Pode-se Fazer Tudo o Que Se Pode Fazer - A História Da Ética No Ocidente

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IMPULSO, Piracicaba, v. 14, n. 35, p. 1-149, set./dez. 2003

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Revista de Ciências Sociais e Humanas Journal of Social Sciences and Humanities

INSTITUTO EDUCACIONAL PIRACICABANO – IEPPresidente do Conselho Diretor LUIZ A LCEU S APAROLLI

Diretor Geral A LMIR  DE SOUZA  M AIA 

 Vice-Diretor GUSTAVO J ACQUES DIAS A LVIM

Universidade Metodista de Piracicaba

Reitor 

GUSTAVO J ACQUES DIAS A LVIM Vice-reitor AcadêmicoSÉRGIO M ARCUS PINTO LOPES

 Vice-reitor Administrativo A RSÊNIO FIRMINO NOVAES NETTO

EDITORA UNIMEPConselho de Política Editorial / Policy Advisory CommitteeGUSTAVO J ACQUES DIAS A LVIM (presidente)SÉRGIO M ARCUS PINTO LOPES (vice-presidente)

 A MÓS N ASCIMENTO A NTÔNIO R OQUE DECHENBELARMINO CESAR  GUIMARÃES DA  COSTA CLÁUDIA  R EGINA  C AVAGLIERIDENISE GIÁCOMO MOTTA M ARCO POLO M ARCHESE

NELSON C ARVALHO M AESTRELLIIMPULSO 35 (set./dez. / 2003)“Entre Éticas & Ciências”Comissão Editorial / Editorial Board

 A MÓS N ASCIMENTO (presidente)NELSON C ARVALHO M ARCELINOT ÂNIA  M ARA  V IEIRA  S AMPAIOTELMA  R EGINA  DE P AULA  SOUZA 

 V  ALDEMAR  SGUISSARDI

Comitê Científico / Advisory BoardCRISTÓVAM BUARQUE (UnB / DF – Brasil)EUGÊNIO BUCCI (Fundação Cásper Líbero/ SP – Brasil)HUGO A SSMANN (UNIMEP / SP – Brasil)IRIS Y OUNG (University of Chicago – Estados Unidos)I VONE GEBARA  (PUC / SP – Brasil)

 JOÃO B APTISTA  BORGES PEREIRA  (USP / SP – Brasil)

M ATHIAS LUTZ-B ACHMANN (UNIVERSITÄT FRANKFURT – A LEMANHA )P AULO A FONSO LEME M ACHADO (UNIMEP e Unesp/ SP – Brasil; Univer-sidade de Limoges – França)

R OBERTO R OMANO (Unicamp/ SP – Brasil)STELLA  M ARIS BIOCCA  (Universidad de Buenos Aires – Argentina)Editor Executivo / Managing EditorHEITOR  A MÍLCAR  DA  SILVEIRA  NETO (MTb 13.787)Equipe Técnica / Technical TeamCoordenação temática: G ABRIELE CORNELLISecretária: I VONETE S AVINO

 Apoio administrativo: A LTAIR  A LVES DA  SILVA Edição de texto: MILENA  DE C ASTRO

Revisão em inglês: CRISTINA  P AIXÃO LOPES

Gráfica UNIMEP

Coordenação: C ARLOS TERRA Capa: W ESLEY  LOPES HONÓRIOEditoração eletrônica: C ARLA  C YNTHIA  SMANIOTORevisão Gráfica: JURACI V ITTI 

 A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral da Editora UNI-MEP (São Paulo/Brasil). Aceitam-se artigos acadêmicos, estudos ana-líticos e resenhas, nas áreas das ciências humanas e sociais, e decultura em geral. Os textos são selecionados por processo anô-nimo de avaliação por pares (blind  peer review ). Para a apresentaçãodos artigos devem ser seguidas as normas da Associação Brasileirade Normas Técnicas ( ABNT) [veja a relação de aspectos principaisno fim da revista].IMPULSO is a journal published three times a year by the UNIMEP

Press (São Paulo/Brazil). The submission of scholarly articles, analytical studies and book reviews on the humanities, society and culture in general is welcome. Manuscripts are selected through a blind peer review process. For the submission of articles, the preferred style guideare the Chicago Manual of Style (English) (Chicago, Chicago Univer-

 sity Press) [Please: give city, publisher and year of publication]; andRichtlinien für Manuskripte (German): Duden – Rechtschreibung der deutschen Sprache (Stuttgart, Klett-Verlag, 2001) [Bitte Stadt, Verlag und Erscheinungsjahr angeben].

 Aceita-se permuta /  Exchange is desired.

Tiragem / issue: 1.000 exemplaresDisponibilizada em / available at:

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Editora UNIMEP

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 Vol. 1 • N.º 1 • 1987Quadrimestral/ Three times yearly

ISSN 0103-76761- Ciências Sociais – periódicos

CDU – 3 (05)

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Ed it o r ia l

DILEMAS ÉTICOS EM NOSSOS DIAS

Nada tem sido tão discutido na atualidade, e de modo sobretudopolêmico, quanto a relação entre as concepções de ética e as distintasrealidades nas quais elas devem ser aplicadas. Este número da Impulso 

se dedica justamente à pluralidade de éticas e ciências, além de questões

internacionais e as guerras contemporâneas. Quando se trata de ética,são vários os modelos disponíveis – desde Aristóteles, passando pelopós-modernismo e chegando a códigos específicos de profissões mo-dernas –, os quais têm inspirado as mais diversas posições. Por sua vez,tais modelos se encontram em tensão, por vezes até contradição, entresi, quando confrontados com a prática. Os mesmos desafios se apre-sentam quando se trata da interação entre os povos, acrescentando maiorcomplexidade à polêmica. É nesse contexto que a presente publicaçãotraz, em distintas seções, várias posições atuais sobre o tema.

