSÁRIO, António – “Primórdios dominicanos em Portugal”. in separata Bracara Augusta. vol.

XVIII/XIX. n.º 41/42. Braga. 1965. p. 7. 87 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos. Porto. Lello e irmãos. 1977. p. 49. 88 ROSÁRIO, António – “Primórdios dominicanos em Portugal”... pp. 17-19. 89 COSTA, António Domingues de Sousa – s.v. “Dominicanos”. in Dicionário de História de Portugal.

direcção de Joel Serrão. vol. V. Porto. Livraria Figueirinhas. 1985. p. 334. MARQUES, José – “A

evolução religiosa”. in Nos confins da Idade Média. Arte portuguesa dos séculos XII-XV (catálogo da

exposição). Coordenação de MATOS, Maria Antónia Pinto de. Porto. Secretaria de Estado da

Cultura/Instituto Português de Museus. 1992. p. 61 segue esta mesma ideia. 90 COELHO, Maria Helena da Cruz e MATOS, João José da Cunha – “O Convento Velho de S.

Domingos em Coimbra. Contributo para a sua história”... pp. 43-44 e ROSÁRIO, António – “Primórdios

dominicanos em Portugal”... pp. 19-20. 91 CAEIRO, Francisco da Gama – “Os primórdios dos frades pregadores em Portugal...”. p. 166.

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dominicano92 porque o monarca, querendo centralizar o seu poder, apoiava-se em

juristas e notários de forma a combater o poderio dos senhores feudais, essencialmente a

Norte do Mondego, e dos senhorios eclesiásticos, não querendo reconhecer a lei

canónica e pontifícia como dominante à régia e, de facto, “... não se pode esquecer que

os principais protagonistas destas lutas eram canonistas célebres e que, por isso mesmo,

estavam dispostos a lutar até ao fim pela aplicação em território português de muitas

práticas canónicas que se difundiram mais cedo, mas também mais lentamente, noutros

territórios da Cristandade”93, mas, por outro lado “... compreendendo-se que o rei

reagisse desfavoravelmente à doutrina curialista e não tolerasse o exercício, por parte da

autoridade eclesiástica, de poderes temporais que podiam ir desde a punição até ao

confisco dos bens”94. Todavia, a importância social e o apreço que as comunidades

civis começaram a nutrir por frades culminou em se fazer sentir no seio da família real,

como se pode verificar nos reinados de D. Afonso III e de D. Dinis e de forma bastante

mais vincada na Ínclita Geração.

À chegada destes frades não deve ter sido alheia as Cruzadas do Ocidente porque

no ano da sua vinda para o nosso território seria preparada a Cruzada para libertação de

Álcacer do Sal do jugo dos infiéis e os dominicanos, bem como os franciscanos, têm

como uma das suas principais tarefas a evangelização, nomeadamente das comunidades

urbanas, apresentando-se o sul do actual território nacional, então sob domínio

muçulmano, como uma zona desejável para aquelas duas ordens mendicantes porque os

seus centros urbanos eram populosos e detinham um desenvolvimento superior à região

cristã “... com actividades económicas que poderíamos classificar de mais modernas do

que as do Norte, isto é, com uma economia mais produtiva e de trocas mais

intensas...”95, pois se inicialmente as ordens mendicantes se excluem das santas acções

bélicas continuando o seu caracter apostólico e missionário, posteriormente o sentido de

92 ROSÁRIO, António – “Primórdios dominicanos em Portugal”... p. 17. 93 MATTOSO, José – “Orientações da cultura portuguesa no princípio da século XIII”. in Portugal

medieval. Novas interpretações. Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1992. 2ª edição. p. 233. 94 CAEIRO, Francisco da Gama – “Os primórdios dos frades pregadores em Portugal...”. p. 168. 95 MATTOSO, José – “O enquadramento social e económico das primeiras fundações franciscanas”. in

Portugal medieval. Novas interpretações. Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 1992. 2ª edição.

p. 332. Apesar de neste capítulo citado este historiador debruçar-se mais sobre os franciscanos, as

explicações que fornece relativamente à atracção daqueles frades pelos grandes centros urbanos podem

aplicar-se aos clérigos mendicantes.

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Cruzada “... é reabsorvido e transformado por duas grandes instituições nascentes que

respondem às necessidades duma nova sociedade: a Ordem dos Pregadores e a Ordem

dos Frades Menores”96, e é neste contexto de novas carências e de reiteração apostólica

e espiritual que “...em diversos centros urbanos, implantaram-se estas duas Ordens

Mendicantes, que muito contribuíram para a renovação espiritual das populações,

através da pregação e do seu testemunho evangélico de pobreza, obediência e castidade,

não deixando de concitar a animosidade de outras instituições, em especial do clero

secular...”97. Rapidamente foram-se levantando mais cenóbios dominicanos e a sua

importância foi crescendo, patente na entrega do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na

Batalha, por D. João I àqueles religiosos, mas Frei Vicente de Lisboa, confessor do

próprio rei e João das Regras, bastante amigo daqueles frades, devem ter exercido a sua

influência. Chegaram a Aveiro em 1423 pela mão do Duque de Coimbra, o Infante D.

Pedro e, pouco depois, em 1462, fundava-se o mosteiro feminino. Em 1418, devido a

Portugal ter apoiado o Vaticano no Cisma do Ocidente, Martinho V, o mesmo que

concederia o Breve para a fundação do Convento de Nossa Senhora da Misericórdia de

Aveiro98, tinha criado a Província de Portugal, separando-a da espanhola que apoiara

Avinhão, sendo nomeado para primeiro Provincial Dominicano de Portugal Mestre Frei

Gonçalo99. Este longo diferendo papal não foi muito benéfico para a Ordem dos

Pregadores porque dividiu-a quanto às posições a apoiarem. O francês Elias Raymond

era o Mestre Geral quando se deu o Cisma em 1379 e esteve ao lado do seu país e todos

os seus sucessores seguiram posição idêntica de acordo com o apoio dado pela sua zona

de origem, obedecendo a ordem ou ao anti-papa, Clemente VII, ou ao papado romano

até ao término da separação em 1417, mas as dúvidas que se tinham instalado por toda a

cristandade também se sentiram nas diversas províncias dominicanas, verificando-se

constantemente uma divisão e uma discordância entre os provinciais e com a linha

tomada pelo Mestre Geral100.

96 CAEIRO, Francisco da Gama – “Os primórdios dos frades pregadores em Portugal...”. p. 161. 97 MARQUES, José – “A evolução religiosa”... p. 61. 98 Sobre esta temática consultar o capítulo deste trabalho “A fundação e o século XV”. 99 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... p. 921. Sobre a separação e criação da província

de Portugal este autor também nos dá um relato, mas estamos em desacordo com as datas propostas

porque aquele parte do ano de 1415 como sendo o término do Cisma do Ocidente e na realidade apenas

houve consenso entre apoiantes do Vaticano e de Avinhão em 1417. 100 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores... pp. 86-87.

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O século XV traria a questão do Cisma, mas Raimundo de Cápua esteve ao lado

de Urbano VI de Roma o que permitiu uma célere recuperação da ordem, o Mestre

Geral começou a residir na Cidade Santa e quando se deu o fim do Cisma manteve-se

no cargo Leonardo Dati que tinha sido obediente a Roma. Nos primórdios desta centúria

a ordem começou a usar um brasão: “era o «Escudo da Capa», representando a capa

preta do hábito aberta num campo branco. O cão de S. Domingos era muitas vezes

colocado abaixo da capa”101. Incumbia-se agora a tarefa de recuperar a ordem o que

pareceu algo dificultoso porque se a forte presença de renovadores que viram as suas

vidas serem reconhecidas pela santidade, tal como Raimundo de Cápua e Catarina de

Sena, entre outros, contribuíram para uma renovação interna da vasta comunidade

religiosa, por outro lado “... a restauração das ordens mendicantes causou uma

revivescência da pregação popular, o que deu origem às veementes explosões de fervor

e penitência que marcaram tão poderosamente a vida religiosa do século XV”102. As

províncias dominicanas conheceram uma profunda renovação de forma a não permitir o

desleixo em qualquer convento, não só apostólico e evangélico, mas também ao nível

do estudo e conhecimento teológico. Sentia-se uma pressão interna maior porque vivia-

se uma época de grande instabilidade e de crise, o que desencadeava um conflito de fé e

paganismo nos espíritos humanos de então e as ordens mendicantes, e o clero em geral,

eram alvo de motejos, o que obrigou a um maior movimento da Visitação de forma a

aplicar uma disciplina rigorosa como aquela que tinham conhecido nos alvores da

ordem. Em Portugal os dominicanos preocupados com o desenvolvimento do

pensamento filosófico, e consequentemente teológico/antropológico, que se expandia

pela Europa, fundaram, em 1517, o colégio de São Tomás junto ao seu convento em

Lisboa, o qual não estaria incorporado na Universidade e destinar-se-ia somente como

estudo geral para as comunidades dominicanas103. Os estudos foram-se aprofundando e

as necessidades de formação de igual forma, obtendo-se resposta e culminando na

fundação do primeiro colégio universitário dominicano, a 16 de Outubro de 1539104.

Estávamos num século de renovação eclesiástica e espiritual, mas também de

101 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores... p. 108. 102 HUIZINGA, Johan – O declínio da Idade Média... p. 187. 103 DIAS, José Sebastião da Silva – “Os dominicanos e a filosofia em Portugal no século XVI”. in Actas

do II encontro sobre história dominicana. Vol. III, Tomo 2. Porto. Arquivo Histórico Dominicano

Português. 1984. pp. 197-198. 104ALMEIDA, Manuel Lopes de – “Méritos e deméritos da história dominicana em Portugal”... pp. 20-21.

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renovação política, social, económica e científica porque o Mundo alarga-se a outros

contornes e a arcaica visão fantasmagórica da envolvente para lá do continente europeu

despedaça-se: “... os Descobrimentos não foram apenas uma fonte da cultura vivida de

alguns estratos do povo português. Para os intelectuais ligados às coisas do mar, foram

também um estímulo poderoso de reflexão e rectificação de ideias feitas no decurso dos

séculos. E a sua influência foi mais longe ainda, orientando os espíritos no sentido das

coisas e do conhecimento científico independente da escolástica e até do próprio

humanismo”105. Todas as contestações humanistas dos arquétipos medievais ganham

consistência e vigor com os contactos proporcionados pelas viagens marítimas e uma

revolução cultural e ideológica é iminente, obrigando a novas definições sociais,

religiosas e culturais, ou seja teológicas e antropológicas, mas “a tradição científica e

filosófica desde os pré-socráticos a S. Tomás de Aquino não constitui, para o

pensamento científico e filosófico do século XVI, um museu do passado mas sim, bem

pelo contrário, um imenso tesouro do presente. Esta situação em que o passado é registo

de presença presente e não matéria de história passada ocorre porque em última

instância, o horizonte epistémico destas idades (Antiguidade, Medievalidade e

Renascimento) é, no essencial, o mesmo...”106. Os dominicanos acompanharam esta

(r)evolução humanista e muitos dos seus estudiosos contribuíram para o

desenvolvimento de várias ideias que se compunham: os estudos sobre a esfericidade da

Terra em Salamanca iam de encontro às ideias de navegação de Cristovão Colombo, em

Itália foram reunidas grandes colecções bibliotecárias e construídas enormes bibliotecas

conventuais dominicanas e Savonarola incutiu o estudo de outras línguas como o

hebreu, o árabe e o caldeu107 à imagem d’O Cortesão de Baltasar Castiglione. Por outro

lado tentaram adaptar uma nova liturgia e concepção religiosa no seguimento da

renovação quatrocentista, fundando confrarias dedicadas a Jesus, Maria, São Domingos

e Nossa Senhora do Rosário e desenvolveram o cântico dos hinos marianos108. Com o

advento do humanismo, bem marcado em muitos países europeus, os dominicanos

começaram a decair, mas com perseverança e empenho adaptaram-se à nova sociedade

105 DIAS, José Sebastião da Silva – Os Descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Lisboa.

Editorial Presença. 1988. 3ª edição. p. 77. 106 BARRETO, Luís Filipe – Caminhos do saber no renascimento português. Estudos de história e teoria

da cultura. Lisboa. Imprensa Nacional Casa da Moeda. 1986. p. 27 107 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores... pp. 121-123. 108 HINNEBUSCH, William A. – Breve história da Ordem dos Pregadores... pp. 56-57.

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e cosmogonia, nomeadamente a partir do Concílio de Trento, no entanto a característica

da pregação e da pobreza, após algumas divergências, decaiu em favor do apostolado

intelectual.

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O MOSTEIRO: DA FUNDAÇÃO

AO ALVOR DO ROCOCÓ

A FUNDAÇÃO E O SÉCULO XV

osteiro de Nossa Senhora da Misericórdia, pertença dos frades

pregadores da Ordem de São Domingos, foi fundado em 1423 pela

mão do Duque de Coimbra, o Infante D. Pedro. Esta informação,

sobejamente conhecida, é-nos imediatamente cedida pelo cronista da ordem, Frei Luís

de Sousa109. Por outro lado, os livros manuscritos que consultámos partilham da mesma

ideia, sejam eles coevos ou posteriores da obra do cronógrafo: decerto que uns

limitaram-se a transcrever as palavras dos outros. Tomemos como exemplo o Livro de

Lembranças de Missas redigido em 1613, na medida em que seria indispensável

transcrever as palavras daquele que deu origem à personagem principal da grande obra

dramática de Almeida Garrett: “... Este mosteiro de NossaSenhora da misericordia da

Villa de Aueiro segundo se achou em hum caderno Antigo foi fundado eComessado pelo

Infante Dom Pedro filho delRei dom João de boa memoria duque de Coimbra Esenhor

de monte mor o velho A 13 dias do mes de maio A hora da Terça no anno do nacimento

de Nossosenhor Jeshus Crispto de 1423…”110.

O verdadeiro motivo pelo qual D. Pedro quis fundar um convento em Aveiro é desconhecido, provavelmente porque possuía um certo apreço por esta vila, bem

patenteado nas obras da muralha que, contrariamente ao que é costume afirmar-se, ele

apenas as continuou e concluiu, sendo o seu levantamento expedido pela acção de seu

pai111. Rangel de Quadros atribuiu a construção e direcção das muralhas a “...Lourenço 109 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... pp. 926-927. 110 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl. 1.

Doc. I. em apêndice. 111 SILVA, Maria João Violante – Aveiro Medieval... p. 13. Esta autora prova que a construção das

muralhas foi iniciativa de seu pai, D. João I, em data anterior a 1413.

M

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Eannes de Moraes, visto ter sido, em Aveiro, o mestre de obras do Infante D. Pedro”112.

Conquanto, a elevação, ou mesmo a reconstrução ou continuação, como é o presente

caso, de um cintel de muralhas na centúria quatrocentista já não se justificava do ponto

de vista estratégico-militar, assumindo-se, porém, como elemento imagético de

dignificação civil, administrativa, urbana e comunitária, revestindo-se quase de uma

simbólica próxima e, por vezes, até complementar do pelourinho. Deste modo também é

perceptível a entrega do mosteiro aos Frades Dominicanos, pois sabe-se que o Infante

tinha uma forte preferência por eles, tendo tido, inclusive, um religioso dominicano

como um dos seus companheiros na sua viagem pela Europa e escolhido “...por

confessor e pregador um «observante»”113. Além destas, outras razões devem ter

contribuído para esta doação, como a entrega do Mosteiro de Santa Maria da Vitória na

Vila da Batalha ter sido igualmente doado à Ordem dos Pregadores, pela mão de seu

pai, ou seja, as mesmas considerações que se firmaram na doação daquela majestática

construção votiva devem ter exercido semelhantes influências para a atribuição deste

recente cenóbio114, o primeiro desta ordem a ser construído em Portugal após o fim do

Cisma do Ocidente, o que também denota a preocupação do Senhor de Aveiro quanto à

necessidade que o seu senhorio nutria de acolher uma comunidade clerical muito bem

formada e organizada de forma a contribuir para o crescimento urbano e social e

enformar o fortalecimento religioso assente em prédicas do cristianismo primitivo.

Todavia, para além das supras conjecturas, não existe documentalmente outra aclaração

que tenha chegado até ao nosso conhecimento, exceptuando-se uma lenda que refere um

velho Afonso Domingues, que é descrita na História de São Domingos115 e também no

já referido Livro de Lembranças de Missas. Mais uma vez optámos por transcrever este

último, visto não ter sido ainda publicado e o outro ser de mais fácil acessibilidade:

“…Auia Nesta villa Hum Homem velho que estaua entreuado em Huma cama por nome 112 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. II... pp. 5-6. Teremos de ter em

conta que esta atribuição é baseada no pressuposto que foi D. Pedro o mentor da construção das muralhas,

mas como já ficou provado a construção deveu-se a acção de seu pai. Conferir nota de rodapé anterior. 113 GASPAR, João Gonçalves – A Princesa Santa Joana e a sua época (1452-1490)... p. 59. 114 Relativamente às influências que devem ter sido exercidas para atribuição do Mosteiro de Santa Maria

da Vitória na vila da Batalha aos frades pregadores conferir neste trabalho o capítulo “A mensagem

dominicana: da fundação aos tempos da mudança humanista”. Os frades dominicanos estavam em franco

apreço no nosso país e contribuíam para um enriquecimento religioso e desenvolvimento social das

nossas comunidades urbanas. 115 SOUSA, Frei Luís de Sousa – História de São Domingos... pp. 927-928.

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Afonso domingues oqual estando Huma noute no seu leito lheapareceo Nossasenhora

Elhe disse afonso domingues dormes ou estas acordado Senhora Acordado estou E A

senhora Alevantate etoma huma enchada e vem por Aqui comigo elle se levantou

(sendo entreuado) Etomou A enchada esefoi Com Asenhora Aqual seveo aporta dosul

Ese asentou ella na escada do muro que esta agora detras da Capella mor e lhe disse

Caua por a hi ao Redor eCom o Amanhecer levai ao Infante dom pedro ediselhe de

minha Parte que me faça Aqui huma Caza de minha inuocação aqual seria de frades

des. domingos Elle Respondeo senhora não me Crera vai e basta verente são sabendo

que foste enfermo e entreuado Ha tanto tempo Elle pella menha se achou são e se foi ao

Infante o qual vendo o milagre que asenhora fes naquelle Homem fundou este mosteiro

Elhe chamou Nossasenhora da Piedade pello Senhor Infante ser devoto de

Nossasenhora do Pranto…”116.

Este documento leva-nos para duas questões: a primeira prende-se com o

pensamento religioso do final da Idade Média que de alguma forma alimentou a

fundação do edifício monacal e a outra com a sua própria invocação. Aquela lenda está

redigida naquele livro manuscrito de 1613 e alude à sua presença desde os tempos

primórdios da existência do convento, tendo sido em épocas posteriores continuamente

apresentada como justificação praticamente inquestionável para a erecção do conjunto

religioso, ou seja, a explicação lendária surgida por falta de bases sólidas, reais e

comprovadas tendeu a tornar-se nessa mesma explicação documental, ou factual, para

os espíritos da época e para os de muitos séculos subsequentes. Compreende-se a

criação desta lenda como necessidade que a inteligência humana do século XV, em

crise, sentia de conferir uma explicação plausível e concreta porque “nos espíritos da

Idade Média todos os acontecimentos, todos os casos fictícios ou históricos, tendem a

cristalizar-se, a tornar-se parábolas, exemplos, provas a fim de servirem de modelo de

uma verdade moral”117 e, no caso em análise, teremos de ter presente, como factor

determinante e explicativo para a época, que o culto e a devoção pela Virgem Maria

desenvolve-se bastante a partir dos finais do século XII e princípios do seguinte,

ganhando grande expressão acerca da sua Imagem Imaculada nas centúrias de trezentos

e na quatrocentista. Esta factualidade teológica mariana aliada à cultura e ao

116 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl.

1v. Doc. I, em apêndice. 117 HUIZINGA, Johan – O declínio da Idade Média... p. 237.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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pensamento religioso da derradeira medievalidade, em que os milagres durante o sono

ou os sonhos curativos prodigalizam-se, quer na aparição dos santos, quer na visita da

Virgem118, coaduna-se com este equevo contexto perante o qual não poderia haver um

vazio de explicação racional, ainda que essa racionalidade fosse conferida através da

imaginação e da criatividade da imagem religiosa e teológica, a qual dissipava qualquer

dúvida que atormentasse a alma humana na medida em que as crenças lendárias, tal

como os mitos, “...contêm e verbalizam um sem-número de experiências em situações-

limite e tentam, em sucessivas aproximações, explicar o mundo e as relações com ele e

dos humanos entre si”119 e tomando em consideração a juntura mental e a especificidade

sociológica fini-medieva dimana que “para cada dúvida quanto ao procedimento, a

Escritura Sagrada, a lenda, a história, a literatura fornecem numerosos exemplos ou

tipos, constituindo no conjunto uma espécie de código moral ao qual pertence o caso em

questão”120, explicação sacro-mítica que acabou por cristalizar e pojar até nós. Por outro

lado, a ligação intrínseca com a respectiva descrição de um milagre infligido por uma

santa figura, no caso concreto a Imaculada Nossa Senhora, leva à sacralização do lugar

onde decorreu esse acto de intervenção divina e associando-se ao levantamento do

mosteiro, que passa a delimitar, a marcar e a exprimir a imagem do próprio milagre,

fortalece, enobrece e racionaliza, simultaneamente, a importância religiosa do local e do

conjunto monacal121.

Quanto à segunda questão para a qual a lenda nos remete prende-se com a

invocação, inferindo-se pela documentação122 que a devoção prestada por D. Pedro a

Nossa Senhora terá sido condição primordial. Inicialmente o mosteiro designou-se por

118 Sobre a questão da fé e dos milagres na Idade Média consultar a sintética obra de COELHO, Maria

Helena da Cruz – Superstição, fé e milagres na Idade Média. Coimbra. Edição do Inatel. 1995, na qual se

explicita de forma clara a ambivalência da fé do Homem medieval, a importância e a concessão dos

milagres nesta época. 119 PEREIRA, Maria Helena da Rocha – “Enigmas em volta do mito”. in A mitologia clássica e a sua

recepção na literatura portuguesa. Actas do Symposium Classicum I Bracarense. Braga. Centro de

Estudos Clássicos da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica. 2000. p. 26. 120 HUIZINGA, Johan – O declínio da Idade Média... p. 237. 121 Sobre a sacralização dos lugares consultar DAVIES, Douglas – “O Cristianismo”. in Lugares

sagrados, coordenação de HOLM, Jean e BOWKER, John. Lisboa. Publicações Europa-América. 1999.

pp. 53-56. 122 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl.

1v. Doc. I, em apêndice.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Nossa Senhora do Pranto, mas pouco tempo depois passou a denominar-se de Nossa

Senhora da Piedade “porque pranto suppoem dôr publicada com effeitos, e mostras

exteriores, que muitas vezes servem de alivio: e estas não consente aqui o bom discurso,

conformando-se com as palavras do Sancto Simeon, que na alma lhe puzeram a espada,

por maior, e mais encarecido sentimento, que significamos com termo, que todo se

refere ao espirito, qual he piedade”123. Todavia, este também não ficou definitivo

porque “…depois fazendose o Mostro de Azeitão lhe puzerao tao bem nome Nsra

dapiedade Edepois se ordenou em hu capitolo que este Conuto se chamase sra da

misericordia por não Auer dous Mostros na mesma prouincia do mesmo nome…”124.

Sabemos que aquando da redacção dos documentos por nós compulsados125 o cenóbio

já possuía a invocação definitiva de Nossa Senhora da Misericórdia, mas nenhum deles

indica a data do Capítulo no qual se ordenou esta denominação ao conjunto aveirense.

Na própria crónica da ordem religiosa também não é indicada a data daquele capítulo

que promulgou a alteração da invocação, nem tão-pouco são expostos os argumentos

que privilegiaram a manutenção daquela exoração no Mosteiro de Azeitão, na medida

em que este último fui fundado posteriormente a 18 de Dezembro de 1435126, dia de

Nossa Senhora da Expectação. Inferimos, por omissão de informação, que de imediato

tomou o crédito dedicado a Nossa Senhora da Piedade, mas a obra que descreve a

História dos Pregadores em Portugal também não o clarifica, contudo num alvará

firmado por D. Duarte, datado de 9 de Agosto de 1437, o monarca refere-se aos

“...Frades Pregadores da Ordem de S. Domingues do Mosteiro de Sancta Maria da

Piedade de Azeitão...”127.

De qualquer forma depreendemos que houve sempre a clara intenção de dedicar

este conjunto monacal a Nossa Senhora, mas desconhecemos se esse desejo era dos

frades que iriam ocupar aquele espaço sacro ou do próprio fundador, pois este,

comprovando as fortes relações comerciais e culturais que se estabeleciam com a

Inglaterra, terra natal de sua mãe, e que estava inteirado da moda e do gosto cortesão

123 SOUSA, Frei Luís de Sousa – História de São Domingos... p. 928. 124 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl.

1v. Doc. I, em apêndice. 125 Os documentos mais antigos que encontrámos datam de 1613 apesar de muitos deles conterem

treslados referentes a anos anteriores. 126 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... p. 985. 127 O alvará encontra-se transcrito em SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... pp. 986-987.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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europeu, ofertou ao mosteiro uma belíssima imagem da Virgem em alabastro de

produção inglesa128, a qual encontra-se ainda hoje em exposição no templo. O Infante

D. Pedro tratou, então, de alcançar a autorização pontifícia necessária para a fundação

do cenóbio, a qual obteve, todavia, Frei Luís de Sousa afirma que o Papa Martinho V

passou um Breve em 19 de Fevereiro de 1423129. No entanto, esta data não coincide

com a que vem numa fonte manuscrita ainda não referida: “…oditto Iffante DomPedro

ouue breue dePappa Martinhoquinto noitauo anno deseu Pontificado aostrezedias

domes demarço o qual euEscriuao ui queEstaEm hum purgaminho com sello de

chumbo pendente dehum cordao amarello euermelho”130. Tomando em consideração

esta passagem somos obrigados a remeter o Breve pontifício para o ano de 1425 porque

o pontificado de Martinho V iniciou-se no ano de 1417, após o término do Cisma do

Ocidente, e o documento manuscrito afirma que a autorização papal foi concedido no

oitavo ano do pontificado daquele Papa. Para além do ano também a restante cronologia

não coincide porque o documento afirma ter sido concedido o Breve aos treze dias do

mês de Março131.

Segundo a lenda, e pela voz do supracitado cronista, o terreno demarcado pelo

velho Afonso Domingues foi oferecido pelo povo aveirense e o Duque de Coimbra logo

comprou um “…chao vezinho pera mais largueza…”132. A fonte manuscrita, até agora

mais utilizada, ainda nos revela que “…O Infante Dom pedro para fundamento deste mosteiro comprou dous chaos como consta da Scriptura feita por Afonso pirez

Tabaliam Aos 22 de Abril de 1424…”133 e que “…comprou outros chaos neste mesmo

Lugar como consta da sCriptura feita por Lopo dias tabaliao aos 7 de maio de

1424…”134. Nesta obra manuscrita verificamos também que o Conde de Mira, D.

128 DIAS, Pedro – “Portugal e a arte inglesa na época dos Descobrimentos”. in No tempo das feitorias. A

arte portuguesa na época dos Descobrimentos. Volume I. Coordenação de Pedro Dias. Lisboa. Secretaria

de Estado da Cultura / Instituto Português de Museus. 1992. p. 234. 129 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... p. 928. 130 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Primeiro Tombo Novo. III/1ªD/ 15/2//6. fl 48v. Doc.

II, em apêndice. 131 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Primeiro Tombo Novo. III/1ªD/ 15/2//6. fl 48v. Doc.

II, em apêndice. 132 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... p. 928. 133 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl. 2.

Doc. I, em apêndice. 134 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl. 2.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Sancho de Noronha, Senhor de Aveiro, após a morte do infante, doou ao mosteiro

alguns terrenos em 1451, tendo o próprio cenóbio adquirido ainda outros135,

provavelmente necessários para a construção de todas as dependências do edifício e

assegurar as propriedades da cerca conventual para a exploração da subsistência dos

frades.

A construção do templo iniciou-se logo de seguida, ao ponto de Frei Luís de

Sousa afirmar que “…lançou o Infante por suas maos a primeira pedra…”136 ainda em

1423, improvisando-se um altar no local da capela-mor e que o “…Padre Frei Mendo de

Sanctarem vigairo dos conventos reformados…”137 celebrou a Eucarístia. Deve-se

depreender, por esta passagem, que as obras se iniciaram rapidamente, mas, contudo,

arrastaram-se por todo o século e como anteriormente referimos ainda em 1424 D.

Pedro comprou terrenos para a execução do mosteiro138. Na realidade a igreja só foi

sagrada na segunda metade do século XV e sobre isto levanta-se também alguma

polémica. Em primeiro lugar Frei Luís de Sousa afirma que a sagração se efectuou no

ano de 1464 presidida pelo Bispo de Coimbra, D. Jorge de Almeida139. Outros autores

foram seguindo esta mesma ideia, como foi o caso de Pinho Leal140, mas Nogueira

Gonçalves alertou para a não coincidência da data de sagração da Igreja com o exercício

de D. Jorge de Almeida141. O que sucede é que em 1464 o Bispo em actividade era D.

João Galvão que ocupou o cargo de 1460 a 1481142 e D. Jorge de Almeida apenas

desempenhou estas funções a partir de 1483 até 1543143. Pensamos que a sagração da

Doc. I, em apêndice. 135 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl. 2.

Doc. I, em apêndice. 136 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... p. 928. 137 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... p. 928. 138 Conferir as notas de rodapé 133, 134 e 135 e correspondentes excertos no texto. 139 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... p. 929. Deve ter-se em atenção que nesta época

Aveiro fazia parte da Diocese de Coimbra, por isso não é de estranhar que a sagração tenha sido

diligenciada pelo Bispo de Coimbra. 140 LEAL, Pinho – Portugal Antigo e Moderno. Vol. I... pp. 264 e 265. 141 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Aveiro - Zona Sul.

Lisboa. A.N.B.A. 1959. p. 107. 142 RODRIGUES, Manuel Augusto – A Universidade de Coimbra. Marcos da sua História. Coimbra.

A.U.C. 1991. p. 159. 143 RODRIGUES, Manuel Augusto – A Universidade de Coimbra. Marcos da sua História... p. 159.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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igreja tenha ocorrido, embora sem qualquer prova documental, em 1484 por D. Jorge de

Almeida e baseamos a nossa opinião no facto de que seria muito mais plausível o

cronista da Ordem de São Domingos ter-se enganado na transcrição da data aquando da

utilização da fonte, do que enganar-se no nome do titular do cargo eclesiástico. A

reforçar o que acabamos de afirmar, é o próprio Frei Luís de Sousa que nos informa que

D. João Galvão acompanhou o Rei D. Afonso V, em 1469, numa visita ao Mosteiro de

Jesus de Aveiro144, o que demonstra que o cronista dominicano estava inteirado das

datas de exercício dos referidos bispos.

144 SOUSA, Frei Luís de – História de São Domingos... p. 1008.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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A EVOLUÇÃO ARQUITECTÓNICA

A ESTRUTURA CONVENTUAL

eixemos agora estas questões mais ligadas aos campos sociais e

eclesiásticos e até políticos, tendo em conta que a política não se pode

separar daqueles dois campos e que a cultura estava fortemente ligada

às questões religiosas e esotéricas, e entremos noutra área mais concreta, por um lado,

mas mais abstracta por outro, porque os vestígios materiais e documentais escasseiam

de forma a firmar ideias concretas: referimo-nos especificamente à construção do

edifício conventual e a toda a parte arquitectónica. São algumas as hipóteses que têm

sido levantadas por todos aqueles que se têm interessado por este cenóbio aveirense,

contudo não existem muitos resultados concretamente cimentados.

D. Pedro após a autorização papal encarregou-se de dar cumprimento à construção

das dependências conventuais, pois “…com suas despesas propryas mandou fazer nos

dias que viveo casas e obras muytas piadosas assy como a Ygreja da cerca de Penella e

Sam Miguel d' Aveiro e o Moesteiro de Santa Maria da Myserycordia que deu aa

Ordem de Sam Domyngos e a Ygreja de Tentugal com outras…”145. Esta passagem do

cronista real, embora não seja hodierna de D. Pedro, demonstra que o Infante se

preocupou com todo o seu senhorio e não apenas com o mosteiro que instituiu e para

esta obra, o Infante deverá ter encarregado a edificação a um arquitecto ou mestre de

obras da sua confiança, todavia as fontes manuscritas não o esclarecem, desconhecendo-

se quem seria. Julgamos saber que o dominicano Frei Nicolau de São Domingos ficou

encarregado de acompanhar as obras , nomeadamente “...no que tocava á pedra e

cal”146, mas somente Pedro Dias arrisca em conjecturar um nome para a concepção e

145 PINA, Ruy de – Chronica do Senhor Rey D. Affonso V... p.433. 146 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 7.

D

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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direcção desta obra: Estevão Gomes147. Este era o mestre de obras do Infante e entre os

anos de 1428 e 1429 encontrava-se no estaleiro batalhino acompanhado do seu filho

Pero Peres148, surgindo como testemunha num aforamento do dito Mosteiro Santa Maria

da Vitória e intitulado “...pedreyro, mestre das obras do Ifante dom Pedro...”149.

Francisco Pato de Macedo afirma ainda que aquele mestre trabalhou igualmente em

Alcobaça com Martim Vasques, também este mestre de obras da Batalha, e que toda a

sua formação foi feita com mestres do estaleiro batalhino150. Este caso demonstra as

intensas relações artísticas que existiram entre os estaleiros de Alcobaça e da Batalha,

mas prova também que as relações entre o Duque de Coimbra e o Mosteiro de Santa

Maria da Vitória na vila da Batalha eram bastante profícuas, facilmente explicável pelo

parentesco com o mecenas daquela majestática construção e pela intimidade com os

seus ocupantes. Pedro Dias atribui, ainda, o Paço de Tentugal e a Igreja da Senhora do

Mourão, actualmente igreja matriz, na mesma vila, a Estevão Gomes151. É uma hipótese

bastante plausível, na medida em que se o Infante possuía os seus próprios artistas os

chamasse para a execução de obras por ele patrocinadas e neste caso concreto fundada.

Para corroborar esta ideia basta atentar nos artistas que trabalharam para D. Pedro, quer

pintores, escultores ou ourives, à semelhança do que teria acontecido com o seu pai, D.

João I, com o seu irmão, D. Duarte, e com o seu sobrinho, D. Afonso V152. Seguindo

esta explanação é compreensível que Estevão Gomes e o seu filho Pero Peres

estivessem à frente da obra do Convento de São Domingos de Aveiro e, além disto, na

impossibilidade natural de estarem ambos junto da obra, poderiam fiscalizar a

construção alternadamente e manter uma curta estada enquanto o outro estaria noutro

local dirigindo uma outra edificação.

Conquanto, a falta de documentação relativamente aos dois primeiros séculos de

147 DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro...”. p.503. Este autor

volta a reafirmar esta ideia em A Arquitectura Gótica Portuguesa. Lisboa. Edições Estampa. 1994. p.162. 148 MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”... pp. 476-477. 149 VITERBO, Francisco de Sousa – Dicionário histórico e documental dos arquitectos, engenheiros e

construtores portugueses. Lisboa. Imprensa Nacional/Casa da Moeda. 1988. vol. I. p. 219. Sobre este

arquitecto o mesmo autor faz uma referência muito vaga na mesma obra na página 428. 150 MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”... p. 477. 151 DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro...”. p.503. 152 DIAS, Pedro – “Escultores e pintores que trabalharam para o Infante D. Pedro...”. pp. 491-505 e

MECEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”... pp. 459-490.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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existência do primeiro cenóbio de Aveiro153 provoca uma lacuna enorme em relação às

obras que foram sendo realizadas durante a centúria de quatrocentos e a sequente. Por

este motivo teremos de nos apoiar nas vagas referências dos cronistas da ordem, Frei

Luís de Sousa e Frei Lucas de Santa Catarina, com especial incidência no primeiro, em

descrições antigas, como as de José Rangel de Quadros ainda antes do desaparecimento

das divisões monacais, e em reconstruções hipotéticas, mas consistentes e de apurada e

refinada interpretação, como as realizadas por João Gonçalves Gaspar. Uma igreja, ou melhor, um conjunto monástico iniciado na terceira década do

século XV, num período em que vigorava a arquitectura gótica pelo país e tendo como

principal construtor um mestre de obras formado na Batalha, é natural, portanto, que

toda a construção reflectisse este espírito goticizante, bem evidenciado nas paredes do

lado do evangelho, nomeadamente nas aberturas que serviriam de portas que foram

postas a descoberto nas remodelações efectuadas nos anos setenta do século passado

que acrescentaram a nova capela-mor da responsabilidade do arquitecto Abrunhosa de

Brito. Por outro lado, poderemos comparar com as obras anteriormente citadas,

encomendadas pelo Duque de Coimbra e atribuídas, como já vimos, a Estevão Gomes,

as quais se integram nitidamente no estilo gótico154 e de acordo com a cultura da época.

Para se fazer um estudo comparativo deveremos ter em conta não só outras obras do

mestre dirigente, mas também obras que, de alguma forma, se relacionem com este

convento. Foi exactamente o que fez João Gonçalves Gaspar quando executou algumas,

hipotéticas, plantas dos vários séculos155 ou quando reproduziu uma imagem do

convento no século XV156, baseando-se nas descrições de Rangel de Quadros e nos

conventos dominicanos de Vila Real, iniciado em 1424, e no de Guimarães,

praticamente todo reconstruído durante o século XV157, embora o gótico do norte do

país apresente ainda algumas características arcaízantes de filiação românica, mais

153 A documentação referente aos dois primeiros séculos desta comunidade religiosa resumem-se a

treslados do século XVII, mas cremos que nem todos os documentos foram copiados, mas apenas aqueles

que os monges sentiram necessidade segundo os seus critérios, provavelmente mais ligados a questões de

posses e económicas. 154 MACEDO, Francisco Pato de – “O Infante D. Pedro. Patrono e Mecenas”... p. 477. 155 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e Arte... desdobráveis a seguir às estampas,

em apêndice. 156 Esta reprodução está em apêndice, sendo comum encontrar-se Aveiro. 157 DIAS, Pedro – O Gótico. História da Arte em Portugal. Vol. IV. Lisboa. Alfa. 1986. pp. 80-85.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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precisamente no tratamento e difusão da luz na espacialidade.

Assim sendo, a igreja apresentaria uma estrutura basilical de três naves, sendo a

central mais elevada, respeitando por isso os cânones épocais. As duas naves laterais

medievais deram lugar às capelas que hoje podemos observar e as duas que estão mais

próximas da capela-mor situam-se no lugar dos braços do primitivo transepto158, que

não seria saliente ou, então, muito pouco destacado. O pórtico da igreja seria

emoldurado por um arco em ogiva com arquivoltas, semelhante ao da Capela do Paço

de Tentugal e comum na arquitectura deste período, nomeadamente na arquitectura mais

ascética como era a dominicana, a franciscana e a cisterciense. É bastante natural que a

igreja fosse despojada de ornamentação, na mesma linha das construções de Tentugal,

porém possuindo mais aberturas que as suas congéneres de Vila Real e Guimarães, pois

o gótico do centro e sul do país apresentava um tratamento da difusão da luz no espaço

de maior claridade e homogeneidade. A cobertura da nave central poderia ser efectuada

por uma abóbada de berço quebrado, ou ogival, como era costume na época nas

construções mais importantes, mas também é possível que fosse de madeira, como

acontecia nas construções mais modestas e no templo vimaranense dominicano. A

cabeceira seria, certamente, poligonal159 e ligeiramente alongada em relação ao tamanho

do corpo da igreja. Rangel de Quadros afirma apenas que a capela-mor na sua origem

era muito simples e que não possuía abóbada160, mas este investigador não possuía

provas documentais nem quaisquer vestígios arquitectónicos porque no seu tempo já

existia à muito a nova capela-mor maneirista que falaremos adiante. Porém, neste caso

seria bastante possível que o tecto fosse de madeira, como preconizou aquele

historiador, mas, assim sendo, a cobertura do corpo seria igualmente de madeira porque

na arquitectura desta época por vezes a cobertura da cabeceira era lítica e a do corpo em

madeira, mas o contrário não era usual acontecer, ou se o corpo da igreja fosse

abobadado em pedra a cabeceira receberia idêntica solução. Quanto ao arco cruzeiro

pensamos que seria de pedra, quer a cobertura da nave central fosse em abóbada de

158 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e Arte... pp. 20-24. A ideia apresentada por

este historiador é facilmente decifrável através da observação mais atenta da actual estrutura do templo,

contribuindo para isso as supracitadas obras de remodelação da moderna capela-mor. 159 A estrutura comum das cabeceiras góticas desta época era poligonal ou quadrada, mas à falta de

elementos mais concretos para a descrição em causa optámos por a considerar apenas poligonal de acordo

com os exemplos mais abundantes. 160 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 17.

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berço quebrado ou ogival, quer fosse em madeira. Todavia é lícito pensar que o arco

cruzeiro pudesse ser de madeira, mas somente se toda a cobertura obedecesse à mesma

estrutura e material. Quanto ao resto das dependências conventuais talvez haja uma maior

aproximação devido às descrições de Rangel de Quadros161 que são ainda dos finais do

século XIX. Apesar de terem sofrido algumas alterações, estas não devem ter sido tão

profundas como na igreja e a estrutura geral quatrocentista dever-se-á ter mantido até

aquela altura, apenas com alguns restauros ou reparos e outros acrescentos, como

poderemos demonstrar adiante. As dependências conventuais desenvolviam-se para a

esquerda da igreja e ocupavam pouco mais que o espaço longitudinal do templo. A

entrada para aquelas dependências era feita, segundo as próprias palavras de Rangel de

Quadros, por um átrio que antecedia o vestíbulo162, que na nossa opinião seriam a

portaria e o locutório. Para o primeiro transpunha-se uma porta tipicamente gótica e

lateralmente, virada para o adro que antecedia a igreja, existia outra porta semelhante.