Na primeira delas, reunindo artigos agrupados sob o tema “Plu-

ralidade Ética”, Luc Brisson retoma as raízes gregas da visão ontoló-gica do ser e da alma, tal como propagada por Platão, enquanto SilviaVegetti parte das discussões sobre o “ bebê de proveta” para chegar aquestões sobre o desejo, a liberdade e a responsabilidade, tratadas apartir da psicanálise. A seção é complementada pela comparação entreos estágios evolutivos da ética empresarial e da teoria do julgamentomoral de Lawrence Kohlberg, desenvolvida por Margaret Griesse, e,por fim, pela discussão sobre as várias formas de se entender a ética nacriminologia (como atendimento aos direitos da pessoa, limitação àstécnicas de obtenção de informação, método de investigação e objeto

de pesquisa) proposta por Roberto Cornelli.A segunda seção temática, “ Dilemas na Pesquisa Científica” , temcomo ponto de partida tácito a determinação legal, a partir do gover-no brasileiro – tal como se deu em vários outros países –, de que asuniversidades e instituições de pesquisa devam estabelecer comitês deética para supervisionar a ação da ciência, especialmente quando setrata do envolvimento de seres humanos em experimentos. Em seu ar-tigo, Carmen Tornquist, questiona muitas das acepções impostas por

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meio de resoluções legais, mostrando que a partir da antropologia e daetnologia se pode chegar a uma visão muito mais complexa da relaçãocom seres humanos, vistos como objetos de pesquisa. Marise Borba daSilva apresenta, por sua vez, uma temática da mais alta relevância, re-

ferente à nanotecnologia, tentando antecipar alguns dos desafios queas pesquisas em escala “nano” trarão para a reflexão ética. Já WalterMatias Lima apresenta as questões trazidas pelo recente interesse nabioética nos comitês de ética e pesquisa nas universidades brasileiras,indicando como tais questões não podem ser resumidas a uma ética 

científica , mas devem ser tratadas sob o prisma social, humano e cul-tural. Fechando a seção, Alvaro Valls parte da capciosa pergunta sobreo que é permitido fazer, para promover uma breve revisão histórica so-bre as distintas respostas que a filosofia tem dado a esta questão.

A seção “ Comunicações e Debates” deste número dá seqüência

ao espaço que a edição 34 da Impulso  dedicou à concepção de JürgenHabermas sobre religião , publicando agora uma entrevista inédita dofilósofo alemão sobre política internacional . Introduzindo o debate,Amós Nascimento apresenta os escritos mais recentes de Habermas eo manifesto firmado por ele e Jacques Derrida em favor de uma de-mocracia global, bem como o texto assinado por Iris Young, criticandoa posição do filósofo alemão.

Em seu texto, Iris Young afirma que, ao tentar contrapor a he-gemonia americana por meio do fortalecimento de uma política inter-nacional européia, Habermas não considera nem inclui o chamado

Terceiro M undo e os países do Hemisfério Sul, não percebendo a im-portância que as discussões do Fórum Social Mundial podem ter emuma democracia global. Por sua vez, em entrevista realizada no finalde 2003 com Eduardo Mendieta, Habermas revê e complementa suaposição. Discute as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque,explica a sua iniciativa com Derrida, trata da questão do terrorismo ereage à nova doutrina de segurança nacional proposta por G eorge W.Bush, além de reafirmar a atualidade do projeto moderno e da filosofiade inspiração em Kant. Certamente, o debate aqui registrado darámargem a novas discussões nos próximos números da Impulso .

Completando esta edição, a seção “ Resenhas e Impressões” re-gistra e comenta uma publicação recente sobre o racismo, comple-mentando de modo peculiar os vários tópicos relacionados acima. Ospróximos números deverão dar continuidade aos debates aqui inicia-dos, dedicando-se a temas como violência, biotecnologia, a filosofia deKant e outros.

COMISSÃO EDITORIAL

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...............................Plur al i dade Ética 

Ethi cal Pl u r al i t y

Punição como Instrumento de Melhoramentoda Alma no Mito ao Final doGórgias Punishm ent as an Instrument for the Soul

Impr oving in the M yth at the End of Gorgias 

LUC  B RISSON  (Centre National de Recherche Scientifique- CNRS , Paris/França) 11 

O Desejo Procriador entre a Liberdadee a Responsabilidade

The Procreation Desire betw een Freedom and Responsibil i ty 

S ILVIA V EGETTI  F INZI  (Universitàdi Pavia, Pávia/Itália) 21 

Ética Empresarial e ResponsabilidadeSocial Corporativa à Luz da Teoria de

 J ulgamento Moral, de Lawrence KohlbergBusiness Ethics and Corporate Social Responsibility in 

Light of Law rence Kohlberg’s Theory of Moral Judgment 

M ARGARET  ANN  G RIESSE  (Global Responsibility Project,Concordia University, Montréal/Canadá) 33 

Ética e Criminologia. O caso“Medo da Criminalidade”

Ethics and Crim inology.The “Fear of Crim inality ” Case 

R OBERTO  C ORNELLI (Universitàdegli Studi di Milano-Bicocca, Milão/Itália) 49 

...............................Di lemas na Pesquisa Científica Di lemmas n Sci ent i f i c Research

Salvar o Dito, Honrar a Dádiva – dilemaséticos do encontro e da escuta etnográficaTo Save the Saying, to Honor th e Gift  –ethical 

di lemm as of ethnographic encounter and l istening 

C ARMEN  S USANA T ORNQUIST (Universidade do Estado de Santa Catarina, SC  /Brasil) 63     S   u

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Nanotecnologia: consideraçõesinterdisciplinares sobre processos

técnicos, sociais, éticos e de investigaçãoNanotechn ology: interd isciplinary considerations on 

technical, social, ethical and research pr ocesses M ARISE  B ORBA DA S ILVA

(Universidade do Estado de Santa Catarina, SC  /Brasil) 75 

Bioética e Comitês de ÉticaBioethics and Comm ittees on Ethics 

W ALTER  M ATIAS  LIMA (Universidade Federal de Alagoas, AL /Brasil) 95 

Pode-se Fazer Tudo o que se Pode Fazer?M ay We do Everything That Can Be Done? 

Á LVARO  LUIZ  M ONTENEGRO  V ALLS 

(Universidade do Vale do Rio dos Sinos-Unisinos, RS  /Brasil) 101 

...............................Comunicações & Debates Guer ra, t er ror i smo e as relações 

internacionais Communicat ions Debates

War , ter r o r r i sm and the

i n ter na t i onal r el a t i ons

Introdução a um Debate FilosóficoIntrodu ction to a Philosophical Debate 

AMÓS  N ASCIMENTO  (Universidade Metodista de Piracicaba, SP  /Brasil) 109 

Descentralizando o Projeto de Democracia GlobalDecentralizing t he Project of Global Democracy 

I RIS  M ARION  Y OUNG  (University of Chicago, Chicago/ EUA ) 113 

Sobre a Guerra, a Paz e o Papel da Europa.Entrevista com Jürgen Habermas,

por Edua rdo Mend ietaOn War, Peace, and Europe's Role. Interview w ith 

Jürgen Habermas by Eduardo M endieta

J ÜRGEN  H ABERMAS  (Universität Frankfurt a.M., Frankfurt/Alemanha) E DUARDO  M ENDIETA (State University ofNew York at Stony Brook, Nova York/ EUA ) 119 

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...............................Resenhas & Impressões 

Reviews Impressions

Une Histo ire du Racism e, des origi nes à nos j ou rs ,de Christian Delaca mpa gne

P EDRO  P AULO  A. F UNARI  (Departamento de História, IFCH  /Unicamp) 139 

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO   143 

NOSSOS CONSULTORES (2003)   149 

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Pluraridade ÉticaEthi cal Plural i ty

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Punição como Instrumentode Melhoramento da Almano Mito ao Final doGórgias *PUNISHMENT AS AN INSTRUMENT

FOR THE SOUL IMPROVING IN THEMYTH AT THE END OF G O RG IAS

Resumo Este artigo parte de alguns mitos registrados em diálogos platônicos, em es-pecial o Fédon  e Górgias , para voltar à discussão sobre a relação entre corpo e alma,morte e vida na fi losofia grega antiga. D iscute, inicialmente, duas concepções dealma na filosofia grega, depois mostra como uma delas se tornou mais importante, porconsiderar a alma como independente do corpo, passível de transformação e de me-lhoria, mesmo após a morte. Por fim, relata como Sócrates fez uso dessa concepçãopara indicar que aqueles que o julgavam à morte teriam também suas penas após amorte. A conclusão indica, porém, que esse apelo ao mito do castigo da alma não era

mera visão de vingança, mas possuía a importante função de estender o alcance dospreceitos morais para além do corpo e da morte, vendo a punição da alma como umaoportunidade dela se reabilitar.

Palavras-chave CORPO  – ALMA – CASTIGO  – MORAL – PLATÃO .

Abstract The present essay makes use of some myths found in platonic dialogs,especially in Phedon and Gorgias , to reconsider the discussion on the relationshipbetween body and soul, death and life, in ancient G reek philosophy. Firstly, itdiscusses two conceptions of soul  in G reek philosophy and then shows how one ofthem became more important due to its understanding of the soul as independentfrom the body and its possibility of being transformed and improved, even after

death. Finally, it shows how Socrates made use of such conception to affirm thatthose who were sentencing him to death would also have their own penalties afterdeath. The conclusion shows that such appeal to the myth of the punishment of thesoul was not a mere revenge view; it had the important function of extending themoral precepts beyond body and death, understanding the punishment of the soul asan opportunity for its rehabilitation.

Keyw ords BODY – SOUL – PUNISHMENT – MORALS – PLATO .

* Tradução do francês para o português de MYRIAM MAURICE D E BARROS e IVÂNIO  C ÉSAR D E BAR-

RO S. Título original: “Le châtiment comme instrument d’amélioration de l’âme dans le mythe de la findu Gorgias ”. Revisão de termos técnicos: ANN A MAGDALENA MACHADO  BRACHER (AAI/UNIMEP).

LUC BRISSON

Centre National deRecherche Scientifique-CNRS,

Paris/Françalbrisson@ agalma.net 

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ode-se definir a moral   ou a ética   como um sistema decostumes ou de condutas aceitas e estimuladas em umasociedade. Tal definição implica correlativamente que,nessa mesma sociedade, certos comportamentos sejam

admitidos e favorecidos, e outros, proibidos e condena-dos. Na medida em que cabe uma avaliação ética dascondutas, ou seja, qualificá-las como bem ou mal, essesistema leva à idéia de punição . Por que, de fato, colocar

em prática tal comportamento admitido ou, ao contrário, privar-se de talconduta condenada? Porque resultará ao agente, cuja meta é atingir aexcelência (areté , em grego antigo), uma vantagem ou um inconvenientesobre um plano ou sobre outro. Avaliação e sanção não se resumem, por-tanto, nelas mesmas, pois pressupõem uma representação prévia do queé um ser humano.

1. É A ALMA, E NÃO O CORPO, QUE DEFINE O SER HUMANO

Se restringirmos o agente moral a um corpo vivo, vantagens e in-convenientes se reduzirão para o corpo no estabelecimento e na manu-tenção de um Estado de bem-estar ou na sua colocação em perigo, e, emúltima análise, na continuidade desse corpo em vida ou em morte. Esseprincípio governa a seleção no mundo animal e mesmo no mundo hu-mano, ao menos em certo nível. Nesse contexto, trata-se para um indiví-duo de consegui-lo o mais rapidamente possível na idade adulta e de semanter nisso o maior tempo possível, nas melhores condições para ele

mesmo e para o grupo ao qual pertence. No plano do corpo, a puniçãoé puramente biológica.