Ao lado desta, no locutório, a que Rangel de Quadros denomina de vestíbulo, abriam-se

duas janelas. Por cima destas dependências situava-se a livraria do convento ou

biblioteca que possuía três janelas simples e rectangulares sobre a primeira porta

referenciada e duas, semelhantes, por cima da porta que estava virada para o adro163.

Acerca da portaria, que Rangel de Quadros denomina por átrio, apenas faz

referência aos arcos das portas que seriam em ogiva. Do locutório afirma que possuía

três portas: duas delas estavam defronte das janelas viradas para o adro, ou seja para o

lado sul, e davam acesso a duas escadarias, muito semelhantes, permitindo a passagem,

respectivamente, à livraria e à botica, não sendo necessário entrar no resto do convento

dos frades164. A terceira porta dava acesso directo ao claustro e abria-se no ângulo

formado pelas naves sul e ocidental165. Este autor faz referência à pintura do tecto do

vestíbulo, mas cremos, pelas suas descrições, que foi trabalho do século seguinte, pois

parece-nos já da renascença avançada. Talvez tenha sido também objecto de alguma

intervenção posterior.

A livraria ou biblioteca do convento ficava, como já referimos, sobre aquelas duas

161 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... 162 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 9. 163 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... pp. 9-10. 164 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 10. 165 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 11.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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dependências e possuía, como já vimos, cinco janelas: três sobre a porta principal,

viradas para poente, e duas sobre a que estava virada para o adro, lado sul. Na

reconstituição desenhada feita por João Gonçalves Gaspar estas duas estão no

seguimento das duas do piso inferior, porém Rangel de Quadros afirma ficarem sobre o

arco da porta166.

A botica situava-se sobre a arrumação, ficando ambas à esquerda da portaria e

formando um ângulo recto com a parede desta. O autor seguido diz que nada de

interessante possuía a arrumação e João Gonçalves Gaspar indica, quer na

reconstituição, quer na planta referente ao século XV167, que esta sala possuía quatro

janelas idênticas às já referidas. Por seu turno, a botica era uma sala muito simples e

tinha algumas pequenas salas contíguas. Possuía, igualmente, quatro janelas, sendo o

tecto de madeira pintada168. Esta divisão, tal como a livraria, comunicava com o

sobreclaustro. É possível que este espaço funcionasse, simultaneamente, como

enfermaria, na medida em que o nosso autor seguido não faz qualquer referência a este

tipo de espaço no convento e as referenciadas salas contíguas poderiam desempenhar a

função de gafaria e celas para os enfermos ou gafos.

Ao lado da arrumação ficava a adega dos frades, divisão que servia para guardar

objectos de uso doméstico. Mais uma vez a nossa investigação depara-se com a falta de

fontes coevas, obrigando-nos a optar pela planta e reconstituição supracitadas,

impedindo-nos, por isso, de realizar uma análise estilística mais aprofundada. Este,

aliás, foi a nossa grande dificuldade ao longo de toda a investigação. Voltando à adega

referiremos apenas que possuía uma porta que dava acesso ao claustro, numa posição

paralela à que dava ingresso da portaria e do locutório para este centro unificador, isto é,

situada no ângulo formado pelas naves ocidental e norte169. Acreditamos que estas

portas de acesso ao claustro, tal como as que ainda iremos referir, eram em arco ogival,

idênticas às de outros cenóbios contemporâneos, a nível cronológico e estilístico. A

parede da adega virada para a cerca – a poente – era rasgada por quatro janelas e entre

estas e as pertencentes à arrumação existia uma porta, provavelmente semelhante à do

166 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 10. 167 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... Desdobrável a seguir às estampas.

Em apêndice. 168 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 10. 169 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 12.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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átrio, mas de menores dimensões. A norte a parede tinha mais duas aberturas170.

Sobre a adega, imediatamente ao lado da botica, ou farmácia e enfermaria,

situava-se a hospedaria171, segundo a designação de Rangel de Quadros, mas

provavelmente seria um dormitório de leigos. Aquele autor não faz uma descrição

exaustiva desta divisão nem lhe dispensa grande atenção, o que denota que era um dos

espaços mais simples, mas segundo a reconstituição verificamos que possuía cinco

janelas na continuação das aberturas do piso inferior.

Na ala norte do claustro, formando ângulo com a adega, havia uma escadaria de

pedra que dava acesso ao piso superior172. Ao lado desta situava-se o refeitório e a sua

entrada fazia-se sensivelmente ao meio da nave, sendo ligeiramente simétrica à Porta

das Graças, a qual se situava no medieval transepto e que dava acesso da igreja ao

claustro e que ainda hoje é visível na capela de Nossa Senhora do Rosário. Na planta de

João Gonçalves Gaspar o púlpito “...de bem cinzelada pedra...”173 foi colocado ao centro

da parede norte desta divisão, o que nos parece correcto, pois era comum esta posição.

O tecto do refeitório era talvez abobadado, pois Rangel de Quadros descreve-o como

“muito simples” e as paredes laterais possuíam colunas174. Não cremos que fosse uma

abóbada medieval muito complexa porque necessitaria de colunas ao centro do espaço

para escoramento e os espaços medievais abobadados sem colunas ao centro da divisão

rareavam, pois a solução criada na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha ainda era

recente e absorveria muitas expensas. Por outro lado, as nervuras trabalhadas

confeririam algum dinamismo e animação ao tecto, não se integrando na adjectivação

de “muito simples”. Pensamos, então, que a abóbada poderia ser ou de cruzaria simples,

ou, então, de berço liso, caso tenha sido realizada durante a renascença, mas esta entrou

tardiamente em relação ao período de levantamento deste claustro e das suas

dependências, de forma a que as respectivas colunas adossadas às paredes laterais

desempenhassem a função estrutural e, como tal, temos muita dificuldade em classificar

e integrar este trabalho num estilo. Falta ainda referir que esta divisão possuía cinco

janelas e que tinha acesso directo à cozinha, que lhe ficava contígua.

170 Estas últimas indicações foram retiradas da reconstituição e planta já várias vezes referidas e inclusas

em apêndice. 171 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 13. 172 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 12. 173 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 12. 174 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 12.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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No entanto, chamou-nos a atenção a inexistência de um lavatório no claustro em

frente ao refeitório, ao contrário do que acontece na Batalha, em Alcobaça, ou mesmo

no Mosteiro Velho de Santa Clara de Coimbra175, ou ainda em muitos outros mosteiros,

pois o hipotético arquitecto estava familiarizado com a existência de uma peça com esta

finalidade. Porém, aquele elemento simbólico da purificação e da ressurreição, tal como

“...lo ofrece el Paraiso del Génesis bíblico...”176, ou mesmo a sua imagem como fonte da

vida ou fonte do ensinamento e até fonte da juventude, na medida em que “pelas suas

águas sempre novas, a fonte simboliza, não [só] a imortalidade, mas sim o perpétuo

rejuvenescimento”177, rejuvenescimento este adquirido pela constante demanda do

conhecimento intelectual e espiritual, não aparece nem nas plantas, nem nas descrições,

contudo seria natural a sua existência à semelhança de outros cenóbios coevos e

pertencentes à mesma ordem. Todavia a sua inexistência apenas poderá ser

compreendida pela presença de um poço no centro do claustro178, do qual voltaremos a

falar, e que se revestisse do mesmo simbolismo.

A cozinha ocupava o resto da nave norte e tinha igual número de janelas e o nosso

mais forte apoio não lhe dedica qualquer consideração. Formando ângulo com aquela

havia uma pequena divisão quadrada que era apenas um local de acesso à própria

cozinha, à despensa e ao claustro novo que foi construído posteriormente e será tratado

mais adiante. Esta abertura de ligação a este último deverá ter sido realizada aquando da

sua execução.

Sobre o refeitório, no segundo piso do claustro, sendo o acesso efectuado através

da supra referida escadaria, entre a adega e o refeitório, “ficava uma larga e elevada

portada de pedra lavrada mas simples”179 que dava acesso aos aposentos do prior. Estes

limitavam-se a uma grande sala e a quatro quartos, dois dos quais destinados a hóspedes

mais dignos, nomeadamente eclesiásticos180, pois era habitual nos mosteiros haver 175 A indicação da existência de um lavatório no claustro deste convento conimbricence foi-nos fornecida

pelo professor da Universidade de Coimbra Francisco Pato de Macedo e por alguns arqueólogos presentes

nas escavações que aí decorrem, encontrando-se ainda alguns vestígios da sua existência. 176 SIMARRO, Alfonso Serrano e CHENEL, Álvaro Pascual – s.v. “Fuente”. Diccionario de simbolos.

Madrid. 2004. Editorial Libsa. p. 125. 177 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain – s.v. “Fonte”. Dicionário dos símbolos. Lisboa.

Edições Teorema. 1994. p. 334. 178 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 14 179 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 12. 180 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 13.

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espaços mais requintados destinados a albergar clérigos de hierarquia superior ou

pessoas, ainda que leigas, socialmente importantes. A porta que dava ingresso aos

aposentos do prior tinha uma inscrição: “Frater a servitude”181 - Irmão pela obediência.

Ao lado destes aposentos e sobre a cozinha desenvolvia-se a hospedaria dos clérigos182,

a qual pensamos ser o dormitório dos frades.

Voltando ao piso térreo, mas na ala nascente situava-se a despensa. Ao lado desta

ficava a Casa do Capítulo que era ampla e vasta e coberta por uma “abóbada muito

simples”183, que pensamos ser, talvez, de berço e desprovida de enlevada ornamentação.

Se assim for deverá ser trabalho do século XVI, tal como afirmámos em relação à

cobertura do refeitório. Não acreditamos que Rangel de Quadros se referisse a um tipo

de abóbada medieval quando a adjectiva de “muito simples” porque a abóbada de

cruzaria não nos parece simples e a sexpartida, de múltiplas cruzarias ou estrelada, num

espaço bastante amplo, necessitariam de colunas no centro da divisão para suporte,

excepto se aquele autor se referisse a uma abóbada de ogiva, apelidando-a de simples,

mas neste caso não nos parece possível porque ele afirma que as divisões são grandes e

espaçosas e, como tal, estruturalmente não era possível realizar uma cobertura deste

género nestas divisões, pois teriam de ser excessivamente elevadas. A outra hipótese

seria uma cobertura de arestas sem nervuras ornamentadas, como aventamos no

refeitório.

Ainda em relação a esta importante sala sabemos que foi edificada com expensas,

ainda em vida, de Francisco de Sousa Tavares que contratou com os clérigos ser

sepultado nesta mesma capela e também os seus descendentes184. Além de financiar as

despesas de construção aquele exigiu que lhe fossem ditas “...pª sempre cada somana

quatro missas Rezdas e dous offos de 3 Lições cosuas missas cantadas...”185. Como

pagamento destas obrigações religiosas doou vinte mil reis ao convento, mas no caso de

haver necessidade de intervenção na capela ou no retábulo as obras seriam custeadas

181 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 13. 182 Esta é a denominação atribuída por QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos.

Vol. IV... p. 13. 183 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 12. 184 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl.

163v. Doc. III, em apêndice. 185 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl.

163v. Doc. III, em apêndice.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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pelo próprio cenóbio186. Desconhecemos a data deste contrato, nem tão-pouco lográmos

encontrá-lo apesar de ser citado neste título manuscrito, mas o documento informa-nos

ainda que o seu filho, Francisco Belchior de Souza, que mais viria a tornar-se clérigo do

mosteiro, ainda leigo e após o falecimento de seu pai renovou aquele contrato numa

escritura realizada por Manuel Pais Bonicho a 20 de Janeiro de 1597187. Perante esta

datação não nos parece que a construção da Capela do Capítulo tenha sido edificada

antes do século XVI e julgamos que terá sido concretizada já numa estética da

renascença.

No primeiro piso, ou seja, no sobreclaustro, por cima da despensa e da Casa do

Capítulo, desenvolvia-se o dormitório dos frades188. Provavelmente, seguindo o ritmo

das outras janelas, esta espaçosa divisão teria oito aberturas rasgadas na parede na

continuação das outras quatro de cada divisão do piso térreo. O nosso “guia” também

não se demorou em descrições neste compartimento, o que nos leva a pensar que seria

um espaço amplo, sem divisão de celas e destituído de elementos decorativos, mas

alguma característica particular deve ter levado Rangel de Quadros a afirmar que se

tratava da “hospedaria dos clérigos”189. Cremos que pudesse ter sido, além da própria

amplitude da divisão, a existência de pequenos nichos rasgados na parede que

marcavam o espaço destinado a cada elemento, ainda hoje presentes noutros conventos,

nos quais os cenobitas guardavam a sua vela ou lamparina e a Bíblia que liam antes de

se entregarem ao divino descanso.

A ala sul do claustro ficava encostada à nave do Evangelho da igreja e tinha

passagem directa para o transepto através da Porta das Graças. Formando ângulo com a

Casa do Capítulo estava a sacristia que tinha acesso directo ao claustro e ao coro da

igreja, segundo a referida planta. No sobreclaustro desta ala Rangel de Quadros afirma

não haver qualquer divisão, mencionando apenas janelas envidraçadas de onde os

conventuais impedidos de ir à igreja assistiam às cerimónias190. Daqui concluímos que

as naves laterais do templo teriam a altura do claustro, tal como João Gonçalves Gaspar

186 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl.

163v. Doc. III, em apêndice. 187 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ªD/15/2/2. fl.

163v. Doc. III, em apêndice. 188 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 13 189 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 13. 190 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 13.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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reproduziu. No entanto, coloca-se-nos uma questão: a nave do Evangelho teria a altura

de todo o claustro, porém não ocupava toda a ala sul daquele espaço porque a nave sul

do claustro abrangia apenas, como era habitual, o espaço entre o corpo do templo e da

cabeceira. Existia a sacristia, no piso inferior, junto à parede da cabeceira, mas o que

haveria sobre ela? Teria a sacristia a altura de toda a nave? Não acreditamos. Existiria

alguma divisão sobre ela? Provavelmente. Pela descrição de Rangel de Quadros

depreende-se que era possível circular em todo o sobreclaustro e tendo em conta que

estamos perante um claustro regular haveria alguma estrutura arquitectónica na

continuação e simetria de todo o resto? Ou seria apenas uma nave para circulação sem

acesso a qualquer divisão? Devemos ter em conta que estas descrições incluem todas as

alterações posteriores efectuadas desde a época medieval até aos finais do século XIX.

Segundo a planta que nos tem servido de suporte realizada por João Gonçalves Gaspar e

que parece estar de acordo com as famigeradas descrições191 as naves laterais seriam da

altura do claustro, mas, já nos finais de oitocentos como hoje, verificamos que aquelas

eram mais baixas que a central e as alterações que as naves laterais foram sofrendo não

nos parece que lhes tenham retirado altura. Seria a nave central medieval da mesma

altura ou já era mais elevada? Não cremos também que as alterações maneiristas no

corpo do templo tenham aumentado a sua elevação. Elevar-se-ia a nave central acima do

claustro e, portanto, mais alta que as laterais? Parece ser a hipótese mais plausível e

dentro dos próprios cânones estéticos do estilo gótico.

Acerca do claustro, Rangel de Quadros afirma que era espaçoso e que ao centro

tinha um poço grande, como já referimos, de boa cantaria e com quatro faces

regulares192. Cada nave do claustro tinha doze elevadas colunas que escoravam o

sobreclaustro e neste piso havia o mesmo número de colunas, no seguimento das outras,

mas de tamanho inferior193. Infelizmente não nos são fornecidos mais dados, nem a

documentação levantada esclarece sobre o tipo estilístico do claustro, porém poderia ser

semelhante ao do Convento Dominicano de Guimarães ou ao Claustro do Cemitério do

Convento de Cristo em Tomar, mas em vez de colunas emparelhadas utilizando-se

apenas uma, ou, então, poderia ser um esquema mais simplificado do tipo do Claustro

191 Uma das principais fontes de apoio para a realização das plantas foram precisamente as descrições de

José Rangel de Quadros. 192 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 14. 193 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 11.

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de D. Afonso V, realizado por Fernão de Évora194, no Mosteiro de Santa Maria da

Vitória na Vila da Batalha, apenas com uma coluna em vez de emparelhadas no piso

inferior e com capiteis não muito desenvoltos decorativamente. No entanto, também é

possível que a quadra claustral tenha sido feita nos primórdios do Renascimento

português, assemelhando-se aos primeiros claustros renascentistas de estrutura e

linguagem bastante simplificada, como o claustro antigo do Mosteiro de Santa Maria de

Semide195, mas estamos mais inclinados, sem qualquer prova documental ou vestígios

materiais, que aquele espaço central unificador de todo o edifício tenha sido laborado

ainda durante a centúria quatrocentista e num novo espírito goticizante, porque na

segunda metade do século surgiria “...o advento de outro gótico, mais despojado e

simples, mais tradicional também, e mais pobre decorativamente, onde os novos

mestres ensaiavam uma nova linguagem, que obedecia a um novo gosto e a um novo

programa”196. Estevão Gomes e Fernão Peres formaram-se no estaleiro da Batalha, por

outro lado o claustro de D. Afonso V nesse mesmo mosteiro marca o desenvolvimento

desta nova corrente afastada do gótico flamejante e a construção aveirense denota esta

mesma linguagem construtiva e ornamental, como tal não é de estranhar que aqueles

mestres, ou mesmo outros que lhes sucedessem, fossem influenciados por uma obra tão

importante e igualmente familiar.

Quanto a obras efectuadas durante o século XV ou iniciadas nesta centúria e

continuadas na seguinte mais nada poderemos acrescentar, mas sabemos que ainda neste

século já se pensava fazer algumas alterações no corpo da igreja. O contrato da capela

de João de Albuquerque foi assinado em 1477, mas como todo o trabalho se

desenvolveu no século seguinte e integra-se num outro estilo - renascença - deixaremos

a sua análise para o próximo capítulo.

194 PEREIRA, Paulo – “Arquitectura portuguesa: 1400-1550”. in No tempo das feitorias. A arte

portuguesa na época dos Descobrimentos. Vol. I. Coordenação de Pedro Dias. Lisboa. Secretaria de

Estado da Cultura/Instituto Português de Museus. 1992. p. 95. 195 A freguesia de Semide pertence ao concelho de Miranda do Corvo nas proximidades de Coimbra. 196 PEREIRA, Paulo – “Arquitectura portuguesa: 1400-1550”... p. 95.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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DAS ALTERAÇÕES RENASCENTISTAS

À PERSISTÊNCIA MANEIRISTA

om o dealbar do século XVI chegaram os novos ideais humanistas a

Portugal e, com eles, as inovações técnicas e artísticas aliadas à

renovação mental e cultural porque neste período “os costumes mudam,

isto é, a maneira de viver, mas também as de pensar e de acreditar”197. Deste modo, o

convento não pôde ficar alheio a esta nova corrente, nem aos novos preceitos, pois

mantinha profícuas ligações com o seu homónimo de Benfica, em Lisboa, e com o

Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, que nesta época sofriam algumas

alterações que demonstravam a adesão ao novo estilo. Os contactos com a cidade de

Coimbra, possuindo belos exemplares das marcas renascentistas e pela qual passaram os

mais consagrados artistas da renovação clássica, tais como Chanterenne, Ruão e Hodart,

devem também ter exercido influência na sua congénere aveirense. Na realidade, do que

resta na igreja do extinto convento salta à vista do observador as partes do classicismo

humanista e do maneirismo, quer o tímido pós-Tridentino, como o desenvolvido

seiscentista, bem evidentes na actual estrutura do templo e nas suas capelas laterais.

Esta corrente parece ter sido tão profunda que algumas capelas foram construídas sob o

modelo renascentista, mas outras evidenciam já claramente a traça maneirista, não se

podendo dissociar do extenso período desta última corrente artística os sessenta anos de

dominação espanhola a que estivemos sujeitos, representando a "longa supremacia do

maneirismo", nas palavras de Jorge Henriques Pais da Silva198.

Porventura poder-se-á perguntar por vestígios manuelinos que não se encontram

actualmente no conjunto: a terem existido ter-se-ão perdido com a demolição das

dependências conventuais, mas não seriam de grande exuberância e labor, senão Rangel 197 FAURE, Paul – O renascimento. Lisboa. Publicações Europa-América. 1998. 3ª edição. p. 130. 198 SILVA, Jorge Henriques Pais Da – Estudos sobre o Maneirismo. edição póstuma organizada e

coordenada por SILVA, Ana Júlia Pais da e PEREIRA, Fernando António Batista. Lisboa. Editorial

Estampa. 1983. p. 183.

C

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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de Quadros teria chamado a atenção para tal facto aquando das suas descrições. Por

outro lado teremos de ter presente que a construção do edifício monacal se arrastou por

todo o século XV e que estamos perante um edifício pertença de uma ordem religiosa

mendicante. Apesar do seu moroso levantamento ter-se arrastado por um período em

que vigorava a arte manuelina, esta desenvolve-se entre dois períodos artísticos: o

gótico final pré-manuelino e o renascimento e se poderemos afirmar que o manuelino é

um gótico final, o inverso já não é correcto porque muitas obras de uma fase final do

gótico, desligadas do flamejante, seguiram um esquema ornamental simplista,

afastando-se do manuelino e até daquele gótico flamejante imanado da Batalha,

mantendo, ainda assim, a base estrutural projectada pelo estilo gótico. Devido

igualmente às alterações que o conjunto foi sofrendo é natural não se encontrar as

decorações típicas goticizantes, ao qual D. Manuel emprestou o nome, mas

apresentarem-se as novas soluções estruturais da renascença que imediatamente deram

lugar às manifestações maneiristas, pois “entre as soluções do gótico e do manuelino

que se prolongam e a formalização algo precoce da experiência maneirista tem sido

difícil recortar e periodizar um Renascimento português na arquitectura...”199.

Capela do Santíssimo Sacramento

estrutura medieval de três naves começou a ser alterada com a

edificação de uma capela no braço do transepto do lado da Epístola,

instituída por um navegador de nome João de Albuquerque, ao qual já

aludimos. Este, juntamente com a sua esposa, D. Helena Pereira, fez, ainda em vida, um

contrato com os frades pregadores desta, então, vila de Aveiro a 24 de Agosto do ano de

1477200. Conquanto um documento manuscrito por nós compulsado antecipa a data do

contrato para 20 de Agosto do mesmo ano201. Por este contrato o Senhor de Angeja,

termo de Aveiro, deixava aos religiosos uma quinta em Canelas, com todas as suas

rendas e casais, e a marinha do Puxadouro. Por seu turno, os frades obrigavam-se à

199 MARKL, Dagoberto – O Renascimento. História da Arte em Portugal. Vol. VI. Lisboa. Alfa. 1986. p.

32. 200 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 63. 201 A.U.C. – Convento de S. Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2. fl. 11

v. Doc. IV, em apêndice.

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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construção e reparação da capela e a entregar ao Convento de S. Francisco de Coimbra

400 reis anualmente: 250 por missa cantada por alma de seus pais que aí estavam

sepultados e 150 de esmola202. No entanto, os pregadores tiveram muita dificuldade em

possuir a citada quinta porque Jorge Moniz, que foi posteriormente Senhor de Angeja e

que herdou este morgado pela morte de Henrique de Albuquerque, que por seu turno já

o tinha herdado pela morte de seu pai, João de Albuquerque, afirmou que "…Erao Res

Regengos eda croa ecomo taes os nao podia dar Joao de Albuquerque Aeste

mosteiro…"203. Por conseguinte, após grande demanda, O Venturoso “…deuLicença

para este mosteiro poderter E Possuir Estas benfeitorias…”204. De seguida o cenóbio

processou D. Catarina Henriques, nora de João de Albuquerque, para reaver o que lhe

era de direito, sendo ela condenada e ainda conseguiu readquirir os bens que estavam na

posse de “…Dona Leanor Pereira molher que foi de Jorge munis…”205.

Esta contenda só teve resolução no final do ano de 1510 como se pode constatar

nas datas dos referidos documentos. Só a partir deste desenredo é que a construção da

capela se poderia encetar e, além das datas que balizam este litígio, as colunas que

suportam o arco da capela têm inscritas as datas de 1550 e 1559. Estas devem

corresponder ao período que mediou a construção desde o seu início até à finalização,

mas, se assim é, consideramos que a decisão para elevar a capela e comprazer o contrato

foi demasiado morosa.

Esta capela que actualmente é denominada do Santíssimo Sacramento, teve outras

invocações: inicialmente era chamada da Anunciação206, todavia o Padre Frey Thomé

dos Reis, em 1613, no Livro de Lembranças de Missas, afirma que esta capela

primeiramente "…Se chamaua da Saudaçao deSanta maria…"207, e nesse ano, 1613, já

202 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 64 e A.U.C. – Convento

de S. Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2. fl. 11. Doc. II, em apêndice. 203 A.U.C. – Convento de S. Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2. fl. 12

v. Doc. IV, em apêndice. 204 A.U.C. – Convento de S. Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2. 13.

Doc. IV, em apêndice. 205 A.U.C. – Convento de S. Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2. fl. 13

e 13 v. Doc. IV, em apêndice. 206 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109 e GASPAR, João

Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 20. 207 A.U.C. – Convento de S. Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2. fl. 11.

Doc. IV, em apêndice.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

57

era intitulada “…de Jeshus…”208; no ano de 1702 ainda desfrutava desta invocação,

como se pode verificar pelo contrato assinado entre os monges deste convento e o

entalhador portuense António Gomes para a execução do retábulo e de outras obras em

talha para esta capela209. Isto contraria, assim, a afirmação de João Gonçalves Gaspar

que nos inícios do século XVIII esta capela possuía a invocação do Santo Cristo. Apesar

de remeter para a mesma figura religiosa a denominação invocatória é diferente,

contudo é possível que mais tarde, talvez ainda em setecentos, tivesse tomado aquela

última denominação devido a ter-se tornado sede de uma irmandade com este nome. De

1900 até 1976 foi denominada de Senhor dos Passos210, todavia a capela continua

actualmente a ser muito conhecida pelo nome do seu instituidor.

Estruturalmente apresenta um esquema rectangular e possui um grande arco de

entrada de volta perfeita. A decoração é sóbria, mas tipicamente renascentista: dez

singelos querubins animam a parte exterior do arco e o intradorso é dividido em vinte e

quatro pequenos caixotões, verificando-se o jogo de alternância de lisos e outros

preenchidos com ornamentação vegetalista e floral da renascença, sendo o do centro

maior e também liso. O arco é escorado por duas pilastras de fuste decorado com

motivos dependurados e têm na face interior uma coluna adossada: esta é estriada nos

dois terços superiores por arestas vivas, está assente numa pequena base e a encimá-la

possui um capitel coríntio. Este conjunto suporta um elegante e destacado entablamento

e é suportado por um pedestal movimentado e com ornamentação idêntica à referida nas

pilastras.

O tecto poderia ser em abóbada de berço (encontra-se tapado pelo trabalho de

talha de início de setecentos, do qual em capítulo próprio falaremos) porque todas as

outras capelas possuem este tipo de cobertura e esta foi a que deu o mote para a

orgânica estrutural das seguintes. Além disto era perfeitamente natural este tipo de

cobertura, porque além de se harmonizar melhor com a arco de entrada era um tipo de

abóbada querida ao renascimento. Contudo, se assim fosse, então, a abóbada teria de

ser, necessariamente, mais alta que as abóbadas das outras capelas laterais, devido à

208 A.U.C. – Convento de S. Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2. fl. 11.

Doc. IV, em apêndice. 209 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha Dourada, ensemblagem e pintura na cidade e na diocese do

Porto. Documentação dos séculos XV e XVII. Porto. Distribuidora Sólivros de Portugal. 1984. Vol. II. pp.

138-142. 210 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... pp. 20-21.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

58

altura quer do retábulo quer do tecto em talha. No entanto é mais plausível que o tecto

fosse direito, pois existem muitas grandes obras desta época com tectos desta estrutura,

quer em Portugal como em Itália. É mais lógica a ideia de esta capela ser imitada pelas

seguintes alterando apenas o tipo de cobertura para uma abóbada de berço, do que as

subsequentes capelas sofressem um rebaixamento na estrutura abobadada. A capela que

está defronte, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, também possui uma cobertura em

madeira, não permitindo uma comparação ao nível da estrutura de cobertura lítica.

Na parede fronteira ao arco existe uma porta que na nossa opinião será da mesma

época da construção da capela. A corroborar a nossa ideia está a semelhança e a simetria

que ela faz com a Porta das Graças situada na Capela de Nossa Senhora do Rosário e,

segundo João Gonçalves Gaspar, esta última porta foi refeita na segunda metade do

século XVI, enquanto datou a capela apenas do século seguinte211. Embora a datação da

capela seja uma opinião muito discutível a verdade é que elas, portas e capelas, são

iguais e o estilo renascentista é bem caracterizado por fortes simetrias, o que nos leva a

crer que a Porta das Graças terá sido realmente refeita na data proposta por João

Gonçalves Gaspar e a porta da capela do Santíssimo Sacramento rasgada aquando da

sua construção.

Devido às muitas obras que este templo foi sofrendo, principalmente após a

vitória dos liberais, a qual foi exuberantemente celebrada pelos aveirenses porque esta

cidade esteve sempre ao lado dos exércitos de D. Pedro IV, muitos elementos

importantes para a memória do conjunto enquanto instituição monacal foram-se

diluindo na incúria e ignorância e é neste contexto que as descrições de Rangel de

Quadros se revestem de uma importância cada vez mais capital. É pela sua mão que

conhecemos duas sepulturas doadas nesta capela que passamos a inscrever o seu registo:

Aqui jas Afo

D.es a quem

este mosto

deu sepa

212

e próximo da porta simétrica à das Graças havia outra com a seguinte inscrição:

211 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... pp. 24-25. 212 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 26.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

59

Sepoltura de fr.co dueS

branco: Faleceo na

era d: MDXXXUIII

213

Capela do Senhor dos Passos

capela construída a seguir, na nossa opinião, foi a, denominada

actualmente, de Senhor dos Passos devido à imagem que lá é guardada

e que saiu da oficina do escultor portuense Teixeira Lopes, nos inícios

do século XX214. Até 1976 foi dedicada ao Santíssimo Sacramento e como se constata

houve uma inversão da invocação com a capela anterior que lhe é contígua.

António Nogueira Gonçalves atribui a construção desta capela ao século XVII215,

no entanto esta ideia é refutada por vários autores que a antecipam para 1560216.

Sustentam a sua opinião na inscrição que a ombreira da janela, que está hoje se encontra

tapada, possuía. Não cremos que aquela data se refira à feitura da janela ou a um

restauro ou reconstituição da mesma, mas, sim, a uma obra mais vasta como a execução

de toda a capela. A data estaria muito mais de acordo com as datas propostas para a

capela anteriormente descrita e, desta forma, seria bem mais lógico o período de dez

anos para a concepção das duas capelas, sendo, provavelmente, uma construção

levantada em conjunto. Rangel de Quadros na descrição desta capela compara-a com

outra da mesma invocação na desaparecida igreja da Vera Cruz, “o que me leva a crêr

que é obra da mesma época, isto é do segundo meado do século XVI”217. O certo é que

esta capela a par de toda a sua linguagem ornamental integra-se muito mais nos cânones

de uma renascença madura que nos maneiristas da segunda metade de quinhentos.

Apresenta estrutura rectangular e o vão da entrada é ligeiramente mais pequeno

213 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 26. 214 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 20. 215 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 110. 216 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 20 e NEVES, Amaro – Aveiro.

História e Arte. Aveiro. ADERAV. 1984. p. 79 e NEVES, Amaro e SEMEDO, Énio – Aveiro do Vouga

ao Buçaco. Lisboa. Editorial Presença. 1989. p. 63. 217 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 35.

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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que a estrutura parietal. Possui, tal como a anterior, um arco de volta perfeita mais

ascético, mas transmitindo maior solidez. O arco é rematado por uma chave

consoliforme e o intradorso é dividido em dezassete pequenos caixotões, alternando os

lisos com decorados. Estes são animados por graciosos rosetões, todos diferentes. O

arco assenta num destacado entablamento que está apoiado, por sua vez, em duas

simples pilastras estriadas com arestas vivas nos dois terços superiores e caneladas no

restante. Na face interior das pilastras encontram-se motivos geométricos piramidais (na

zona superior e inferior) e dois florões ao centro. Estas robustas pilastras assentam em

dois pedestais ornamentados, na face exterior, com motivos dependurados tipicamente

renascentistas e motivos geométricos, mais propriamente um losango, nas almofadas

interiores denotando já um muito tímido maneirismo.

Esta capela comunica com as subsequentes através de duas portas existentes nas

paredes laterais imediatamente a seguir ao arco. A porta da esquerda deve ter sido

realizada na altura da execução da capela para comunicar com a do Santíssimo

Sacramento, mas a da direita deve ter sido aberta quando se executou a capela seguinte.

Também não está fora de questão as portas terem sido rasgadas quando as capelas

estavam já todas erectas, o que remeteria a sua abertura para o século XVII, mas

inclinamo-nos para a primeira hipótese, até porque aquando deste levantamento já

existiam capela laterais intercomunicantes, como é o caso do templo de São Francisco

em Évora.

As paredes laterais são animadas por um friso que parte das pilastras da entrada e

é interrompido na parede fronteira ao arco. Aqui estão duas esguias pilastras com duplo

capitel sobreposto e com o entablamento desenhado que, apesar de ligado ao já referido

friso que se estende por toda a capela, está totalmente desarmonizado. Na verdade estas

duas pilastras, coroadas por dois fogaréus, não se integram no conjunto, sendo muito

possível que tenham sido um acrescento posterior. O friso que corre ao longo das

paredes deixa entrever uns ligeiros relevos dependurados renascentistas, mas que muito

mal se notam e apresenta um certo movimento que corresponde e acompanha as

nervuras dos caixotões da abóbada, isto é, os arcos torais que arrancam daquele. A

abóbada é em berço e está dividida em quatro fiadas de seis caixotões. O conjunto

apresenta grande solidez e, por outro lado, transmite uma singela beleza e uma subtil

calmia num todo bastante harmonioso, com excepção feita às supracitadas pilastras, de

gosto duvidoso, da parede do fundo.

Devemos ter em conta que esta capela foi construída no tramo mais próximo do

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

61

arco cruzeiro, como tal a estrutura medieval do templo ficou muito desvirtuada e só

voltaria a ter equilíbrio aquando da construção das capelas fronteiras às descritas, ou

seja, no lado do Evangelho.

Capela de Nossa Senhora do Rosário

capela construída posteriormente, na nossa opinião, poderá levantar

alguma polémica, mas arriscamos em afirmar que foi a denominada, no

nosso tempo, por Nossa Senhora do Rosário, invocação tributária da

bela imagem estofada maneirista218 que está no trono do retábulo rococó, que em

capítulo próprio falaremos, e que outrora deveria estar no anterior que deu lugar ao

presente.

A construção desta capela tem sido datada do século XVII219, após o

levantamento das quatro capelas do lado da Epístola, mas acreditamos que a sua

edificação se fez na centúria anterior. Em primeiro lugar não achamos lógico que se

efectuassem primeiro as quatro capelas da Epístola e depois as quatro fronteiras porque,

como as construções dependiam do aspecto económico, os frades corriam o risco de o

templo ficar assimétrico ou só muito tempo depois poderem conferir-lhe o devido

equilíbrio. Em segundo porque esta capela foi construída no lugar do transepto medieval

e como a capela do Santíssimo Sacramento já estava erecta era muito mais correcto,

quer arquitectónica e estruturalmente, como a nível estilístico, a edificação desta para

conferir equilíbrio, estética, unidade e dignidade. Além disto sabemos que as capelas da

Epístola dedicadas, hoje em dia, à Nossa Senhora da Visitação e a S. Jacinto foram

levantadas nos finais do século XVI e princípios do século seguinte. Por outro lado

sobre a Porta das Graças, inserida na controversa capela, estava inscrita a data de

1569220, mas infelizmente hoje já não é visível. Esta data estaria, assim, dentro de uma

corrente lógica que a seguir às duas capelas já descritas, edificadas sensivelmente entre

1550 e 1560, se construísse esta por volta de 1569 e talvez a capela que lhe fica

218 Esta escultura maneirista em madeira é anterior à obra de talha e pintura, as quais analisaremos nos

capítulos próprios. 219 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 110 e GASPAR, João

Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 24. 220 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 31.

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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contígua dentro da mesma linha de pensamento. Esta fundamentação utilizada para a

datação desta capela é completamente similar à diligenciada para a capela do Senhor

dos Passos e as datas inscritas em locais muito próximos fortalece a nossa ideia. Mais

tarde, no final do século, construir-se-iam as outras duas da Epístola, na medida em que

ambas foram instituídas pela mesma pessoa, O Abade de Ribeirão, o que

aprofundaremos quando estivermos a tratar delas. Para apoiar a nossa ideia existia uma

lápide, que também já desapareceu, referida pelo nosso mais directo apoio que possuía a

seguinte inscrição:

"SPA DE MIGVEL FRZ

MERCADOR E D SVA

MOLHER ANTONIA FRZ

E DE SEOS ERDEIROS E

DESCTS HERA DE

1572 ANNOS

221

Se a capela estivesse terminada em 1569, data da Porta das Graças, é bastante plausível

a compra da sepultura nesta capela três anos mais tarde. Mas outras lápides

desapareceram, contudo ainda é possível conhecer a inscrição de mais duas, a primeira

estava junto da porta que comunica com a capela contígua:

SP.A DE MANVEL

ANDRE

ERMITAO

DA EGREIA

222

Ainda se poderia encontrar uma outra com um epitáfio bem mais desenvolto:

SEPVLTVRA PROPRIA DE

D. CATHARINA CORREA RAN

GEL DE QVADROS EVEIGA

221 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 33. 222 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 33.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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FILHA DE ANTONIO RANGEL

DEQVADROS E VEIGA E D.

ANNA DA VEIGA CARDOSO

DALBERGARIA NASCEU

EM 20 DE IVLHO DE 1660

E FALECEV EM 20 DE MAIO

DE 1774

223

Estilisticamente a capela é igual à do Santíssimo Sacramento: possui um arco de

volta perfeita com fecho tipo lambrequim, no qual está inscrito o monograma "A M"

entrelaçados e desenhados com grande delicadeza; é animado por dez querubins e o

intradorso é dividido por vinte e um pequenos caixotões, numa sequência alternada de

lisos e preenchidos, por rosetões todos diferentes. O arco é escorado em duas pilastras

que têm uma coluna adossada, estriada por arestas vivas nos dois terços superiores e

rematada com capitel coríntio. A decoração começa a afastar-se um pouco da capela que

lhe serviu de molde, pois na parte interior das pilastras apenas estão seis flores

diferentes ligadas por uma corda – uma singela grinalda – denotando um certo

naturalismo que o estilo maneirista irá desenvolver. A suportar este conjunto está um

alto pedestal, com o mesmo movimento, decorado com motivos diferentes: a almofada

exterior, ligada directamente à pilastra, possui dependurados, mas a face interior, ligada

à coluna, é animada por motivos geométricos, opondo-se, dentro do mesmo elemento,

ornamentação renascentista e tímida maneirista respectivamente.

Quanto ao tecto não valerá a pena dizermos muito porque o que foi dito para a

capela de fronte aplica-se exactamente a esta, pois também é coberto por um tecto de

caixotões com molduras em talha que encaixilham dezasseis tábuas pintadas

representando cenas da Virgem e de Cristo, as quais analisaremos em capítulo próprio.

Ao centro da parede paralela à do arco fica a já sobejamente citada Porta das

Graças e sobre ela ficaria uma janela que foi tapada muito posteriormente224. Tal como

na capela simétrica esta possui uma porta que dá acesso directo à capela contígua que se

situa junto à pilastra do arco.

Apesar desta capela imitar a primeira edificada ela deixa já transparecer laivos de

223 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 33. 224 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 30.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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maneirismo, especialmente na decoração, os quais vão ser mais notórios nas capelas

seguintes, o que, de certa forma, corrobora a nossa opinião que esta terá sido a terceira

capela construída, seguindo uma linha de progressão estilística do renascimento, para

um proto-maneirismo e, então, para um maneirismo já firme nas capelas subsequentes.

Capela do Sagrado Coração de Jesus

capela contígua à de Nossa Senhora do Rosário, hoje com evocação

do Sagrado Coração de Jesus, pensamos ter sido a quarta a ser

levantada devido a motivos idênticos à anterior, isto é, para conferir

unidade e equilíbrio ornamental e estrutural necessário às paredes e pesos constantes.