C onsiderando as coisas de um ponto de vista sociológico ou polí-tico, e situando o agente humano em uma sociedade organizada, seriaconveniente levar em conta a opinião pública e o aparelho judiciário. As-sim faz Protágoras: no diálogo que leva seu nome, ele invoca noçõescomo aidós  e díke . Aidós  é esse sentimento de respeito de si e de obriga-ção recíproca que assegura o máximo de solidariedade, manifestando-setanto no interior de um único grupo humano quanto entre vários. E nes-se sentimento de obrigação diante de si e dos outros, cria raiz, a díke , aqual, manifestando-se sobretudo na decisão judiciária, assegura a ordemdentro do grupo.1 Mais primitivo que a díke , o aidós  parece, além disso,uma aplicação mais ampla, pois engloba as relações de um grupo com ou-tro que lhe é estranho. Nesse caso, a punição é social ou política.2 Maspode-se procurar a boa reputação e os bens aparentes ao preço da enga-nação, sem nenhuma preocupação do verdadeiro bem, e conseguir esca-par a toda condenação judiciária. Essa é a promessa da retórica, que, alémdo mais, dá os meios de se obter sucesso, notadamente na Assembléia, e

1 G ERNET, 1968, p. 180-181.2 A melhor descrição para Atenas clássica é a de D O VER, 1974.

PPPP

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escapar a toda perseguição sobretudo no Tribu-nal.

D e maneira a tornar o subterfúgio e a en-ganação, se não impossíveis, ao menos difíceis

nessa área, pretendeu-se definir o ser humanonão somente pelo seu corpo, mas também pelasua alma.3 E ainda é preciso determinar o que seentende por alma. Na época de Platão, duas con-cepções de alma se opunham; pode-se constatarque, no início de Fédon , Platão opõe duas tra-dições míticas: os poemas homéricos, que veicu-lam a concepção tradicional, e as religiões misté-ricas,4  as quais colocam em primeiro plano umaconcepção “minoritária”.

Interlocutor rude no diálogo, Cebes evocaironicamente a atitude comum diante da morte:

Tudo isso, Sócrates, me parece muito bemexposto; mas o que você diz da alma sus-cita uma grande descrença nos homens:talvez devamos temer, pensam eles, que aalma, uma vez separada do corpo, nãoexista mais em nenhum lugar, não estejadestruída e não pereça no dia em quemorre o homem; a partir do momento daseparação, em que ela sai dele, talvez se

dissipe como um sopro ou uma fumaça,e, assim voando, não é mais nada em lugarnenhum?5

Parece que C ebes faz menção ao conceitotradicional, o mesmo encontrado na I líada  e naOdisséia . Escrevendo essas linhas, Platão deviapensar mais precisamente na passagem da I líada em que, durante a noite anterior aos funerais doguerreiro morto, a alma de Patrocle vem se en-treter com Aquiles, que dorme. Quando esse úl-timo quer pegá-lo, a alma, parecida com um va-por, foge e se enfia sob a terra, soltando um pe-queno grito,6 como um morcego.

Nessa ótica, a morte constitui para o indiví-duo um aniquilamento quase total, mesmo se al-

guma coisa sobrevive dele. D e maneira transitó-ria, ele se prolonga no corpo de seus filhos, querecolheram seu capital genético, como tambémna memória de seus próximos e da sociedade na

qual vive; mas ele mesmo prossegue sua existên-cia somente na forma de uma entidade mais oumenos evanescente, mais ou menos durável, quese eleva aos ares ou se encaminha sob a terra. Essaentidade, já chamada psukhé (alma) na I líada e naOdisséia , divide seu status de realidade não sen-sível com outros: os deuses e os demônios. Mastodas as entidades são imaginadas a partir domundo sensível. D euses, demônios e almas sãorepresentados como vivos sensíveis, dotados,

contudo, de poderes maiores e faculdades maispotentes; embora dividam até certo ponto a apa-rência e, especialmente, os defeitos. Reduzida aoestado de uma imagem débil do defunto, a almaparece, exceto a de Tirésias, o adivinho por exce-lência, perder a faculdade de pensar. Por conse-guinte, com sua sobrevida limitada, ela se encon-tra praticamente privada de toda individualidade,não podendo, portanto, se inserir em um sistemade retribuição, destinado a corrigir num outromundo as injustiças aqui sofridas ou cometidas.Aliás, nos poemas homéricos, somente são evo-cadas as punições dos grandes criminosos, entre-gues a sofrimentos exemplares.

Várias passagens do Fédon   reaproveitam amesma idéia. De acordo com a concepção tradi-cional, a alma não está assegurada de uma sobre-vida eterna, perdendo sobretudo o que constituia sua individualidade, a sua memória e, portanto,o seu pensamento. C onfrontado a essa perspec-tiva lúgubre, o sentimento que surge e domina éo medo, citado muitas vezes no Fédon. Platãoevoca a atitude dos condenados à morte, que re-cusam beber o veneno, e ficam bravos com o es-cravo que os exorta a fazê-lo, ou que buscam ga-nhar tempo e aproveitar aquilo que lhes resta, co-mendo, bebendo e fazendo amor.7 Atitude muitonatural, se temermos que a alma não se dissolvarapidamente depois de deixar o corpo, sendo a

3 Sobre o assunto, cf. capítulo sobre Fédon , de Platão, in BRI SSON &MEYERSTEIN, 1995.4 C f. BU RKERT, 1985, cap. VI.5 Fédon , 69e-70a.6 I líada , XXIII , p. 100-107. Essa mesma passagem encontra-se citadano livro III  da República  (386b), em que Platão propõe censurá-la, poislhe parece injuriosa em relação às coisas do H ades. 7 Fédon , 116e-117a.