Inicialmente era dedicada a São Gonçalo de Amarante, no entanto no século XIX

tornou-se sede da Irmandade do Senhor Jesus225. As informações acerca deste espaço

são nulas ou muito resumidas, referindo-se apenas à lápide, ainda hoje visível, de

instituição da capela por Francisca Soares em 1701226. Porém é ideia geral que a capela

data do século XVII227, mas pelos factos já apresentados nas linhas dedicadas à capela

de Nossa Senhora do Rosário, sendo exagerado e enfadonho repeti-los novamente,

estamos em crer que seja de inícios do último quartel de quinhentos, ainda antes da

erecção da capela da Visitação. De qualquer forma não nos parece que a data transcrita

por Rangel de Quadros esteja correcta porque este autor refere a data como sendo 1701,

mas a lápide ainda hoje conservada na capela apresenta o ano de 1718. Por outro lado, o

testamento feito por esta Francisca Soares, em sua própria casa, foi redigido a 6 de

Julho de 1708228, testamento pelo qual doa todos os seus pertences ao convento em

troca de uma sepultura na capela de São Gonçalo. Este desejo é garantido e outorgado

pelos religiosos reunidos em capítulo, na capela para estes actos destinada, a 20 de

Agosto do mesmo ano229. Isto significa que em qualquer das dúvidas e das hipóteses 225 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 23. 226 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 36. 227 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 110 e GASPAR, João

Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 23. 228 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro 13º dos bens de Francisca Soares. III/1ª

D/15/2/17. Fls. 1-2. Doc. V, em apêndice. 229 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro 13º dos bens de Francisca Soares. III/1ª

D/15/2/17. Fls. 6-6v. Doc. VI, em apêndice.

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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anteriormente aventadas em 1708 este espaço dedicado a São Gonçalo já há muito

estava erecto.

A estética da capela é muito semelhante à que lhe fica simétrica: abre-se com um

arco de volta perfeita simples e sólido unido por uma chave em forma de consola; o

intradorso é dividido em dezassete caixotões com a mesma alternância descrita nas

outras capelas: os cheios são animados por rosetões todos diferentes e alguns são

extremamente semelhantes a outros que decoram o intradorso do arco da capela do

Senhor do Passos. O arco, bem como a abóbada de canhão, assenta num sólido

entablamento que corre ao longo das paredes. Nos pés direitos, sob o arco, estão duas

fortes pilastras caneladas no seu terço inferior e estriadas nos outros dois terços. A

escorar todo o peso estão dois robustos pedestais. A face interior das pilastras possuiu

ao centro uma grande flor e nas partes superior e inferior motivos geométricos, tipo

piramidais. Os pedestais, por seu turno, apresentam um losango em cada face, sendo

aqui que surgem as diferenças com a capela fronteiriça, pois os desta são decorados por

motivos dependurados na face exterior.

A abóbada de canhão é lisa e assenta no estático entablamento. Paralelo a este e

aos arcos da entrada e da parede há um contínuo entrelaçado, muito simples de motivos

naturalistas que fazem lembrar a decoração manuelina, animando a abóbada e

conferindo-lhe equilíbrio ornamental com a heráldica religiosa que está ao centro da

cobertura. Este tipo de decoração surge, mais comummente, na retabulária maneirista da

segunda fase, ou seja, na viragem do século, a qual é um reavivar da retabulária do

gótico final truncada pela serenidade e cenografismo lítico do renascimento. Em cada

parede lateral abre-se uma porta que dá acesso à respectiva capela contígua. Estas portas

devem ter sido construídas ao longo da execução das capelas e conforme a necessidade

de comunicação entre elas, como foi apresentado na capela do Senhor dos Passos.

Esta capela apesar de seguir o modelo da do Senhor dos Passos apresenta já

características ornamentais - motivos geométricos dos pedestais e naturalistas da

abóbada - e estruturais - a abóbada lisa em vez de caixotões - que a afastam da estética

do protótipo e a colocam numa linha maneirista, mais desenvolta que a linha proto-

maneirista da capela de Nossa Senhora do Rosário, mas menos liberta e menos vincada

que as quatro capelas edificadas nos velhos tramos medievais mais próximos da entrada.

Como tal deverá ter sido levantada antes das duas últimas capelas da Epístola, mais

próximas da entrada, nos primórdios do último quartel do século XVI, pois aquelas

terão sido levantadas nos finais da centúria de quinhentos.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

66

Capela da Visitação

s obras seguintes foram feitas no lado da epístola, erigindo-se duas

capelas, senão simultaneamente, pelo menos espaçadas por um período

de tempo curto. A capela da Visitação, contígua à do Santíssimo

Sacramento, foi erecta a expensas de Manuel Gonçalves, Abade de São Mamede de

Ribeirão, concelho de Famalicão, para sua sepultura e de sua família, conforme se pode

ver na lápide que ainda hoje se encontra na parede à direita de quem entra:

NESTA SA ABAIXO ESTAA DI

OGVO GLZ E M ARRAIZ E

SVAS FAS E HO PE MEL GLZ SEU FO ABBA

DE QVE FOI DA IGRA DE RIBERAO

ARCPDO DE BRAGA O QVAL FEZ ES

TA CAPELA E DOTOV DE RENDA

SVFICIENTE PERA LHE DIZER

DUAS MISSAS CADA SOMANA ATOS

TAO E HV OFFICIO DE TRES LIÇOES

COM SVA MISSA CATADA E CADA HVM

ANO POR Q DARAO 600: DEIXA POR TES

TAMENTEIRO E ADMINISTRADOR DESTA

CAPELLA AO PRIOR Q HE E FOR EAFZDA DERA

IS Q SE ACHAR HE DESTA CAPLA CONFORME HO

TESTAMENTO Q FICA NO DEPOSITO DESTE COVETO

HERA 1594

Nos documentos por nós compulsados não encontrámos o contrato nem o

treslado, porém deparámo-nos com algumas referências a esta capela e ao seu

instituidor: no Livro de Diversas Receitas apelidam-na de “cappela da Senhora

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

67

daVisitaçao”230, nome que ainda hoje possui, provavelmente, devido ao grande retábulo

lítico da renascença coimbrã que nela é abrigado, mas segundo Amaro Neves nem este

retábulo, nem o de Nossa Senhora da Misericórdia, na capela com o mesmo nome,

foram construídos para este cenóbio, mas destinar-se-iam à Igreja da Santa Casa da

Misericórdia de Aveiro231 e posteriormente foram transferidos para aqui. Discordamos

com esta proposta, mas deixaremos este confronto salutar de ideias para o capítulo

referente à retabulária pétrea. Num outro documento do século XVII que tivemos a

oportunidade de ler, do qual extraímos a seguinte passagem “...ena cap: de S Hiacinto q

esta cituada neste mostrº de S dos a baixo da capella da Vizitação q o d Abbade em sua

uida fez...”232, confirmámos a obrigatoriedade dos frades celebrarem duas missas por

semana pela sua alma na capela de São Jacinto (hoje em dia dedicada a Nossa Senhora

dos Prazeres) e o mesmo documento demonstra também que o seu testamenteiro e

administrador seria a Confraria dos Clérigos da então Vila de Aveiro da Igreja de São

Miguel, os quais ficariam responsáveis pela fábrica daquela capela (provavelmente,

apesar de o documento não esclarecer, também da da Visitação), tendo a dita confraria

confirmado e assinado contrato com este mosteiro a 6 de Novembro de 1606233.

Desconhecemos se à data da construção da capela ou da realização deste último contrato

referido a invocação seria da Visitação ou Senhora da Visitação, mas temos a certeza

que aquando da redacção do Livro de Lembrança de Missas, no século XVII, a

advocatura já era aquela.

Estilisticamente esta capela é extremamente semelhante à do Sagrado Coração de

Jesus: estrutura rectangular, como todas, abre-se com o habitual arco de volta perfeita,

ainda mais liso, mas denotando-se a estrutura das aduelas que o compõem, sendo unido

por uma chave consoliforme. O arco arranca de um entablamento forte ligeiramente

saliente que assenta nas duas vigorosas pilastras, caneladas no terço inferior e estriadas

nos outros dois. Na parte interior desaparecem as flores para dar lugar a um maior

ascetismo, possuindo apenas os motivos piramidais nas zonas superior e inferior. Sob as

230 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Diversas Receitas. III/1ª D/15/2/29. fl.16 v.

Doc. VII, em apêndice. 231 NEVES, Amaro – Dois retábulos maneirista na Sé de Aveiro. Aveiro. FEDRAV. 1996. 232 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de lembrança de missas. III/1ª D/15/2/2. fl.

262. Doc. VIII, em apêndice. 233 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de lembrança de missas. III/1ª D/15/2/2. fl.

262. Doc. VIII, em apêndice.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

68

pilastras estão os altos plintos animados nas suas faces apenas por um losango.

O tecto é de abóbada de canhão e arranca do saliente entablamento, que parte das

pilastras e que corre ao longo de todas as paredes. É apenas interrompido na zona onde

está o citado retábulo, mas parece-nos que essa parte foi cortada para colocar esse

instrumento cénico. Ao centro da abóbada está outra iconografia religiosa,

descortinando-se duas chaves que se cruzam sobre a mitra papal, numa clara alusão à

figura de São Pedro. Apesar de esta heráldica nos parecer um estuque bem mais

tardio234, não deixa de levantar alguma curiosidade a sua execução. A capela é dedicada

à Visitação, ou Senhora da Visitação, mas os responsáveis por este espaço era a

Confraria de Clérigos da Igreja de São Miguel, como ficou acima demonstrado, que

tinha como patrono São Pedro. É o próprio Rangel de Quadros que afirma:”[O abade de

Ribeirão] também deixou bens à confraria de S. Pedro, erecta na (extincta) freguezia de

S. Miguel, e quasi toda formada de clérigos”235. É provável que após a extinção da

Igreja de São Miguel a confraria se tenha mudado para esta igreja e estabelecido a sua

sede nesta mesma capela, na medida em que a administrava e por este motivo se tivesse

executado o símbolo do seu patrono na abóbada. Ao tempo das capitais descrições de

Rangel de Quadros no nicho central do registo superior do retábulo encontrava-se uma

estátua de São Pedro em madeira, que tinha vindo da igreja de São Miguel236, e que

ainda hoje se encontra nesta capela, mas já fora do retábulo, pois em seu lugar foi

colocada uma outra imagem de Nossa Senhora com o Menino. Aquela imagem é uma

bela peça da estatuária do nosso barroco seiscentista, apresentando já liberdade de

movimento e expressividade, apesar de alguma dureza no tratamento das roupagens,

aliada a uma alegre policromia num festivo tratamento de estofado, porém

desconhecemos qual terá sido a imagem original abrigada naquele nicho, ou, pelo

menos, qual a sua iconografia. Todavia, a presença de todos estes elementos ligados ao

apóstolo pescador Simão leva-nos a crer que este espaço estava fortemente ligado à

Confraria de São Pedro.

É de referir ainda que sobre a lápide funerária, já referenciada, está a heráldica

234 Curiosamente Rangel de Quadros na sua obra que nos tem servido de forte suporte não faz qualquer

alusão a este trabalho de estuque. 235 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 39. 236 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 38. GASPAR, João

Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 19 faz a mesma afirmação acerca da origem desta

estátua.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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dominicana sobre a qual se destaca o Cão com um círio na boca inserto num medalhão

circular e nas paredes laterais estão as portas de ligação com as outras capelas, na

mesma posição que as anteriormente descritas.

Capela de Nossa Senhora dos Prazeres

capela contígua à da Visitação inicialmente era dedicada a São

Jacinto, mas no século XVIII foi consagrada a Nossa Senhora da

Esperança237, provavelmente apenas na segunda metade porque em

1733 ainda vem referenciada nos documentos como capela de São Jacinto238, e mais

tarde ainda passou a ser dedicada a Nossa Senhora dos Prazeres239. Quando as ordens

religiosas foram expulsas de Portugal após a definitiva implantação do liberalismo e

esta igreja tornou-se matriz da paróquia de Nossa Senhora da Glória, no ano de 1835240,

em homenagem à rainha D. Maria da Glória, esta capela passou a desempenhar as

funções baptismais.

Esta também foi fundada pelo Abade de Ribeirão que, além de deixar bens ao

mosteiro para a fábrica da capela, doou outros à supracitada Confraria de São Pedro da

Igreja de São Miguel para esta a administrar e os confrades encetaram um contrato, a 6

de Novembro de 1606, pelo qual os frades obrigavam-se à celebração de duas missas

por semana no altar de São Jacinto pelo pagamento de oitenta reis cada uma e seguindo

o testamento do instituidor241. Isto deixa, então, transparecer que esta capela teve que

ser erecta, sensivelmente, entre 1594 - data da lápide que se encontra na capela anterior

- e 1606, data de contrato entre a Confraria de São Pedro e o mosteiro. Sabemos que em

237 Esta capela tornou-se sede da Irmandade de Nossa Senhora da Esperança que já existia nesta igreja

desde 1578, juntamente com outras duas: Nossa Senhora do Rosário e a de Jesus. QUADROS, José

Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 40. 238 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Diversas Receitas. III/1ªD/15/2/29. fl. 15.

Doc. IX, em apêndice. 239 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 12. 240 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 12. 241 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de lembrança de missas. III/1ª D/15/2/2. fl.

262. Doc. VIII, em apêndice. QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV...

p. 39 assevera que o instituidor deixou também bens à Confraria da Senhora do Rosário sediada neste

mosteiro.

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

70

1733 os administradores da “Cappella doAbbade de Ribeirao… cappela de S.

Jacinto…” eram da “…confraria os clerigos desta villa…”242, ou seja a Confraria de

São Pedro como anteriormente demonstrámos, não só porque o próprio José Rangel de

Quadros afirma que a confraria era “…quasi toda formada de clérigos”243, como

também no documento do Livro de lembrança de missas os confrades são intitulados de

“...confraria dos pes clerigos...”244.

A capela apresenta alterações devido à construção do coro alto em 1872245,

obrigando os arcos de entrada das capelas que estão sob ele a um abatimento. De resto

esta capela é totalmente igual à anterior, como tal achamos desnecessário e cansativo a

sua descrição. Apesar do arco ter sido rebaixado a cobertura em abóbada de canhão

manteve-se e também possui heráldica religiosa ao centro. O friso, em jeito de imitação

de um entablamento, é totalmente contínuo o que apoia a nossa ideia quanto ao corte

efectuado no da capela anterior, ou de não ter sido executado totalmente contínuo

devido à inserção do retábulo da Visitação. A decoração é exactamente igual à capela

que a antecede, isto é, apenas geométrica, plenamente maneirista. Esta capela possuía

uma porta de comunicação com a capela da Visitação246, mas foi tapada, provavelmente

aquando da construção do coro alto e actualmente abriga o original cruzeiro manuelino

de São Domingos.

O coro alto foi realizado, segundo João Gonçalves Gaspar, em 1872247, mas

Rangel de Quadros assegura que em 1886 foram realizadas algumas obras na igreja e

que esta capela sofreu uma profunda remodelação, pois foram-lhe retirados os grandes

painéis azulejares dos finais da centúria de seiscentos ou princípios de setecentos248. A

par disto também foi retirada uma lápide com a seguinte inscrição:

242 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Diversas Receitas. III/1ªD/15/2/29. fl. 15.

Doc. IX, em apêndice. 243 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 39. 244 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de lembrança de missas. III/1ª D/15/2/2. fl.

262. Doc. VIII, em apêndice. 245 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 12. 246 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 41. 247 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 12. 248 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 41.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

71

ESTA CAPELA HE DO CAPI

TAO MANOEL ANDRE DE FI

GVEIREDO E DE SVA MVLHER

FRANCISCA DA CRVS E DE IO

AO MANOEL E ANTONIA MIG

VEIS SEVS PAIS E DE SEVS HERD

EIROS E DESCENDENTES TEM MISSA

COTIDIANA Q PA ISSO LHE DO

TARAO DE RENDIMENTO E PA FA

BRICA AOS 28 DE MARÇO

DE 1668 ANNOS

249

“O capitão Manuel André de Figueiredo era em 1655 vereador da camara de

Aveiro...”250.

Pelo exposto na descrição e análise verificamos que esta capela e a anterior

apresentam uma linguagem italianizante della maniera, a qual não apresenta grandes

diferenças, nem um afastamento quanto à gramática explorada na capela do Sagrado

Coração de Jesus, muito pelo contrário, verificando-se um paralelismo bastante

próximo, contribuindo, assim, para a nossa proposta de datação das suas construções.

Capela de Nossa Senhora da Conceição

e acordo com a fundamentação documental e estilística apresentada até

agora e prosseguindo a mesma linha de raciocínio depreendemos que

as duas capelas do lado do Evangelho, levantadas no lugar dos tramos

medievais mais próximos da entrada, foram construídas após a conclusão das fronteiras.

Na realidade, pela sua estrutura e traços ornamentais parecem poder datar-se do século

XVII, como têm sido até agora por outros autores251, porque as que lhes ficam defronte,

como as datas permitem deduzir, teriam sido construídas na viragem do século, entre

249 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 42. 250 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 42. 251 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111 e GASPAR, João

Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 14 e p. 22.

D

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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1594 e 1606. Contudo, podem ter sido levantadas mais tarde e terem seguido a traça das

duas que lhes ficam entestadas, mas a problemática da datação destas capelas será

explorada aquando da análise da capela de Nossa Senhora da Misericórdia.

Simétrica à capela da Visitação fica a de Nossa Senhora da Conceição que ao

tempo do cenóbio era dedicada a Santa Catarina de Sena252. A nível arquitectónico e

decorativo é precisamente igual àquela, ressalvando que ao centro da abóbada possui

apenas um florão em vez da heráldica eclesiástica, inserindo-se, então, ainda na estética

maneirista, mas já sem o fulgor da criatividade, de acordo com a estética vigente no país

neste período.

Mais uma vez Rangel de Quadros é o cronista de alguma da muita memória que

se foi perdendo, antes e depois do seu trabalho e da sua vida, fornecendo-nos outros

registos inscritos em lápides já desaparecidas:

SP.a

DESEB. ASTIAM CRISOSTOMO PIMENTEL

FILHO DO LICENCEADO

MANVEL GOMES PIMENTEL

FALECEV EM S. PEDRO DAS ARADAS

EM 6 DE SETEMBRO DE 1659

253

e muito próxima desta sepultura encontrava-se uma outra directamente relacionada:

MARIA DA SILVA

VIVVA DO LICENCEADO

MANVEL GOMES PIMENTEL

DOS QVAES É ESTA SP.A

FALLECEO EM 2 DE MAIO

DE 1664

254

Ao que parece “n’esta mesma sepultura foi enterrado o Licenceado Manuel Gomes

252 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 39. 253 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 40. 254 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 40.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Pimentel...” falecido a 22 de Outubro de 1664255.

Capela de Nossa Senhora da Misericórdia

or último resta a capela de Nossa Senhora da Misericórdia e nenhum dos

autores seguidos até ao momento lhe dedicam grande importância, em

favor do retábulo da escola coimbrã que ela acolhe, mas que, segundo

Amaro Neves, não foi construído originalmente para este templo256, mas sim para a

Igreja da Misericórdia e mais tarde transferido para este templo. A nossa posição quanto

a esta proposta é idêntica à assumida perante o retábulo da Visitação, mas, tal como

naquele, remetemos essa discussão para o capítulo dedicado à retabulária em pedra.

Relativamente à arquitectura deste espaço não há praticamente nada para dizer ou

descrever, posto o que afirmámos para a capela de Nossa Senhora dos Prazeres aplica-se

a esta, pois são exactamente iguais devido às obras de levantamento do coro alto.

Todavia, assalta-nos uma dúvida: estas foram as duas últimas capelas a serem

erectas, mas quando o foram? As duas fronteiras, a da Visitação e a da Nossa Senhora

dos Prazeres, foram construídas entre os finais do século XVI e os princípios do século

seguinte, como atrás ficou visto, mas para as duas simétricas falta-nos elementos. A

única indicação que temos, ainda que muito ténue, é um contrato datado de 1700 entre

os frades e João Coelho de Magalhães, morador no Porto, para a execução de sete

grades, uma para o cruzeiro e seis para as respectivas capelas do templo257. Pela teoria e

pelos factos que temos apresentado resta-nos pensar que aquando foi celebrado este

contrato estas duas últimas capelas ainda não estavam erectas porque as quatro

primeiras não levantam qualquer dúvida e as duas penúltimas (Visitação e Nossa

Senhora dos Prazeres) têm limites temporais balizados anteriores a 1700. Se a esta data

o templo só possuía seis capelas somos levados a pensar que as duas últimas, Nossa

Senhora da Conceição e Nossa Senhora da Misericórdia, foram levantadas após o ano

de 1700, o que do ponto de vista do processo construtivo e de levantamento está de

acordo com a nossa proposta, tendo em conta que seguiram o risco das capelas que lhes

255 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 40. 256 NEVES, Amaro – Dois retábulos maneirista na Sé de Aveiro.... 257 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. pp. 19-23.

P

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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ficam defronte. Todavia, em 1708 o templo já possuía as oito capelas conforme

comprovam as palavras de Rangel de Quadros258, o que demonstra que estas duas

últimas capelas foram erigidas entre Janeiro de 1700, data do contrato para a execução

das sete grades259, e o ano de 1708.

A UNIFICAÇÃO ESTÉTICA DO TEMPLO

natural que devido às alterações descritas o templo carecesse de uma unidade

estética e estrutural ainda maior e mais equilibrada, o que viria a acontecer

com as transformações efectuadas no corpo da igreja, ou seja, na antiga nave

central do período medieval e na correspondente capela-mor. Encontrávamo-nos nos

exórdios do século XVII, período em que o maneirismo dominava em todo o país bem

acentuado pela peculiar arte contra-reformista dos Jesuítas, quer a nível arquitectural,

com as suas igrejas-salão, espacialidade já tentada no período manuelino, da qual a

igreja do Mosteiro Ieronomita em Belém, da traça do biscainho João de Castilho, é um

claro exemplo, mas truncadas pela clássica e ortodoxa planimetria basilical desflorada

na renascença, quer, também, no campo retabular, pois “ao longo do século XVII e de

parte de setecentos assiste-se no nosso país ao desenvolvimento da igreja jesuítica

portuguesa…”260. Contudo, no plano estético (e até porque não ético?) subsiste o trauma

que não há uma especificidade artística portuguesa suficientemente forte para se impor

no autêntico complexo estilístico internacional, restando alguma capacidade para

apropriar e assimilar linguagens que ganham projecção internacional, traduzindo-se em

artistas mais ou menos isolados, reconhecidos graças, essencialmente, a eles próprios,

aos seus esforços e a estratégias individuais. Se encontramos uma regionalização e

adaptação geográfica e mental dos estilos internacionais nos diversos espaços europeus

(restringindo-nos apenas até ao maneirismo, mas podendo expandir-nos até ao barroco e

258 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 17. 259 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. pp. 19-23. 260 SILVA, Jorge Henriques Pais da – Estudos sobre o Maneirismo... p. 131.

É

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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aos estilos seguintes que se mundializaram), porque não essa regionalização e adaptação

não terá sido uma forma própria, influenciada é certo e até determinada por diversas

variantes – políticas, económicas, financeiras e sociais –, de recriação, exploração e

interpretação da apropriação das características estilísticas internacionais? E a

assimilação desta nova estética em Portugal comprova um pouco as palavras acima

questionadas porque “...o maneirismo desenvolveu-se em Portugal por caminhos

temperados e sui generis – sem perder de vista os caminhos trilhados além-fronteiras –,

dentro das nossas constantes tradicionais e, sobretudo, dentro daquela austeridade que

melhor quadraria a uma sociedade contra-reformista por excelência”261.

O cenóbio aveirense não ficou indiferente à modernidade que inundava o país,

apesar deste estar subjugado ao domínio espanhol, domínio este que não se bastou à

política, mas também se estendeu à cultura e à vida religiosa e eclesiástica. Talvez por

isto este ciclo tenha sido tão longo e na cidade dos canais do Vouga as marcas

arquitectónicas são bem evidentes, como por exemplo na galilé do vizinho Convento de

Jesus ou de forma mais vincada na Igreja da Misericórdia, ou ainda nas diversas

pinturas explanadas pela mão de António André262, sem querer aprofundar e explorar

muito esta questão. Nesta igreja já aludimos à presença de características do estilo

maneirista, mas a capela-mor e o corpo do templo denotam, de forma mais evidente e

comprovada, a importância desenvolvida nas alterações do convento. Julgamos não ser

deveras importante a sequência das obras, mas parece-nos notório que estas foram

subsequentes às capelas laterais, pois apresentam-se já numa fase de maneirismo

desenvolto, maduro, sem indecisões. Parece-nos também pertinente chamar a atenção

para a inexistência de um plano geral de obras, tal como era prática nas construções

nacionais que iam decorrendo de acordo com as necessidades comunitárias e/ou

litúrgicas e dependendo igualmente dos recursos financeiros, exceptuando-se casos

pontuais, tais como obras de patrocínio régio, das quais o Mosteiro de Santa Maria da

Vitória na Batalha, O Mosteiro de Santa Maria de Belém, o Real Mosteiro de Santa

Clara-a-Nova em Coimbra, ou o Palácio-conventual de Mafra, são meros e parcos

exemplos, apesar de não serem únicos. É bem provável que as campanhas se fossem

261 SERRÃO, Vitor – O maneirismo. História da Arte em Portugal. Vol. VII. Lisboa. Edições Alfa. 1986.

p. 8. 262 SERRÃO, Vitor – O pintor António André e o «maneirismo reformado» em Aveiro no século XVII.

Separata da Revista da Universidade de Aveiro/Letras. Aveiro. Universidade de Aveiro. 1989-1990-1991.

n.os 6, 7 e 8.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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sucedendo num ritmo denodado para a época com a objectividade de (re)criação de um

espaço unitário e conforme à nova actuação litúrgica, fruto dos recentes dogmas

emanados do Concílio de Trento.

O convento deveria estar a passar por um período economicamente próspero,

tendo em consideração a situação económico-financeira do país e até da própria

Espanha filipina, devido às inúmeras doações e aos bens de mão-morta que muitas

famílias lhes deixavam em troca de sepultura ou, somente, de missas e pelo sufragar e

protecção das almas. Este facto é facilmente comprovado, bastando observar dois livros

manuscritos pelos frades263 por nós compulsados, permitindo uma perfeita compreensão

da diversidade e extensão da fazenda do mosteiro, quer as propriedades rurais, quer as

posses urbanas e as rendas que daí auferiam, já para não evocar os privilégios reais e

isenções que ao longo dos tempos usufruíram, bem patentes nos documentos transcritos

por António Gomes da Rocha Madahil264. Este esplendor económico seria supostamente

tão frutuoso que as obras de remodelação do convento foram decorrendo por todo o

século XVII e penetraram, sem pausas muito evidentes, pelo período setecentista, o qual

será abordado em capítulo próprio.

A capela-mor

capela-mor medieval sofreu um ligeiro aprofundamento, visando,

talvez, o aumento do espaço do coro, que antecedia o altar-mor,

tornando-se “...alterosa e desafogada...”265. Pensamos que as obras de

toda a capela-mor já estariam prontas em finais de 1675, porque a 31 de Julho desse

mesmo ano o cenóbio contrata a execução do cadeiral, com o portuense Domingos

Lopes, que teria de estar pronto no dia de São Domingos, 4 de Agosto de 1676266.

263 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2 e

A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Primeiro Tombo Novo, III/1ª D/15/2/6. 264 MADAHIL, António Gomes da Rocha – “Livro dos títulos do Convento de São Domingos da cidade

de Aveiro”... pp. 81-134 e pp. 198-237. 265 CATARINA, Frei Lucas de Santa – Quarta parte da História de São Domingos. Vol. II. Porto. Lello e

Irmãos. 1977. p. 604. 266 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. pp. 423-426. Sobre a

actividade de Domingos Lopes consultar ALVES, Natália Marinho Ferreira – A arte da talha no Porto na

época barroca (artistas e clientela. Materiais e técnica). Porto. Arquivo Histórico da Câmara Municipal

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Esta divisão, nas plantas realizadas por João Gonçalves Gaspar, em apêndice,

apresenta-se como um espaço rectangular e com o tamanho, sensivelmente de metade

da nave, mas o coro, quer nas plantas como também nas estampas267 a que tivemos

acesso, ocupa mais de metade do tamanho da própria capela. A cabeceira semicircular

medieval teria dado, assim, lugar a uma nova cabeceira recta e profunda, bem ao gosto

da nossa arquitectura a que Kubler designou por “chã”268, no entanto não deixa de

assinalar um pouco a influência dos recentes templos jesuíticos, principalmente os

levantados entre nós, em Évora, Lisboa e Braga, após a década de sessenta do século

XVI. Todavia, parece que, à luz das mais recentes investigações e teorias, mesmo estas

e as igrejas colegiais conimbricenses acabaram por se inspirar em construções do gótico

meridional e do gótico peninsular, dando origem a “...uma primeira consagração

moderna de nave de espaço unificado e abobadado com capelas laterais

intercomunicantes...”269 e uma capela-mor profunda e igualmente abobadada, sendo o

transepto marcado por uma ligeira elevação de um degrau de acesso e as capelas laterais

mais próximas da capela-mor os respectivos braços daquela nave perpendicular ao

corpo do templo.

Neste espaço sagrado a separação do altar era mesmo feita através de um

“suppedaneo”270 mais elevado e logo abaixo daquele abriam-se duas portas simétricas: a

do lado do Evangelho dava ingresso na sacristia e a do lado da Epístola comunicava

com uma pequena divisão a partir da qual se tinha acesso por uma escadaria ao

magnífico órgão rococó271. A capela-mor possuía ainda quatro janelas ovaladas,

idênticas às que se encontram no corpo da igreja, duas de cada lado: duas junto ao altar

do Porto. 1989. Vol. I. pp. 89, 99, 106, 119-122 e Vol. II pp. 392-393. 267 As estampas a que aludimos encontram-se em apêndice. 268 KUBLER, George – A arquitectura Portuguesa Chã. Eentre as especiarias e os diamantes. 1521-

1706. Lisboa. Vega, s/d. 269 CORREIA, José Eduardo Horta Correia – “A arquitectura – maneirismo e «estilo chão»”. in O

maneirismo. Coordenação de SERRÃO, Vitor. História da Arte em Portugal. Vol. VII. Lisboa. Alfa.

1986. p. 113. 270 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 20. Este tipo de

separação encontra-se também nas igrejas colegiais de Coimbra, nomeadamente na de Nossa Senhora da

Graça, pertença dos frades Eremitas Calçados de Santo Agostinho e na de Nossa Senhora da Conceição

entregue aos religiosos Carmelitas Calçados e ainda, apesar de um pouco mais tardia que estas duas, na

Igreja do Mosteiro de Santa Justa da Ordem de São Francisco. 271 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 20.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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e duas por cima do cadeiral, isto é, na zona do coro272. Rangel de Quadros afirma que a

capela-mor sofreu melhoramentos no arco cruzeiro e a cobertura passou a ser

abobadada273, conquanto não classifica o tipo, mas pelas fotografias verifica-se ser de

berço, a qual no século XVIII era animada “... com hum gracioso brutesco...”274. As

fontes orais com as quais contactámos e que conheceram a igreja profundamente antes

de 1976, data das obras que levaram à construção da actual capela-mor, confirmaram-

nos estas indicações descortinadas pelas imagens acima referidas. Esta abóbada

assentava num friso, que no maneirismo imitava de forma desclassicizante um

entablamento, saliente que corria ao longo das paredes laterais, o qual Rangel de

Quadros denomina de empena275. Este autor afirma ainda que no coro, não indicando o

lugar preciso, havia uma lápide com a seguinte inscrição e que terá desaparecido:

AS

DALVARO DE SOVSA E

SVA MOLHER DONA

FILIPA DATAIDE

PAIS DE DONA CATE

RINA DATAIDE AOS

QVAES SE DEV ES

TA CAPELA MOR SO

PELO RESPEITO DA CALIDADE DAS PE

SOAS E SEM MAIS Q O

IVRO QVE PERA A DITA

CAPELA DEIXOV

ERA D 1551

276

O arco cruzeiro de volta perfeita era “alto e elegante”277, liso, escorava o seu peso

em duas peanhas idênticas às que suportam, hoje, os arcos torais da cobertura

272 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 23. 273 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 17. 274 CATARINA, Frei Lucas de Santa – Quarta parte da História de São Domingos. Vol. II... p. 604. 275 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 21. 276 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 21. 277 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 22.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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abobadada do corpo da igreja, e era decorado com ornatos dourados278. Perto daquele

arco, no lado da Epístola, existia outra lápide que hoje também já não é visível:

ANDRE DE

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PAI E MAI

NA ERA

D 1508

279

Catarina de Ataíde realizou o seu testamento e um contrato com o convento a 2 de

Setembro de 1551, pelo qual deixava 20 mil reis de juro em troca da capela-mor para

sua sepultura e da sua família280. Pelas datas nas inscrições das lápides e pelo

documento somos levados a pensar que a capela-mor foi restaurada no período

renascentista. É possível que a abóbada e o arco cruzeiro tenham sido refeitos nesse

período porque as características ascéticas destes dois elementos não nos permitem

afirmar de que estilo são, pois eram utilizados desta forma quer na renascença, quer no

maneirismo.

Todavia a nossa opinião é que a alteração estrutural na parte semicircular para

estrutura recta poderá ter sido executada ainda no século XVI, mas já em pleno

maneirismo, conferindo-lhe o aspecto de túnel na cabeceira de uma ampla igreja-salão,

ou seja, um tipo de estrutura comum no maneirismo quinhentista e prolongando-se por

seiscentos, de acordo com o protótipo de templo homogeneizado difundido pela 278 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 23. 279 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 24. 280 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Lembranças de Missas. III/1ª D/15/2/2. fls.

139-139v. Doc. X, em apêndice.

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assimilação da linguagem e estética vernacular nacional e simultaneamente pelas

Hallenkirchen.

O corpo da igreja

igreja sofreu mais alterações feitas ao nível da cobertura medieval que,

desta feita, deu lugar a uma abóbada de arestas. O corpo do templo

ficou, assim, dividido em quatro tramos, bem acentuados pelos arcos

torais abatidos que assentam numas mísulas muito simples. Os arcos torais que

enquadram o tramo mais próximo da cabeceira, correspondendo ao antigo transepto

medieval, são duplos, como tal assentam, numa correspondência estrutural, em mísulas

duplas. Entre cada tipo deste arco, ao centro dos tramos, sobre as capelas, abre-se um

óculo em forma de elipse.

A reconstrução da nave da igreja, incluindo o tecto, é atribuída ao século XVIII281,

no entanto não cremos que seja ou pelo menos discordamos plenamente com António

Nogueira Gonçalves que atribui a execução do tecto aos meados de setecentos282.

Pensamos que se o tecto fosse realizado nesse período apresentaria características

próprias do barroco monumental, ou seja, um tecto que conferisse, ao contrário deste,

altura e verticalidade ao edifício, ou seja, alguma monumentalidade ainda que em

proporções modestas: uma grande abóbada de berço, hipoteticamente com caixotões e

nervuras bem salientes, mas podendo ser também lisa, seria o mais apropriado para o

característico jogo de massas e volumes. E este género de cobertura, típica do barroco

da época de D. João V, estaria de acordo com o magnífico portal, do qual adiante

trataremos, e com os restos de um outro que foi descoberto muito recentemente em

escavações na zona correspondente ao claustro.

A presente cobertura, pelo contrário, retira altura e confere uma aparência

atarracada uniformizando melhor o aspecto de caixa, se nos é permitida a expressão, de

uma igreja-salão. Não podemos afirmar categoricamente que foi realizado na centúria

seiscentista, pois não possuímos provas documentais, porém se a sua construção se

281 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109 e GASPAR, João

Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 16. 282 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109.

A

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efectuou em setecentos terá sido nos inícios e ainda sob moldes e influências, estruturais

e obrigatórias ou artísticas e conservadoras, do longo período maneirista. Todavia, não

cremos muito nestas duas possibilidades porque a urbe de Aveiro não se situava tão

longe dos principais eixos viários e comerciais do país de forma a que as modas

tardassem a aportar, localizava-se até numa zona primordial e afecta a influências

céleres como o caso do Porto e de Coimbra, cidades com as quais mantinha relações

profícuas. Além disto, os vestígios do barroco arquitectónico, pictórico, escultórico e

retabular e azulejelar dos primórdios do século estão fortemente representados nesta

cidade e inclusive no próprio convento. Como tal encaminhamo-nos para a primeira

hipótese aventada, ou seja, o templo apresenta uma estrutura, espacialidade e uma

unidade construtiva ligada à estética tardo-maneirista, na qual poderemos incluir, num

trilho paralelo e interligado, a arquitectura chã que se prolongaria ainda pelos anos da

eclosão e desenvolvimento do nosso primeiro barroco.

O claustro novo

ouco mais se pode falar sobre construções no mosteiro porque as

referências, indicações e provas - documentais ou artísticas - rareiam.

Mesmo assim, sabemos que foi levantado um segundo claustro entre os

finais do século XVI e os princípios do século XVIII, o que se torna insuficiente para o

podermos classificar. Todavia não é de estranhar o seu surgimento, na medida em que o

convento passava por excelentes momentos económicos e por uma reforma

arquitectónica, aspectos aos quais se deve ter associado uma reforma eclesiástica e da

regulação interna da comunidade religiosa, tal como sucedeu em muitas comunidades

clericais em Portugal, e mesmo no estrangeiro, fruto das dissoluções tridentinas. Este

novo claustro desenvolveu-se a nascente do antigo e, pelas pressupostas plantas,

verificamos que a nova quadra claustral era um pouco menor que a anterior.

Na ala norte possuía dois pisos, sendo o inferior ocupado pelo arquivo do

mosteiro, infelizmente desaparecido, scriptorium e salas de “aulas superiores” e no

sobreclaustro ficava o dormitório do noviciado283. Na parte este situavam-se algumas

capelas com “entradas em arco ordinário”284. Pensamos que o autor se estaria a referir 283 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 14. 284 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 14. É o próprio autor que

P

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aos arcos de volta perfeita. Esta ala apenas possuía o piso térreo. João Gonçalves Gaspar

nas plantas somente indica capelas na ala poente, mas Rangel de Quadros afirma que

existiam algumas neste claustro sem, porém, precisar o local.285 Apenas podemos

afirmar que na primeira metade do século XVIII uma delas era dedicada à Senhora da

Conceição, devido à indicação do pagamento de missas “…ditas naCappela daSenhora

daConceiçao no cla[u]stro…”286. O claustro desenvolvia-se sobre uma elevada arcaria

e as faces interiores eram em arcos simples287. Isto pressupõe que seria constituído por

arcos de volta perfeita. Ao centro, tal como no outro mais antigo, existia um poço288.

Infelizmente não temos qualquer referência ou documento que possibilite efectuar uma

análise estilística concreta, ou mais aproximada, mas não seria descabido pensar que

este claustro teria sido levantado num período próximo das restantes alterações do

edifício, isto é, durante o desenvolvimento das obras maneiristas e do barroco inicial.

Todavia pelo que ficou descrito dá para aperceber que durante o renascimento e o

maneirismo, ou seja, nos séculos XVI e XVII o cenóbio passou por uma grande

reforma, acompanhando a situação religiosa internacional, reforma esta que terá sido

muito mais profunda do que nos aspectos edificados, fazendo sentir-se, certamente, e de

acordo com os novos preceitos tridentinos, no desenvolvimento da vida monacal e das

práticas doutrinais e rituais. Esta reforma não estacionou e continuou pelo século XVIII,

se não tão evidente a nível arquitectónico, pelo menos em termos decorativos e nas

outras áreas artísticas, de forma a recriar o espaço interior que a nova liturgia contra-

reformista católica exigia.

utiliza esta designação. 285 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 14. 286 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Diversas Receitas. III/1ª D/15/2/29. fl. 22 v.

Doc. XI, em apêndice. 287 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... pp. 14-15. 288 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 15.

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AS INTRODUÇÕES BARROCAS E ROCOCÓS

s alterações no convento não mais pararam. Ainda que o ritmo aparente ter

diminuído, nomeadamente no que se refere ao exterior e à arquitectura, não

foi, certamente, por motivos económicos, mas, antes, por uma questão de

exigência cultual e necessidade ideológica. As duas centúrias preambulares do “Novo

Mundo”, séculos XVI e XVII, foram profícuos na reestruturação do edifício

eclesiástico, como tal as necessidades estruturais eram, agora, menores e balizadas por

ideais de dignidade e magnificência, ou seja, mais ligados ao campo decorativo e com

definidos objectivos de (en)formar calor visual e intimista, o que de certo modo vem

materializar as várias ideias e propostas de reformulação litúrgica saídas do Concílio de

Trento, mas, também, não deixam de expressar a antagónica sociedade de contrastes,

instável e insegura, a mentalidade efusiva e ilusionista da época e a lúdica cultura

sensorial: “es el espectacular y problemático desajuste de una sociedad en cuyo interior

se han desarrollado fuerzas que la impulsam a cambiar y pugnan com otras más

poderosas cuyo objetivo es la conservación”289.

No campo político a primeira metade de seiscentos conheceu em Portugal uma

profunda alteração: a Restauração da Independência Nacional. O afastamento à católica

nação de Espanha, começado a sentir-se de forma inequívoca já no reinado de D. Filipe

II, transmudar-se-ia numa mentalidade e cultura anti-espanhola, agora direccionada,

com, ainda, mais força para os Estados independentes da Península Itálica. Logicamente

um dos objectivos era sermos reconhecidos novamente pela Santa Sé como Estado

independente e demonstrar que os hispanienses eram gentios. Os estados italianos

tinham já lançado os preceitos de um novo campo estilístico e “no decorrer do século

XVII a Europa aderiu, de uma forma ou de outra, ao barroco, criando assim uma

289 MARAVALL, José Antonio – La cultura del barroco. Análisis de una estructura histórica. Barcelona.

Editorial Ariel. 1975. p. 69. Na mesma obra, nas páginas 66 e 67, o autor enuncia os seis aspectos

fundamentais que marcam o barroco como uma época de crise social.

A

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civilização artística de poderosa irradiação…”290. Assim, lançámo-nos neste novo

ensaio estilístico, fruto do remanescer de um novo sentimento político-cultural, mas

principalmente devido à desaparecida Igreja de Nossa Senhora do Loreto vinda do país

de origem para a comunidade italiana de comerciantes que estava instalada em Lisboa.

Daqui surgem as primeiras obras nacionais barrocas com destaque inicial para a

retabulária e as experiências na azulejaria e arquitectura, apesar destas, ainda nos finais

da centúria seiscentista, denotarem alguma timidez porque ainda “…é um período de

experimentação de formas e das suas potencialidades, fenómeno minoritário que

lentamente irá desalojar o maneirismo persistente e duradouro, até se transformar em

discurso dominante”291. Esta alteração de mentalidade e artística fez-se sentir neste

convento dominicano, surgindo, então, uma obra ligada à arquitectura, mas não

totalmente arquitectónica: referimo-nos especificamente aos púlpitos, ou, talvez, a um

só púlpito.

Os púlpitos

s dois púlpitos colocados simetricamente são completamente iguais,

quer na parte arquitectónica ou escultórica, quer na parte dos balaustres

em madeira. No entanto estão datados com alguma distância. O do

Evangelho tem a data de 1678 na porta que lhe dá acesso, mas a base arquitectónica tem

a inscrição de 1699; o da Epístola tem inscrito na porta de acesso a data de 1745. Até

agora tem-se defendido que o segundo, o da epístola, foi feito copiando o primeiro,

baseando-se apenas nas datas inscritas e António Nogueira Gonçalves preconiza que a

data 1678 deve fazer referência a outra obra qualquer292. A ideia é bastante plausível e

lógica, mas o problema levanta-se devido ao contrato existente entre o convento e

Domingos Lopes e Bento da Rocha, para a execução de umas grades para o coro e de

dois púlpitos – a parte da balaustrada – , em 22 de Outubro de 1676293. Será que só foi

290 MOURA, Carlos – O limiar do Barroco. História da Arte em Portugal. Vol. VIII. Lisboa. Alfa. 1986.

p. 7. 291 PEREIRA, José Fernandes – Arquitectura Barroca em Portugal. Lisboa. Biblioteca Breve. 1992. 3ª

edição. p. 17. 292 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111. 293 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. pp. 447-449. Sobre a

O

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feito um púlpito, mas a ideia era serem construídos dois, daí o contrato efectuado? Será

que só a data de 1699 corresponde aos púlpitos e as outras, 1678 no Evangelho e 1745

na Epístola, referem-se à execução das portas e escadas de acesso a estes elementos? Se

assim é o púlpito do lado da Epístola inicialmente seria falso e servia apenas para

conferir simetria e só mais tarde se abriria a passagem, daí a inscrição na porta de 1745.

A verdade é que a passagem de acesso ao púlpito do lado do Evangelho possui azulejos

de padrão do último quartel de seiscentos a cobrir as paredes, enquanto no oposto as

paredes estão totalmente nuas. Se ambas as passagens tivessem sido abertas simultaneamente seria lógico que as paredes do lado da Epístola fossem também

revestidas com o mesmo tipo de azulejos.

No contrato de execução dos elementos em talha ficou escrito que as grades dos

púlpitos seriam iguais às do coro294 e, mais uma vez, José Rangel de Quadros afirma

que os referidos púlpitos eram “…eguaes aos das grades da capella mor…”295, como tal

depreende-se que a obra foi executada de acordo com a exigência contratual. É notório

que as três datas correspondem a obras ligadas aos púlpitos, mas não nos parece

descabido a indagação da segunda incógnita que anteriormente levantámos.

Todavia, a obra parece-nos apresentar já sintomas da estética barroca inicial,

devido ao tipo de madeira exótica utilizada - pau preto296 - e ao próprio trabalho de

entalhe: os balaústres são apenas torneados, com discos de espessura e perfil diferente e

possuem aplicações de bronze, trabalho este muito idêntico ao executado no mobiliário

desta estética congénere. As bacias em pedra apresentam um ligeiro jogo de volumes e

uma decoração vegetalista de linhas bem cinzeladas e de talhe seguro, enroladas e

movimentadas, própria do nosso primeiro barroco, ainda muito tímido, pois “no século

XVII espalha-se em Portugal a preferência pelo púlpito de balaustradas de madeira,

vinda principalmente do Brasil, em correspondência com as grades que nas igrejas são

actividade de Domingos Lopes e Bento da Rocha consultar ALVES, Natália Marinho Ferreira – A arte da

talha no Porto na época barroca... Vol. I. pp. 61, 63, 79, 89, 98-99, 106, 117, 119-122, 169, 171, 242,

248, 250, 257, 262-263 e Vol. II pp. 390-393 para o primeiro e Vol. I p. 257 e Vol. II pp. 422-423 para o

segundo. 294 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 448. 295 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 45. 296 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I, p. 448. Esta é a

madeira exigida no contrato, exigência que foi cumprida.

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colocadas para demarcar o espaço referente à capela-mor…”297, generalização

perfeitamente bem exemplificada neste caso concreto.

A fachada

alteração de vulto que se efectuou neste período estilístico foi sem

dúvida as obras da fachada. Rangel de Quadros afirma que antes de ser

feito o actual pórtico existia um alpendre298, verificando-se ainda, na

sua época, vestígios nas paredes. Infelizmente mais nada refere, tornando-se difícil

enquadrar essa fachada num estilo artístico, porém parece que “anteriormente à

construção deste portal [barroco] havia alpendre e púlpito destinado à pregação ao ar

livre”299. Cremos que esta informação foi veiculado até aqueles investigadores por um

cronista da ordem, elogiando que “assim fica toda a Igreja airosa e bem assombrada,

dando-lhe alma a luz, que se lhe ganhou em porta e vidraças, derribando a antiga

alpendrada, que assombrava o Adro, para cobrir o Pulpito, de que algum tempo se

praticava ao Povo...”300. Somente poderemos dizer que seria uma alteração à fachada

gótica inicial e que provavelmente foi realizada antes do primeiro quartel de

seiscentos301, pois não acreditamos que fosse novamente remodelada nos inícios do

297 ALVES, Natália Marinho Ferreira – s.v. “Púlpito”. in Dicionário de Arte Barroca em Portugal,

Direcção de PEREIRA, José Fernandes. Coordenação de PEREIRA, Paulo. Lisboa. Editorial Presença.

1989. p. 388. 298 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. pp. 49-50. 299 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111. 300 CATARINA, Frei Lucas de Santa – Quarta parte da História de São Domingos. Vol. II... p. 605. 301 É possível que se tivesse alterado também a fachada da igreja no decurso das obras do período

anterior, estabelecendo uma relação estética entre o interior e o exterior do templo. QUADROS, José

Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 49 afirma que existia um “...alpendre, que

servia aqui de abrigo aos doutrinados...” e se assim era teria de estar devidamente escorado, por colunas

ou pilares assentes no solo. Por outro lado, GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de

Portugal... p. 111 leva-nos a crer que sobre o alpendre, cujo elemento cremos ser um nartex, se abriria

uma porta que acedia para o átrio exterior, ao qual o autor denomina púlpito. Neste caso apenas

conseguimos conceber na nossa imaginação um pequeno nartex de acesso à entrada do edifício

sobrepujado por uma varanda com porta de acesso e rematado por uma balaustrada, talvez (admitindo

demasiada ousadia da nossa parte) executado sob influência da estética maneirista, à imagem da

disseminação que aquele elemento teve em muitas igrejas portuguesas.

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século XVIII se a obra anterior fosse ainda muito recente e, além desta suposição, a 11

de Dezembro de 1624 o mestre de pedraria, Francisco Carvalho, e o mestre de

carpintaria, Bartolomeu Fernandes, arremataram “...uma importante obra de reparação

do alpendre do Mosteiro de S. Domingos – pelo preço de 60$000 rs”302, o que confirma

a nossa ideia e as afirmações daqueles historiadores.

O corpo principal da fachada é dividido, nos flancos, por dois pares de pilastras

dóricas sobre as quais assenta um ligeiro entablamento. Na continuação de cada pilastra

ergue-se um pedestal que suporta um bolboso fogaréu helicoidal e entre estes, ao centro,

destaca-se um harmonioso frontão ondulante, que tem no seu tímpano o Sol - símbolo

dominicano. As linhas laterais deste frontão são compostas por aletas, dando os

acrotérios lugar às voluptas que rematam as extremidades das descritas aletas. Coroando

o próprio frontão eleva-se uma simples cruz, a qual a sua base apoia-se num par de

outras aletas opostas. Entre as pilastras dóricas da fachada rasgam-se duas altas e

estreitas janelas rectangulares e sobre o portal uma outra em forma de elipse.

No centro deste corpo destaca-se o notável portal joanino que Nogueira

Gonçalves atribui à mesma oficina do portal do Colégio de São Pedro de Coimbra,

executado seis anos antes303. O presente pórtico está datado de 1719 segundo a

desaparecida inscrição “numa elypse e na verga da porta”304, mas hoje já não é visível

devido ao desgaste da pedra calcária, que cremos ser da zona de Ançã. Aquele elemento

de acesso corresponde apenas ao corpo da nave, excluindo as zonas das capelas laterais.

É constituído por dois pares de colunas salomónicas com o terço inferior decorado por

motivos geométricos (almofadas em losangos), separados por uma linha diagonal. As

colunas são coroadas por capiteis coríntios, naturalmente, e assentam nuns altos

pedestais com as almofadas decoradas com cartelas envolvidas em temática vegetalista.

Sobre as colunas está um movimentado entablamento, com cornija denticulada e com o

friso animado por um esbelto e delicado entrelaçado de folhas e volutas. Sobre o

entablamento, no seguimento das colunas, estão o arranque dos acrotérios de um frontão

interrompido terminados em forma de volutas. Entre estes está o remate que é limitado,

lateralmente, por pilastras misuladas e encimado por um semi-círculo solar; a flanqueá-

302 BASTO, Artur de Magalhães – Apontamentos para um dicionário de Artífices que trabalharam no

Porto do século XV ao século XVIII. Porto. Publicação do Gabinete de História da cidade da Câmara

Municipal do Porto. 1964. p. 101. 303 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111. 304 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 49.

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lo estão duas aletas postas na vertical. O remate enquadra o brasão do fundador, o

Príncipe D. Pedro, e sobre este está o Sol, ou melhor, meio Sol, que corresponde ao

semi-círculo, numa clara alusão aos dominicanos. A decoração é floral e apresenta

entrelaçados de folhas e volutas. Sobre os acrotérios e o remate está a tríade teologal:

Fé, Esperança e Caridade.

A fachada apresenta alguma verticalidade, conferida apenas pelas pilastras e pelos

fogaréus e o movimento mais agitado é conferido somente pelo portal joanino que

detém algumas semelhanças com a retabulária arquitectónica deste período. Todavia,

verifica-se um certo desfasamento entre o pórtico e a fachada: o portal é muito mais

dinâmico, confere uma verticalidade muito mais acentuada, apresenta uma linguagem

estrutural e ornamental muito mais diversificada e uma dinâmica de interacção dos

elementos utilizados muito mais profícua, denotando-se uma erudição no trabalho e nos

próprios elementos e uma forte cumplicidade entre aqueles. A fachada, por seu turno,

transmite-nos uma serenidade, um certo estatismo, falta de volumetria e demasiada

singeleza, transmitindo a sensação de ascetismo e de caixa. Parece-nos, portanto, que o

pórtico foi apensado à fachada que já se encontrava erigida e não uma construção

concebida em conjunto, como tal arriscamos em lançar a hipótese que a estrutura da

fachada foi levantada ainda dentro dos cânones do primeiro barroco.

À direita deste corpo estava um outro que foi alterado nas remodelações dos anos

setenta do século passado, correspondendo às capelas laterais da Epístola, muito simples

do qual sobressaía o frontão ondulante típico do barroco nacional e que nos apelava o

olhar para muitas realizações do nosso barroco brigantino (se nos é permitida a

expressão, isto é, o barroco inicial) das zonas rurais.

As decorações no período rococó

nível estrutural não houve mais remodelações, que nós saibamos,

durante este período, no entanto achamos conveniente fazer referência

a umas pequenas alterações efectuadas na capela-mor, mais

precisamente no túmulo de Catarina de Ataíde e no arco cruzeiro. No século XVIII

houve a intenção de decorar a capela-mor com elementos rococó305, provavelmente a

305 SOUTO, Alberto – “Aveiro arqueológico, Artístico e Monumental - Os túmulos”. in Arquivo do

A

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talha a que se refere Rangel de Quadros que decorava as portas e janelas desta

divisão306. Desta forma o túmulo de Catarina de Ataíde sofreu algumas alterações. Esta

obra é da renascença coimbrã e no século XVIII teve aplicações decorativas em madeira

de estilo rococó: nos pedestais, nas pilastras que enquadram o arcossólio, no

envasamento onde assenta a arca e na arquitrave, rematando todo o conjunto com um

frontão ondulante. A decoração assentava nos típicos concheados assimétricos e nas

cortinas penduradas. Não estamos a afirmar que a ornamentação rococó não é bela, pelo

contrário, mas o que se fez neste túmulo retirou toda originalidade renascentista do

conjunto, porque cortaram "…todos os ornatos salientes das pilastras, da arquitrave

cimeira e do basamento… e, ainda, as frontes dos bustos dos medalhões…"307. Hoje em

dia já foram retirados este ornatos e o túmulo apresenta a sua característica unitária da

renascença, apesar dos danos sofridos irreparáveis, nomeadamente na volumetria de

elementos escultóricos.

Como a capela-mor pertencia aos parentes da defunta existia um brasão da família

envolto em largas folhagens, bem trabalhadas. Não se sabe se este foi o primeiro ou se

substituiu algum outro, pois a descrição que Rangel de Quadros faz dele, ainda no lugar

original308, corresponde ao que hoje se encontra na parede da capela de Nossa Senhora

da Misericórdia onde, igualmente, está o túmulo. Sob o brasão espreita um alegre

querubim envolto em folhagem a partir da qual se vai desenvolvendo outro tipo de

folhagem mais graciosa, com alguma estilização e de mais forte plasticidade; o brasão é

policromado e a decoração é toda dourada. Esta peça está ainda bastante ligada ao

barroco joanino, num período já desenvolto, desconhecendo-se se fez parte das

remodelações ou rococó ou se já existiria antes.

A remodelação conventual não se fez neste período a nível arquitectónico, mas,

sim, a nível decorativo sobressaindo principalmente a talha dourada, da qual falaremos

em capítulo próprio, e também a azulejaria, não fosse o barroco, quer nacional, quer

joanino, e o rococó estilos muito mais dados às artes decorativas que os anteriores,

tornando-se mais intimistas e grandemente apelativos.

Estas renovações foram-se estendendo pelo século XVIII e chegaram mesmo a

entrar pelo século seguinte dentro, mas nenhuma obra de vulto conhecida foi realizada. Distrito de Aveiro. Vol. XL. Aveiro. 1974. p. 21. 306 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. pp. 17-18. 307 SOUTO, Alberto – “Aveiro arqueológico, Artístico e Monumental - Os túmulos”... p. 21. 308 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. pp. 22-23.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Actualmente encontramos obras oitocentistas nesta igreja, tais como o coro-alto e a

torre, mas estas foram construídas após a extinção das ordens religiosas, não tendo por

isso ligação com a comunidade clerical que tinha sido obrigada a abandonar o seu

ancestral espaço.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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O FULGOR DA TALHA

Síntese histórica em Portugal

talha é uma das expressões artísticas mais originais da arte portuguesa

e em mais nenhum país da Europa teve uma profusão e dinamismo

como em Portugal, devendo-se fazer uma pequena excepção à vizinha

Espanha. Contudo, no outro país ibérico a talha serviu mais de suporte à folha de prata,

muitas vezes aplicada como prata dourada, concorrendo com a nossa aurífera, mas além

da principal diferença ao nível do revestimento também se verificam algumas diferenças

nas técnicas de aplicação da folha e nos tratamentos e acabamentos das mesmas.

Foram essencialmente problemas económicos e expansionistas que ditaram a

nossa utilização do ouro, pois era o metal mais abundante nos nossos contactos além

fronteiras. A talha dourada produzida em Portugal, integrando aqui todos os territórios

além-continente, nasce da modesta produção retabular e ganha tal apreço social,

económico e religioso que o seu desenvolvimento expande-se pelas superfícies dos

interiores arquitectónicos religiosos e civis. Na ligação à religião a talha apresenta uma

dupla característica de ornamentação e funcionalidade, estabelecendo uma forte elo

entre a sociedade, cultura e crença, desempenhando assim uma forte função de

intimismo catequético.

Após a utilização durante o período medieval de pequenas placas de pedra ou

madeira situadas sobre a mesa de altar, como é o caso do pequeno retábulo da capela de

Corpo de Deus que hoje está à guarda do Museu Nacional Machado de Castro, a talha

dourada nasce em Portugal, ainda no período gótico, bem exemplificada no retábulo de

Nossa Senhora do Castelo em Abrantes ou no monumental retábulo da velha Catedral

de Coimbra, obra mecenática do Bispo D. Jorge de Almeida, já no período artístico d'O

Venturoso, “… mas é por influência flamenga e alemã, catalisada através de Espanha,

que chega e se divulga em Portugal o uso dos gigantescos retábulos de madeira

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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dourada”309. Neste período a talha limita-se ainda à produção de retábulos, remetendo a

sua importância para a etimologia da própria palavra, isto é, enquadramento do local da

consubstanciação, ou seja, o altar do qual é presidida a celebração cultual310.

Todavia, a introdução da renascença no nosso país quebra o ritmo dourado da

madeira para dar lugar ao suporte lítico, com toda a sua calma, frieza e serenidade,

desenvolvendo miniaturas de construções arquitectónicas que serviam de calmos, ou

mais agitados, cenários copiados de uma realidade vivênciada e apenas no final do

século XVI a talha dourada voltará a ser utilizada como instrumento cénico, pois “… o

retábulo de talha empresta ao discurso edificante dos relevos ou pinturas, não apenas o

poder místico do ouro, mas a vibração emotiva que faltava…”311 ao trabalho da

retabulária renascentista.

Verifica-se, por seu turno, outra grande mudança que advém da forte instabilidade

provocada pelas alterações conjunturais de toda a Europa, mudança da qual o Concílio

de Trento muito é responsável, e em Portugal “… a eclosão das artes decorativas

durante o longo ciclo maneirista reflectiu claramente as contradições sociais e culturais

deste período histórico …”312, portanto, “é neste ambiente restauracionista que a arte da

talha emerge uma vez mais, reabilitação, ela própria, de um prestigioso meio de

expressão do gótico final.”313. A talha maneirista conheceu um longo período,

acompanhando todo o seu ciclo artístico e por isto a sua produção foi tão diversificada

e, simultaneamente, imbuída de grande originalidade devido aos diferentes tipos, tais

como os retábulo de edículas, caso do da Igreja de Nossa Senhora do Carmo em

Coimbra, os retábulos arquitectónicos e os retábulos-fachada, como o da Igreja da

Misericórdia de Aveiro, os retábulos-biombo, como o da igreja de São Domingos de

Benfica, e mesmo a produção paralela dos retábulos jesuíticos que obedeceram a regras

construtivas concretas, denotando uma clara visão da imagem catequética. De uma

309 PIMENTEL, António Filipe – O Retábulo de Talha. Entre a expressão da Fé e a materialização do

Poder. Texto Policopiado. Coimbra. Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade

de Coimbra. s/d. p. 2. 310 Sobre este consultar ALVES, Natália Marinho Ferreira – s.v. “Púlpito”. in Dicionário de Arte Barroca

em Portugal... pp. 405-408. 311 PIMENTEL, António Filipe – O Retábulo de Talha... p. 7. 312 MECO, José – “As artes decorativas”. in O Maneirismo. Direcção de SERRÃO, Vitor. História da

Arte em Portugal. Vol. VII. Lisboa. Alfa. 1993. p. 153. 313 PIMENTEL, António Filipe – O Retábulo de Talha... p. 7.

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forma generalista, a talha deste ciclo sofreu, então, uma evolução desde os primeiros

retábulos quinhentistas de edículas, como o retábulo da Sé de Portalegre e o supra-

referido de Coimbra, numa linha pictural para escultórica, até ao terceiro quartel de

seiscentos, abrindo paulatinamente o nicho central até a uma tribuna e,

consequentemente, as portas ao novo estilo barroco, denominado nacional.

Apresentando características genuinamente nacionais a talha ganha um sentido

plástico e visual que até então era desconhecido, enfim, uma procura incessante de

admiração e expectação total: “os retábulos de estilo nacional, a partir do último quartel

do século XVII … concentram agora, nos seus valores de intensa fulgurância visual e

plástica, as regras de uma sintaxe própria e original …”314. Neste conjunto tudo se une

em torno do enaltecimento da Hóstia Consagrada, atingindo o seu cume no Lausperene,

ou seja, “la musique, les odeurs et la lueur des cierges, le rythme des prières et les

mouvement des processions, la somptuosité des ornements et la statuaire: tout concourt

à cette ambiance mystique”315. O barroco nacional exprime, assim, por todo o território

a necessidade de liberdade há tanto oprimida, concedendo espaço e imaginação à

expansão do impacto visual e lumínico emanado pelo dinamismo desenvolto que

asperge todos os sentidos parietais dos edifícios.

A talha setecentista do período de D. João V destaca-se da anterior pelo tipo de

decoração, mais delicado e erudito, e pelo novo tipo de estrutura, mas paralelamente

continuam as igrejas de ouro, pois “…se por um lado, adopta um novo formulário

decorativo inspirado em modelos italianos e também franceses, a partir de certo

momento alcança neste período a sua máxima pujança…”316 e a par da produção da

talha dourada desenvolve-se um outro gosto mais elitista que suprime aquele suporte em

favor da calma e serenidade emprestada pelo mármore, como é o caso da capela-mor da

Sé de Évora de João Frederico Ludovice, já experimentada em Mafra. Simultaneamente

dá-se a laicização da própria talha, agora ao serviço do monarca porque “…o reinado

d’O Magnânimo assume-se claramente como uma proposta de renovação e de mudança

- mudança sem conflito, se possível, que passava pela indiscutibilidade da pessoa régia,

314 MOURA, Carlos – O limiar do Barroco... p. 87. 315 ALVES, Natália Marinho Ferreira – “L'or au service de la foi. La sculpture sur bois doré”. in

Monuments historiques - Le Portugal. N.º 194. Paris. Caisse nationale des monuments historiques et des

sites. Novembro de 1994. p. 39. 316 BORGES, Nelson Correia – Do Barroco ao Rococó. História da Arte em Portugal. Vol. IX. Lisboa.

Alfa. 1993. p. 41.

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única fonte da Ordem, do Direito e do Poder”317. Porém, a talha eclesiástica continuava

a emanar pelo país, diferenciando-se de região para região e assumindo características

próprias bem localizadas, “…e pelo país inteiro… a igreja de ouro é uma caverna onde a

razão se perde e os sentidos se extasiam”318, à medida que a exuberância financeira vai,

simultanea e consequentemente, aclamando a ostentação e olvidando a declinação.

Esta regionalização da talha será mais marcante no período rococó devido

essencialmente a questões económicas, atingindo, mesmo, pontos de antagonismo que

vão do marmoreado, na zona centro e sul, passando pela utilização do próprio mármore

na região eborense, à talha gorda do norte – primeira fase da escola bracarense – , sem,

todavia, deixar de apresentar as suas características próprias que a destacam de todos os

outros períodos. Conquanto, “a talha encontra ainda força para se renovar e enriquecer

com variedade de estilos regionais …”319 e “não admira, assim, que seja no norte … que

a talha dos altares venha a escrever o seu último e mais grandíloquo capítulo”320. Com o

rococó, as suas escolas regionais e a sua arte total a talha portuguesa atinge o seu

clímax, decaindo a partir daqui para o espírito neoclássico que não encontrará

linguagem suficientemente expressionista e rica para relançar o esplendor dos períodos

anteriores. A história da talha “… para lá da década de 80, já não é mais, na verdade,

que um epílogo, onde agoniza lentamente, à medida que se extingue o fogo que durante

dois séculos, tenazmente, o alimentou”321.

Continuará, no entanto, a ser na região norte, desde o Minho e Douro Litoral até

ao nordeste transmontano que a produção de retábulos em talha, ligados ao

neoclassicismo em voga, vai prosseguir o seu modesto caminho, ainda que já sem o

pretérito fulgor, mas mantendo uma clara marca de misticismo e fé local e procurando,

ao longo de século e meio, acompanhar uma evolução tipológica de acordo com a

estética que se fazia sentir. E se o norte continua ser uma região conservadora e de

fortes tradições no que diz respeito às suas crenças e manifestações populares, também a

317 PIMENTEL, António Filipe – “O gosto Oriental na obra das estantes da Casa da Livraria da

Universidade de Coimbra”. in Portugal e Espanha entre a Europa e Além-mar. Actas do IV Simpósio

Luso-Espanhol de História da Arte. Coimbra. Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra. 1992. p. 367. 318 PIMENTEL, António Filipe – O Retábulo de Talha... p. 14. 319 BORGES, Nelson Correia – Do Barroco ao Rococó... p. 123. 320 PIMENTEL, António Filipe – O Retábulo de Talha... p. 18. 321 PIMENTEL, António Filipe – O Retábulo de Talha... p. 21.

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região da beira interior segue esta linha e será nesta alargada zona que encontraremos

retábulos em talha dourada, muito tardios, alguns levantados nos finais do século XIX e

outros construídos já no século XX, caso do retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de

Vila Flor ou os retábulos da Igreja Matriz de Belmonte, ligados a um certo revivalismo

e aos movimentos dos “neo’s”, principalmente em estilo neo-gótico.

A RETABULÁRIA

O retábulo de Nossa Senhora dos Prazeres

ma das primeiras obras em talha que hoje resta do espólio conventual é

um retábulo maneirista ainda dedicado a Nossa Senhora dos Prazeres,

mas anteriormente, era consagrado a Nossa Senhora da Esperança.

Presentemente encontra-se na capela de Nossa Senhora da Conceição depois de ter sido

transferido da capela que lhe concedeu a actual invocação322.

Este retábulo é tipicamente pertencente ao século XVII, como é defendido por

todos os autores que até agora o analisaram, e integra-se no grupo de retábulos laterais

que derivam da simplificação do modelo jesuítico, como se pode observar pela análise

que José Meco faz a este tipo de retábulos323, ou seja, tem apenas um andar dividido em

três panos, ou edículas, por quatro colunas com remate semicircular.

Na verdade, denota-se que este instrumento cénico já sofreu algumas

intervenções, pois nem sequer toda a estrutura é maneirista. O frontal pertence ao século

XVIII, mas na nossa opinião será de inícios e não de meados conforme atribui João

Gonçalves Gaspar324, porque a decoração, vegetalista e naturalista, é trabalhada de

forma minuciosa, rendilhada, numa intenção de quase horror ao vazio e de constantes

enrolamentos. Esta peça parece-nos inserir-se ainda num contexto do barroco de estilo

322 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 23. 323 MECO, José – “As artes decorativas”... pp. 166-167. 324 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 23.

U

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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nacional porque não apresenta a erudição, delicadeza e plasticidade volumétrica,

características da talha joanina. Ao centro do frontal destaca-se de forma autoritária o

símbolo dominicano.

O resto do corpo é nitidamente maneirista. A predela tem quatro pedestais que

suportam as colunas, todos decorados, estando representados nas faces centrais quatro

santos: Santo António, São Francisco de Assis, São Pedro de Verona e São Jacinto. As

faces laterais têm representações vegetalistas de pouca plasticidade. Ao centro, entre os

pedestais centrais, está representada uma cena que se desenrola no exterior, na qual se

vê “… uma santa dominicana, coroada de espinhos e ocupada em trabalhos de agulha, a

quem aparece o Menino Jesus”325, provavelmente uma alusão a S. Catarina de Sena, na

medida em que esta representação não é iconograficamente directa da santa.

O corpo é seccionado por quatro colunas que têm o seu terço inferior bem

dividido e no qual estão representados os quatro Evangelistas; a envolver os medalhões

evangélicos estão motivos vegetalistas. Os dois terços superiores são canelados: nas

colunas dos flancos as caneluras são em forma espiralada e nas centrais são em linha

quebrada diagonalmente opostas. São coroadas por capiteis coríntios, que a par dos

capitéis jónicos era usual aplicar-se no maneirismo. Na edícula central há uma moldura

que salienta um súbtil arco extremamente abatido. Aqui poderia ter existido um ligeiro

vão, mas não é possível certificarmo-nos devido às intervenções sofridas que colocaram

neste local um painel liso de madeira dourada326. O usual neste tipo era a existência de

uma reentrância um pouco profunda, isto é, um nicho para abrigar uma imagem. As

edículas laterais possuem uma peanha piramidal para suporte de estatuária.

O entablamento apresenta o movimento conferido pelo avanço das colunas no

corpo. O friso é todo decorado com enrolamentos vegetalistas envolvendo motivos

naturalistas e a cornija é denticulada. No seguimento das colunas o entablamento avança

destacando-se aqui uma recortada flor. Todo o conjunto é rematado por um tipo de

frontão semicircular, destacando-se ao centro um painel liso, que estranhamente aí foi

colocado327. Pensamos que no seu lugar estaria uma tela ou uma tábua pintada o que

estaria de acordo com os tondos usados inicialmente nos retábulos jesuíticos,

325 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 23. 326 Este painel apresenta um douramento ligeiramente diferente do resto do retábulo, podendo observar-se

que foi uma aplicação posterior e provavelmente o ouro não foi brunido. 327 É possível que a aplicação deste painel no tímpano do frontão tenha sido realizada aquando do painel

do corpo porque apresenta as mesmas características.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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posteriormente difundidos em toda a retabulária, e que com o tempo foram ganhando

outras formas, oval, rectangular e quadrada, como neste caso. A zona do desaparecido

elemento pictórico é flanqueada por duas pilastras misuladas e a ladear este pequeno

conjunto estão duas grandes flores envoltas em ramagens, bem recortadas, realistas e

muito naturais, conferindo alguma animação ao remate.

Este tipo de retábulo normalmente destinava-se a ocupar todo o espaço da parede

o que não acontecia nem na capela de São Jacinto, nem sucede na actual. Todavia é

difícil levantar qualquer questão sobre qual foi o destino original deste sereno retábulo

que, apesar de o podermos classificar claramente de maneirista, revela já um espírito

contra-reformista, distanciando-se da liberdade criativa que marcou o início deste estilo.

A talha da capela de Nossa Senhora do Rosário

sta capela apresenta algumas semelhanças, a nível de talha, com a do

Santíssimo Sacramento, tal como no campo arquitectónico, pois além do

retábulo também é coberta por talha que emoldura os caixotões pintados

do tecto e os painéis das paredes. Contudo, o retábulo não apresenta ligação estilística

com o resto da decoração e veio substituir um outro328, provavelmente do mesmo estilo

da talha que cobre a capela.

A parede fronteira ao arco tem três pinturas sobre tela encaixilhadas por um

minucioso, mas simples rendilhado. A separar as molduras estão pilastras misuladas,

animadas por pequenas flores e folhas com pouca plasticidade, quase estáticas. O

quadro que hoje se encontra ao centro não é o original, evidenciando-se à primeira vista

devido à desproporção de tamanho e também à diferença estilística e técnica. Além

disto a moldura não tem qualquer ligação com as restantes e denota-se que houve um

corte no envasamento, feito por mão humana, e entre as pilastras e o quadro foram

aplicados uns pedaços de madeira tosca para preencher as lacunas. Esta tela “... da

crucificação era da demolida igreja de S. Miguel; antes de vir para este local em 1860,

328 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 32. Este autor afirma que

o retábulo actual foi encostado a outro e, pelas sua palavras, “posto que com muitas dificuldades, ainda

com o auxílio de uma escada de mão e por uma porta interior, se pode ver, com luz arteficial, quasi todo o

antigo altar que é uma belleza de talha dourada, que poderia aproveitar-se. Infelizmente já de lá tem sido

tiradas algumas peças para diversas applicações”. Ainda hoje se conseguem ver alguns pedaços.

E

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esteve na capela da Visitação”329 e na origem este espaço não teria qualquer pintura

porque rasgava-se aqui uma janela sobre a Porta das Graças330.

A parede fronteira ao retábulo, à esquerda de quem entra, tem apenas duas telas e

apresenta as mesmas características estruturais e decorativas. Sob as molduras está o

envasamento que é animado por mísulas que suportam as referidas pilastras misuladas e

são decoradas com pequenas folhas. Entre as mísulas corre um friso decorado por

ligeiros enrolamentos de folhagens, bem ordenados e comedidos apesar de algum

movimento e dinamismo. Contudo continuam a apresentar ainda pouca plasticidade.

O tecto é coberto por dezasseis telas encaixilhadas numa moldura de rendilhado

idêntico ao já descrito. A separar as molduras estão frisos animados por motivos

geométricos e nos pontos de cruzamento sobressaem pequenos pináculos invertidos,

género estalactites, que nascem de flores.

A parede interior do arco também está decorada com motivos vegetalistas e

florais e o intradorso do arco formado por talha, que acompanha o arquitectónico, é

dividido em pequenos caixotões com dois tipos de tamanho alternados, todos

preenchidos por esbeltas e delicadas flores.

Pelo tipo de decoração enunciada e pela estrutura, numa intencionalidade de

cobrir quase toda a arquitectura, arriscamos em qualificar esta talha de estilo nacional.

As dúvidas surgem-nos quanto à cronologia, mas, como não tomamos a ousadia do

cepticismo, diríamos apenas que é trabalho de inícios do último quartel de seiscentos331.

Parece-nos, então, que este trabalho é anterior ao conjunto da capela do Santíssimo

Sacramento, datado de 1702, porém denota-se neste último conjunto referenciado uma

maior delicadeza, perfeição e harmonia, quer estética quer estrutural, o que nos leva a

pensar que o trabalho da capela de Nossa senhora do Rosário foi realizado por outro

artista que não António Gomes, o executor da talha da capela fronteira. Um artista que

já conhecia a linguagem formal e decorativa barroca, mas que, possivelmente, tinha

ainda bem contactado com a estética e estrutura maneirista.

O retábulo que actualmente se encontra nesta capela é puro rococó e integra-se na

329 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 24. 330 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 30. 331 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 110. Este autor data este

trabalho da década de setenta do século XVII, o que nos parece correcto, mas não seria surpresa se ele

tivesse sido executado nos anos oitenta, pois a morfologia decorativa do barroco apresentada nesta obra,

apesar de ser ainda um pouco tímida, reveste-se das mesmas características do barroco desse período.

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estética regional do Sul, isto é, nos retábulos rococós marmoreados, na qual se inclui a

escola regional coimbrã, com destaque para o magnífico retábulo-mor da Igreja do

mosteiro de Santa Cruz daquela cidade, atribuído a Gaspar Dias e que foi o mote para a

formação de uma escola regional desta produção.

Sob o corpo do retábulo destaca-se a mesa de altar ondulada, em forma de urna

invertida, marmoreada em tonalidades rosadas e esverdeadas, sobre as quais se

movimentam com requinte e finura concheados assimétricos e algumas leves folhagens

aurifulgentes; os ângulos da mesa são bem dissimulados pelos graciosos querubins de

longas asas. As ilhargas do banco de altar, que suportam as colunas, são marmoreadas

em rosas e amarelos pálidos sobre os quais se desenvolvem delicados motivos

estilizados da concha de ouro.

O camarim, ou tribuna, é largo e profundo e abriga um ondulante trono de cinco

degraus332, todo ele animado por recortes e motivos festivos de extrema leveza. A ladear

o vão central estão duas colunas de cada lado postas numa linha diagonal, em posição

convexa. São marmoreadas em verde e apresentam decoração dourada de folhas e leves

grinaldas nas zonas inferior, superior e a provocar a divisão do terço inferior dos dois

superiores. As colunas são coroadas por um lumínico capitel dourado da ordem coríntia

e assentam num belo pedestal decorado com graciosos e joviais querubins.

A rematar todo o conjunto está um frontão contracurvado, tipo borrominesco, que

é sustentado por um movimentado e destacado entablamento com o mesmo tipo

decorativo descrito para o resto da estrutura. O frontão é sem dúvida alguma o auge

deste instrumento cénico pela sua pujança artística, mas, por outro lado, pela leveza

harmoniosa da decoração. O tímpano é preenchido por uma gloriosa Glória Solar (se

nos é permitido o pleonasmo) e por grandes concheados, esbeltos e leves, que se

conjugam num jucundo laço com os rosas, verdes, amarelos e brancos dos marmoreados

num idílico cromatismo. Para conferir ainda maior jovialidade ornamental e até alguma

sensualidade reclinam-se dois anjos nos acrotérios laterais e no central dois graciosos e

alegres “puttis” seguram o delicado e entrelaçado símbolo mariano (A M), dos quais

emana uma vigorosa luz dourada.

Esta obra, claramente da segunda metade de setecentos e indiscutivelmente da

escola de Coimbra, bem demonstrada pela utilização de colunas bombeadas e mesmo

332 Sobre o trono está uma imagem maneirista de Nossa Senhora do Rosário que não é objecto do nosso

estudo.

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pela linguagem estrutural e ornamental do remate, é um claro exemplo da sintética

definição do retábulo rococó que “é no seu essencial a utilização de assimetrias

compositivas, uma delicadeza de linhas e expressões, um naturalismo nas

representações e um tirar partido de policromias”333, do qual o observador se sente

cúmplice do seu extasiado sentido palaciano e festivo.

A talha da capela do Santíssimo Sacramento

conjunto em talha que reveste esta capela integra-se no estilo barroco

nacional. A sua execução tem sido normalmente atribuída aos finais do

século XVII334 e vários autores seguiram esta ideia335. É natural esta

atribuição, na medida em que este estilo desabrochou nas últimas três décadas de

seiscentos e rapidamente se difundiu pelo país, pois a arte “...barroca em Portugal tem

um valor simbólico de rebelião anti-espanhola, procurando simultaneamente uma

europeização diversificada”336. No entanto, é importante notar que ele entrou pela

centúria seguinte e até à segunda década continuou a ser utilizado e trabalhado, muitas

vezes a par do novo estilo joanino. Só assim se compreende a vizinha igreja de ouro do

Mosteiro de Jesus de Aveiro, datada de cerca de 1715, pois “o estilo nacional e as

igrejas forradas de ouro avançam pelo século XVIII, em plena época de D. João V”337.

Na verdade, a produção desta talha dourada pertence aos inícios do século XVIII e

foi feita pelo entalhador portuense António Gomes338. Este António Gomes foi aprendiz

de Domingos Lopes, o mestre entalhador que executou o cadeiral deste convento339,

como adiante trataremos. Sabe-se que António Gomes iniciou a sua actividade em 1678

na obra do sepulcro para a Sé de Lamego em parceria com Domingos Nunes, dupla que

333 SALTEIRO, Ilídio – s.v. “Retábulo”. in Dicionário de Arte Barroca em Portugal... p. 408. 334 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109. 335 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 22 e NEVES, Amaro – Aveiro.

História e Arte... p. 81 e NEVES, Amaro e SEMEDO, Énio – Aveiro do Vouga ao Buçaco... p. 64. 336 PEREIRA, José Fernandes – Arquitectura barroca em Portugal... p. 15. 337 MOURA, Carlos – O limiar do Barroco... p. 113. 338 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. pp. 138-142. 339 SMITH, Robert Chester – Cadeirais de Portugal. Lisboa. Livros Horizonte. 1968. p. 53.

O

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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realizou várias obras340 e em Aveiro este mestre teve, igualmente, um trabalho profícuo,

desde o retábulo-mor da Igreja do Convento de Santo António em 1679, também

parceria com Domingos Nunes341, até à talha para a capela-mor da igreja feminina

dominicana do Convento de Jesus em 1725, esta em parceria com José Correia342.

Como se pode constatar pelo contrato, incluso na obra de Domingos Pinho

Brandão, aquele foi celebrado a 12 de Outubro de 1702 e toda a obra teria de estar

assente a 8 de Maio do ano seguinte343. António Gomes comprometeu-se a executar,

segundo a sua traça, “… um retábulo para a capela de Jesus da igreja deste convento,

conforme o rascunho que ele mesmo fez para a dita obra… e demais desta tribuna e

retábulo fará o dito mestre o tecto da capela apainelado de esteira, assim como mostra a

planta… como também os painéis que hão-de guarnecer as duas paredes da capela, os

quais serão quatro…”344. Estas duas paredes seriam as fronteiras ao retábulo e ao arco

de entrada e os respectivos painéis da primeira, defronte do retábulo, ainda se

encontram no local, no entanto os da segunda desapareceram. Porém, Rangel de

Quadros nas suas preciosas descrições afirma ter visto estes dois painéis, mas

encontravam-se separados devido à janela existente ao centro desta mesma parede345, a

qual hoje se encontra tapada.

O convento, por seu lado, obrigava-se a pagar 200 mil reis pela obra, metade no

acto do contrato e o resto depois de assente e se a obra correspondesse à perfeição

desejada os frades dar-lhe-iam ainda mais 10 mil reis. Em contrapartida se a obra não

estivesse pronta na data contratada António Gomes “… se obrigava a pagar o cruzado

por dia, todas as vezes que faltasse desde o primeiro…”346.

O conjunto parece-nos ter sido executado conforme o desejado e descrito no

contrato, todavia já sofreu alterações, nomeadamente no banco de altar, mais

precisamente nas ilhargas daquele elemento, pois estas pertencem já ao estilo pleno do

barroco joanino. O banco de altar apresenta o mesmo movimento concavado que o

340 ALVES, Natália Marinho Ferreira – A arte da talha no Porto na época barroca... vol. I. p. 96 e 123.

Sobre a actividade deste artista consultar no mesmo volume desta obra as páginas 96-98 e 123-126. 341 ALVES, Natália Marinho Ferreira – A arte da talha no Porto na época barroca... vol. I. p. 96 342 ALVES, Natália Marinho Ferreira – A arte da talha no Porto na época barroca... vol. I. p. 98. 343 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. Porto. pp. 139-140. 344 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. p. 140. 345 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. pp. 24-25. 346 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. pp. 140-141.