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14 Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 11-19, 2003

morte apenas o prolongamento provisório e sobuma forma diminuída da vida física.

A essa concepção tradicional se opõe umaoutra, que parece ser t irada dos ensinamentos de

movimentos religiosos com certa audiência naépoca de Sócrates, mas que os especialistas nãoconseguem identificar e sobre as quais há outrasinformações encontradas somente em Platão:

C oloquemos o problema mais ou menosnesses termos: as almas dos mortos exis-tem no H ades, ou são elas desprovidas deexistência lá? Segundo uma antiga tra-dição que temos na memória, as almasque deixam o corpo depois da morte têm

uma existência no H ades e inversamente,renascendo daqueles que morreram, essasalmas voltam ao nosso mundo. Se é as-sim, se os vivos renascem dos mortosuma única conclusão é possível: nossas al-mas devem de fato existir, quando elas seencontram lá.8 

Seguindo essa nova maneira de ver as coi-sas, a alma separada do corpo, no qual tinha en-carnado e vivido uma existência independente,desce no H ades, de onde, depois de um certo lap-

so de tempo, volta a encarnar num outro corpo.A noção de alma imortal e indestrutível le-

vou tempo para se difundir,9 na medida em querecusava a clara separação estabelecida entre ho-mens e deuses, traço fundamental da religião gre-ga arcaica. Se a sua alma é imortal e, sobretudo,indestrutível, o homem fica parecendo com a di-vindade, a qual deve buscar assimilar, assimilaçãoessa que constitui o ideal filosófico de Platão. Foipreciso, por conseguinte, esperar que tal separação

pudesse conceber-se de maneira menos absoluta, afim de que a idéia de imortalidade e indestrutibili-dade da alma se desenvolvesse e expandisse.

2. O CASTIGO COMO MEIO DE TORNAR A ALMA MELHOR

No final de Górgias(521c-d), Sócrates, re-cusando recorrer à retórica, pois faz questão de

dizer a verdade e não se resignar a fazer uso da ve-rossimilidade destinada a produzir essa persuasãoque assegura o sucesso na Assembléia e no Tri-bunal, se vê forçado a reconhecer que, como o

ameaçou C álicles, ele se defrontará com a incapa-cidade de defender-se ao longo de um processo.E, desde então, correrá o risco de morte: aí, comtoda a evidência, há uma alusão ao processo cujodesenrolar é contado em Apologia de Sócrates .10

Evocando um julgamento mais importante doque todos os que dizem respeito aos vivos, aqueleque espera a alma depois da morte, Sócrates quermesmo justificar sua condenação da retórica.

O Recurso ao M ito 11  

Para esse proceder, ele conta um mito: “Es-cute, então, como dizemos (phasi ) um discursomuito bonito (mála kaloû lógou ), que tu pensa-rás, creio eu, ser um mito (mûthon ), mas eu pen-so ser um discurso conferível ( lógon ), assim, tecontarei (léxo ) o que vou te dizer (légein ) comose ele tratasse de coisas verdadeiras (alethêón- ta )” .12  Reencontra-se, nessas poucas linhas, umcondensado de características do mito, segundoPlatão.13  Primeiramente, nos achamos em um

contexto lingüístico. Recorrendo à fórmula habi-tual indicada pelo phasi , Sócrates anuncia quecontará um mito e pede aos ouvintes para lhe daratenção. C álicles rebaixa esse discurso ao nível deum mito e, portanto, a uma história de mulhervelha,14 ao passo que Sócrates reivindica para essemesmo discurso o status de verdade.15  O mitoapresenta, em seguida, dois traços: uma narrativa,e não um discurso argumetado, em que não podepretender dizer a verdade, pois aborda um assun-to que nem o intelecto nem os sentidos conse-

8 Fédon , 70c.9 Sobre o assunto, cf. meu artigo, em BRISSO N, 1999, p. 23-61.

10 Platão escreveu Górgias  e Apologia  depois da morte de Sócrates e,portanto , após o seu processo. Assim, trata-se aqui de uma profecia ex eventu . Sobre isso, cf. PLATÃO, 1997.11 Górgias , 523a1-524a7.12 Ibid ., 523a1-3. U tilizei o seguinte sistema de transliteração: êta = e ;oméga = o; dzèta = z; thèta = th; xi = x ; phi = ph ; khi = kh; psi = ps .O iota subscrito é adscrito (por exemplo, ei) e, quando se trata de umalfa, esse alfa é longo = ai . O espírito rude é notado h  e o espírito dócilnão. Todos os acentos estão anot ados.13 Ibid ., 523a-527e.14 Redescobre-se aí todos os elementos do mito . C f. BRI SSO N, 1995.15 Eis por que me permiti parafrasear o último lógos , traduzindo-o pordi scurso plausível .

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guem pegar. D aí ocorre, falando claramente, omito encontrar-se do lado do infalsificável, e nãodo da verdade. Mas na medida em que segue omesmo sentido do discurso do filósofo, o mito

pode, num segundo plano em que a adequação aoreal cede o passo em conformidade a uma dou-trina, ser qualificado de verdadeiro . Examinemosagora as particularidades dessa passagem.

O objeto do mito em definitivo é a alma e,no caso presente, a alma humana que anima ocorpo durante certo número de anos, antes deter se separado dele na morte. Para Sócrates –mas aparentemente não para C álicles –, a almapode gozar, durante determinado tempo, de

uma existência separada. Mesmo assim, a almahumana guarda a sua individualidade fundada napersistência do que há de melhor no ser huma-no: o pensamento . D otada dessa potência deagir e de sofrer, ela se lembra do passado, temreceio do presente e pode, até mesmo, se proje-tar no futuro. C onservar sua faculdade de pen-sar,16  daí, portanto, suas lembranças permiti-rem-lhe subsistir em sua individualidade.17  Écom essa única condição que um sistema retri-

butivo pode ser posto em prática, possibilitan-do, sem dificuldade, corrigir as injustiças impu-nes18 num outro mundo, onde os virtuosos sãorecompensados e os maus, punidos.

U ma vez que a alma persevera no ser maistempo que o corpo por ela habitado provisoria-mente, é nela que se situa a verdadeira persona-lidade de um ser humano. C ontudo, uma con-cepção desse gênero leva forçosamente Platão aevocar uma retribuição ligada à alma, e não ao

corpo, no quadro de vários mitos sobre o destinoda alma depois da morte.19 O mito contado no fi-nal de Górgias  apresenta certo número de carac-terísticas relativas às associações da alma com ocorpo, não aparecendo mais no resto da obra dePlatão.

As Lições do M ito

O mito contado no Górgias   começa comuma evocação aos dois últimos reinados divinos,segundo H esíodo: o de C ronos e o de Zeus. Pla-

tão não diz nada sobre a revolta de Zeus contraseu pai,20 que culmina na sua tomada do poder.Também não cita a revolta dos Titãs, que, depoisde longo combate, são precipitados no Tártaro,por Zeus.21 Isso provavelmente para não colocarem evidência os confl itos entre os deuses, conde-nados nos livros II  e II I da República .22 Mas é cla-ro que nós nos achamos sob o reinado de Zeus,não sob o de Cronos. C ontudo, depois de venceros Titãs, Zeus dividiu as regiões do universo entre

ele e seus dois irmãos. Reservou para si o ceú, en-tregou a Posêidon o mar e a Hades o subsolo.23

Essa referência possibilitou ainda a P latão dar umpano de fundo cosmológico à sua narrativa sobreo destino da alma depois da morte.

Uma definição da morte como separaçãoda alma– A morte, para o homem, é definidacomo uma separação da alma com relação ao cor-po que ela move.24 Após a morte, a alma daqueleque viveu na justiça e na piedade encaminha-se àsilhas dos bem-aventurados,25 ao passo que aquela

vivida na injustiça é jogada na prisão chamadaTártaro. Essa orientação resulta de um julgamen-to associado à lei de C ronos.26 D esde o tempo deC ronos, até mesmo no começo do reinado deZeus, os juízes eram os vivos que julgavam ou-tros vivos e pronunciavam seu julgamento no diaexato em que os homens iam morrer.27  Mas osjulgamentos eram mal executados, pois era diantedos juízes ainda vivos que os homens compare-ciam vivos, ou seja, com o seu corpo: podiam

16 Fédon , 70a-b.17 Ménon , 81b-d.18 Fédon , 63b-c.19 O mito contado no final de Fédon e o mito de Er, referido no finalda República .

20 Relatada por Homero, em I líada (XVI, p. 203), e por H esíodo, emTeogonia  (p. 629).21 Conforme Homero, em I líada  (VIII, p. 478ss).22 C f. em especialRepública  (II I, p. 377c-378b).23 Tal repartição, a mesma do universo, é citada no início do Timeu .Sobre o assunto, cf. PLATÃO, 1992 e 2001.24 Para uma defi nição similar, cf. Fédon , 64e.25 As ilhas dos bem-aventurados são a morada da raça dos heróis deHesíodo (Os Trabalhos e os D ias , p. 166ss) e dos homens bons de Pín-daro (O límpi cos , II , p. 68ss). PLATÃO (República , VII , p. 540b).26 Para uma descrição do reino de C ronos, cf. o mito em PLATÃO,2003.27 Nenhum testemunho em toda a Antiguidade clássica corrobora oque Platão diz aqui.

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mostrar a nobreza de sua origem, sua beleza e ariqueza de suas vestes, e colocar a própria famíliapara intervir, além de testemunhas. Isso impres-sionava os juízes, que se encontravam na mesma

condição.28 Eis por que Zeus ordena aos huma-nos serem julgados mortos por juízes tambémmortos e pergunta a Prometeu sobre tirar doshomens a faculdade de conhecer o momento desua morte.29  Separada do corpo que a envolviacomo uma roupa, a alma se encontra nua.30 D aísegue que o julgamento depois da morte torna-seradicalmente diferente daqueles desenroladoscom os vivos.

Logo após a morte, as almas passam porum julgamento diante de Minos, Radamante eÉaco.31 Esses dois últimos são instituídos juízes edão o seu veredicto às almas nuas, desprovidas docorpo e de tudo ligado a ele. Minos supervisiona.As almas boas são enviadas às ilhas dos bem-aventurados, ao passo que as almas más, com asmarcas de suas faltas, são punidas no Tártaro,onde pagam por seus erros. As almas más quepodem ser curadas se vêem purificadas da injus-tiça pelo sofrimento. Ao contrário, as almas in-curáveis sofrem eternamente as aflições maiores,

em punição a suas faltas, para servir de exemplo àsdemais. Por conseguinte, viver nesse mundo demaneira virtuosa ou não gera graves conseqüênciasno outro mundo. Contudo, como a personalidadede um ser humano é ligada não a seu corpo, mas asua alma, o julgamento que precisará sofrer após amorte revela-se mais importante que todos aquelesconfrontados pelo indivíduo durante a vida.

A nudez da alma após a morte (524a8-525a7) – Mesmo falando de almas nuas, despro-

vidas de todo corpo, Platão não consegue descre-ver sua natureza moral, nem pensar mais concre-tamente nos castigos fora do corpo.