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corpo do retábulo, porém o frontal apresenta mais correspondência estilística

ornamental com o corpo do que com as ilhargas do próprio banco. Estas são decoradas

por largas folhagens ondulantes e movimentadas, bem recortadas, mas denotam maior

contenção, mais plasticidade e mais erudição e não apresentam o sentido de horror

vacuum, típico do estilo nacional. O frontal tem decoração vegetalista, de enrolamentos

de folhagens, idêntica à que se vê nos flancos do corpo do retábulo. Por outro lado,

aquele elemento é dividido, horizontalmente, por um friso animado por motivos

geométricos exactamente iguais aos que dividem os painéis do tecto. Além disto, as

flores que estão sobre a mesa de altar têm correspondência com as que estão

representadas no envasamento, entre as mísulas. Outro motivo, ainda, é que o frontal

assenta directamente no solo enquanto as ilhargas do banco assentam num friso

marmoreado. Pelos motivos apresentados julgamos que só os flancos do banco de altar

são joaninos e que o frontal será ainda o original.

O corpo apresenta movimento conferido pela posição côncava das colunas

pseudo-salomónicas. Estas são todas decoradas por parras, uvas e fenices numa clara

alusão eucarística e à ressurreição típico do estilo nacional. As ilhargas têm duas

pilastras de cada lado e todo o espaço é decorado com vegetação bem delineada,

minuciosa e de fortes entrelaçados. Tanto as colunas, como as pilastras são coroadas por

capiteis coríntios. No envasamento salientam-se as mísulas, extremamente

desmaterializadas pela decoração floral, de fenices e de querubins, que suportam as já

referidas colunas e pilastras. O entablamento segue o mesmo movimento e no meio da

decoração destacam-se uns belos e rechonchudos querubins. O camarim hoje não

apresenta profundidade devido a intervenções posteriores, no entanto Rangel de

Quadros afirma que no tempo dele “o vão do altar é largo e sufficientemente elevado e

com fundo profundo para conter um throno de seis degraus… e em certas festividades

fazia-se a exposição do Santíssimo Sacramento…”347. As festividades a que se refere o

autor seria com certeza o Lausperene.

O remate é composto por duas arquivoltas helicoidais no seguimento das colunas,

decoradas na mesma forma destas e travadas por três grandes chaves. À pilastra mais

próxima do camarim corresponde um arco concêntrico de perfil plano ou quadrangular;

à outra pilastra tem seguimento outro elemento idêntico a este e os seguintes (triângulos

esféricos), que cobrem o resto de toda a parede, apresentam decoração de enrolamentos

347 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 24.

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vegetalistas e florais, dos quais se destacam uns graciosos e alegres puttis.

O tecto está coberto conforme o contrato e é dividido por nove painéis quadrados

e outros três estreitos rectangulares, que perfazem a quarta fiada, que fazem a união com

a parede. Parece-nos ter havido aqui um ligeiro erro de cálculo porque seria natural que

as quatro fiadas fossem simétricas e que os caixotões fossem todos do mesmo tamanho.

Os painéis são emoldurados por rendilhados minuciosos e a separar estas molduras

estão frisos animados por motivos geométricos. Nos cruzamentos destes frisos nascem,

de uma flor, pequenos pináculos invertidos, tipo estalactites. A separar as molduras das

paredes está uma pilastra toscana decorada com temas vegetalistas e florais. Os painéis

que já não se encontram na parede fronteira ao arco, como atrás referimos, deveriam ser

idênticos.

Estes painéis estão pintados com enrolamentos vegetalistas, meios corpos e puttis,

ou seja, motivos dependurados, muito semelhantes à decoração utilizada na talha, e são

atribuídos ao século XVII348, conquanto pensamos que devem ser, sensivelmente, da

mesma altura do retábulo, isto é, de inícios de setecentos, na medida em que o retábulo

não é de seiscentos, mas sim dos primeiros anos do século XVIII, como atrás ficou

comprovado documentalmente.

O retábulo do Sagrado Coração de Jesus

Este retábulo adquiriu o nome que a capela actualmente tem por invocação, mas

os nossos documentos não nos fornecem grandes informações relativamente a este

instrumento cénico sagrado. João Gonçalves Gaspar indica que a mesa de altar esteve

até 1976 na capela do Santíssimo Sacramento, datando-a do século XVIII, mas defende

que a restante estrutura é já do período oitocentista e não indica onde estava colocada

antes dos anos das reformulações profundas que o templo sofreu349. Ficamos com a

sensação que aquele autor defende, sem o explicitar directamente, que a mesa foi

adjudicada ao retábulo, não fazendo parte do conjunto. Então, qual a função da mesa na

hodierna capela do Santíssimo Sacramento? Qual seria a estrutura original que se ligava

à mesa? O que aconteceu ao restante conjunto? São perguntas para as quais não

348 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109. 349 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 24.

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encontrámos respostas documentais ou bibliográficas, mas parece-nos estranho que

Rangel de Quadros quando realizou a descrição daquela capela350 não tenha feito

qualquer referência à mesa, tal como fez ao conjunto em talha, ao túmulo351, às portas e

janela, às lápides e até à azulejaria. Isto pressupõe que a mesa foi colocada naquele

espaço após 1900, data das descrições de Rangel de Quadros.

De qualquer forma ao observarmos todo o conjunto retabular temos muita

dificuldade em separar a mesa da restante estrutura porque no que se refere ao estilo

insere-se perfeitamente. A mesa em forma de urna invertida, ondulada e bombeada nas

três faces apresenta motivos ornamentais típicos do rococó – joviais querubins bastante

graciosos de estendidas asas bem desenhadas soltam-se das zonas superiores dos

cunhais e delicados concheados envolvem a heráldica dominicana no centro da face

central. Esta decoração apresenta uma ligação intima com a estrutura e ornamentação do

único degrau do trono que se encontra na tribuna e suporta a imagem religiosa que

confere a advocatura à capela e respectivo retábulo. Julgamos que o trono não seria

composto apenas por este degrau à imagem do que era comum na época e neste tipo de

móveis religiosos. Nesta peça, igualmente bombeada, deparamo-nos com os mesmos

delicados e requintados concheados e também asas de morcego, bem entalhadas,

característicos do período rocaille, que acompanham a ondulação do elemento.

O corpo do retábulo tem uma estrutura pouco dinâmica: o centro, que corresponde

praticamente à envolvente da boca da tribuna, é uma estática face rectangular rasgada

pela própria boca da tribuna, a qual é marcada por uma hirta moldura rematada por um

arco de volta perfeita. A lateralizar esta moldura descai uma suave e clássica grinalda de

flores que se liga a uma larga folha de palma envolvida numa aleta posta na vertical.

Este conjunto ornamental apresenta pouca plasticidade, e um sentido dinâmico

classicizante, transmitindo uma forte calmia decorativa.

Os ângulos do corpo são cortados, num movimento concavado, para dar lugar às

delgadas colunas compósitas de fuste liso, as quais assentam nuns altos pedestais que

tomam a mesma altura do sotobanco. Estes pedestais são animados nas suas faces por

animados e movimentados concheados que se ligam à linguagem rococó. Sobre as

colunas prenunciam-se os habituais elementos constituintes do entablamento, mas a

350 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. pp. 24-30. 351 O túmulo é o de João de Albuquerque e encontra-se actualmente no Museu Nacional de Santa Joana,

antigo Convento de Jesus de dominicanas.

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arquitrave e o friso são impedidos de se estenderem devido ao alongamento da tribuna

que rasga aqueles elementos truncando-os. O remate semicircular da boca da tribuna

obriga a cornija denticulada a acompanhar a mesma movimentação daquela. O friso, por

seu turno, seria ornamentado por frenéticos elementos florais de gramática rocaille.

O remate é o elemento mais agitado de todo o conjunto desligando-se

definitivamente da sensação estrutural clássica que emana complexo retabular. Na

continuação de cada coluna abre-se um acrotério de um frontão semicircular posto de

forma inversa, o qual inicia a sua forma a partir de um enrolamento clássico. Sobre o

corpo central desenvolve-se um conjunto de elementos fragmentados ondulados que

unidos formam um único elemento que provoca uma asserção a um frontão

completamente anti-clássico, ligando-se mais à estética barroca e rococó. A parte

central deste elemento é olvidada pela enorme glória solar, na qual brincam alegremente

bochechudos querubins.

Na realidade este instrumento cénico religioso é uma obra, do ponto de vista

estilístico, de transição do rococó para o neoclassicismo, pois apresenta ainda elementos

decorativos bastante movimentados e assimétricos, como alguns concheados e as asas

de morcego, ligados ao rococó que acima foram enunciados; a mesa de altar e o trono

têm ainda uma estrutura de suave e alegre dinamismo muito próxima da estética rocaille

e o remate relembra também os coroamentos muito movimentados compostos por

diversos fragmentos que eram aplicados durante o período rococó, mas que já se

encontram nalguns retábulos do período de D. João V. Contudo, a estática estrutura do

corpo retabular, o regular e geométrico desenho da boca da tribuna, a forma delgada e

lisa das colunas e os elementos ornamentais, supra descritos, que lateralizam a tribuna

apresentam já claros indícios de linguagem classicista. Como tal, esta peça parece-nos

ser uma obra, mais do que de transição, uma obra de composição tardia, talvez dos

inícios da centúria oitocentista, que em muitos lugares, principalmente afastados dos

grandes centros urbanos e, consequentemente, das novas correntes estéticas, como

Lisboa e Porto, foram levantados e que por isso acarreiam ainda vestígios da antiga

estética rocaille e os fundem com algumas novidades do estilo neoclássico.

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OUTRAS PEÇAS EM TALHA

O cadeiral

talha não se restringe apenas à retabulária e ao revestimento das

paredes, quer de capelas ou mesmo de toda a igreja, nascida das

ilhargas dos retábulos. Com a expansão da talha dourada a partir,

principalmente, do maneirismo e de acordo com os preceitos tridentinos ela começa a

ocupar variados locais do templo de forma a prender o crente e a enformar a mensagem

eclesiástica, ou seja, “numa perspectiva propagandística católica, a talha desempenha

um papel primordial já que retábulos, púlpitos, caixas de órgãos, sanefas, molduras e

remates, ricamente esculpidos e dourados, constituem uma visão fascinante que exerce

uma poderosa acção magnética, essencial para uma motivação dos sentidos”352. A talha

abrange, assim, qualquer lugar que pudesse decorar e o cadeiral, além de ser uma obra

necessária e de vulto, presta-se à função catequética, ao embelezamento e à expansão

artística, pois é “… indispensável em todas as catedrais e conventos…”353.

O cadeiral do cenóbio dominicano aveirense foi executado pelo portuense

Domingos Lopes “…mestre de architetura…”, como se pode constatar pelo contrato

datado de 31 de Julho de 1675354 e será este mesmo mestre em parceria com Bento da

Rocha que irão realizar no ano seguinte as grades para o coro e as balaustradas dos dois

púlpitos, conforme o contrato estabelecido em 22 de Outubro de 1676355.

Pelo documento contratual sabemos que o preço ajustado foi de 300 mil reis, 100

352 ALVES, Natália Marinho Ferreira – s.v. “Talha”. in Dicionário de Arte Barroca em Portugal... p. 466. 353 BORGES, Nelson Correia – s.v. “Cadeiral”. in Dicionário de Arte Barroca em Portugal... p. 105. 354 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 426. 355 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. pp. 447-449. Sobre a

actividade deste mestre consultar ALVES, Natália Marinho Ferreira – A arte da talha no Porto na época

barroca... vol. I. p. 99 e 119-122.

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mil pagos no acto do contrato e o restante após a conclusão da obra356. O mestre, por

seu lado, obrigava-se a entregar a obra até 4 de Agosto de 1676, dia de São Domingos, e

seria feito segundo a sua traça357. Deduzimos que a data e obra foram conseguidas

conforme o desejo dos frades, justificando-se assim a realização do novo contrato dos

púlpitos e grades do coro acima referido.

O cadeiral é composto por duas ordens de cadeiras: a superior tem onze, sendo

uma de canto e a inferior possui apenas oito, separadas a meio, isto é, quatro para cada

lado. Os braços das cadeiras são movimentados e apresentam a particularidade de serem

representadas máscaras humanas nos seus perfis. Isto é um tipo de decoração que

começa a surgir, precisamente, no último quartel de seiscentos358, o que nos leva a

pensar que Domingos Lopes foi um dos percursores neste tipo de tratamento de perfis.

Actualmente poucas cadeiras apresentam as características misericórdias, excepto

quatro únicas cadeiras, porém Robert Smith ao referir-se a esta obra afirma que as

“cadeiras, com misericórdias representando máscaras humanas, são

extraordinárias…”359. É uma perda bastante importante e lamentável.

A cada par de cadeiras corresponde um espaldar flanqueado por duas pilastras

misuladas de capitel coríntio, animadas por ligeiros motivos vegetalistas. O espaldar é

preenchido por um painel pictórico que simula serem dois, devido ao friso vertical

ilusionista ao centro do painel. Em cada estão representados dois santos ou santas da

ordem dominicana. A cadeira de canto possui apenas um painel com uma só figura. No

envasamento dos espaldares estão estáticos pedestais que suportam um par de pilastras e

são decorados com enrolamentos vegetalistas. Entre os pedestais corre um friso com o

mesmo tipo de ornamentação, que em nossa opinião apresenta ainda pouca plasticidade.

O entablamento é muito semelhante, a nível decorativo, ao elemento anteriormente

referido, sobressaindo apenas pequenos e serenos querubins no friso, no seguimento do

centro de cada painel. O cadeiral apresenta-se encerado e apenas as molduras das

pinturas são douradas, no entanto Nogueira Gonçalves afirma que outrora o cadeiral era

revestido inteiramente por folha de ouro360.

Na nossa opinião parece-nos que este cadeiral ainda apresenta características

356 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 425. 357 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. Porto. pp. 425-426. 358 SMITH, Robert Chester – Cadeirais de Portugal... p. 14. 359 SMITH, Robert Chester – Cadeirais de Portugal... p. 39. 360 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109.

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maneiristas no estatismo dos elementos e na falta de plasticidade da decoração

vegetalista, mas deixa muito levemente transparecer alguns, muito poucos, prenúncios

de um tímido barroco, mais precisamente na disposição espacial da decoração do

envasamento e do entablamento, na graciosidade dos querubins e no tratamento dos

perfis. Como tal consideramos que este móvel religioso integra-se ainda num

maneirismo final de transição para o barroco e assim sendo poderemos então, com

alguma ousadia, designá-lo de proto-barroco.

Resta-nos apenas informar que o cadeiral ao tempo dos frades e da antiga e

destruída capela-mor, estava junto ao arco cruzeiro361, na posição inversa da que se

encontra hoje. Relativamente à identificação dos santos e santas dominicanas aqui

representados nestas pinturas atribuídas ao século XVIII e ao círculo lisbonense362 tratá-

las-emos no capítulo destinado à pintura.

O órgão

organária é um dos aspectos mais peculiares e fantásticos da talha

dourada nacional das centúrias de seiscentos e setecentos. Todavia, os

órgãos são extremamente divulgados durante o século XVIII, pois eram

essenciais a todo o fulgor festivo das encenações litúrgicas barrocas363 e “… simbolizam

no mais alto grau a pompa e grandeza do barroco”364. Sem dúvida alguma que o órgão

passou a ser um elemento fulcral nas comunidades religiosas, pois a sonoridade

indelével, por um lado, mas esvoaçante, por outro, tornou-se complemento perfeito nas

cerimónias faustosas do calendário religioso: nada mais sublime que as notas fortes,

claras e gravitacionais de um Te Deum barroco na envolvência do esplendor aurífero

das festividades litúrgicas. A caixa do órgão une-se à varanda, num conjunto primoroso

de articulação de talha, algumas vezes conjugando-se com a pintura, nomeadamente de

charão ou chinoiserrie, como o órgão da capela de São Miguel da Universidade de

Coimbra, ou então a talha envolvente esparge as paredes mais próximas num

movimento frenético de ânsia, como é o caso do órgão da Sé de Braga. 361 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. pp. 17-18. 362 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109. 363 BORGES, Nelson Correia – s.v. “Órgãos”. in Dicionário de Arte Barroca em Portugal... p. 332. 364 SMITH, Robert Chester – A talha em Portugal. Lisboa. Livros Horizonte. 1962. p. 167.

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Relativamente à organária rococó esta apresenta as mesmas características

estruturais que o resto dos campos artísticos deste período, isto é, “continua-se

igualmente nesta época o esplendor da armação entalhada para sustentação e mostra da

tubagem e mecanismos dos órgãos”365. Este órgão do templo dominicano é,

estilisticamente, rococó, ostentando a data de 1754. Sofreu já algumas intervenções em

1883 e em 1976, mas estas efectuaram-se ao nível da tubagem e dos jogos de som366, o

que, de qualquer maneira, não lhe desvirtuou o seu carácter artístico e belo do rococó.

A caixa do órgão denota uma certa plenitude devido à sua ondulação ser ligeira,

harmoniosa e subtil, isto na zona do teclado. Toda esta secção é decorada por

marmoreados em tonalidades esverdeadas e acizentadas, nas quais sobressaem

molduras, pequenos frisos e ornamentação entrelaçada e assimétrica de figuras e

concheados dourados. Este instrumento, actualmente, apresenta cinco registos de

flautados, sendo o central mais elevado e numa posição ligeiramente ondulada em

sacada triangular. Em cada registo de flautados existe um leque horizontal de tubos de

palheta, tipicamente ibéricos. Na parte superior dos registos destacam-se entrelaçados

de concheados dispostos numa posição de cortinas. A rematar o conjunto, nas

extremidades, estão duas grandes conchas estilizadas e ao centro eleva-se uma grande

cartela, desmaterializada através dos típicos elementos concheados, numa conjugação

perfeita de beleza e delicadeza de elementos que suportam e que decoram. A flanquear

este remate estão duas esbeltas aletas.

A caixa de órgão assenta numa varanda com balaustrada ondulada, num

harmonioso contraste de côncavos e convexos. Todos os balaústres são marmoreados

nas mesmas tonalidades acima descritas. A escorar todo o peso está uma poderosa

mísula, elegantemente desmaterializada em forma de leque, o que lhe confere uma

grande leveza, parecendo que o seu propósito é mais de um elemento decorativo. Este

elemento apresenta os mesmos aspectos pictóricos de marmoreados, mas aqui os

ornamentos dourados surgem com mais frequência, provocando um leve e belo

contraste entre os verdes acinzentados e a cor dourada, como que numa reprodução

material das notas contrastantes da musicalidade composta nesta segunda metade de

setecentos.

É importante, ainda, referir que o órgão ao tempo dos frades estava na capela-mor

365 BORGES, Nelson Correia – Do Barroco ao Rococó... p. 146. 366 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 27.

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no lado da Epístola e tinha-se acesso a ele através de uma porta que ligava a uma

escadaria, logo a seguir ao altar367.

OBRAS DESAPARECIDAS

As grades das capelas

lém das grades executadas para o coro contratadas em simultâneo com

as grades dos púlpitos no ano de 1676368 os frades mandaram executar

mais sete grades: uma para o cruzeiro e seis para o mesmo número de

capelas da igreja. O contrato foi celebrado na cidade do Porto com o ensamblador João

Coelho de Magalhães, a 21 de Janeiro de 1700 e teriam de estar assentes até ao fim de

Julho do mesmo ano369.

O contrato é bastante explícito quanto às exigências: teriam de ser lisas, em pau

preto, brunidas a cera e segundo os apontamentos cedidos pelo próprio prior do

mosteiro, o Padre Frei Pedro de Monteiro370 e além destes requisitos o contrato não

esquece também como seriam as ferragens, os fechos, os pregos e as dobradiças. Indica

igualmente que “...as ditas grades do dito cruzeiro levarão quarenta e dois balaústres, a

saber: dez nas portas e oito nos quatro lanços e seis pilares...”371 e as grades para as

capelas teriam dezasseis balaústres e quatro pilares. Os frades pagariam 40 mil reis por

cada grade para cada capela e 110 mil reis para a grade do cruzeiro, sendo esta quantia

entregue em três pagamentos: 100 mil reis no próprio dia do contrato, outros 100 mil

reis passados três meses, isto é, em Abril e o restante, 150 mil reis, no final de toda a

367 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV. Aveiro. Compilação

fotocopiada por João Gonçalves Gaspar. 1978. p. 20. 368 Sobre a obra das grades para o coro e para os púlpitos, a qual foi contratada por Domingos Lopes e

Bento da Rocha, rever “Os púlitos” no capítulo «As introduções barrocas e rococó». 369 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. pp. 19-23. 370 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. pp. 19 e 21. 371 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. p. 21.

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obra após o assentamento372.

Desconhecemos como seriam estas grades, pois aquando das obras nos anos

setenta do passado século só existiam no templo as do coro que não fizeram parte deste

contrato e Rangel de Quadros também não se referiu a elas nas suas descrições, porém

deduzimos que não deviam ser muito diferentes das outras anteriormente executadas

para os púlpitos e coro, apenas vinte e quatro anos antes, porque o trabalho em pau preto

prestava-se muito ao labor de balaústres bombeados e/ou animados por discos

conjugados com embrechados metálicos.

O(s) retábulo(s)-mor

O belo retábulo rococó que hoje se encontra no templo catedralício não foi lavrado

para esta igreja, mas, sim, para a demolida de Vera Cruz, tendo sido transferido para

este local em 1879373. Quando Rangel de Quadros realizou as descrições do que restava

do extinto convento dominicano já aquele instrumento religioso estava exposto, mas

não deixou de fazer alusão ao antigo retábulo374. Na realidade ele descreve-o sendo de

“...archytectura composita, com duas columnas de cada lado, tendo entre ellas dois

nichos, um em posição mais elevada, mas de menor altura, e ficando assim quatro

columnas com quatro nichos em rigorosa symetria e apropriada elegancia”375. Informa-

nos, ainda, que os nichos inferiores abrigam as figuras de São Domingos e de São

Francisco, no lado da Epístola e no lado do Evangelho respectivamente e as imagens de

São Pedro e de São Tomás de Aquino figuravam nos nichos superiores pela mesma

ordem376. Actualmente o retábulo expõe duas imagens de São Domingos e de São

Francisco que nos parecem poderem datar-se da centúria de seiscentos, mas não temos

qualquer base para alvitrar que sejam as que estariam no retábulo principal do templo

372 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. p. 22. 373 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 23. 374 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos históricos... Vol. IV. pp. 17-18. 375 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos históricos... Vol. IV. p. 18. 376 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos históricos... Vol. IV. p. 18. Julgamos que estas

descrições, apesar de o autor não o revelar, devido à enorme semelhança, são baseadas nas informações

realizadas por CATARINA, Frei Lucas de Santa – Quarta parte da História de São Domingos. Vol. II...

p. 604.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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conventual.

No entanto, sabemos que os anacoretas realizaram dois contratos para a execução

do mesmo número de ratábulos-mor. O primeiro foi estabelecido por contrato, em Gaia,

com o entalhador e escultor portuense, e morador naquela cidade, Roque Nunes, a 25 de

Junho de 1660, sendo a traça do próprio mestre, mas tendo sido, já anteriormente,

redigida uma obrigação entre o entalhador e o Prior do Convento, Frei Jorge de Castro,

a 28 de Abril do mesmo ano. Os dominicanos aveirenses passaram, então, uma

procuração, datada de 1 de Maio de 1660, ao Reverendo P.e Frei Gaspar de Araújo,

Pregador Geral e Prior do Mosteiro de Corpus Christi de Gaia, para os representar no

acto de lavrar da escritura de contrato377. Neste contrato o entalhador compromete-se a

executar o retábulo “...Com hos Coatro Santos de vulto e dois paineis de meo Relevo a

saber hum de nosa Sr.a da Mizericordia e outro da vinda do esp.to Santo Com seu

Sacrario Conforme a trasa E com seu terço e Capitel e entrosados e tudo de m.to boa

madr.a de Castanho Limpa e seca...” 378 e obriga-se também a colocá-lo no local por sua

conta até ao dia de São João, 24 de Junho, de 1661, prometendo, para tal, a iniciar o

assentamento e a montagem dois meses antes da caducidade do prazo379. Por seu turno,

os religiosos pagar-lhe-iam 240 mil reis, dos quais cem mil foram entregues no acto da

escritura de contrato, 40 mil reis ser-lhe-iam pagos passados seis meses e os restantes

cem mil seriam entregues no fim da obra assente, verificada, analisada e atestada que

cumpria os requisitos sem qualquer defeito380.

Do referido contrato apenas ficamos a saber que o retábulo teria de possuir quatro

santos, não especificados, mas que julgamos serem os mesmo que Frei Lucas de Santa

Catarina descreveu381, dois painéis de meio relevo dedicados à padroeira do mosteiro e

outro à Descida do Espírito Santo. Todavia, as demais informações são insuficientes

para podermos atribuir uma composição imaginária ao instrumento cénico, mas devido

à data e às parcas informações pensamos que ou seria produzido dentro de uma estética

maneirista bastante avançada, devido às supracitadas imagens que seriam colocadas

entre cada par de colunas e aos painéis em relevo entalhado, e até já, quiçá, com alguns

377 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. pp. 340-341. 378 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 342. 379 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 342. 380 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 344. 381 CATARINA, Frei Lucas de Santa – Quarta parte da História de São Domingos. Vol. II… p. 604. As

imagens são as acima enunciadas: São Domingos, São Francisco, São Pedro e São Tomás de Aquino.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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tímidos prenúncios do primeiro barroco, ou poderia já apresentar alguns elementos

barrocos, essencialmente ornamentais, integrados numa estrutura ainda maneirista. O

contrato também não faz alusão à existência da tribuna, somente refere o sacrário, mas

nesta época, mesmo na retabulária maneirista, aquele elemento já tinha uma presença

forte e desenvolta com uma boca bem definida e estamos em crer que este retábulo

possuía a tribuna porque José Martins Tinoco, quando contratou o levantamento de um

novo retábulo-mor, foi autorizado a aproveitar partes do camarim e o trono do retábulo

antigo382. Para além disto, as informações acerca do entalhador são igualmente escassas,

pois surge em três documentos em 1652, 1659 e 1660, como testemunha num

documento de outorga e noutro de fiança respectivamente383 porque a última data

refere-se à presente obra. Julgamos tratar-se de um entalhador que realizou toda a sua

formação na plenitude da estética maneirista e que foi desenvolvendo a sua obra de

acordo com a sua aprendizagem, mas não excluímos a possibilidade de as colunas

“...com seu terço e Capitel E entrochados...”384 demonstrarem já alguma linguagem

barroca.

O segundo retábulo foi contratado a 12 de Junho de 1741 com o portuense José

Martins Tinoco385, sendo a escritura lavrada na Casa do Capítulo do próprio convento.

Neste instrumento público os frades, sendo prior Frei Paulo de Santo António,

contrataram a realização de “...uma tribuna e retábulo para a capela-mor do dito

Convento de São Domingos desta Vila de Aveiro, conforme a planta que se acha na

mão do dito mestre entalhador...”386. Neste documento ficamos também a saber que os

religiosos permitiam que o entalhador aproveitasse as “...quatro colunas grandes, frisos

e banco da dita coluna, digo (sic), das ditas colunas e do que acha feito do camarim e

trono do retábulo antigo...”387. A obra toda em madeira de castanho seria assente até à

Quaresma do ano de 1742 à custa do entalhador, mas os frades obrigavam-se a realizar

382 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. III. 390-391. Julgamos

que neste contrato a referência ao antigo retábulo seria o realizado por Roque Nunes porque este foi

contratado menos de cem anos antes, como tal não acreditamos que no espaço de 81 anos fossem

realizados três retábulos. 383 ALVES, Natália Marinho Ferreira – A arte da talha no Porto na época barroca... Vol. II. pp. 408-409. 384 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 343. 385 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. III. pp. 388-392. 386 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. III. p. 390. 387 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. III. pp. 390-391.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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as devidas obras nas paredes da capela-mor, caso fosse necessário, para instalar o

respectivo móvel sacro388. Em contrapartida os cenobitas pagariam pela execução deste

trabalho 172.800 reis, sendo o pagamento faseado em três partes, mas o contrato não

esclarece qual o valor de cada pagamento389. Como não temos vestígios desta obra, nem

o documento é suficientemente minucioso na descrição temos alguma dificuldade em o

analisar, mas é muito provável que José Martins Tinoco tenha aproveitado os elementos

do antigo retábulo e criado uma fusão. Porém, o instrumento devia apresentar um cariz

mais preponderante do barroco joanino, não só devido à ornamentação, como também

os elementos do velho retábulo devem ter sido inseridos, com certeza de forma

harmoniosa, numa estrutura já de estética joanina.

Quanto a este entalhador portuense sabemos que realizou algumas obras na sua

cidade natal, com especial referência para os retábulos do transepto da Igreja do

Mosteiro de São Bento390, entre outras, obras de cariz estético marcadamente do barroco

joanino.

388 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. III. p. 391. 389 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. III. p. 391. 390 ALVES, Natália Marinho Ferreira – A arte da talha no Porto na época barroca... Vol. I pp. 250, 255,

258, 261 e Vol. II p. 679.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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A ESCULTURA PÉTREA

pedra foi, desde as comunidades mais ancestrais e dependendo das

suas capacidades intelectuais e físicas, o material por excelência a ser

aplicado nas suas construções, nas suas obras, peças e utensílios

quotidianos, em suma, nas suas produções culturais, desde os povos pré-históricos do

paleolítico até aos nossos dias. A sua utilização justifica-se por ser uma matéria de

maior durabilidade, consistência e resistência do que outras, tais como o barro e a

madeira, mas também de talhe mais difícil. Por outro lado, os vestígios em pedra que

chegaram até nós são em maior quantidade do que os em material lenhoso,

nomeadamente os anteriores ao século XVI, devido a essas mesmas característica de

duração e resistência. Todavia, o trabalho pétreo apresenta dificuldades superiores e,

consequentemente, as despesas com a encomenda de uma obra em pedra também

seriam mais custosas.

Muitas “escolas” de escultura desenvolveram-se em centros urbanos próximos de

pedreiras e de zonas de acessível exploração daquela matéria-prima. Por outro lado,

teriam também em consideração os acessos à pedra e as vias de escoamento para levar

as obras aos seus encomendantes. Na região de Coimbra formou-se uma dessas escolas,

ou seja, um largo conjunto de oficinas ou mesteres que desenvolveram a sua

especialidade oficinal, neste caso o trabalho em pedra, sendo cada oficina dirigida pelo

seu mestre e tendo ao seu serviço os oficiais e os aprendizes. Coimbra era um centro

que oferecia excepcionais condições para o desenvolvimento de uma escola de pedra,

pois “a região tinha bom material, nas pedreiras de Ança, de Outil e de Portunhos, ao

mesmo tempo que o Mondego constituía a espinha dorsal de um conjunto de cursos de

água que permitiam o transporte de pedra em bruto e de imagens já esculpidas391”.

Além da zona de Ançã ser um centro de excelente matéria-prima muito próximo e o rio

391 DIAS, Pedro – A escultura de Coimbra. Do gótico ao maneirismo (catálogo da exposição). Coimbra.

Edição do Departamento da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra. 2003. p. 15

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Mondego apresentar-se como uma exímia via de comunicação e de escoamento das

encomendas, pois era navegável desde Porto da Raiva, a montante de Penacova, até à

Figueira da Foz, permitindo o acesso ao Atlântico e daqui às outras cidades costeiras,

Coimbra detinha outras vantagens: era um dos maiores centros urbanos do país; possuía

a Universidade, que no reinado de D. João III foi transferida definitivamente para esta

cidade, e todos os colégios religiosos que em quinhentos se foram instalando em torno

da instituição superior de ensino; a presença de conventos e mosteiros que foram

crescendo e o próprio bispado projectavam-se como muitos e bons encomendantes.

Todos estes aspectos permitiram que muitos escultores, quer nacionais, quer

estrangeiros caminhassem para este centro universitário.

Desde a época gótica que a escultura coimbrã se afirmou no panorama nacional e

o prematuro culto da Rainha Santa Isabel, pois “as gentes do povo parecem ter de

imediato aderido ao culto da rainha santa, dirigindo-se em preces e pedidos até ao

mosteiro de Santa Clara, onde estava o seu corpo”392, terá de alguma forma contribuído

para a expansão e conhecimento da desenvoltura e qualidade daquele ofício, sendo o

sarcófago daquela rainha portuguesa de origem aragonesa, da mão de mestre Pero, um

diáfano exemplo. Este desenvolvimento atingiu um alcance grandioso nos finais do

século XV e nos inícios do século seguinte com a escultura manuelina e renascentista. A

importância do labor em pedra nesta região manteve-se até finais da centúria

quinhentista e prosseguiu na subsequente, mas nos finais do século XVII foi-se

perdendo e o século XVIII remeteu a escola escultórica de Coimbra para um plano de

cariz mais regional e até mesmo provinciano, mercê das grandes encomendas

internacionais e da escola de escultura que surgiu em torno da construção do Palácio-

conventual de Mafra.

Retábulo da Visitação

omo já tivemos oportunidade anteriormente de referir aquando da

descrição da capela com a mesma invocação, nos documentos por nós

examinados não encontrámos nem o contrato, nem o treslado, mas

confrontámo-nos com algumas breves referências à capela e ao seu instituidor, como no

392 COELHO, Maria Helena da Cruz – Superstição, fé e milagres na Idade Média. Coimbra... p. 29.

C

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Livro de Diversas Receitas apelidando-a de “cappela da Senhora daVisitaçao”393, Esta

é a única invocação que lhe conhecemos, como tal não poderemos afirmar se foi o

retábulo que conferiu o nome à capela ou se este espaço foi levantado já com esta

denominação em mente e consequentemente encomendado um retábulo com aquela

temática. Segundo Amaro Neves este retábulo, afirmando o mesmo para o de Nossa

Senhora da Misericórdia, que se encontra na capela com a mesma advocatura, não foi

realizado para este cenóbio, mas fruto de uma encomenda da Santa Casa da

Misericórdia de Aveiro para o seu templo e posteriormente foram ambos transferidos

para o actual espaço sagrado394. Porém, a fonte manuscrita por nós citada faz aquela

indicação em 1733395, o que leva a crer que, seguindo a proposta que o retábulo deu o

nome à capela, aquele instrumento cénico já faria parte do espólio dos frades nessa

época. Já tivemos ocasião de apresentar um excerto da nossa transcrição de um

documento que compulsámos datado do século XVII, afirmando: “...ena cap: de S

Hiacinto q esta cituada neste mostrº de S dos a baixo da capella da Vizitação q o d

Abbade em sua uida fez...”396. Este documento, do qual acima apenas se transcreveu

uma pequena passagem, demonstra que a Confraria dos Clérigos da então Vila de

Aveiro da Igreja de São Miguel ficariam responsáveis pela fábrica da capela, tendo a

dita confraria confirmado e assinado contrato com este mosteiro a 6 de Novembro de

1606397, mas na documentação não existe qualquer referência ao retábulo, o que não

impede que ele já estivesse construído naquele espaço, pois somente a capela foi

instituída pelo Abade de Ribeirão, podendo o retábulo ter sido encomenda da exclusiva

responsabilidade dos frades. Desconhecemos se à data da construção da capela ou em

1606398 (ano em que a Confraria dos Clérigos da então Vila de Aveiro da Igreja de São

393 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Diversas Receitas. III/1ª D/15/2/29. fl.16 v.

Doc. VII, em apêndice. 394 Cfr. esta ideia em NEVES, Amaro – Dois retábulos maneirista na Sé de Aveiro... O mesmo autor volta

a firmar esta ideia em A Misericórdia de Aveiro nos séculos XVI e XVII... pp. 84-94 e 94-110,

respectivamente para cada retábulo. 395 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de Diversas Receitas. III/1ª D/15/2/29. fl.16 v.

Doc. VII, em apêndice. 396 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de lembrança de missas. III/1ª D/15/2/2. fl..

262. Doc. VIII, em apêndice. 397 A.U.C. – Convento de São Domingos de Aveiro. Livro de lembrança de missas. III/1ª D/15/2/2. fl..

262. Doc. VIII, em apêndice. 398 Conferir nota de rodapé anterior.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Miguel assumiu contratualmente a responsabilidade da capela) a invocação seria da

Visitação ou Senhora da Visitação, mas, mesmo sugerindo a ideia que o retábulo não foi

executado originalmente para esta igreja, temos a certeza que quando coligiram o Livro

de Lembrança de Missas, no século XVII, com referências a datas dos primeiros anos

desta centúria, a advocatura já era aquela, o que nos leva a pensar que o supracitado

retábulo pétreo renascentista já existiria. Se assim não fosse porque motivo teria a

capela aquela invocação antes de receber o retábulo? Coincidindo, posteriormente, com

a transferência deste objecto de culto da Santa Casa da Misericórdia399?

Estamos mesmo em crer, e consequentemente em desacordo com Amaro Neves,

que aquele instrumento cénico foi desenhado para esta capela porque a sua traça

demonstra uma renascença bastante avançada e desenvolta, já “desclassicizada”, talvez

ainda com algumas filiações à segunda fase de João de Ruão, na qual alguns

historiadores já vêem prenúncios maneiristas, podendo, mesmo, ter sido executado por

ajudantes e/ou seguidores seus que se mantiveram activos na região centro, alguns da

mesma nacionalidade do mestre, tais como Jacques Bucher ou Jacques Loquim, entre

muitos outros400. Não esqueçamos que o seu próprio filho, Jerónimo de Ruão, o tracista

da capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos, entre muitas outras obras, já trabalhou numa

nova estética apesar de nas suas primeiras construções, como a acima exemplificada,

ainda não demonstrar o fulgor e a irreverência mutiladora do academismo classicista

que acabou por empreender numa das suas mais importantes obras: a Capela-mor da

Igreja da Luz de Carnide, encomenda da Infanta D. Maria, em 1575, para seu panteão

fúnebre, na qual se identificam já as lições de Sebastiano Sérlio.

Por outro lado, a Visitação era uma prática comum e obrigatória entre os frades

pregadores, não só do Vigário Geral da Província aos seus mosteiros, mas também dos

frades à comunidade em geral e às pessoas em particular, daí o paralelismo estabelecido

entre a representação divinizada daquele tema Mariano e a sua forma de prédica. Não

esqueçamos também que a temática da Visitação está inclusa nos quinze Mistérios de

399 NEVES, Amaro – A Misericórdia de Aveiro nos séculos XVI e XVII... pp. 85-87. Nestas páginas o

autor explicita a sua opinião acerca da justificação da transferência desta peça para o convento

dominicano, mas não consegue, por falta de documentação, apontar uma data. Todavia, parece, segundo

as palavras do próprio autor, que esta transferência não se terá realizado antes do início do segundo

quartel do século XVII. 400 DIAS, Pedro – “A presença de artistas franceses no Portugal de quinhentos”. in Mundo da Arte. n.º 15.

Coimbra. Epartur. Setembro de 1983. pp. 3-20.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Nossa Senhora do Rosário e este culto foi instituído, ou melhor, criado pelos próprios

dominicanos, havendo uma capela ou um altar dedicado àquela Senhora em todos os

templos da ordem. A representação iconográfica do sagrado encontro entre Santa Isabel

e a Virgem está muitas vezes ligada a capelas destinadas ao culto daquela Imagem

Mariana, o que acontece precisamente neste convento, pois num caixotão do tecto da

Capela de Nossa Senhora do Rosário existe uma tela com o tema da Visitação401. Para

além destes motivos outro nos despertou a curiosidade: a representação de um cão no

retábulo. Este animal para além significar tradicionalmente, desde o final da época

medieval até aos nossos dias, a fidelidade está intimamente ligado aos dominicanos (do

latim domini + canis, ou seja, Cães do Senhor, referindo-se “...aqueles que protegem a

Casa pela voz ou são os arautos da palavra de Deus”402), surgindo representado algumas

vezes junto de São Domingos segurando na boca um feixe de fogo. Esta representação

surge, igualmente, junto da ombreira da entrada da capela do Senhor da Coluna,

também designada por Sala da Capítulo Novo no claustro do vizinho Mosteiro de Jesus

em Aveiro, hoje Museu Nacional de Santa Joana, que era ocupado por freiras

dominicanas.