No início, Sócrates parece ter muita difi cul-

dade em conceber a alma num contexto em quefaça totalmente a abstração do corpo. A princí-pio, ele declara: “Assim que ela se despe (gumno- thêi ), desprovendo-se do corpo, podemos ver to-dos os seus traços naturais, como as impressõespor ela recebidas, impressões estas tais e quais se-gundo o modo de vida do homem que a tenhapossuído e em cada circunstância a teve a pro-va”.32 Eis por que os juízes podem ter diante dosolhos o espetáculo de uma alma “marcada de gol-pes de chicote (

diamemastigoménen ), cheia de ci-

catrizes (oulôn mestèn ) deixadas pelos perjúrios epela injustiça, marcas impressas sobre a alma(exomórxato eis tèn psukhén ) desse homem porcada uma de suas ações”.33 Nota-se que o chicoteera reservado aos escravos; no que concerne às ci-catrizes, é necessário considerar que elas nãoconstituem nesse contexto marcas de glória. Per-cebe-se, enfim, que o verbo exomórgnumi  conju-gado no meio dá idéia de uma marca deixada so-bre um tecido, ao se enxugar as mãos, por exem-

plo. A permanência desses traços descritos demaneira concreta constitui, portanto, a garantiade que o julgamento ao qual a alma se submetecorresponderá bastante à realidade.

Sócrates prossegue afirmando que, depoisde julgá-las, Radamante marca as almas pérfidasde um sinal,34 indicando se elas são incuráveis ounão.35 Então, a alma boa é enviada às ilhas dosbem-aventurados enquanto a má é precipitada noTártaro, para lá sofrer.

Nota-se, além disso, que esses dois lugaressituam-se no interior do universo. O Tártaro éum abismo, uma espécie de túnel atravessandodiametralmente a Terra e necessariamente repre-sentado como esférico. No mais, Platão parecenão situar as ilhas dos bem-aventurados nem nosinfernos, como no caso de H omero, nem no Sol

28 Pode-se achar, nessa crítica, um pararelo com a Apologia  (p. 38d-39a).29 Junto a Ésquilo, Prometeu insinua ter agido de um certo jeito, porsua própria iniciativa (Prometeu Acorrentado , p. 248ss).30 Para a mesma idéia, cf. Cráti lo , p. 403b5.31 Esses três juízes, aos quais acrescent a-se Triptálemo, em Apologia (41a), são todos fi lhos de Zeus. Minos é um rei de C reta, que mantémligações particulares com Zeus (Odisséia , XIX , p. 178) e continua aexercer seu poder no mundo dos mortos (Odisséia , XI , p. 568). É ofi lho de Zeus e Europa que se casa com Pasiphaé, fi lha de Zeus. Rada-mante é parecido com Minos e apresentado como rei e juiz (Pindare,O límpi cos , II , p. 75ss). É sempre considerado como justo (Píndaro,Píticos , II , p. 73ss), daí sua função de juiz junto aos mortos. Filho deZeus, Éaco é o rei de Égine e cont inua a ser juiz no H ades (I líada , XXI ,p. 189). Triptoléme é o fi lho de C éleo de Elêusis (Apollodoro , I 5,2;Pausânias, I 14, p. 2). D éméter o inicia nos mistérios de Eleusis.

32 Górgias , 524d5-7.33 Ibid ., 524e5-525a2.34 Para a mesma idéia, cf. República  (X, p. 614c).35 Górgias , 526b.

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e na Lua, como faziam os pitagóricos (posterio-res), e sim na superfície da Terra.36

Também no Tártaro, as almas suscetíveis decura são confrontadas com os exemplos das in-

curáveis, que sofrem castigos descritos de manei-ra muito concreta:

Mas há muitos outros homens que tiramproveito do fato de vê-los sofrer perpetua-mente (páthe páskhontas tòn aei khrónon ),em punição a suas faltas, os sofrimentosmais graves, mais dolorosos, mais assus-tadores. Pois esses homens que se vê lá,no H ades, agarrados às paredes de suaprisão (anerteménous ekeî en H aidou en 

toî desmoteríoi ), são, para todo homeminjusto que chega, um assustador exem-plo, ao mesmo tempo que um horrívelespetáculo e uma advertência.37 

Nesse suplício será condenado Arquelau,cujos crimes são citados por Polo38 e que no mitode Er tem como equivalente Ardieu.39  Os que,assim, servem de exemplo são quase todos ho-mens que desenvolveram ação política: Tântalo,40

Sísifo,41 Tityos;42 no dizer de Sócrates, só Aristi-

de, filho de Lisímaco, escapa à regra. Em contra-partida, os criminosos que tinham agido porquestões particulares, mesmo com seus crimesatrozes, como no caso de Tersites,43  não eram

considerados incuráveis. Dito isso, os castigosdestinados aos grandes criminosos, todos eleshomens políticos,44 são descritos como se tratas-sem de castigos físicos. Pode-se pensar no mes-

mo para as almas passíveis de ser curadas. Nessasduas ocasiões, quando de seu julgamento e casti-go, a alma, mesmo desprovida do corpo, aparececomo uma cópia dele. A situação é capaz de seexplicar também pelo fato de que, mesmo sepa-rada do corpo, a alma resta sempre no universo.

Embora estando as almas desprovidas detodo corpo, Platão não consegue pensar nas fal-tas nem nos castigos sem utilizar imagens a elevinculadas. Daí a hipótese neoplatônica de umaalma que, mesmo separada de seu corpo terrestre,é dotada de um veículo.45

Dito isso, os castigos sofridos por todas asalmas, curáveis ou incuráveis, não são eternos. Épreciso interpretar a expressão tòn aei khrónon num sentido restritivo, como de um ciclo de dezmil anos, por exemplo, em Fedro .46 Na Antigui-dade tardia, a doutrina da punição eterna parauma falta limitada constituía um escândalo.