Esta representação do cão parece ser bastante comum em várias obras

dominicanas. No Mosteiro de Vila Real, junto ao átrio de acesso à igreja (do lado

esquerdo de quem entra), sob a entrada que dava passagem para o resto das

401 Relativamente a esta pintura e às restantes quinze telas do tecto e às representações pictóricas das

paredes da capela de Nossa Senhora do Rosário trataremos em pormenor no subcapítulo “A pintura como

complemento da talha”. 402 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANTE, Alain – s.v. “Cão”. Dicionário dos símbolos... p. 155. Como

se pode concluir nesta entrada (pp. 152-155) o cão teve, desde tempos ancestrais, a conotação de guarda

do além e também guia daqueles, ou apenas das almas, que tinham falecido mostrando-lhes o caminho a

seguir, isto é, o cão apresenta de imediato um símbolo psicopompo. Em muitas comunidades estava

associado à criação/descoberta do fogo, fogo este que, por seu turno, estava ligado ao fogo celeste, ao

fogo que ilumina a vida, ao fogo do espírito iluminado. Esta ideia de acompanhamento na vida e na

morte, demonstrativo do caracter de fidelidade do canino, levou a que na Idade Média se recuperassem os

valores associados à colaboração, vigilância e fidelidade, começando a ser representado aos pés do

defunto nos túmulos, representação que se manteve durante o Renascimento (SIMARRO, Alfonso

Serrano e CHENEL, Álvaro Pascual – s.v. “Perro”. Diccionario de simbolos... p. 235). Perante esta

evolução do conceito simbólico do cão é natural a reapropriação desta antiga imagética pelos Pregadores,

pois os propósitos pelos quais São Domingos criou uma nova ordem religiosa, os Guardas do Senhor,

estavam de acordo com o imaginário simbólico daquele animal transportando o feixe de fogo: Deus é

caminho, verdade e luz.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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dependências conventuais, encontramos a representação do cão com um feixe na boca,

mas este na extremidade tem um novelo: não é o tradicional feixe de fogo que costuma

transportar, principalmente quando está ao lado de São Domingos. De qualquer forma é

muito curioso o elemento que o animal canino segura na boca. Será alguma

representação ainda ligada ao esoterismo medieval? Aquele novelo faz-nos lembrar a

Esfera Armilar, a qual tem alguma similitude com o Tosão de Ouro, nomeadamente na

ligação à procura do conhecimento, apesar de a primeira ser “...um instrumento

científico utilizado para cálculos astronómicos que remonta à antiguidade...”403 e o

segundo buscar também a sabedoria, mas esta mais intima da política. A fundação do

convento transmontano precedeu em poucos anos o casamento de Filipe, O Bom, duque

da Borgonha com Isabel, filha do nosso D. João I, o qual nesse mesmo dia fundou a

Ordem do Tosão de Ouro. Terá havido nesta representação zoomórfica dominicana

vilarealense alguma influência desta nova demanda do conhecimento e daí a

representação do novelo em vez do feixe de fogo? Será difícil decifrar, mas é bem

verdade que esta era uma época de crise social e mental, levando muita população pelos

caminhos esotéricos e alquímicos404. No Mosteiro vimaranense dominicano também nos

deparamos com a representação do cão, mas agora sem a problemática imagética e

iconográfica que o seu congénere de Trás-os-Montes levanta.

Todavia, no nosso edifício a representação do cão também surge com um grande

à-vontade: vemo-la de imediato na própria capela da Visitação. Na parede direita de

quem entra encontramos a lápide que atribui a capela a Manuel Gonçalves, Abade de

Ribeirão405 e sobre esta está representado o símbolo dominicano num escudo ovalado

enquadrado numa outra placa pétrea que é rematado por um curto entablamento e sobre

este assenta uma outra cartela circular que abriga um cão apoiado somente nas patas

traseiras, erguendo-se para suportar com as patas dianteiras e com a boca o famigerado

feixe. A representação do cão não se limita à Capela da Visitação porque na que lhe fica

403 LOUÇÃO, Paulo Alexandre – Portugal: Terra de mistérios. Lisboa. Ésquilo. 2001. p. 119. 404 Não nos cabe aqui estar a realizar a análise daquela representação, nem da sua ligação entre a Esfera

Armilar e o Tosão de Ouro com preceitos herméticos, esotéricos e alquímicos. De qualquer forma para

uma melhor compreensão da importância daqueles campos na mentalidade da época aconselhamos a

leitura de LOUÇÃO, Paulo Alexandre – Portugal: Terra de mistérios... pp. 119-121 e pp. 123-130,

correspondendo respectivamente aos capítulos dedicados à Esfera Armilar e ao Tosão de Ouro. 405 Consultar a transcrição da lápide que está na sub-capítulo dedicado à Capela da Visitação, no capítulo

“Das alterações renascentistas à persistência maneirista” neste mesmo trabalho.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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contígua, a Capela de Nossa Senhora dos Prazeres, deparamo-nos novamente com

aquela imagem inserida num conjunto heráldico, o qual se encontrava na frontaria do

convento: a heráldica da ordem trabalhada sobre um escudo circular que se destaca da

placa rectangular que está sob aquela. O escudo é suportado pelo dorso de um cão que,

com uma expressão arreigada e resoluta, guarda na boca um feixe de fogo.

Curiosamente a posição do corpo e a forma como a cabeça do animal roda para a sua

retaguarda é exactamente a mesma do cão supra descrito do Mosteiro de Vila Real.

Quanto ao retábulo especificamente, enquanto elemento artístico e obra de produto

cultural, ele é um belo exemplar da escultura lítica da escola de Coimbra, utilizando

como material a pedra de Ançã, que se vinha a desenvolver naquela região desde os

tempos iniciais do gótico, bem patente na obra de Mestre Pêro, ainda antes de se elevar

como nome mais sonante da época medieval Diogo Pires, O Moço, e que foi

perdurando até ao final do maneirismo e de toda a obra de Tomé Velho406 e seus

seguidores, pois “entre meados do século XIII e o início do século XVII, Coimbra foi o

principal centro português de produção de escultura...”407. Sendo bem representativo da

produção quinhentista, mormente a sua datação ser de 1559, segundo a inscrição no

remate deste instrumento religioso, este retábulo apresenta uma distinta qualidade

própria de destacados mestre de pedraria e escultóricos. Pela sua composição atrevemo-

nos a afirmar que temos a nítida sensação de estarmos a afastar-nos dos preceitos

clássicos e académicos dos pressupostos humanistas e a sentir os prenúncios, até já bem

assimilados, dos ventos do maneirismo anti-clássico e anti-académico, ainda que

incipiente em muitas regiões do nosso país. O conjunto, que assenta num corpo que

serve de base totalmente ascética, no qual se denota ter sofrido alterações, pois devia,

pelos vestígios, conter qualquer representação na sua face principal, isto é, na zona do

frontal, é composto basicamente por dois grandes corpos: o inferior transmitindo-nos a

sensação de horizontalidade que se contrapõe ao superior, o qual ostenta uma certa

verticalidade. Além disto, temos a representação da cena principal: a Visitação de

406 Sobre este construtor, escultor e imaginário consultar DIAS, Pedro – “A oficina de Tomé Velho,

construtor e escultor do maneirismo coimbrão”. in Oficinas regionais – Actas do VI Simpósio Luso-

Espanhol de História da Arte. Coordenação de CRAVEIRO, Maria de Lurdes e RODRIGUES, Dalila.

Tomar. Centro de Estudos de Arte e Arqueologia do Instituto Politécnico de Tomar. 1996. pp. 15-62. 407 DIAS, Pedro – A escultura de Coimbra. Do gótico ao maneirismo... p. 15. Nas páginas seguintes o

autor esclarece os motivos que levaram à formação e à importância adquirida por esta escola regional no

panorama escultórico português.

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Virgem Maria à sua prima Santa Isabel que é enquadrada por um cenário arquitectónico,

mas este em vez de ser escultórico, ou seja, uma arquitectura miniaturada, como

Chanterenne e Ruão e outros escultores da renascença nos tinham habituados, o cenário

é perspectivado com diversas linhas de fuga que se vão entrecruzando de forma bastante

vincada, como meio de conferir num pequeno espaço uma imagem urbanística e

arquitectónica bastante mais ampla do que é na realidade: um espaço representado,

recriado, fundamentalmente ilusório. Por outro lado, verifica-se claramente uma

desproporção entre a representação do cenário e as personagens que figuram na cena,

além destas, apesar de serem somente seis, estarem dispostas de maneira a preencherem

o espaço, não de forma equitativa, mas conseguindo transmitir a ideia de uma multidão

que rodeia as duas figuras principais. Ora, a estratégia compositiva aqui empregue é a

mesma que os pintores maneiristas, nacionais e estrangeiros, principalmente os

espanhóis e os do Norte da Europa, aplicavam nas suas composições pictóricas: temos a

mesma estratégia compositiva e representativa, apenas se alterando o processo e o

material, mas obtendo um resultado semelhante e de grande qualidade técnica –

compositiva e perspectivada.

O corpo principal, no qual se desenrola a cena que intitula a peça, é delimitado em

cada ilharga por um par de colunas coríntias de fuste liso. Entre cada coluna

encontramos um trabalho de dependurados, mas confrontamo-nos com alguma alteração

em relação aos típicos do renascimento, pois as flores representadas decaem

inversamente à sua natureza e a disposição dos diferentes elementos não apresenta o

equilíbrio clássico. Aqueles elementos de sustentação abrem o “pano da boca” à cena

mística da Visitação, observando-se Santa Isabel ajoelhando-se humildemente e de

braço estendido repousando a sua mão direita sobre o ventre de Maria que se encontra

provida da graça da gravidez do Salvador. Por seu turno, a Santa Mãe do Messias

reconforta a prima, igualmente grávida408, carinhosamente, depositando irmamente a

408 Segundo os Sagrados Textos Santa Isabel estaria grávida aquando do encontro com a Virgem, mas

nesta representação não é visível esse estado, tal como a natal protuberância de Maria também é muito

ténue. Talvez esteja relacionado com as novas normas saídas de Trento que levaram à representação

divinizada de Nossa Senhora em variados temas marianos e que, por outro lado, retiraram importância,

sendo mesmo proibidas, à representação de Nossa Senhora da Expectação ou Nossa Senhora do Ó, como

popularmente era conhecida, e a Nossa Senhora do Leite. Para uma mais esclarecida leitura sobre as

novas representações após Trento e as proibições consultar GONÇALVES, Flávio – História da arte.

Iconografia e crítica. Lisboa. Imprensa Nacional Casa da Moeda. 1990. pp. 115-118.

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sua mão direita no ombro daquela, transmitindo-lhe, assim, de forma táctil, e tal-

qualmente com o olhar, a mensagem para que ela não se curve à sua presença e se erga.

Curiosamente, a mão direita de cada santa figura acarinha a prima e nas medievais

representações de Nossa Senhora da Expectação era a mesma mão que acariciava o seu

próprio ventre pejado, representação proibida pela Contra-Reforma Católica, mas “na

Idade Média em que a sensibilidade era mais do tipo popular, de menores preconceitos,

esta representação naturalista não se considerava chocante”409.

À esquerda deste encontro observa, com um olhar de extrema ternura o esposo

barbado de Santa Isabel, Zacarias, que na sua mão direita segura o seu chapéu e na mão

oposta guarda o seu livro sagrado. Junto dele sobressalta da porta de uma casa

perspectivada uma figura feminina que, pela expressão facial, se parece surpreender e

resplandecer comedidamente com o encanto do encontro sagrado. À direita do conjunto

primordial ressaltam outras duas figuras que levantam alguma discordância: Amaro

Neves afirma serem duas figuras femininas410, enquanto Rangel de Quadros assevera

que São José é uma das personagens aqui representadas411. Na realidade, concordamos

mais com o primeiro autor porque nos parecem ser duas mulheres, quer pela

representação facial – a delicadeza, a sensualidade feminil, a fragilidade do olhar e do

sorriso –, quer pelos próprios trajes.

Todavia, se a representação espacial não permite levantar muitas dúvidas quanto à

concepção estilística a que obedeceu, embrenhada do maneirismo norte e centro

europeu anti-académico e anti-clássico, em consonância com a mentalidade e cultura

anti-papal e de não reconhecimento da autoridade do Vaticano, a representação

figurativa já se afasta daqueles preceitos e liga-se muito mais à ideologia e iconologia

da representação das santas figuras desenvolvidas nos países do sul da Europa, ou seja,

já “...pode sugerir aplicação de regras tridentinas do decorum”412. As figuras deste

retábulo serenas e equilibradas na disposição espacial e nas atitudes e comedidas nas

suas expressões, demonstrando uma ligação forte à representação e ao talhe escultórico

409 GONÇALVES, António Nogueira – “A Senhora do Ó ou da Expectação”. in Mundo da Arte. n.º 2.

Coimbra. Epartur. Janeiro de 1982. pp. 11. Neste artigo, páginas 10-13, o autor contribui para a

explicação desta representação e da sua invocação que acabou por se manter, ou ser adaptada, apesar de a

imagem ter praticamente desaparecido a partir dos meados do século XVI. 410 NEVES, Amaro – A Misericórdia de Aveiro nos séculos XVI e XVII... pp. 88-89. 411 QUADROS, José Rangel de – Aveiro Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 37. 412 NEVES, Amaro – A Misericórdia de Aveiro nos séculos XVI e XVII... p. 89.

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em pedra dos países que sofreram influências do renascimento e maneirismo italianos,

não deixam de enunciar uma “...expressiva força interior, de movimento e vida...”413.

Estas duas linhas, presentes nas figuras desta peça, distintivas da escultura quinhentista

coimbrã, nomeadamente da segunda metade, que parecem digladiar-se e disputar um

lugar de primazia, coexistiram em simultâneo num ambiente de claro enriquecimento

artístico e de interacção emocional visivelmente emanada das diversas obras que saíram

de mestres ligados a esta região. Como se sabe, “se houve momento da nossa História

em que a escultura de Coimbra teve uma predominância quase absoluta, esse foi o das

últimas décadas do século XV”414, predominância essa que se continuou a sentir durante

os decénios da centúria ulterior, apesar de os grandes escultores da renascença terem

obrado em muitas zonas do nosso país, mas como ponto de coincidência artística

sorteou-lhes a Cidade do Mondego. E os diversos artistas que por aquela urbe passaram

foram deixando marcas da sua criação que acabaram por se combinar na produção

escultórica da última metade do século XVI, daí se verificarem em simultâneo

características mais serenas, comedidas, controladas, equilibradas e outras mais

expressivas, fortes, emotivas, possantes, como se combinássemos uma expressão de

emotiva e possante languidez na representação de uma posição torsa ou de um

serpentinato.

As duas mulheres já referidas, à direita do conjunto central, demonstram essa vida

viva, estabelecendo-se uma forte cumplicidade entre ambas. A posição torsa da figura

mais próxima de Maria contrasta com a linha conferida pelo avançar do pé esquerdo

destas duas mulheres, transmitindo a sensação de caminhar, de dinamismo. Aquela

figura apoia-se ainda num cajado de viajante que se opõe à linha dada pela posição do

seu braço direito que se alonga em direcção à sua acompanhante. Por sua vez, a outra

mulher, trajada de forma semelhante e que segura na sua mão esquerda um chapéu e um

livro, atenta no sagrado encontro, mas não deixa de prestar atenção à sua companheira,

atenção essa bem evidenciada pela vivacidade e sagacidade do seu olhar. Quer o cajado,

quer o chapéu, elementos destas duas figuras, são atributos ligados aos peregrinos. De

realçar que as posições dos braços e das mãos destas figuras são claramente distintas e

denota-se uma minúcia e preocupação do artífice na execução dos dedos, sendo estes 413 BORGES, Nelson Correia – “Alguns aspectos da segunda época de João de Ruão”. in A introdução da

arte da renascença na Península Ibérica. Actas do simpósio internacional do IV centenário da morte de

João de Ruão. Coimbra. Epartur. 1981. p. 24. 414 DIAS, Pedro – A escultura de Coimbra. Do gótico ao maneirismo... p. 61

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pequenos elementos anatómicas que apelam o observador a dirigir o seu olhar para os

atributos que aquelas figuras transportam. Isto pressupõe não só uma intencionalidade,

como também uma precisão e um espírito criativo já bem ligado ao maneirismo, ainda

que imbuído das ideias tridentinas.

No lado oposto encontramos, então, Zacarias ladeado por uma outra mulher, como

anteriormente fizemos questão de descrever: esta santa figura masculina apresenta um

ligeiro contraposto, ou melhor, uma suave linha em S percorre toda a sua configuração,

conferido especialmente pela flexão dos joelhos e pela jucunda inclinação do pescoço.

Poderemos designar esta composição formal de sereno serpentinato, sem aquelas linhas

angulosas e contrastantes que em diversas zonas da Europa o maneirismo foi fecundo,

especialmente nas regiões onde as normas de Trento não tiveram grande aceitação e a

reforma protestante tinha angariado imensos apoiantes. O olhar de Zacarias,

intencionalmente bem dirigido ao grupo central, expressa uma vivacidade e ternura pelo

encontro, sentimentos esses que patenteiam-se novamente na sua mão direita, tamanha é

a delicadeza que os seus dedos parecem nutrir ao segurarem, com grande suavidade, os

livros sagrados. As características verificadas na execução das mãos das duas peregrinas

mulheres, no lado contrário, encontram-se também nas mãos deste santo, tal como não

deixa de se sentir uma forte emotividade e uma estrénua presença na representação

desta figura. A figura feminina ao seu lado mais não representa que a admiração e

surpresa de uma personagem local do acerto das santas primas, servindo de equilíbrio à

composição formal e contrastando com a cumplicidade que liga as outras cinco figuras.

Ela permite ainda olvidar um pouco a arquitectura perspectivada, mas é uma figura mais

herética e também mais estática, apesar de os seus panejamentos permitirem

transparecer um ligeiro avançar do seu pé esquerdo, querendo demonstrar o movimento

de aportar àquele momento exacto.

Estas figuras demonstram que o escultor dominava o conhecimento da

representação anatómica, retinha uma equilibrada composição de conjunto, contactava

com as novas modelações dos corpos humanos, mas, por outro lado, demonstram

também uma falta de liberdade individual, uma sobriedade no trajar e um apego bem

vincado na tipologia e iconografia épocal, o que facilmente poderá ser explicado pelas

ordens já emanadas de algumas sessões do Concílio de Trento, e que viriam a ser

corroboradas e engrifadas na última que decorreu a 3 e 4 de Dezembro de1563, que

proibia toda a expressão de lascívia, concupiscência e especiosidade dissoluta, indícios

de temáticas hereges e desonestas, composições desordenadas ou complicadas e

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“...assuntos considerados imorais, profanos ou sujeitos a confusões heréticas”415.

O retábulo como remate apresenta um outro corpo de dimensões mais reduzidas

que, como também já referenciei anteriormente, transmite uma ideia de horizontalidade

em contraste com o que está sob ele. Este corpo possui três nichos: o lateral da direita

abriga a imagem de São João Evangelista, encontrando-se a ladear o próprio nicho a

águia, seu principal atributo; no nicho lateral da esquerda está São João Baptista, tendo

ao seu lado o cordeiro. Estes animais/atributos que identificam os santos estão um

pouco desligados dos seus patronos, ganhando uma liberdade individual e uma

personalidade quase própria. Curiosamente o cordeiro apresenta algumas semelhanças

com o famigerado cão que se situa na composição inferior junto de Santa Isabel. As

figuras dos santos homónimos apresentam uma desenvolvida qualidade, bem patente na

liberdade de movimentos expressas pelas figuras, na própria modelação dos corpos, na

expressividade e emotividade que se solta das expressões faciais e que cumpliciam com

as mãos. São João Evangelista, figura bastante elegante, compõe-se numa serena linha

em S bem modelada, com trajes distintos e demonstrativos de um precioso trabalho,

denotando-se na sua composição formal uma grande proximidade com as figuras

femininas da Visitação. São João Baptista, por seu turno, é uma figura um pouco menos

ondulante, mais direita, mas com um tratamento anatómico de grande minúcia e beleza,

mais liberta na sua expressividade e dominada por uma carga emotiva mais possante.

Cada nicho lateral é escorado por pilastras da ordem compósita, tendo

dependurados a preencher os seus fustes. O nicho central, alteado, parece ter sido um

pouco adulterado, não só pela sua forma vazada e quase ascética, mas mais

precisamente no remate, desconhecendo-se que imagem estaria alia inicialmente

guardada. Hoje em dia encontra-se uma imagem em madeira estofada de Nossa Senhora

com o Menino, mas no tempo das descrições de Rangel de Quadros estaria a imagem,

também em madeira estofada, de São Pedro, que segundo aquele autor era oriunda da

extinta Igreja de São Miguel416. Tem lógica a presença da estátua de São Pedro, após a

demolição da igreja de origem, porque os administradores desta capela eram os Clérigos

da vila de Aveiro da Igreja de São Miguel que tinham por orago o Primeiro Papa, e por

isso as insígnias papais que se encontram no centro da abóbada da capela, mas também

415 GONÇALVES, Flávio – História da arte. Iconografia e crítica... p. 112. 416 QUADROS, José Rangel de – Aveiro Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 38. Esta imagem ainda

hoje se encontra nesta capela apoiada numa alta peanha.

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poderia acatar uma imagem de Nossa Senhora, ou outro qualquer orago.

Cada nicho é rematado por uma espécie de frontão ondulado desmaterializado

com variados motivos florais e enrolamentos. No remate do nicho central encontra-se

inscrita a data de 1559 que deve tratar-se da datação da feitura desta peça, estando esta

data, na nossa opinião, adequada ao trabalho estético. Nogueira Gonçalves atribui a sua

execução para os últimos vinte anos de quinhentos, não atendendo à data inscrita na

própria peça417, mas parece-nos que se a aquela foi gravada deveria marcar o ano da

execução do retábulo, ou pelo menos estar ligada a algum trabalho aqui realizado.

Amaro Neves levanta a hipótese que esta data corresponde apenas ao trabalho do corpo

superior e que este foi retirado de um outro retábulo e acrescentado e apensado aqui

aquando da transferência do corpo central da Santa Casa da Misericórdia, estando de

acordo com Nogueira Gonçalves quanto à data proposta por este autor, mas somente

para o corpo principal deste instrumento sacro-cénico418. Porém, existem filiações entre

a figura de São João Evangelista e as figuras femininas da Visitação, não só na

modelação, como na composição formal e nos panejamentos. Evidentemente que

verificam-se diferenças, mas estas são mais notórias na figura de São João Baptista: se

este tivesse uma execução semelhante ao seu homónimo provavelmente as afinidades

com o corpo inferior seriam bem mais visíveis. Mas poderemos sempre questionar a

autoria. Serão estas duas esculturas de outro artífice diferente do da Visitação? Ou

apenas a imagem de São João Evangelista proveio de mãos diferentes? Lembremo-nos

que as obras tinham uma execução de caracter oficinal, atribuindo-se ao seu mestre.

Não esqueçamos, também, que durante o maneirismo encontramos portais, muito

semelhantes a estruturas retabulares, compostos por dois corpos bem diferentes, como é

o caso do portal da Igreja de Santa Maria de Óbidos e o mesmo acontecendo com

retábulos.

No lado direito do retábulo, dissimulado na decoração de uma pequena cartela que

está sob as colunas do corpo central, encontram-se as letras FD: talvez, como tem sido

defendido por diversos autores, corresponda às iniciais do seu autor, Francisco Danzilho

ou Francisco Dias. Estes escultores tiveram alguma actividade na região de Coimbra,

mas executaram obras em zonas bem distantes daquela urbe, nomeadamente na região

de Lisboa, sabendo-se, também que o primeiro já era activo em Portugal, pois a sua

417 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 110. 418 NEVES, Amaro – A Misericórdia de Aveiro nos séculos XVI e XVII... pp. 93-94

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origem parece ser biscainha, em 1508 e o segundo já trabalhava no Mosteiro dos

Jerónimos em 1517419. Se a obra foi realmente executada, ou traçada, por um destes

mestres já teria sido no final das suas vidas. Denota-se uma modelação experiente e uma

iconografia hodierna bem actualizada e desenvolta, mas aquelas letras poderão referir-se

a outro artífice, pois ainda muitos artistas estão por estudar, bem como muitas obras,

ligados à escola de escultura coimbrã.

Independentemente da autoria da peça e da problemática da datação este

instrumento religioso foi executado com um propósito muito claro: apelar para a ligação

entre membros bastante próximos, como os laços familiares, ainda que fisicamente

estivessem afastadas, e a proximidade de valores cristãos de duas personagens que se

encontravam grávidas, numa verdadeira alusão à solidariedade e à presença constante,

física e espiritual, à expansão e ao cumprimento dos preceitos religiosos e à

sensibilidade dos crentes. Para proporcionar um sentido mais apelativo e de forma a

obter um efeito mais profundo nos observadores esta obra, como muitas desta época

estilística, era policromada e dourada como permitem muitos vestígios ainda hoje

presentes nos diversos espaços: os dourados de muitos elementos decorativos, as

carnações da pele e o variado e vivo cromatismo dos panejamentos em combinação com

as tonalidades do cenário. Esta composição de enorme cenografismo em combinação

com o trabalho cromático exerceria uma forte presença nos renovados espíritos do

cristianismo católico reformado.

Retábulo de Nossa Senhora da Misericórdia

o que concerne ao outro retábulo pétreo que hoje se encontra na actual

Sé Catedralícia de Aveiro deparamo-nos com uma problemática

exactamente semelhante à anteriormente descrita. Todavia, neste caso

é-nos de muito maior dificuldade rebater toda a argumentação explicitada e a hipótese

levantada pelo ilustre historiador aveirense Amaro Neves. Isto deve-se a esta peça não

apresentar elementos simbólicos e/ou iconográficos que possam demonstrar o

encomendante e o local de origem para o qual foi executado e, por outro lado,

419 PAMPLONA, Fernando – Dicionário de pintores e escultores portugueses ou que trabalharam em

Portugal. Barcelos. Livraria Civilização Editora. 1991. 3ª edição. pp. 190-191 e 199. As primeiras

referem-se a Francisco Danzilho e a outra a Francisco Dias.

N

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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reconhecemos também que a fundamentação já apresentada é muito plausível e bem

consistente, denotando-se uma exímia observação e análise histórica, artística e

estilística.

De qualquer forma pensamos que esta obra poderá também ter sido realizada para

este cenóbio, tal como a anteriormente analisada. Se os factores e motivos que levam

Amaro Neves a defender que a construção desta peça se destinava à Santa Casa da

Misericórdia420 são muito próximos e similares dos apresentados para o retábulo da

Visitação, então os mesmos factores e argumentação por nós apresentados para rebater a

posição daquele historiador relativamente a este último retábulo citado poder-se-ão

aplicar igualmente no retábulo de Nossa Senhora da Misericórdia. É verdade que a

Senhora do Manto ou Nossa Senhora da Misericórdia é a iconografia por excelência das

Irmandades das Misericórdias e que na região de Coimbra, da qual Aveiro sofria fortes

influências e à qual estava adstrita ao seu bispado, todas as Misericórdias possuíam de

forma bem explícita a apresentação simbólica da Senhora do Manto, mas a sua

representação não foi exclusiva destas comunidades beneméritas: sabe-se que foram

realizadas obras escultóricas com esta cena para diversos templos que ainda hoje as

possuem e expõem. É o caso da Igreja Matriz de Cantanhede que numa capela lateral

ostenta um retábulo pétreo esculpido com a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia

atribuído a João de Ruão421 ou o retábulo da Senhora do Manto que se encontra na

capela funerária de D. Jorge de Menezes em Varziela422, pertencente também ao

concelho de Cantanhede. Muitas comunidades religiosas seculares tinham capelas

consagradas a Nossa Senhora da Misericórdia e as respectivas irmandades ou confrarias

aí sediadas, tendo esta imagem como sua padroeira, o que demonstra que a encomenda

daquela representação poderia ser efectuada por qualquer comunidade, secular ou

regular. Por seu turno, a invocação principal, pois foi a mais duradoura e definitiva, do

cenóbio dominicano aveirense masculino foi Mosteiro, ou Convento423, de Nossa

420 Conferir esta ideia em NEVES, Amaro – Dois retábulos maneirista na Sé de Aveiro... O mesmo autor

volta a firmar esta ideia em A Misericórdia de Aveiro nos séculos XVI e XVII... pp. 94-110. 421 DIAS, Pedro e FERREIRA, João Victor da Silva – Cantanhede. A terra e as suas gentes. Cantanhede.

Edição da Câmara Municipal de Cantanhede. 1983. pp. 45-46. 422 DIAS, Pedro e FERREIRA, João Victor da Silva – Cantanhede. A terra e... pp. 54-56. 423 As duas denominações surgem nos documentos coetâneos do mosteiro por nós compulsados.

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Senhora da Misericórdia424, o que não nos traduz qualquer estranheza em a comunidade

religiosa desejar possuir e encomendar uma obra com a iconografia da sua invocação.

Era bastante natural e prática habitual o retábulo principal do templo exibir no seu trono

a santa imagem do seu arrimo e quando a exoração não era dedicada a uma só figura

individualizada mas a um conjunto ou a uma cena religiosa e/ou escatológica essa

sagrada homonímia era prestada numa capela lateral, ou colateral, que abrigava a

representação imagética exortatória da comunidade. E na realidade o retábulo-mor

contratado ao entalhador e escultor portuense Roque Nunes, a 25 de Junho de 1660425,

explicitava claramente que o dito móvel sagrado teria “... dois paineis de meo Relevo a

saber hum de nossa Sr.ª da Mizericordia e outro da vinda do esp.to Santo...”426,

demonstrando que os frades contemplavam não só a invocação do cenóbio, como

também revelavam a própria imagem e iconografia. Por outro lado, Rangel de Quadros

afirma que a tribuna do antigo retábulo “nos dias, em que não havia festividades, era

coberta com um quadro representando Nossa Senhora da Mizericordia, que era o orago

do templo”427, seguindo as informações bem anteriores de que asseveravam que a

tribuna seria coberta por um quadro de Nossa Senhora da Misericórdia428. Desta forma

percebe-se claramente que os religiosos preocupavam-se com a imagem, iconografia,

exegese e demonstração da sua protectora, sendo compreensível e perfeitamente

aceitável que este retábulo lateral tenha sido executado para o cenóbio dominicano, não

obstante as modificações que foi sofrendo ao longo dos tempos mormente após a

extinção das ordens religiosas que votou o espólio destes frades, à imagem do que se

passou pelo país, ao desabrigo.

424 Relativamente à invocação e denominação deste mosteiro consultar o sub-capítulo “A fundação e o

século XV” no capítulo «O mosteiro: da fundação ao alvor do rococó» deste mesmo trabalho. 425 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. pp. 339-345.

Relativamente a este desaparecido retábulo já o abordámos na parte “Obras desaparecidas” no capítulo

«O fulgor da talha». 426 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 342. 427 QUADROS, José Rangel de – Aveiro Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 18. Nas suas descrições o

autor não explicita a qual retábulo-mor se refere porque os frades contrataram por duas vezes a

construção de um retábulo principal, um em 1660 e outro em 1641, como podemos constatar em

BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. pp. 339-345 e Vol. III.

pp. 388-392 respectivamente. Acerca destas obras desenvolvemos algumas ideias no sub-capítulo “Obras

desaparecidas” do capítulo «O fulgor da talha». 428 CATARINA, Frei Lucas de Santa – Quarta parte da História de São Domingos. Vol. II... p. 604.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Quanto ao retábulo do ponto de vista artístico e estilístico é ideia unânime e

facilmente observável que se trata de uma obra saída de uma oficina mondegana e que a

pintura, em tríptico, é de fraca qualidade, ou melhor, de labor regional. Também parece

ser consensual que este aparente conjunto unitário é a conjugação de três peças distintas

que acabaram por ser “encaixadas”: o retábulo pétreo, a pintura das três tábuas e o

conjunto escultórico da Deposição no túmulo. Actualmente todo o conexo de peças

encontra-se na capela com a mesma invocação e o retábulo pétreo de um único andar

abriga as três tábuas policromas que provavelmente não foram executadas para serem

enquadradas neste retábulo em pedra429. Sobre a mesa encontra-se o conjunto

escultórico representando a Deposição no túmulo com todas as figuras comuns nesta

cena. A argúcia e o espírito analítico de Amaro Neves levaram aquele historiador a

propor que esta Deposição no túmulo não pertencesse a este conjunto, o que a dispensa

de uma observação mais atenta permite realmente concluir a veracidade desta hipótese,

mas que poderia ter pertencido ao retábulo da Visitação430.

A conjugação de peças diferentes dificulta os observadores mais atentos munidos

de um espírito de análise mais consistente a dimanarem as suas ilações porque deparam-

se com trabalhos diferenciados, não somente de campos artísticos, mas, também, de

qualidade e até, talvez, de algum distanciamento temporal nas suas execuções.

Conquanto, e como temos vindo a tentar seguir em outros móveis sacros de funções

semelhantes, faremos uma descrição das peças de forma coerente de acordo com a sua

exibição corrente, isto é, desde a sua base até ao cume, tendo a preocupação de analisar

cada peça individualmente.

429 Relativamente a esta pintura ela não será tratada e analisada neste capítulo, mas sim no seguinte: “A

pintura como complemento da talha”. 430 NEVES, Amaro – A Misericórdia de Aveiro nos séculos XVI e XVII... pp. 96-97. Este autor demonstra

que as figuras daquele conjunto escultórico não poderiam ter sido executadas para o retábulo de Nossa

Senhora da Misericórdia porque o seu tamanho não o permite e o espaço da mesa e do frontal não seria

suficiente para albergar todo o conjunto. Toda a sensação transmitida hoje que aquele é o seu lugar de

origem é fruto de remodelações que a parte inferior do retábulo sofreu de forma a conferir-lhe mais altura

e introduzindo-lhe um basamento para receber e enquadrar melhor as figuras sagradas da Deposição.

Porém, e ainda segundo o mesmo autor, aquela mística representação poderia ter sido executada para o

retábulo da Visitação porque o espaço do frontal teria o espaço e a altura correcto para abarcar as figuras.

De forma a firmar as suas afirmações o autor apresenta as medidas dos frontais e das diversas figuras

como elemento comparativo e justificativo da sua proposta, o que nos parece viável e plausível apesar de

a sua comprovação se tornar difícil.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Como já aludimos nas linhas acima a nova base que serve de mesa suporta uma

Deposição no túmulo com figuras em meio corpo “...de execução inteiramente

decadente”431. Neste conjunto sobressai a figura de Cristo jazente, denotando uma

rigidez na sua concepção formal; o cendal está muito preso ao corpo, as mãos pouco

naturais cruzam-se sobre o ventre e as pernas, um pouco desproporcionadas em relação

ao resto do corpo, encontram-se levemente flectidas rematadas pela dureza dos pés. Por

seu turno, o rosto afilado marcadamente dramático pela dureza das sevícias infligidas

pelos soldados romanos apresenta já uma melancólica dor de alívio, dor essa que

cumplicia com a rasa e dura barba delineada nos perfis e nos lábios. O cabelo longo cai

de forma pesada sobre os ombros, tendo o mesmo tratamento da barba. Cristo está

deitado numa humilde base que simboliza o túmulo (quase numa alegoria da humildade

na vida e na morte) que acaba por contrastar com a almofada que apoia a cabeça do

Salvador. De referir que em qualquer tumulado a almofada recebe sempre um

tratamento mais aprimorado, demonstrando a importância da cabeça enquanto camarim

que secreta a mente, pois a mente e o espírito andam associados e são estes dois

elementos que permitem a salvação do ser humano em detrimento do corpo que vai

decrepitando após a morte e o fim da vida mundana. Em volta do Messias dispõem-se

mais setes figuras: próximo dos pés está Nicodemos, ao seu lado duas companheiras da

Virgem, seguindo-se São João Evangelista que ampara a Santa Mãe de Cristo; ao lado

destes encontramos Santa Maria Madalena e, por último, próximo da cabeça de

Emanuel, José de Arimateia segura nas suas mãos a coroa de espinhos que retirou da

sofrida figura. A disposição das figuras está correcta, quer iconograficamente, quer no

lugar que ocupam em volta da principal personagem432.

As figuras de Nicodemos e de José de Arimateia são bastante próximas na sua

concepção formal e técnica, verificando-se apenas uma ligeira diferença na colocação

431 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111. 432 Apesar deste conjunto ter sofrido diversas alterações e deslocações – “...por que este conjuncto, depois

de ter sido transportado em diversas épocas para os baixos dos tres ultimos altares, de que tenho fallado

[capela da Visitação, capela de Nossa Senhora da Conceição e capela de Nossa Senhora dos Prazeres],

ficou finalmente em 1872, aqui, onde sempre esteve até 1835” (QUADROS, José Rangel de – Aveiro.

Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 44) – cremos que esta foi sempre a sua disposição desde a origem

porque é esta a correcta disposição iconográfica do conjunto, sendo respeitada por fé e devoção ao longo

dos anos.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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das mãos: o primeiro parece suportar um cendal433, mas a figura de Cristo está

envolvida num e o segundo, como já referimos, segura a coroa de espinhos, esta

envolvida num pano. Ambos são abundantemente barbados e os rostos são muito

adstringentes, mais do que expressar desalento e uma forte dor, constata-se que as

expressões faciais são fruto de uma falta de sensibilidade técnica para exprimir os

sentimentos de delíquio e acerbidade que deveria naquela hora inundar os espíritos

daquelas figuras. Os trajes são igualmente idênticos, tal como os chapéus também são

iguais e, uns e outros, denotam falta de leveza e ligeireza no seu tratamento. Esta

enorme semelhança poderia ser justificada pelo motivo do autor querer colocar estas

duas personagens num mesmo plano, na medida em que ambos desempenharam um

papel muito semelhante na Descida da Cruz e no acompanhamento de Cristo até à

sepultura, mas parece-nos mais consistente a ideia que o artesão carecia de qualidade

suficiente para conceber uma maior individualidade e liberdade a cada um deles.

As duas companheiras da Virgem também denotam falta de originalidade, pois

quer os rostos, quer as vestiduras, principalmente os véus, possuem um tratamento

precisamente idêntico. Mais uma vez a diferença efectua-se pela colocação das mãos: a

que está mais próxima de Nicodemos tem, eventualmente, pois as figuras são em meio

corpo, a mão e o braço direito descaído e na mão esquerda segura um pano com o qual

aconchega a sua zona parietal e a outra figura coloca as mãos em posição de oração. De

qualquer forma, apesar de se constatar pelo tratamento das faces uma execução

arcaizante e de índole regional, denota-se uma feminilidade mais marcada nestas duas

figuras e uma delicadeza, ainda que subtil, que não se verifica nas personagens

masculinas acima descritas.

De seguida deparamo-nos com as figuras de São João Evangelista que reconforta

Maria. Esta apresenta uma similitude ao nível formal e de composição estética muito

ligada às suas acompanhantes: o mesmo tratamento do rosto com uma expressão

constrangida mas serena e um labor do traje e do véu em tudo idêntico. Porém, as suas

mãos, fortemente unidas com os dedos bem entrecruzados, ao contrário das outras

figuras que estão em posição de oração que apenas unem as palmas das mãos,

transmitem uma divina e piedosa força interna. A figura de São João é a mais

movimentada de todas, sendo a menos hirsuta, pois apresenta uma leve inclinação do

433 A figura de Nicodemos está mutilada numa das mãos, mas essa lacuna não impede de constatar a sua

posição.

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corpo e situa-se num plano ligeiramente anterior ao da Virgem. A figura inclina-se

sobre o ombro direito da Santa Matriz e o seu braço estende-se de forma a permitir que

a sua mão repouse no braço da sua protegida434. Apesar de não se observar na escultura

temos a sensação pela posição do ombro esquerdo de São João que este envolve o seu

braço em roda da confrangida Mãe. Por outro lado, verifica-se que o tratamento do

cabelo da figura masculina é diferenciado dos restantes, apresentando uma cabeleira de

pequenos caracóis caída sobre os ombros, mas denotando uma falta de liberdade e

naturalidade. Quanto à sua expressão facial é muito próxima da das restantes figuras

femininas que temos vindo a analisar.

Ao lado destas duas personagens encontramos Santa Maria Madalena: é uma

figura mais jovem que as restantes e portadora de uma expressão facial mais serena de

dor conformada. Os seus braços descaídos comungam de uma certa carga emocional de

meditação que subtilmente campeia da sua face enquanto reverencia o rosto de Cristo.

Por seu turno, parece-nos que os seus panejamentos transmitem ligeiramente mais

leveza que os das restantes figuras. Contudo, do ponto de vista iconográfico, pareceu-

nos estranho esta imagem não ter em seus braços o sudário de Cristo.

Cremos, como tem sido defendido pelos diversos historiadores que analisaram

esta obra, que se trata de uma produção oficinal mondegana, não só pela emprego da

pedra de Ança que serviu ao talhe, como também pela serenidade, pelo comedimento do

Mistério, pelo equilíbrio da composição formal e por repetir uma representação muito

comum que se desenvolveu na vasta região de Coimbra. Não evidencia uma qualidade

técnica que os grandes escultores demonstraram, nem a liberdade de composição, nem a

clara expressividade aliada a uma individualização de cada figura, mas denota um

conhecimento das regras da composição, conhecimento da equipendência formal e da

expressão e agnição da iconografia da cena representada. Contudo, numa análise

profundamente atenta, parece-nos, porém fruto da própria produção oficinal, que,

possivelmente, as figuras não terão saído todas da mesma mão devido às diferenças,

ainda que ligeiras, supra enunciadas.

Quanto ao retábulo em calcário oriundo da zona de Ança não restam dúvidas da

sua criação numa oficina coimbrã, mas se nós optámos por separar as suas partes que

constituem hoje todo o conjunto, Rangel de Quadros, o nosso mais “próximo

434 Convém relembrar que São João Evangelista prometeu a Cristo tomar conta de sua mãe até aos seus

últimos dias, promessa que viria a concretizar.

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colaborador”, referiu-se a esta obra no seu todo, aludindo ora à parte em pedra, ora à

pintura e afirmando que “o retabulo e as pinturas vieram de Italia. Assim me foi

affirmado por pessoas antigas e que o ouviram dizer aos conventaes d’esta casa”435.

Actualmente esta ideia é refutada por todos aqueles que se debruçaram minimamente

sobre este acervo, pois as características presentes não levantam quaisquer confutações

sobre a sua produção mesteiral, afirmando Nogueira Gonçalves que é este “...retábulo

de pedra dos fins do século XVI ou princípios do seguinte, da renascença coimbrã

decadente”436.

Este móvel cénico pétreo é constituído pelos três tradicionais elementos: frontal,

corpo e remate. O frontal que hoje vemos é fruto das diversas intervenções que foi

sofrendo ao longo dos tempos, todavia a inclusão de material idêntico ao original sem

qualquer tentativa de imitar e embustear o observador permite a este, de imediato,

constatar que não se trata do natural437. Conquanto, nas ilhargas foram utilizados dois

antigos plintos que poderão ser os de origem, mas a sua ornamentação estética não é

suficiente para permitir chegar a uma conclusão concreta, pois eles integram-se na

mesma corrente estilística do retábulo, ou seja, o maneirismo. Os plintos apresentam na

sua face principal um losango em relevo.

O corpo do retábulo é dividido em três partes por dois delicados colunelos, mais

do tipo colunas-balaústres438, que contrastam com as pilastras compósitas das ilhargas.

O fuste das colunas é animado por dependurados de grotescos de feição maneirista,

alternando os elementos florais com cartelas e máscaras. A predela, da qual se eleva o

corpo retabular, é também animada por enrolamentos vegetalistas que terminam em

joviais sereias tenentes que suportam uma cartela, na qual hoje já nada se consegue ler

devido ao desgaste, mais por culpa da incúria humana que do tempo, mas na passagem

do século XIX para o XX “...depois de algum esforço podia lêr-se: ERA DE

MDLXVI”439. Das ilhargas da predela sobressaem dois quadrados plintos que estão sob

as pilastras do corpo já descritas. Estes plintos possuem na sua face uma conjugação de

435 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 43. 436 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111. 437 A este tipo de intervenção em conservação e restauro dá-se o nome de restauro diferenciado, sendo

uma prática aceita pelas organizações internacionais de conservação e restauro do património. 438 Demos esta designação àqueles colunelos porque eles são divididos no seu terço inferior: este

assemelha-se a uma estreita coluna e o elemento que o sobrepõe é um balaústre. 439 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... pp. 42-43.

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vários elementos de cartelas formando uma única, muito semelhante às usadas na

arquitectura de cariz maneirista. A completar o corpo salienta-se o entablamento

praticamente definido pela arquitrave de friso liso. Apresenta uma ligeira movimentação

conferida pelas próprias pilastras e duas mísulas que estão na continuação das colunas-

balaústres.

O remate é formado por diversos elementos retirados da arquitectura, à imagem de

todo o conjunto que apresenta uma clara concepção arquitectónica, erguendo-se nas

extremidades dois fogaréus bolbosos na continuação das pilastras, simulando ser o

remate daquelas. Ao centro, no seguimento do mesmo espaço marcado pelos colunelos

do corpo, elevam-se duas baixas pilastras dóricas de fuste decorado com dependurados

um pouco duros e sem capitel bem definido que enquadram a figura de Pai Eterno, o

qual levanta a mão direita abençoando o Mundo e a esquerda suporta um globo. A seu

lado dois simpáticos anjos, de panejamentos livres e pragueados soltos, substituindo as

comuns sanefas, afastam serenamente os cortinados que descaem de um largo

baldaquino que abriga a principal figura. Os fogaréus bolbosos ligam-se às pilastras

centrais por duas aletas de forma a concertar uma maior união destes elementos. Este

elemento central do remate apresenta algumas filiações com um mesmo elemento do

remate do retábulo em pedra da Capela dos Menezes – capela colateral da Epístola – na

Igreja Matriz de Cantanhede, obra de João de Ruão440, tendo em conta as devidas

proporções, pois a peça dominicana é de dimensões bem menores, e não apresentando a

qualidade técnica e principalmente intelectual, nem a liberdade e criatividade artística

que marcam a obra marialvina e nesta sob o baldaquino, em vez da académica

iconografia de Pai Eterno, descobre-se a alegoria à Sagrada Eucaristia.

Aquela data que Rangel de Quadros transcreveu da cartela da predela – ERA DE

MDLXVI – está em completo desacordo com a proposta lançada para a execução do

retábulo por Nogueira Gonçalves, fins do século XVI ou inícios do seguinte, e este

autor afirma ainda que “foi pintada num dos rótulos a data de 1631”441. Como hoje já

não é possível constatar qualquer uma daquelas datas verifica-se que há um

distanciamento temporal, mas mantém-se a dúvida a que se refeririam, pois os dois

autores quando a elas aludem não apontam a sua inscrição no mesmo lugar, contudo

ambas esculpidas no retábulo, como tal não se trata de um equívoco de leitura de

440 DIAS, Pedro e FERREIRA, João Victor da Silva – Cantanhede. A terra e... pp. 45-46. 441 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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nenhum deles. Será a primeira ligada à execução e a segunda referente a alguma

modificação?

Apesar desta incógnita acerca daquelas datas o retábulo é uma produção oficinal

que acompanhava a gramática, a iconografia e a imagética desenvolvida em Coimbra,

que não se afastaria muito da restante produção nacional. Talvez careça de uma certa

capacidade criativa e de liberdade artística, mas os dependurados de grotescos, as

sereias, o trabalho dos anjos, as cartelas, a conjugação de diversos elementos e a própria

estrutura arquitectónica do retábulo transmitem a compreensão e apreensão de uma

nova fase de produção, como tal julgamos ser exagerado classificar de decadente esta

obra. É certo que não apresenta uma qualidade técnica que os mestres do renascimento

coimbrão habituaram os seus clientes a presentear, mas, por outro lado, teremos de ter

em conta que os estudos sobre o maneirismo só nos últimos anos têm sido relevados e

por isso a adjectivação de Nogueira Gonçalves é fortemente influenciada pela beleza e

academismo do classicismo, não havendo ainda, ao tempo, uma clara definição de

fronteiras e distinção entre renascimento e maneirismo: este, então, mais não era

considerado que a fase decadente do primeiro.

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A PINTURA COMO COMPLEMENTO DA TALHA

esde os tempos mais recuados do período de hominização que o ser

humano, ainda com capacidades físicas e intelectuais bem díspares das

nossas, sentiu necessidade de comunicar com os seus congéneres. Esta

necessidade de comunicação é inerente a todas as espécies animais, mas o Homem,

fruto do desenvolvimento do seu entendimento e das suas apetências motoras, procurou

expressar uma forma de contacto que ultrapassasse os sons alcalinos. À medida que o

seu grupo de relação e interacção social ia crescendo a comunicação sonora

demonstrou-se insuficiente e procurou transmitir as suas ideias, cada vez mais

complexas, de uma forma visual: assim se obtêm as gravuras e as pinturas rupestres do

paleolítico, alguns conjuntos dos quais bem enigmáticos e complexos para permitir

descobrir o seu conhecimento intrínseco. Ao contrário do que muitas vezes se pensa este

tipo de comunicação – a arte rupestre – não se extinguiu com o postremo do paleolítico,

perdurando no mesolítico, neolítico e calcolítico até aos tempos bem mais próximos da

nossa actualidade. Ousaríamos afirmar que a arte rupestre sofreu uma evolução e que

aquela é a ancestral antecessora da pintura parietal, não querendo deslembrar a moderna

técnica do grafitti que começa a ser encarada como uma expressão de cultura, um

produto cultural, e forma de comunicação visual.

Não é nossa intenção perfazer aqui uma síntese da história da pintura, quer em

sentido restrito e mais conservador, como a pintura de cavalete, quer em sentido mais

lato e abrangente, integrando aqui todo o tipo de representação visual, policroma ou

monocromática, pois ”é mesmo provável que a pintura tenha coincidido com o início da

civilização, numa forma muito elementar, aplicada por exemplo ao corpo humano,

como tatuagem profilática ou sinal de uma categoria social, ou, mais simplesmente,

como ornamento, substituído mais tarde pelas jóias”442. A verdade é que a representação

visual foi usada como sinal, como símbolos e desta forma a pintura passou,

442 BENOIST, Luc – História da pintura. Lisboa. Publicações Europa-América. s/d. 2ª edição. p. 13.

D

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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principalmente a partir da Revolução Urbana e com mais enfoque no Antigo Egipto,

pelo menos no respeitante à história da civilização ocidental, a ser uma limiar

representação gráfica de um básico sistema fonético. Assim, desde então, a pintura

passou a estar ao serviço da conjugação de uma ligação fonético-gráfica que tendeu,

paulatinamente, para a sua simplificação de forma a possibilitar a compreensão e

transmissão mais célere e acessível da informação e da expressão das ideias, ou seja,

uma rudimentar forma de escrita.

No entanto, a representação policroma de conjuntos e espaços mais diversificados

em constitutiva interacção e correlação, isto é, uma variedade de cenas, paisagísticas

e/ou figurativas, em vez da linear associação gráfica de símbolos, foi ganhando cada vez

mais dilação, principalmente como ornamentação de grandes áreas, contudo,

substituindo também, mais do que apresentar simples ideias, a descrição de desenvoltos

textos, porque “...en tanto las imágenes concitam los otros cuatro sentidos a través de la

vista, la lectura provoca una abstraccion incluso del proprio sentido visual, tendiendo a

hacer que los ojos traspasen la materia de las letras para buscar un más alla

significado...”443. À medida que estas duas variantes se vão afastando o estudo da

pintura, ou dos diferentes campos da pintura, passa a ser mais específico e localizado,

com campos mais restritos e delimitados e se a ornamentação de papiros, rolos de seda,

iluminuras, vitrais, mosaicos ou azulejos, entre outros, ganha um preciosismo cada vez

mais minucioso e erudito, a pintura ornamental, ou de glorificação444, seja ela de

443 TOMÁS, Facundo – Escrito, pintado (Dialéctica entre escritura e imágenes en la conformación del

pensamiento europeo). Valencia. Visor. 1998. p. 25. 444 Designamos por pintura de glorificação toda aquela, de cavalete ou parietal, que tem a definida função

de glorificar uma pessoa, um conjunto de pessoas, um momento e/ou um acontecimento, seja ele de

índole política, como aclamar o chefe político, ou uma acção perpetrada por este, ou mesmo pelo seu

povo, no presente ou no passado, ou de cariz social, como afamar a importância social do encomendante,

ou ainda de alcaravia religiosa, como nimbar determinada passagem sagrada. Evidentemente que este tipo

de pintura também acabou por desempenhar funções decorativas e o seu peso durante muitos séculos foi

excessivamente presente nas comunidades (e talvez ainda se mantenha), mas quisemos destrinçar daquela

pintura que apenas serviu para animar diversas áreas, como a representação de espaços ilusionistas da

natureza ou arquitectónicos, ou meras cenas quotidianas e imaginárias sem uma relação directa com as

funções beatificantes acima enunciadas. Também poderíamos referenciar, ainda, a pintura que foi

utilizada como crítica, política ou social, ou seja, um campo pictórico de contra-corrente, se nos é

permitido utilizar esta expressão, mas esta só pôde ser verdadeiramente revelada a partir das novas ideias

liberais e de liberdade.

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cavalete ou a fresco, vai alcançando uma importância cultural, consequente da sua

aplicabilidade social, política e religiosa.

Porém, apesar desta separação cada vez mais evidente e emergente, à medida que

a representação fonético-gráfica apurava a simplificar-se de modo a transformar-se em

lineares signos gráficos, a pintura foi ganhando um campo visual, e consequentemente

uma leitura, mais complexo do ponto de vista técnico, pois “a obra é directamente

dependente dos materiais e dos meios utilizados para a execução, do ofício,

comprometido por sua vez com a inovação duma técnica de criação...”445, mas também

mais enriquecedora e enriquecida e igualmente mais complexa do ponto de vista da

mensagem, da simbologia, do significado porque “...los significados prácticamente

nunca son unívocos, lo que unas sociedades interpretan en un sentido, adquire el

contrario para otras”446. Todavia, a pintura, normalmente numa contextura definida

pelas suas inter-relações, nunca deixou de ser um veículo especial de transmissão de

determinada mensagem, uma forma de exegese, um meio de catequizar, apenas

concretizando esta função porque a quem se dirigia, os observadores, comungavam da

mesma linguagem, conheciam os símbolos e os seus respectivos significados, porquanto

a pintura apesar de “...estabelecer, à sombra duma nomenclatura comum, um certo

número de relações cheio de interesse entre as duas ordens distintas da linguagem e da

forma”447, a recepção adequada da mensagem torna-se primordial para conceder vida à

própria obra porque, de um modo muito sintético, “talvez uma das definições de obra de

arte possa ser a da coerência de valores entre formas e conteúdos”448.

O tríptico de Nossa Senhora da Misericórdia

obra pictórica que será comentada e analisada nas próximas linhas

contém alguma problemática devido ao desconhecimento sobre o seu

local de origem e mesmo quanto à sua execução: actualmente ela

445 RUDEL, Jean – Técnica da pintura. Lisboa. Publicações Europa-América. s/d. 2ª edição. p. 142. 446 SIMARRO, Alfonso Serrano e CHENEL, Álvaro Pascual – Diccionario de simbolos... p. 3. 447 RUDEL, Jean – Técnica da pintura... p. 144. 448 DUARTE, Marco Daniel – O vitral da Ressurreição da Igreja Paroquial de São José de Coimbra.

Exegese iconográfica da última obra de Augusto Nunes Pereira. Coimbra. Gráfica de Coimbra. 2004. p.

158.

A

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integra o conjunto retabular em pedra com a mesma denominação que, por seu turno, se

encontra abrigado na capela que também tomou a mesma invocação449. No entanto a

ignorância acerca desta pintura a óleo sobre madeira de castanho alastra-se ao seu

executante e à datação das pinceladas, mas parece que as três tábuas que compõem a

iconografia da Senhora do Manto não foram executadas para integrar o corpo do

retábulo em pedra, tendo sido uma adaptação realizada após o levantamento do móvel

lítico e da própria pintura. Temos até aqui afirmado que a pintura é constituída por três

tábuas devido à ilusão criada pelas colunas-balaustres que dividem a iconografia

principal das outras duas tábuas laterais, mas, na verdade, a imagem central é

constituída por três tábuas unidas pelos sistemas de encaixe de macho e fêmea no

sentido longitudinal e por rabos de andorinhas450.

Esta pintura, hoje restaurada, atrai o olhar do observador devido ao colorido

utilizado na origem e agora avivado e ao brilho oblatado pelo verniz de protecção

aplicado aquando da recuperação intervencionada. No painel principal ressalta Nossa

Senhora com o Menino sentado no seu braço esquerdo, enquanto a mão direita,

denotando alguma rigidez, brinca com o pé direito. O Menino, em posição torça

contrária à de sua Santa Mãe, agarrando com a mão esquerda o globo terrestre coroado

pela Santa Cruz e com a mão direita oferecendo um Rosário a um dos anjos, parece-nos

um pouco desproporcional em relação à Senhora: pequeno em tamanho, é certo, mas a

sua anatomia é bastante desenvolta. Porém, as mãos da Senhora, de dedos esguios e 449 Sobre a capela e o retábulo já procedemos às suas análises nos subcapítulos próprios: “Das alterações

renascentistas à persistência maneirista”, integrado no capítulo “A evolução arquitectónica” e no capítulo

“A escultura pétrea”, respectivamente para cada obra. Neste último discutimos a questão do local de

origem para o qual foi executado conjunto, que tomou o nome da pintura, e consequentemente a

problemática da invocação. 450 NEVES, Amaro – A Misericórdia de Aveiro nos séculos XVI e XVII... p. 100 na nota de rodapé n.º 212

transcreveu o texto da ficha de restauro desta pintura do Instituto Nacional de Conservação e Restauro, ao

tempo denominado Instituto José de Figueiredo, que passamos a citar: “Processo PO – 188, Restauro

39/83, de 1987. Pintura a óleo sobre madeira. Estado material: a pintura é composta de três tábuas que

vinham separadas, a camada cromática encontra-se empolada em várias zonas e com bastantes faltas – a

pintura sofreu um restauro antigo. Suporte – foi feita a união das juntas, colocação de bocados de

madeira da mesma essência nas faltas existentes no reverso da pintura, foram também colocados

segmentos de madeira nos cantos a preencher a fêmea e a parede desta no lado do reverso e ainda o

preenchimento de três aberturas transversais e nos vazios dos «rabos de andorinha» que existia, usando-se

cola M-30. Este trabalho foi finalizado com quatro réguas com chapuzes por segmentos e estabilizado no

sentido transversal”.

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longos, destacam-se em relação ao corpo de seu filho. Ambas as figuras são fortemente

aureoladas com um estrénuo brilho solar que se fixa por trás das suas cabeças. Ao lado

das duas santas figuras dois anjos estáticos no espaço vazio, alados por um par de asas

desenhados com uma perspectiva incorrecta451, suportam e abrem o duro manto que cai

dos ombros da Senhora de desenho muito rígido, académico e de traço vincadamente

delineado. Abrigados pelo manto em tons pastel encontram-se diversas figuras que

representam os vários estratos sociais, situando-se em primeiro plano as mais altas

dignidades do poder terrestre e celestial; em segundo plano vislumbram-se diversas

figuras pertencentes ao baixo clero regular, freiras e frades, e secular; e por último umas

ou outras representações dão-nos a percepção da presença dos elementos do povo452.

O corpo da Senhora que se mantém fixa num ponto acima da imaginária linha

terrestre, isto é, do plano inferior horizontal, em vez de se elevar ou transmitir a

sensação de pairar, apresenta um desenho anatómico incorrecto, bem visível na

demarcação da cintura efectuada pelo vestido deferindo a ideia de umas pernas bastante

altas, em contraposição ao abdómen e ao peito, mas sem qualquer delineação sob o

vestido. Ficamos com a impressão que o desenho da Virgem obedeceu em

conformidade ao espaço que teria de ocupar em menoscabo de uma correcção

anatómica. Os ombros e o peito são encobertos pelo manto, mas podemos observar que

o pescoço é completamente disforme. A face ligeiramente inclinada e desenhada a três

quartos é arredondada mas carece de uma eficiente técnica ligada ao retrato ou à

representação facial: é uma face demasiado calma, de olhos racionalmente delineados,

com um olhar que ultrapassa o horizonte, mas ausente de emoções ou de algum pequeno

ímpeto emocional. Esta característica do rosto da Senhora é comum também ao Menino,

aos anjos e às figuras que se encontram sob o manto, todavia nas personagens terrestres

verificam-se algumas diferenças nas expressões conferidas apenas pelos desenhos dos 451 Consideramos que o desenho das asas dos anjos tem uma perspectiva incorrecta porque as suas linhas

não demonstram qualquer profundidade de espaço de forma a provocar a sensação de

tridimensionalidade, mais se assemelhando à ancestral representação da “lei da frontalidade”. Esta

dificuldade é bem patente na horizontalidade das linhas das asas e ambas, em cada anjo individualmente,

foram desenhadas para o lado esquerdo do observador. Desta forma temos a sensação de estar perante as

pinturas trecentistas e de inícios de quatrocentos, dependendo das regiões europeias, nas quais os pintores

procuravam obter a perspectiva. 452 Por outro lado, neste grupo de pessoas já foi mais fácil ao pintor obter alguma profundidade porque

não teve que lidar com a execução de traços, mas sim com a representação de manchas ou preenchimento

de linhas, bastando representar cada qual atrás de um outro.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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lábios, no entanto as linhas dos rostos, dos narizes e dos olhos continuam a ser idênticas

entre todos. Os longos cabelos castanhos da Virgem são apenas uma presa mancha ao

longo do manto sobre os ombros.

Se as dificuldades técnicas ao nível da execução anatómica, quer corporal, quer

facial, são notórias, por outro lado percebe-se alguma facilidade no desenho das

ornamentações de alguns trajes. O vestida da Senhora é salpicado por algumas tulipas

douradas que combinam com a orla também dourada, mas estas flores são colocadas de

forma muito racional, com um rigor quase aritmético, sendo todas exactamente iguais,

transmitindo a sensação de decalque a partir de um molde. A capa do Papa também

apresenta uma ornamentação simples e repetitiva baseada em desenhos geométricos

circulares, verificando-se que houve dois moldes diferentes neste caso. Estes desenhos

pintados a branco combinam, por seu turno, com a orla igualmente decorada com

losangos brancos que se vão sobrepondo. Por outro lado, conjuntamente se verifica que

os panejamentos são duros, como são os casos do Vestido e do manto da Virgem e das

capas do Papa e do Rei, constatando-se que o manto da Senhora, designadamente nas

dobras, é demasiado artificial e muito preso ao traçado racional e rigoroso das linhas.

Todavia, há um correcto desenho dos pragueados, que se observa nas capas e no manto

e no vestido, especialmente no cendal que se desenrola nos braços da Santa Mãe: uma

delineação meticulosa, um traço rigoroso e racional e umas linhas vincadas, no entanto

estes pragueados obedecem a uma concepção artificial, estando imbuídos de uma

presente rigidez e carecendo de falta de liberdade e de leveza natural.

Conquanto, denota-se que o pintor teve a preocupação de tentar destacar os

elementos sociais representados sob o Santo Manto: os trajes identificativos das duas

personagens em primeiro plano, os representantes máximos do poder terrestre e

celestial, foram concebidos sob um traçado correcto socialmente e as suas capas

destacam-se pelo colorido, pela vibração cromática e pela argúcia do desenho, o mesmo

sucedendo com as respectivas coroas. O desenho do cabelo permite-nos observar alguns

frades, de um lado e do outro, os véus permitem-nos descobrir freiras, também de

ambos os lados, mas as coroas são aquelas que nos possibilitam identificar as figuras

principais: além do já referido Santo Padre, à direita da Virgem, vemo-lo logo

acompanhado de um Cardeal e de um Arcebispo, ou Bispo, pois a cor da mitra é a

mesma para ambos os dignatários. Procedendo o também já referenciado Rei, com a sua

armadura de um cinzento metálico de forte intensidade cromática e que contrasta com o

suave alaranjado de alguma acidez da capa, surge um Príncipe coroado que, da mesma

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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forma, também usa uma capa em tonalidades de verde escuro (talvez para contrastar

com a cor da capa do rei). De realçar que as figuras mais importantes, as quais já

ressalvámos, apresentam-se todas barbadas, mas de desenho marcadamente diferente,

isto é, das mais importantes para os seus súbditos a barba vai sendo menos farta: o Papa

e o Rei possuem uma forte barba, o primeiro branca e o segundo grisalha, o Príncipe e o

Cardeal usam bigode e pêra e o Arcebispo somente bigode453. Mesmo nestes

pormenores entremostra-se que o pintor obtemperou a sua obra a preceitos de ordem

social e moral com os seus símbolos bem evidenciados.

Nas duas tábuas laterais encontramos representados, à esquerda do observador,

quatro santos e na oposta outras tantas santas. Tanto Rangel de Quadros454, como

Nogueira Gonçalves455 afiançaram que se tratava de santos dominicanos, mas a exímia

observação e o forte conhecimento iconográfico de João Gonçalves Gaspar456 vieram

desmentir aquelas afirmações e rectificar a verdade, como tal temos: São Domingos de

Gusmão, Santo Agostinho de Hipona, São João da Cruz e São Francisco de Assis; e do

lado oposto encontramos: Santa Catarina de Sena, Santa Escolástica, Santa Teresa de

Jesus e Santa Clara de Assis.

Nestes retratos verificamos algumas diferenças em relação à pintura principal: as

representações faciais são um pouco mais naturais e com mais realismo, inclusive a

concepção anatómica, denotam um olhar mais vivo, talvez mesmo dirigido para um

ponto, ou pensamento, apesar de exterior ao espaço representado, e denunciam um

interior incorpóreo mais acalentado por uma suavidade emocional fruto, quiçá, de um

enriquecimento espiritual. Não deixámos de verificar que a ornamentação da capa de

Santo Agostinho de Hipona, aqui representado iconograficamente como bispo457, é

453 Admitindo aqui um excesso de ousadia da nossa parte na tentativa de descortinar pequenos

pormenores, achámos alguma curiosidade na diferença da cor das barbas. Talvez o branco da barba do

Papa represente não só a pureza e o espírito imaculado, mas também a experiência e longevidade do

Cristianismo consignado na Terra na figura de Sua Santidade, enquanto o grisalho do Rei (cinzento e

branco) queira representar a mistura do seguimento na via Cristã com as acções políticas muitas vezes

profanadoras das ideias de Cristo. O Arcebispo também apresenta um bigode muito claro enquanto o

Príncipe tem a sua barba castanha. 454 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 42. 455 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111. 456 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e Arte... p. 14. 457 Por vezes este Doutor da Igreja Latina é representado como monge agostinho com o cinto de couro e a

mitra aos pés.

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exactamente igual à da do Papa. Porém, os panejamentos e os respectivos pragueados

dos oitos canonizados apresentam-se de forma mais solta, mais livre e mais natural. O

enquadramento espacial destes retratos é idêntico ao do painel principal, explicitando

melhor, não existe qualquer representação de espaço, de profundidade, nesta pintura,

pois o fundo é todo anulado pela vasta mancha negra de forma a arrostar e

consequentemente a salientar as imagens apresentadas.

Todas as questões anteriormente observadas levantam imensas dúvidas porque

por vezes parece-nos que estamos perante uma pintura de fraca qualidade pictural –

enorme rigidez das figuras representadas no painel principal, carência de domínio da

técnica de retrato ou da representação facial, falta de liberdade, dureza e artificialidade

nos panejamentos e nos pragueados, dificuldade da elaboração da perspectiva correcta,

nomeadamente nas asas dos anjos, rigidez do traço e academismo das linhas – mas, por

outro lado, temos a sensação, observando somente o conjunto (como na primeira fase de

observação segundo Panofsky), de estar perante uma pintura de qualidade, quer ao nível

iconográfico, quer ao nível do desenho. Talvez por isso Rangel de Quadros tenha

escrito, segundo afirmações que escutou a outras pessoas que, por seu turno, tinham

ouvido aos frades, que a pintura veio de Itália458. Quer isto dizer que os frades

admiravam a qualidade desta composição e por isso a terem associado a uma produção

italiana. Marques Gomes compara esta obra com outras pinturas de Garcia Fernandes

atribuindo-lhe a pintura, atestando desta forma a sua origem de produção a Portugal,

apesar de anotar algumas influências alemãs e flamengas459. Outros autores foram

dando alguma relevância a esta pintura e seguindo a ideia que se tratava de uma

produção nacional sem, contudo, alvitrarem qualquer nome para as mãos executantes.

No entanto, Nogueira Gonçalves, com o seu espírito analítico bastante aguçado, afirma

que “esta pintura ilude; é produto de homem muito inábil, trabalhando sobre modelo

mais antigo, mas revelando a sua época por diversas particularidades”460.

A ilusão criada deve-se ao facto de a iconografia estar bastante correcta, quer a

Nossa Senhora da Misericórdia, quer a representação dos oito santos e santas, mas esta

458 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos. Vol. IV... p. 43. Escusámo-nos a

transcrever aqui novamente a expressão do autor porque já o tínhamos feito aquando analisámos a parte

lítica do retábulo, de forma a não se tornar repetitivo. 459 GOMES, J. A. Marques – “Aveiro”. in A arte e a natureza em Portugal. vol. IV. Porto. Edição de

Emílio Biel e C.ª. 1904. p. 46. 460 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111.

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correcção pode ser facilmente explicada devido ao acompanhamento da realização da

pintura pelo dignatário desta comunidade religiosa e pela clareza da encomenda. Este

tipo de situações ocorreu muitas vezes, nas quais os artistas apesar de possuírem um

bom domínio técnico tinham um acompanhamento constante do encomendante religioso

porque era este que detinha os conhecimentos teológicos e simbólicos para a elaboração

de diversas representações, como é o caso do extremamente alegórico Claustro da

Manga do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, realizado por João de Ruão com a clara

influência cognoscível teológica de Frei Brás de Braga, prior do respectivo mosteiro.

Talvez para isso este pintor tenha recorrido a um modelo anterior, possivelmente do

final do gótico, visível na falta de enquadramento espacial e na concepção do próprio

espaço em fundo negro, nas representações faciais do cardinal painel que se afastam dos

rostos das oitos figuras canonizadas, de qualidade superior, e na forma como solucionou

a brilhante auréola.

Todavia, o pintor não conseguiu demarcar-se da sua época e as diversas

particularidades a que se refere Nogueira Gonçalves deverão ser as mãos da Senhora, do

Menino e até dos anjos, a desproporção anatómica entre as duas divinas figuras e o

desenho do pescoço da Virgem, permitindo transparecer algumas características da

época estilística do maneirismo. As santas foram representadas todas praticamente da

mesma forma, apesar do labor correcto de maior liberdade dos panejamentos e das mãos

ocuparem posições diferentes devido aos seus próprios símbolos iconográficos. Mas a

linha geral de representação é precisamente a mesma, conferindo uma suave curvatura

ao pescoço que acaba por desfazer um ligeiro S típico do maneirismo. Os santos,

também retratados a três quartos obedecem a uma linha estrutural mais vertical, mas a

tipificação dos dedos e das mãos compromete o pintor com características maneiristas.

Estamos assim de acordo com a datação proposta para os “...fins do séc. XVI ou

no começo do imediato”461 e cremos que as mãos que desenharam e policromaram estas

tábuas terão sido de um pintor regional, mas a concepção ideológica e iconográfica terá

sido fruto de um intelectual teólogo.

461 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 111.

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As pinturas da Capela do Santíssimo Sacramento

s pinturas que se encontram na actual Capela do Santíssimo

Sacramento, a primeira a ser levantada das oito que hoje encontramos

neste templo, não representam qualquer cena sagrada, de cariz

eucarístico, mas apenas animam a talha dourada que reveste o tecto e as paredes laterais

deste espaço, sendo aquelas enquadradas por molduras de madeira entalhada. Estas

pinturas não foram executadas pelo mesmo autor da talha, o mestre pedreiro António

Gomes462, nem tão-pouco faziam parte do contrato. Conquanto aquando desse contrato

os religiosos já pensavam em pintar os painéis do tecto, pois indicaram “...fará o dito

mestre o tecto da capela apainelado de esteira, assim como mostra a planta, e terá os

painéis de tábuas grossas tão bem limpas que se possam pintar os quadros sobre

elas...”463 e além daqueles o contrato referenciava “...também os painéis que hão-de

guarnecer as duas paredes da capela, os quais serão quatro, do tamanho que

admitir...”464, esclarecendo adiante que “...não será necessário que os ditos quatro

painéis grandes das paredes sejam capazes de se pintar sobre eles os quadros”465.

Esta passagem do documento demonstra que os frades tinham claras intenções de

mandar pintar os painéis do tecto porque exigiam que as tábuas que os preenchessem

fossem limpas para se poderem pintar, ou seja, bem lisas de forma a que pudessem

receber a camada de preparação466 que antecede a aplicação dos pigmentos. Todavia

ainda não tinham decidido acerca dos das paredes laterais, sendo, talvez, apenas uma

questão de precaução e de hipótese futura. Porém, não saberemos se as intenções

iniciais dos conventuais estariam de acordo com as pinturas realizadas, mas quer

462 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. pp. 138-142. Sobre

a talha desta capela ler neste trabalho o subcapítulo “A talha da Capela do Santíssimo Sacramento”

incluso no capítulo «O fulgor da talha». 463 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. p. 140. 464 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. p. 140. 465 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. p. 140. 466 Esta camada de preparação é realizada à base de carbonato de cálcio em pó branco e muito fino,

comercialmente designado por cré, misturado com cola de coelho, comummente denominado totim,

formando uma mistura pastosa.

A

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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parecer-nos que as pinturas lavradas no tecto estão temporal e estilisticamente de acordo

com as pinturas executadas nos painéis das paredes laterais, ainda que estas possam não

ter sido executadas em simultâneo com as do tecto.

Ao observarmos os painéis do tecto atentamente salta-nos ao olhar o tamanho

deles: existem nove caixotões quadrados todos da mesma dimensão e do lado oposto ao

retábulo, a ligar com os painéis da parede, deparamo-nos com uma fiada de três muito

estreitos caixotões rectangulares. Temos a sensação de ter acontecido uma de duas

situações: ou houve uma intervenção posterior ao assentamento da talha que truncou

estes caixotões; ou o mestre António Gomes não realizou as medidas correctas e

solucionou a questão desta forma. Se fosse este o caso parece-nos que os frades não

aceitariam de bom grado e a própria qualidade do mestre tracista e entalhador não

permitiria tal situação porque os pressupostos correctos na obra seriam a racionalidade,

o ritmo e a simetria. Apesar de os elementos decorativos, pinhas invertidas nascidas de

uma flor, que se encontram nos cruzamentos das molduras não apresentarem indícios de

mutilação ou destroncamento, o que pode levar a crer que foram entalhados tal como o

previsto, não implica que não tenha havido essa intervenção, pois, na realidade, na

viragem de oitocentos para a centúria subsequente o tecto ainda era “...dividido em

douze rectangulos, distribuidos em tres secções...”467. Por seu turno, o contrato também

não nos ilucida quanto ao número de caixotões porque somente afirma que o tecto será

realizado “...assim como mostra a planta...”468 e não indica quantos o constituirão, mas

também não refere nenhuma alteração a realizar quanto ao rascunho apresentado, o que

não aconteceu com o retábulo, para o qual foram propostas modificações469. Porém, a

exigência técnica, o rigor aritmético e a simetria obrigavam que o traçado projectasse os

painéis todos iguais e simétricos. Além disto, julgamos que se os religiosos tiveram

tantas preocupações quanto ao retábulo, também teriam quanto ao tecto e à sua

constituição e não somente com as tábuas para receberem as pinturas. Conquanto, numa

observação mais atenta e mais minuciosa verificamos que todas as uniões de duas

tábuas dispostas e ligadas na perpendicular fazem-se sempre através de juntas em cortes

467 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 24. 468 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. p. 140. 469 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. II. p. 140.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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de meia esquadria470, mas nas uniões, nomeadamente nas extremidades, das tábuas

conchavadas perpendicularmente dos pequenos caixotões isso não acontece: a união é

realizada por esquadria inteira, ou seja, forma-se um ângulo de noventa graus na junção

das duas tábuas. Isto demonstra que houve uma intervenção no tecto que alterou, neste

caso truncou, parte da sua constituição original. Esta intervenção deve ter sido originada

devido à deslocação do retábulo para um pouco mais próximo do arco de entrada da

capela e deu-se muito após a extinção das ordens religiosas enquanto o espólio dos

frades foi sendo votado, por incúria, ao abandono, pois esta capela sofreu diversas

alterações durante os séculos XIX e XX. Como ao tempo das descrições de Rangel de

Quadros ainda os painéis eram todos simétricos deduzimos que esta alteração terá sido

realizada já no século XX, talvez quando a imagem saída da oficina de Teixeira Lopes

foi colocada nesta capela, pois “de 1900 a 1974, a capela ficou reservada ao Senhor dos

Passos, para o efeito ampliada por trás do retábulo com um camarim, onde colocaram a

mencionada imagem”471. Além desta ampliação, que não deve ter sido suficiente, o

retábulo terá sido deslocado e amputado porque hoje no móvel cénico sagrado não se

vislumbra qualquer tribuna profunda típica desta construção e que na origem possuía

segundo induzimos das tão citadas e importantes descrições: “o vão do altar é largo e

sufficientemente elevado e com fundo bastante, para conter um throno de seis degraus

sobre o qual se erguia a imagem de Christo crucificado, em ponto grande e a que se

dava o nome de Senhor Jesus”472.

A talha estaria, então, assente conforme o acordado a oito de Maio de 1703 e de

aqui em diante as pinturas poderiam ser realizadas. A opção escolhida foi uma

composição de enrolamentos de dois padrões diferentes que vão alternando de painel

em painel: os elementos vegetalistas vão-se entrecruzando com os florais e unindo a

putti’s e joviais albarradas. Os primeiros nalgumas vezes são o centro da composição

em volta dos quais se vão desenvolvendo os citados elementos num sereno dinamismo.

Percebe-se uma dinâmica sensorial no conjunto, mas comedida, bem ritmada,

devidamente ordenada, com uma correcta sequência e esse movimento é conferido pelos

enrolamentos vegetalistas e motivos florais bem desenhados e de traço seguro, sendo a

470 O corte de meia esquadria permite realizar a junção de duas tábuas dispostas na perpendicular através

de um ângulo de quarenta e cinco graus para que desta forma as tensões e movimentações exercidas entre

ambas se equilibrem, porém o tipo de encaixe só poderá ser observado pelo tardoz. 471 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e Arte... p. 21. 472 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 24.

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alegria, a frescura e a jovialidade transmitida pela presença das figuras das albarradas,

dos pássaros que descansam nos ramos, pelos festivos meninos e também pelos jovens

centauros que vão brincando entre os ramos e as flores. Para conferir uma alacridade

mais colorida à composição o autor escolheu tonalidades de vermelhos para os

elementos florais, verdes para os vegetalistas, alaranjados, amarelos e castanhos para as

figuras dos putti’s, das albarradas, dos pássaros e dos centauros. Como se pode

constatar a paleta policroma não é muito diversificada, sendo as diferentes cores obtidas

a partir da cor primária mangenta com excepção do verde, contudo o conjunto consegue

alcançar um correcto equilíbrio cromático em plena conjugação com a vibração aurífera

dos elementos entalhados.

A composição é igualmente equilibrada, serena, um pouco monótona devido à

alternância repetida dos padrões das pinturas, disposta racionalmente e denotando um

certo classicismo na conjugação dos diferentes elementos entre si e com o espaço a

preencher. Verifica-se uma minúcia e um refinamento na execução dos elementos

florais e vegetalistas, estes muito naturalistas; sente-se uma vivacidade e alegria nos

putti’s, nos meninos das albarradas e nos centauros que boleiam por alcançar um

elegante contraste entre o naturalismo floral com a criatividade do imaginário

figurativo.

Quanto aos painéis das paredes, actualmente apenas encontramos dois defronte ao

retábulo473, estes apresentam a mesma tipologia compositiva de enrolamentos

vegetalistas e florais, mas sem a presença das figuas (putti’s, albarradas, centauros e

pássaros) e centrando a composição destacam-se elementos iconográficos da Paixão de

Cristo: do lado da Epístola a turquês e o chicote cruzados e do lado do Evangelho os

pregos, ambos circundados por uma linha oval fechada, fazendo lembrar a mandorla ou

amêndoa mística aplicada nos tímpanos dos portais medievais que centravam Cristo 473 Hoje apenas encontramos os dois painéis na parede defronte do retábulo, mas na parede lateral, em

frente ao arco de entrada, ainda se vislumbram vestígios da existência dos outros dois, não só pelas

marcas deixadas na parede como também pelos indícios de mutilação nos elementos em talha que

estabeleciam a ligação nos cunhais entre o retábulo de um lado e entre os outros dois painéis existentes do

outro. Todavia, nos finais do século XIX QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos.

Vol. IV. Aveiro. Compilação fotocopiada por João Gonçalves Gaspar. 1978. pp. 24-25 escrevia: “na

parede, fronteira ao altar, ficam tambem dois grandes quadrados, e dois na que fica á mão direita de quem

olha para o altar e, portanto, defronte do arco da entrada”; e acrescenta ainda: “entre estes dois quadrados

fica uma grande janella, que dá luz abundante ao recinto, e, sob ella fica uma porta...”. A janela já não

existe mas a porta ainda se mantém rasgada na parede.

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Pantocrator. Nesta sequência os outros também deveriam possuir símbolos ligados aos

Últimos Passos do Salvador. A policromia, no entanto, é precisamente idêntica aos

restantes painéis.

Esta tipologia ornamental foi muito comum durante o século XVIII,

desenvolvendo-se a partir dos grotescos maneiristas que lentamente foram ganhando

uma elegância clássica no barroco seiscentista, alcançando o máximo da sua vivacidade

no reinado de D. João V. É um tipo de composição fruto de uma evolução técnica e de

uma erudição crescente em contacto com a imagética dos povos de além-mar, caso das

albarradas, e que no primeiro barroco já se fez sentir em outros suportes como na

pintura parietal, caso da Capela da Morte de São Bernardo no Mosteiro de Santa Maria

em Alcobaça, ou os frescos do tecto da Igreja de Sant’Iago em Évora, os quais parecem

ser atribuídos a Gabriel del Barco474, ou mesmo no campo da azulejaria que também

assimilou esta composição ornamental. Esta decoração manteve-se no barroco joanino,

sendo exemplo o tecto da Capela de São Miguel da Universidade de Coimbra, obra

executada, provavelmente, nas campanhas setecentistas. Na região de Aveiro

encontramos este género de ornamentação na sacristia da Capela de Nossa Senhora da

Penha de França na Vista Alegre, datável, na nossa opinião, da centúria de setecentos.

As pinturas desta capela dominicana, com as características supra citadas, cremos

terem sido executadas num período estilístico de plena maturação barroca setecentista,

não só pela delicadeza dos motivos florais e vegetalistas (e não tanto pela perícia

técnica), mas também pelos elementos figurativos que o autor ousou utilizar

descomprometidamente – putti’s, albarradas, centauros e até os pássaros. Esta aplicação

demonstra que o pintor já se relacionava com esta gramática com bastante liberdade e

manifesta também um certo classicismo típico já do período joanino. Todavia, a

repetição dos padrões e até da disposição das figuras denota alguma falta de

criatividade, percebendo-se que o pintor estaria ainda muito preso a desenhos,

composições e padrões preconcebidos, o que nos leva a pensar que o autor, não

deixando de demonstrar facilidade de desenho e faculdades técnicas, seria de índole

regional. Apesar dos painéis das paredes não apresentarem a mesma variedade de

elementos, aos quais já aludimos, designadamente os figurativos, não nos parece que

tenham sido, obrigatoriamente, pintados por outro autor ou noutro momento, pois até

podem ter sido executados numa mesma campanha porque foram os próprios religiosos

474 Carlos Moura – O limiar do barroco... pp. 152-153. A atribuição é feita por José Meco.

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que não demonstraram inicialmente grande interesse em ornamentá-los e os elementos

vegetalistas e florais voltam a repetir-se nestas tábuas.

O conjunto pictórico da capela de Nossa Senhora do Rosário

conjunto pictórico que se encontra na capela de Nossa Senhora do

Rosário é bem mais complexo do que uma primeira observação levará

a supor o desprevenido observador. Em primeiro lugar porque as

pinturas não são todas da mesma mão: as dezasseis telas que revestem os caixotões do

tecto apresentam uma nítida qualidade inferior em relação às quatro grandes pinturas

que cobrem as paredes fronteiras ao arco e ao retábulo. E nestas não poderemos incluir a

pintura central de qualidade muito duvidosa, para não classificarmos de muito fraca,

representando o Calvário porque foi trasladada da Igreja de São Miguel para este espaço

em 1860 e colocada sobre a janela que sobrepuja a antiga Porta das Graças475, mas

primeiramente esteve exposta na capela da Visitação.

Por outro lado, tem sido facto costumado afirmar-se que estas dezasseis pinturas

do tecto tratam temas ligados à Virgem Maria, como asseverou José Rangel de

Quadros476, todavia António Nogueira Gonçalves e João Gonçalves Gaspar477

reconheceram também as cenas ligadas à vida de Cristo. Contudo, numa observação

ainda mais atenta deparamo-nos, na verdade, com representações distintas dos temas

marianos, apesar de relacionados com Cristo, tais como: A Ressurreição do túmulo, A

475 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 24. Quase não seria necessária

esta informação redigida, mormente a importância do local de origem e o ano de transferência, para nos

apercebermos que esta pintura tinha sido colocada aqui anos mais tarde, não só pela diferença de

qualidade e de estilo, porque não se insere tão-pouco na ideologia dos frades que subsistiu e pelos

retalhos de madeira tosca que foram apensados de forma a estabelecer a ligação entre esta pintura e a

restante estrutura em talha dourada que reveste toda a capela. 476 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. p. 30. 477 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 110 e João Gonçalves

Gaspar – Catedral de Aveiro. História e Arte... p. 24. A primeira asserção conhecida à temática

representada neste conjunto foi efectuada por Rangel de Quadros e temos a sensação que todos os outros

distintos historiadores, aqui só citamos os principais, seguiram a sua sugestão sem nunca a terem posto

em causa, nem terem dispensado uma observação mais detalhada para confirmação, acrescentando apenas

os temas ligados a Cristo.

O

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Flagelação, Cristo a orar no horto, Cristo a caminho do calvário ou, este distinto dos

restantes, Nossa Senhora com o Menino entregando o Rosário a São Domingos, entre

outros que adiante serão individualmente explorados. Esta diversidade numa primeira

análise permite-nos concluir que as pinturas não são todas dedicadas em exclusivo à

Virgem Maria e que, além de algumas representarem cenas da vida de Cristo, uma é

devota ao fundador desta ordem, apesar da estreita ligação com a Santa Mãe de Cristo.

A representação de Nossa Senhora com o Menino entregando o Rosário a São

Domingos é completamente compreensível porque o convento pertence aos frades da

ordem daquele santo pregador e a capela é dedicada a Nossa Senhora do Rosário. Não

esqueçamos que esta devoção foi criada pela própria Ordem de São Domingos devido a

um frade dominicano, Alain de la Roche que viveu nos finais do século XV478, ter tido a

visão desta mítica oferenda e foi, então, “por intervenção dos Dominicanos que

divulgaram a crença de que as Avé Marias, rezadas em honra de Nossa Senhora, se

transformaram em rosas, que presas por um cordel acabaram formando uma coroa, se

passou a chamar Rosário à contagem das Avé Marias”479. Como tal, desde que Jacques

Sprenger, prior do convento de Colónia, instituiu, em 1475 e aprovada por Bula

Pontifícia três anos mais tarde, a primeira confraria de Nossa Senhora do Rosário480,

todos os cenóbios dominicanos foram obrigados a dedicar uma capela, ou altar, a Nossa

Senhora do Rosário, sendo a presente uma das primeiras elevadas em Portugal. Todavia,

as confrarias do Saltério, que adoptaram esta figura como sua padroeira, muito

contribuíram para a divulgação do seu culto481.

Se exceptuarmos esta pintura restam-nos outras quinze, todas elas com cenas

sagradas decalcadas do Novo Testamento. Mas, além deste, que outro ponto de

coincidência existe entre elas? Não podemos deixar de esclarecer, antes de aventar

qualquer hipótese, que há duas cenas repetidas: Cristo a caminho do calvário e Cristo a

orar no horto e uma outra que devido ao seu estado de conservação (ou melhor, de

degradação) já não permite qualquer análise. Todavia, comparando aquelas quatro telas

que se repetem com as restantes, duas delas não se enquadram nas características

478 RÉAU, Louis – Iconographie de l’art chrétien. Tome II. Paris. Presses Universitaires de France. 1957.

p. 120. 479 TEDIM, José Manuel – Imaginária religiosa barroca. (catálogo da exposição). Paredes de Coura.

Câmara Municipal de Paredes de Coura. 2002. p. 33. 480 RÉAU, Louis – Iconographie de l’art chrétien. Tome II… p. 121. 481 TEDIM, José Manuel – Imaginária religiosa barroca... p. 33.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

154

pictóricas e estilísticas de todo o conjunto, mas as outras duas têm nítidas afinidades

com as demais, o que nos leva a pensar que duas terão sido executadas posteriormente

ao conjunto. A dúvida que nos assola é porque motivo, se duas pinturas do conjunto se

degradaram, foram pintadas dois temas já existentes? Julgamos que estas duas foram

realizadas após a expulsão das ordens religiosas de Portugal, quando este templo se

tornou Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Glória em honra da ascensão da nova

rainha após a capitulação dos miguelistas em 1834.

Das quinze telas teremos de acantoar as três acima referidas, a de impossível

identificação e as duas que se repetem, o que perfaz uma análise a apenas doze e nestas

verificamos que todos os temas integram as quinze cenas dos mistérios de Nossa

Senhora do Rosário: os Gozosos, os Dolorosos e os Gloriosos. Se foi esta a

intencionalidade da descrição pictórica, o que estaria de acordo com a própria

advocatura da capela e sendo a décima sexta a inerente representação da ligação entre a

Abnegada Senhora e o instituidor da ordem religiosa, então o programa iconográfico

não partiu da originalidade, da criatividade ou da imaginação do pintor, mas antes dos

iluminados espíritos fradescos que bem detinham a elevada erudição religiosa e

nomeadamente o conhecimento fundamental referente ao culto de Nossa Senhora do

Rosário. É por este motivo que não cremos que a substituição, hipotética é certo, das

duas telas degradadas fosse empreendida no tempo dos conventuais porque estes

possuíam a sabedoria suficiente para encomendar e orientar o pintor na exacção das

novas pinturas de acordo com as cenas que se teriam perdido. Ao invés, a ignorância de

tal programa iconográfico por parte da nova administração secular da igreja paroquial

levou a que um pintor executasse dois temas já representados.

Conquanto, a disposição actual das telas não apresenta uma coerência e/ou

sequência iconográfica de acordo com as cinco cenas de cada mistério, pois encontram-

se todas sem um nexo sequencial e totalmente misturadas. Também não acreditamos

que os cenobitas permitissem tal colocação porque aquela composição pictórica

objectivava enformar os crentes, isto é, desempenhava as funções de um Rosário

pictórico, como tal teria de obedecer aos critérios de concatenação dos três mistérios.

Desta forma julgamos que a sequência original foi alterada depois da expulsão dos

frades, talvez para fazer alguns ajustes à talha que deveria apresentar indícios de

degradação e ao remontar-se, refazendo-se as duas citadas telas, foi colocada uma

ordem aleatória devido à ignorância de tais representações e da respectiva sequência. A

corroborar que a talha sofreu intervenções estão alguns vestígios, tais como: as cavilhas

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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de ferro forjado que estão bem à vista não serão do século XVII482, mas mais recentes

devido não só à forma da cabeça como também ao seu estado de conservação,

nomeadamente no que se refere à oxidação, pois deveriam apresentar um grau mais

elevado de oxidação. Por seu turno, muitas ligações de peças de madeira entroncadas na

perpendicular não são realizadas através da ligação de meia esquadria, mas, sim, por

esquadria inteira, tal como já explicitámos na capela do Santíssimo Sacramento. Além

disto, sabemos, como anteriormente já referimos, que no ano de 1860 o quadro com a

cena do Calvário que veio da demolida Igreja de São Miguel e que inicialmente esteve

abrigado na capela da Visitação483 foi aqui justaposto, sendo tapada a janela que se

encontra hoje sob a pintura e as ligações das novas peças de madeira, que nada têm de

comum com as de origem, são idênticas às acima referenciadas. Por outro lado, o nosso

“companheiro de viagem”, Rangel de Quadros, coevo de algumas alterações que foram

infligidas a este templo, afirma que “as capellas, de que tenho fallado, soffreram desde a

sua origem, tantas modificações e obras, que lhes alteraram quasi completamnete a

feição primitiva, deturpando lhes a talha e juntando lhes ornatos de variados gostos e de

diversas épocas”484.

Perante a apresentação exposta parece-nos lógico e consentâneo a repetição das

duas telas com o mesmo tema e a consequente desordenação iconográfica de todo o

conjunto e se actualmente não encontramos todos os temas dos três Mistérios de Nossa

Senhora do Rosário, devido ao supra explicitado, as outras pinturas parecem enquadrar-

se perfeitamente neste programa iconográfico, pois não é um caso isolado, muito pelo

contrário. Esta representação dos Mistérios do Rosário surge em outros templos

dominicanos e mais precisamente em Aveiro, no vizinho Mosteiro de Jesus que

albergava as domínicas. Na capela de Nossa Senhora do Rosário desse cenóbio

feminino deparamo-nos com um conjunto pictural com a mesma exigência teológica: a

representação dos quinze Mistérios do Rosário, mas nestas o estado de conservação é

distintamente superior permitindo uma rápida identificação e interpretação de cada

cena. Porém, e sem querermos ser demasiados “apaixonados”, estamos em crer que os

frades terão tido uma forte influência na execução deste programa, nomeadamente na

exegese da apresentação de temática tão erudita, mas cultura e erudição teológica era 482 Esta é a data proposta por nós para a execução da campanha de talha, mais precisamente a década de

setenta, e afirmámo-lo no espaço dedicado a esta capela no capitulo destinado à talha. 483 GASPAR, João Gonçalves – Catedral de Aveiro. História e arte... p. 24. 484 QUADROS, José Rangel de – Aveiro. Apontamentos Históricos... Vol. IV. pp. 31-32.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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obrigatória nos preceitos da formação dos frades da ordem dos pregadores. Além destas

representações o próprio templo catedralício guarda ainda hoje na sacristia oito

bandeiras processionais em madeira, de forma ovalada, que têm representadas, em

ambos os lados, Nossa Senhora do Rosário e os quinze Mistérios respectivos, pinturas

datadas do século XVIII, mas de cariz provinciano que serão do tempo dos frades,

provavelmente pertença da Irmandade daquela invocação.

Para se compreender melhor a disposição hodierna das telas e, também, de forma

a permitir uma percepção e visualização mais próximas das nossas análises e descrições

apresentamos de seguida um esquema muito simplificado:

Não

identificado

Calvário

Visitação

Natividade

Cristo a orar

no horto

Virgem com o

Menino entrega

o Rosário a São

Domingos

Cristo a orar

no horto

Apresentação

do Menino no

Templo

Flagelação de

Cristo

Ascensão de

Nossa Senhora

Coroação da

Virgem

Anunciação

Cristo entre os

Doutores

Cristo a

caminho do

Calvário

Ressurreição

de Cristo

Cristo a

caminho do

Calvário

R

E

T

Á

B

U

L

O

Arco de entrada da capela

Telas repetidas que não se enquadram nas características estilísticas das restantes.

Pintura que não integra os quinze mistérios.

Tela muito degrada, não permitindo observar o tema representado.

Mistérios Dolorosos.

Mistérios Gozosos.

Mistérios Gloriosos.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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Perante este esquema simplificado verificamos que existe uma desordenação na

colocação dos diversos temas dos Mistérios, facto que corrobora a nossa opinião de o

tecto ter sofrido uma intervenção e que a reposição da talha, mas fundamentalmente das

pinturas, não foi efectuada de acordo com a sua posição de origem. Esta situação,

também só é compreensível e um pouco aceitável, no contexto da época oitocentista

pós-liberal e não nos nossos dias, se, na realidade, tiver acontecido após a expulsão dos

frades, pois estes deveriam ser os únicos que detinham a erudição necessária para

orientar tal representação e respectiva sequência ordenada por temáticas.

Relativamente à execução pictórica, propriamente dita, parece-nos que as telas do

tecto foram pintadas por mão diferente das pinturas das paredes, que adiante

explicaremos. As primeiras apresentam um traço seguro e um desenho bem delineado,

isto é, uma linha bem marcada, uma composição equilibrada, uma distribuição racional

das figuras pelo espaço e raramente a profundidade espacial é representada, verificando-

se somente ligeiras nuanças arquitectónicas, como constatamos na Apresentação do

Menino no templo, na Visitação e em Cristo entre os doutores. O tratamento da luz é

heterogéneo, pois aquela é dirigida de forma directa, de um ponto exterior à cena,

incidindo directamente na figura ou na zona intencionalmente a destacar e permitindo

que a restante representação obtenha zonas de penumbra ou mesmo de total escuridão,

ou seja, comprova-se um nítido jogo de claro-escuro, de contrastes lumínicos. A paleta

cromática, apesar de ser diversificada, acaba por ser um pouco monótona e ritmada

porque os vermelhos e os verdes, os amarelos e os azuis, os brancos e os negros, as

claras carnações e os dourados vão-se repetindo sem alterações consideráveis, mas

sempre com uma interligação lúdica de fortes contrastes cromáticos, tendo o negro a

primazia de preencher o fundo da representação pictórica.

No entanto, as figuras apresentam algum arcaísmo na sua execução: no tratamento

anatómico, que se constata em todas as pinturas; um certo exagero nalgumas

representações dos corpos das figuras, como na delineação dos músculos na Flagelação

de Cristo ou na Ressurreição de Cristo; por vezes um deficiente desenho anatómico,

caso dos carrascos que infligem as sevícias a Cristo; alguma desproporção, verificada

nas telas de Cristo a caminho do Calvário, no Calvário e Cristo entre os doutores. Os

panejamentos, por seu lado, apresentam alguma simplicidade nos pragueados, mas

ainda se apresentam um pouco presos e com sentido artificial. Constatamos, igualmente,

que as expressões faciais são pouco naturais, denotam pouco realismo e transmitem uma

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sensação de representação ingénua, mais preponderante na Nossa Senhora com o

Menino a entregar o Rosário a São Domingos, na Flagelação de Cristo, na Natividade,

na Coroação da Virgem, na Ressurreição de Cristo e na Ascensão de Nossa Senhora.

Por outro lado, nas pinturas de Nossa Senhora com o menino a entregar o Rosário a São

Domingos, na Ascensão de Nossa Senhora, na Coroação da Virgem e na Ressurreição

de Cristo, isto é, nos Mistérios Gloriosos e na pintura dedicada à invocação da capela

deparamo-nos com um brilho dourado exagerado, numa glorificação despropositada das

cenas, estabelecendo-se uma ligação muito mais próxima do tema representado do que

com os preceitos estéticos e estilísticos da época, como se mostra nas outras telas.

Este desfasamento entre composição e desenho das figuras, entre transmissão de

emoção e mensagem teológica e as expressões faciais das personagens, entre o

tratamento da luz e o tratamento da paleta cromática e mesmo as diferenças observadas

nesta última característica levam-nos a conjecturar que além da orientação pelos

cenobitas nos temas a executar, o pintor deve ter-se servido de alguns modelos para a

realização das diferentes telas. Porém, o autor parece sentir-se com algum à-vontade na

primeira estética barroca pela forma como trabalha a luminosidade no espaço pictórico e

como executa o tratamento cromático, promovendo fortes contrastes policromos e

claros jogos de luz e sombra. A primazia conferida ao conjunto e à interacção

emocional entre as figuras em detrimento da individualização do desenho das figuras

revelam, também, que o pintor se movimentava com alguma facilidade nesta estética,

mas não deixa de evidenciar claras dificuldades na execução do desenho e falta de

criatividade e originalidade, nomeadamente no que diz respeito à composição, o que

pressupõe que o autor desta composição teológica de Nossa Senhora do Rosário seria de

índole regional, ou melhor, provincial, trabalhando um barroco inicial influenciado pelo

marcado tenebrismo que aportou a Portugal por via espanhola, com claras culpas para

Zurbaran e Vicente Carducho, e que conheceu alguns seguidores, tais como André

Reinoso, Baltazar Gomes Figueira, a sua filha Josefa de Óbidos ou Domingos Vieira, O

Escuro, entre outros485, só para citar alguns nomes mais importantes que acabaram por

influir na obra de diversos pintores locais que ainda se encontram por estudar.

Provavelmente, apesar das características se ligarem à primeira metade do século XVII,

485 Estes pintores enunciados apresentam em comum a forma de tratamento da paleta cromática e do

tratamento da luz, muito influenciados pelo tenebrismo espanhol. Porém, apresentam diferenças bem

notórias ao nível da composição, do desenho das figuras e da concepção do espaço.

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devido à sua localização geográfica periférica em termos de cultura e novidades

estéticas este conjunto terá sido realizado em meados da centúria.

No que concerne às quatro pinturas das paredes constatamos algumas diferenças

evidentes em relação às do tecto, quer ao nível da temática, quer, e principalmente, ao

nível das características pictóricas e de qualidade. Na parede fronteira ao retábulo junto

do arco de entrada da capela está a tela representando São Domingos a entregar os

estatutos da ordem a Inocêncio III486, ou seja, a cena reporta-se à fundação da ordem no

IV Concílio de Latrão, no qual Domingos de Gusmão adjudicou a Regula ad servus Dei

à regra de Santo Agostinho. Humildemente, ajoelhado, numa postura de servidão cristã,

o fundador da ordem entrega os estatutos ao Sumo Pontífice, figura elegante e cortesã,

que delicadamente recebe a nova proposta sob o olhar atento da corte papal. O espaço

não é claramente definido pelo interior de nenhum edifício, sendo, no entanto, bem

enunciado pela composição de todo o conjunto, mas com a sensação de aberturas para

um exterior que define a entrada da luz natural que se esparge por toda a composição.

Ao lado desta pintura encontra-se A Sagrada Família, tendo em primeiro plano,

quase dividindo a composição, Maria reclinada, figura esbelta, requintada e bem

desenhada, e num segundo plano José, figura descomprometida, solta e movimentada,

exerce a sua profissão de carpinteiro ensinando o ofício ao Menino Jesus, o qual o

observa atentamente apesar da sua alegria jovial. Para conferir ainda mais alegria à cena

de amor familiar brincam dois pequenos anjos próximos do Menino quase desafiando a

sua concentração. Ao fundo, por trás de São José, abre-se uma enorme janela que

permite a entrada da luz que, de forma ténue e homogénea, vai invadindo todo o espaço.

Ao lado desta última, mas já na parede fronteira ao arco de entrada, deparamo-nos

com Santa Ana ensinando a Virgem a ler. A cumplicidade é extremamente forte entre

ambas, conferida pela forma como Santa Ana acarinha com as mãos a sua filha e

também pela pose delicadamente inclinada da Mãe sobre a Virgem que atentamente

segue as indicações daquela. Estas personagens encontram-se num espaço marcado pela

beleza da natureza, totalmente aberto, florido e do qual temos a sensação de derramar

para fora da tela os deliciosos odores das flores. Neste espaço a luz presente

homogeneamente é clarividente, mas comedida.

No lado oposto da mesma parede, junto do retábulo, representa-se São Tomás de

486 Acerca desta temática consultar o capítulo “A mensagem dominicana: da fundação aos tempos

humanistas” neste trabalho.

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Aquino. Esta imagem foi aquela que levantou mais dificuldades de reconhecer porque

não surge nenhum elemento iconográfico directo identificativo. Somente observamos,

ao longe num plano bem definido e através de uma larga janela, uma arquitectura, mais

precisamente um templo, que é, igualmente, um dos elementos que identificam aquele

santo dominicano. Todavia, o templo também pode estar presente noutras figuras

canonizadas, mas parece-nos, dentre todos os possíveis, por uma questão de coerência e

de lógica que o tema a representar nesta capela se ligasse ou à Virgem Maria, ou à

ordem, pois os temas dos Mistérios do Rosário já estavam representados no tecto e São

Tomás de Aquino foi um dos membros mais importantes dos dominicanos e mesmo de

todo o processo de interpretação teológica e bíblica. Assim, cremos que duas pinturas,

as das extremidades, retratassem momentos importantes ligados com a própria ordem e

que as outras duas, as centrais, representassem temas marianos, tendo ambas em comum

a asserção da infância de Maria e a de Cristo, ou seja, o crescimento físico, mas

principalmente interior, estabelecendo-se um paralelismo destas duas representações

com as duas pinturas relacionadas com a infância da ordem e seu consequente

crescimento espiritual.

Como anteriormente afirmámos estas pinturas não nos parecem ser da mesma

mão das do tecto porque as diferenças de qualidade são notórias, contudo expressam o

pensamento barroco da segunda metade de seiscentos. O traço é bastante seguro e bem

delineado, percebendo-se uma linha suave que se desvanece na mancha do desenho. A

composição é bastante equilibrada e com uma correcta distribuição espacial. O espaço,

por seu turno, é bem concebido, tendo em conta as figuras e as cenas a representar, e

com uma perspectiva correctamente atilada. As figuras são esbeltas, refinadas e

requintadas, denotando uma percepção anatómica correcta e uma clara proporção entre

as diferentes figuras e entre o espaço e as próprias personagens. As poses e as

expressões são libertas, delicadas e transmitem muita naturalidade e os trajes são

refinados e elegantes com pragueados simples, mas soltos e naturais. Nos três primeiros

quadros (São Domingos entregando os estatutos da ordem a Inocêncio III, A Sagrada

Família e Santa Ana ensinando a Virgem a ler) denota-se uma enorme cumplicidade

entre as diversas figuras devido ao forte clima emocional que é transmitido pelo olhar e

expressões das personagens e pela forma delicada e carinhosa como se movimentam,

gesticulam e se tocam. Por seu turno, a pintura de São Tomás de Aquino está

embrenhada de uma comoção teológica profunda, demonstrativo da obra e do poder

intelectual religioso do santo representado, sentimento esse transmitido pela sua pose

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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enérgica e pela expressão do olhar determinado. Os braços e as mãos padecentes

afastam-se ligeiramente do corpo, cumpliciando com o pensamento simultaneamente

destro e piedoso do dominicano que parece ardentemente deprecar a ajuda divina no

desenvolvimento do seu trabalho.

Nestas obras pictóricas os jogos cromáticos são realizados através de uma

transposição tonal de harmoniosas oposições policromas e a luz é distribuída

homogeneamente pelo espaço, de maneira racional, concebida numa harmoniosa e

suave permuta de claro com a penumbra. Constata-se, desta forma, que o vincado

tenebrismo presente nas pinturas do tecto não faz parte destas representações, nas quais

o equilíbrio da composição interage directamente com a paleta cromática e com o

tratamento da luz e estas características traduzem fielmente ao espectador as emoções e

as sensações vividas por todas estas personagens.

Perante este cenário julgamos que o pintor destas telas era experiente e seguro no

traço e no desenho, dominava o sentido de equilíbrio, o sentido de composição e de

perspectiva e possuía, ainda, criatividade e o domínio da liberdade criadora. Apesar da

encomenda dos frades conseguiu desprender-se das temáticas e representar livremente

as cenas sob uma interpretação estética da época e sem necessitar de recorrer a modelos

pré-concebidos. Os jogos cromáticos e o tratamento da luz demonstram que o autor

conhecia e experimentava um harmonioso sentido racional e de naturalidade lumínica,

permitindo enunciar e interagir, sem expressar excessivamente, sentimentos e emoções.

Seria um pintor mais influenciado pela corrente mais naturalista, trabalhada por

Domingos Vieira e Baltazar Gomes Figueira, de desenho mais largo e de cromatismo

mais alegre desenvolvida por Marcos da Cruz ou Bento Coelho da Silveira487, entre

outros. Devido a estes factores pensamos que seria um pintor habituado a um meio culto

e erudito e que contactava e conhecia os ambientes e as obras dos melhores pintores

nacionais seus coevos. Provavelmente um pintor que apresenta já uma qualidade

487 Domingos Vieira e Baltazar Gomes Figueira, já antes citados, seguiram a corrente naturalista e tiveram

o mérito de unir essa forma de desenho e composição ao colorido tenebrista. Por outro lado, Marcos da

Cruz afastando-se desse tratamento cromático desenvolveu uma obra, ainda pouco estudada, com um

desenho mais largo, mais solto e livre e de colorido mais alegre, colorido este também desenvolvido por

Bento Coelho da Silveira e conferindo mais movimento e expressividade às personagens e às

composições, influências estas que ainda não se revelam nas figuras destas quatro telas. SOBRAL, Luís

de Moura – Da sombra para a luz. Materiais e técnicas da pintura de Bento Coelho da Silveira.

Coordenação de CRUZ, António João. Lisboa. IPPAR. 1999. pp. 11-13.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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exigível para um autor de obra nacional, ainda que talvez possa ser um artista regional,

não podendo aqui ser confundido regionalismo com provincianismo, mas

compreendendo-se num sentido geográfico, pois “...regionalismo não é, por força,

sinónimo de provincianismo...”488, sem, contudo, termos a ousadia de asseverar que

estas quatro belas telas tenham sido executadas por um dos principais pintores de

primeira linha nacional porque em Portugal, tal como na vizinha Espanha, a produção

pictórica “...oscila entre la labor cualificada de los artistas procedentes de focos

extrarregionales y el tono notablemente inferior mantenido por los maestros locales”489.

As pinturas do cadeiral

á anteriormente tivemos a oportunidade de nos referir ao cadeiral, mas

apenas o analisámos do ponto de vista estilístico e da técnica de

entalhamento. Houve uma breve referência aos espaldares pintados,

esclarecendo as diferentes figuras dominicanas retratadas, porém não classificámos a

pintura nem lhe dispensámos a devida atenção.

Como vimos o cadeiral foi contratado ao portuense Domingos Lopes a 31 de

Julho de 1675490, mas o contrato não fazia qualquer referência às pinturas, tal como

aconteceu nos painéis da Capela do Santíssimo Sacramento, por isso concluímos que os

painéis inicialmente seriam lisos e quanto ao revestimento da madeira de castanho

também o contrato não é esclarecedor. Todavia, parece que o retábulo na origem seria

dourado491, mais propriamente os espaldares com excepção dos painéis policromos,

desconhecendo-se quem executou o douramento e quando.

Quanto às pinturas parecem não restar muitas dúvidas: ignora-se a sua autoria, 488 MOURA, Carlos – O limiar do barroco... p. 138. 489 REYNOLDS, María Teresa Terrón – “La pintura barroca extremeña”. in Oficinas Regionais. Actas do

VI simpósio luso-espanhol de história de arte. Coordenação de CRAVEIRO, Maria de Lurdes e

RODRIGUES, Dalila. Tomar. Centro de Estudos de Arte e Arqueologia do Instituto Politécnico de

Tomar. 1996. p. 415. 490 BRANDÃO, Domingos Pinho – Talha dourada, ensamblagem e pintura... Vol. I. p. 426. 491 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109 e João Gonçalves

Gaspar – Catedral de Aveiro. História e Arte... p. 30. A informação mais antiga que temos conhecimento

dos espaldares terem sido dourados advém de CATARINA, Frei Lucas de S.ta – Quarta parte da História

de São Domingos. Vol. II... p. 604.

J

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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mas a qualidade de execução permite datá-las claramente da primeira metade do século

XVIII. Nogueira Gonçalves afirma tratar-se de “...boas telas lisbonenses, de oficina ou

artista que desenhava bem, conhecia efeitos de panejamentos e de luz, mas que devia

trabalhar sobre gravuras ou modelos de fora, como ali e na época era hábito”492,

elogiando ainda que “são obras muito graciosas e dignas de cuidados”493. Na realidade

concordamos com este autor porque as pinturas são de facto de qualidade: o pintor

desenhava bem, tinha um traço muito seguro, riscava uma linha virtuosa pois não a

demarca exageradamente esbatendo-a subtilmente com os efeitos de preenchimento da

mancha policroma; demonstra naturalidade, cortesia e requinte nas poses, realismo e

serenidade nos panejamentos e pragueados, domínio da técnica de retrato e liberdade na

expressividade, esta comedida; as figuras, livres, esbeltas, refinadas e delicadas, bem

patente na forma como gesticulam e se movimentam, denotam serenidade e contenção

nas posições e emoções, mas, por outro lado, indiciam uma riqueza interior e uma

felicidade espiritual que contrastaria com a ideologia material da época, bem

evidenciado pelo olhar. Os cenários são correctamente perspectivados e bem concebidos

cenografica e arquitectonicamente e o tratamento da luz é exímio, podendo observar-se

um ligeiro jogo de luz e sombra de uma calma transição lumínica numa clara alusão ao

mundo celestial.

A paleta cromática é rica, natural e diversificada, pese embora o traje dominicano

não permita demonstrar essa diversidade e riqueza policroma, verifica-se na concepção

pictórica dos espaços arquitectónicos e da natureza envolvente com uma mancha larga,

solta e bem preenchida e de pinceladas suaves. Conquanto, é bastante possível a

utilização de modelos estrangeiros como suporte de inspiração, mas também poderemos

imaginar o acompanhamento da execução iconográfica pelos frades de forma a

encaminharem e a orientarem a realização do desenho do ponto de vista teológico e

iconográfico, à semelhança de outras obras porque alguns dos santos representados são

portugueses, o que nos leva a pensar que os modelos, a terem existido, apenas serviram

de inspiração e não de cópia.

Assim encontramos representados nos espaldares as seguintes figuras

dominicanas, sendo a leitura feita da direita para a esquerda: no lado da Epístola

encontram-se: Santa Joana, Santa Rosa de Lima, Santa Margarida do Castelo, Santa

492 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109. 493 GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de Portugal... p. 109.

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Margarida de Saboia, Santo António de Florença, Pio V, São Gonçalo de Amarante,

Santo Ambrósio de Sena, São Tiago de Mevânia, São Vicente Ferrer e São Tomás de

Aquino. Por seu turno, no lado do Evangelho e pela mesma ordem estão representados:

Santa Ossana de Mântua, Santa Lúcia, Santa Inês de Montepulciano, Santa Catarina de

Sena, Bento IX, Santo Alberto Magno, São Jacinto, São Raimundo de Peñafort, São

Pedro de Verona, São João de Colónia e São Domingos de Gusmão.

Todas as características acima enunciadas levam-nos a atribuir estas pinturas a um

bom pintor e naturalmente do círculo lisboeta494, cidade na qual se acantonavam os

melhores artistas que se encontravam em Portugal em volta da corte e do rei D. João V

porque nesta plêiade de nobres e clérigos teriam as melhores ofertas para realização do

seu labor. Evidentemente que outras cidades também conheceram os seus bons pintores,

em circuitos regionais, mas a grande maioria derivava da capital que se deslocava até

outros centros e se o Porto, que a partir dos finais do século XVIII e durante oitocentos

deu a conhecer grandes nomes da pintura nacional, foi durante o período barroco o

centro qualitativo de erupção da talha dourada, Lisboa terá sido, porventura, o centro

erudito da pintura.

494 Esta atribuição já tinha sido realizada por GONÇALVES, António Nogueira – Inventário Artístico de

Portugal... p. 109, com a qual concordamos.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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CONCLUSÃO

erante as informações que foram compiladas, investigadas, analisadas e

exploradas cremos que os frades dominicanos foram um importante

núcleo para o desenvolvimento religioso da urbe aveirense, não querendo

afirmar que foi factor exclusivo, pois a localização geográfica, numa íntima correlação

com as profissões desenvolvidas na região, acabou por contribuir de forma capital para

o desenvolvimento e afirmação da comunidade, a qual soube sempre, de forma sagaz e

empenhada, adaptar-se à evolução temporal.

Conquanto, o grande objectivo da implantação da comunidade religiosa pregadora

neste centro em pleno desenvolvimento económico visava a enformação incorpórea dos

seus habitantes, tinha o propósito claro de, mais que catequização, formar os espíritos

destes leigos “Filhos de Deus” no contexto de uma doutrina, que se cria nova, em

contraposto aos coevos tempos fini-medievos de conturbada profanação social e

vivêncial. Uma comunidade civil que se encontrava em crescendo demográfico urgia

por uma nova organização clerical, à imagem das alterações sociais e hierárquicas que a

sua própria estrutura também ia sofrendo, tendo sido os dominicanos a resposta, como

az religiosa fundamentalmente urbana e o Senhor de Aveiro, Infante D. Pedro,

porventura um pouco visionário para a época portuguesa, como comprovam as suas

medidas políticas enquanto regente de D. Afonso V na menoridade deste, apelou à

instalação daqueles cenobitas no seu senhorio. Detinham o poder excelso necessário e

possuíam a cultura intelectual exigida para desenvolverem um “novo baptismo”, inserto

num bisonho advento que se adivinhava próximo com os ventos do humanismo, numa

colectividade urbana que, não sendo jovial, se mostrava reformada em termos

económicos e sociais. Estes dominicanos, despidos de qualquer arrogância intelectual e

defensores da humildade na obediência, obediência em termos de servidão, entendendo-

se neste caso servidão a Deus e aos seus desígnios, encetaram um processo similar ao de

outras cidades no qual procuraram os seus próprios irmãos laicais de forma a instruí-los

do novo/velho sentido cristão numa profunda doutrinação.

P

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

166

Com o avançar dos tempos históricos e dos conflitos religiosos que grassaram na

Europa quatrocentista e quinhentista a Igreja Católica sofreu um processo de renovação

instituído durante o Concílio de Trento, quer em termos processuais de comunhão e

celebração, quer em termos de preparação intelectual e religiosa dos seus membros,

como também em termos de imagem e de instrumentos sacros de apelação e

transmissão da mensagem divina. Assim, a partir principalmente da segunda metade do

século XVI o clero dominicano deteve a sabedoria suficiente para adaptar-se a este novo

Mundo e à nova sociedade mais exigente e mais erudita, não no concernente à

mensagem e aos seus objectivos, mas, sim, no que se refere à transmissão dos seus actos

e às novas necessidades que as comunidades laicas sentiam. Em Aveiro os pregadores

souberam, e demonstraram, a sua fácil e consistente inclusão na sociedade, ainda que o

seu local se situasse numa das extremidades da muralha, pelas relações que

estabeleceram bem demonstradas pelos bens de mão-morta que receberam, sendo os de

João de Albuquerque, os de Catarina de Ataíde e os do Abade de Ribeirão e ainda o

testamento de D. Francisca Soares uns parcos exemplos, mas as suas posses nos finais

do século XVIII e princípios do seguinte eram demasiado vastas, detendo diversas

casas, marinhas e terrenos, baldios ou produtivos, estes aforados, na própria urbe e na

região em volta, que no evo era extensa e distante. A doação destes bens de raiz

comprova não só as relações frutíferas que encetaram, mas também o poder espiritual

que lhes era reconhecido e este reconhecimento terá sido granjeado mercê dos seus

profundos conhecimentos teológicos que permitiram a construção de uma imagem

canónica solidificada e singular. Por outro lado, a sua sapiência permitiu a execução de

veículos de transmissão da mensagem cristã, tais como os retábulos maneiristas da

Visitação, metáfora e parábola materializada em imagem da acção precatória destes

religiosos, e o dedicado a Nossa Senhora da Misericórdia, protectora do cenóbio, ou o

conjunto pictórico barroco expresso na capela de Nossa Senhora do Rosário, de grande

profundidade e complexidade catequética, demonstrativo da forte devoção dominicana.

Os exemplos de talha que restam no templo exemplificam igualmente que à

medida que as exigências sociais se iam renovando também a imagética e os

instrumentos sacros se iam adaptando de forma a trilharem o caminho da percepção até

à recepção e apreensão por parte dos crentes. Contudo, a diferença estilística dos móveis

de talha, desde o retábulo maneirista de Nossa Senhora da Conceição ao rococó

dedicado a Nossa Senhora do Rosário, e a diferente funcionalidade de cada um, caso do

cadeiral proto-barroco e do órgão rocaille, blasoneam que os frades domínicos

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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aveirenses acompanhavam as modas e as tendências culturais da sociedade, quer em

termos de gosto, quer em termos do espaço geográfico da produção qualitativa desse

mesmo gosto, ou seja, procuraram em Coimbra os seus artífices para o levantamento

dos retábulos pétreos enquanto aquela cidade mondegana era o grande centro produtivo,

porém preferiram a cidade do Porto para o entalhamento do revestimento das suas

capelas em madeira sob ouro e até do próprio cadeiral, pois aquela urbe duriense seria o

centro qualitativo por excelência. No entanto, os seus conjuntos pictóricos ligam-se

muito mais à produção lisboeta, mesmo que não tenham saído da mão de pintores de

“primeira água”, mas demonstrativos da assimilação da composição, da gramática e

linguagem pictural da capital. E não poderemos esquecer as alterações arquitectónicas

de que o edifício monacal foi sendo alvo: as capelas laterais renascentistas e proto-

maneiristas, posteriormente a capela-mor e o corpo que conferiram uma fácies de

arquitectura chã com alguma influência jesuítica, o claustro novo e a fachada joanina,

com o objectivo de o fortalecer e de o emprestar de acordo com os gostos artísticos que

se iam sucedendo.

Julgamos que uma análise mais profunda e cuidada à estatuária, à azulejaria e à

tumulária, ou mesmo ao património documental de cantochão e a outras alfaias

eucarísticas que se encontram na sacristia da actual catedral, pois os primeiros indícios

assim indicam, confirmariam, provavelmente, esta tendência dos frades estarem atentos

à sociedade na qual estão inseridos e de intervirem nela própria, conhecendo

perfeitamente os centros estéticos de produção de qualidade, ainda que as necessidades

económicas por vezes não permitissem obras bem mais desenvoltas. Conquanto, as

alterações que foi sofrendo e mesmo algum desleixo anti-clérical, mormente após a

extinção das ordens religiosas em 1834, desvirtuou-lhe a feição calórica e retirou-lhe

muita da sua ornamentação que supostamente possuiria e que provavelmente se

extinguiu ou, então, desconhece-se o seu paradeiro, conferindo-lhe deste modo o

aspecto actual de franca humildade (curiosamente um pouco paralelo à comunidade que

o fundou – humildade na servidão espiritual e na eviterna mensagem cristã), mas a

grande riqueza deste sacro espaço encontra-se no poder prosélito da fé que aquelas

paredes forniram ao longo de séculos e que ainda hoje continuam fornecendo nesta

missão supra altruísta.

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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ÍNDICE

Abreviaturas .......................................................................................................... 4

Agradecimentos .................................................................................................... 5

Introdução ............................................................................................................. 7

De Alavarium a capital de distrito ........................................................................ 11

D. Pedro, O Infante das Sete partidas .................................................................. 19

A mensagem dominicana: da fundação aos tempos da mudança humanista ........ 25

O mosteiro: da fundação ao alvor do rococó ........................................................ 34

A fundação e o século XV ..................................................................... 34

A evolução arquitectónica .................................................................................... 42

A estrutura conventual ........................................................................... 42

Das alterações renascentistas à persistência maneirista ......................... 55

Capela do Santíssimo Sacramento ................................................ 55

Capela do Senhor dos Passos ........................................................ 59

Capela de Nossa Senhora do Rosário ........................................... 61

Capela do Sagrado Coração de Jesus ............................................ 64

Capela da Visitação ...................................................................... 66

Capela de Nossa Senhora dos Prazeres ........................................ 69

Capela de Nossa Senhora da Conceição ....................................... 71

Capela de Nossa Senhora da Misericórdia ................................... 73

A unificação estética do templo ............................................................. 74

A capela-mor ................................................................................ 76

O corpo da igreja .......................................................................... 80

O claustro novo ............................................................................. 81

As introduções barrocas e rococós ........................................................ 83

Os púlpitos .................................................................................... 84

A fachada ...................................................................................... 86

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Poder, prestígio e imagem no antigo convento de São Domingos de Aveiro

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As decorações no período rococó ................................................. 88

O fulgor da talha ................................................................................................... 91

Síntese histórica em Portugal ................................................................. 91

A retabulária .......................................................................................... 95

O retábulo de Nossa Senhora dos Prazeres ................................... 95

A talha da capela de Nossa Senhora do Rosário ........................... 97

A talha da capela do Santíssimo Sacramento ............................... 100

O retábulo do Sagrado Coração de Jesus ...................................... 103

Outras peças em talha ............................................................................ 106

O cadeiral ...................................................................................... 106

O órgão ......................................................................................... 108

Obras desaparecidas ............................................................................... 110

As grades das capelas ................................................................... 110

O(s) retábulo(s)-mor ..................................................................... 111

A escultura pétrea ................................................................................................. 115

Retábulo da Visitação ............................................................................ 116

Retábulo de Nossa Senhora da Misericórdia ......................................... 128

A pintura como complemento da talha ................................................................. 138

O tríptico de Nossa Senhora da Misericórdia ........................................ 140

As pinturas da capela do Santíssimo Sacramento .................................. 147

O conjunto pictórico da capela de Nossa Senhora do Rosário .............. 152

As pinturas do cadeiral .......................................................................... 162

Conclusão ............................................................................................................. 165

Bibliografia ........................................................................................................... 168

Índice .................................................................................................................... 178

Apêndice documental e fotográfico ...................................................................... Vol. II