Em resumo, ao longo do mito contado emGórgias , a alma se encontra representada com a

ajuda de características corporais. O riginária deregiões particulares na Terra, ela evolui em certaspartes do universo e submete-se ao reinado datemporalidade.

O castigo como instrumento de melho-ramento da alma(525b1-526d2) – Entre as al-mas precipitadas no Tártaro, algumas podem sercuradas e outras não. No primeiro caso, o sofri-mento infligido é destinado a permitir à almaaperfeiçoar-se, tirando, desse modo, proveito dapena; de fato, não é possível livrar-se da injustiça

de outra maneira que não seja o sofrimento. Poroutro lado, as aflições das almas incuráveis são re-legadas como exemplo para as outras almas; elaslhes possibilitam o aperfeiçoamento. Nos doiscasos, portanto, a punição não é considerado uma

36 Sobre esses dois lugares, cf. PLATÃO, 1991.37 Górgias , 525c4-8.38 Ibid ., 471a-c.39 Cf. República  (X, p. 615c-e).40 Tântalo era fi lho de Zeus, rei de Lídia ou de Frígia. Não se sabe queerro cometera, mas seu castigo era memorável. Em Odisséia , conta-seque ele era afligido de sede e de fome permanentes, embora tenha sidomergulhado na água e que um galho carregado de frutos pendia acimade sua cabeça (Odisséia , XI , p. 582-592).41 Tendo provocado a ira de Zeus, Sísifo, rei de C orinto, teria sido atin-gido por um raio e precipitado no Tártaro para sofrer o castigo deempurrar uma enorme pedra numa subida. Assim que a pedra alcan-çava o topo, ela tornava a descer e o t rabalho precisava ser recomeçado(Odisséia , XI , p. 593-600).42 Tityos, rei da Eubéia, era um gigante, filho de Zeus, que a deusaH era, cega pelo ciúme, lançou contra Leto , sua rival. Zeus o at ingiucom um raio e lançou-o ao Tártaro, onde duas serpentes ou duaságuias devoraram seu fígado, que renascia segundo as fases da Lua(Odisséia , XI , p. 575-581).43 Tersites era o mais feio e o mais covarde dos gregos. Aleijado, to rto ,corcunda e careca, teria sido morto por Aquiles, por ter arrancado osolhos de Amazona, Pentesiléia, que o herói acabara de matar em com-bate (I líada , II , p. 211ss). No mito de Er, escolheu reencarnar comomacaco (República , X, p. 576ss).

44 U ma vez que eles são responsáveis por um grande número dehomens, e seu poder é grande, o mal por eles causado é forçosamentemaior do que aquele gerado por um indivíduo qualquer.45 Essa hipótese baseia-se em três passagens do corpus platônico:Fédon  (p. 113c), Fedro (p. 247b-c) e Timeu  (p. 41d-e).46 Sobre o assunto, cf. PLATÃO, 2002.

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vingança, mas um instrumento de melhoramen-to,47 para si e para os outros.

No entanto, que sentido dar à idéia de me- lhoramento ? É então que a reencarnação, não ex-

plícita nesse mito, parece dever desempenhar aíum papel. Platão não diz ao certo nada sobre oque acontecerá depois da cura de uma alma má.Não encontramos em Górgias  nenhuma alusão àpossibilidade de ela voltar num outro corpo. Mascomo poderia ser de outro modo, se a cura é ameta da punição?

Referindo-se a esse mito, Sócrates prova aC álicles que, para permanecer justo, ele não temmedo de enfrentar a morte; e acaba devolvendo aameaça contra aquele que o intimida. Realmente,o julgamento que o tribunal humano pode efetuarpouco representa aos olhos daqueles que serãopronunciados por Radamante, Éaco e Minos nooutro mundo, dirigidos à alma colocada a nu. Aretórica torna possível, por meio do recurso dosupostamente verdadeiro, dar socorro nessemundo a um acusado, mas revela-se impotenteno outro mundo, onde apenas a bondade moralpoderá pleitear em favor da alma.

D iante do fato de que Polo, G órgias e C á-

licles, embora se achem os mais hábeis entre osgregos, não puderam demonstrar (apodeîxai ) serpreciso viver outra existência do que aquela reco-mendada, Sócrates pretende persuadir-nos, median-

te um mito, de que a felicidade está ligada à jus-tiça, tanto nessa vida quanto na outra.

CONCLUSÃO (526d3-527e7)

Encontramos, nas últimas páginas de Gór- gias , temas que atravessam toda a obra de Platão.A morte é concebida como a separação da almacom relação ao corpo. É na alma que se situa averdadeira personalidade de um ser humano. Ecomo a alma sobrevive mesmo deixando o corpoque habitava anteriormente, ela será julgada porseres mais poderosos que os homens. Na maiorparte dos casos, esses seres lhe infligirão castigos,tendo em vista o seu melhoramento ou o das ou-tras almas. D iferentemente dos demais mitos es-catológicos, aquele relatado no final de Górgias permanece bem concreto. A alma aparece nelecomo uma cópia do corpo, deslocando-se no es-paço e no tempo de nosso universo.

Mas por descrever as peregrinações da alma,Platão deve recorrer ao mito, como é especificadono fi nal de Fédon  e da República , em Fedro  e mes-mo no Banquete . Opondo-se aos mitos, na medi-da em que propõem como modelo um sistema devalores não correspondente àquele que a filosofiaprocura instaurar, Platão nunca hesita, contudo,em valer-se deles, quando, ao tratar da alma comosituada entre o sensível e o inteligível, ele não podemais recorrer nem à opinião nem à ciência.

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Dados do autor

Especialista em estudos clássicos, tradutor dePlatão ao francês e diretor de Pesquisas doCentre National de Recherche Scientifiq ue

(CNRS), Paris/França.

Recebimento artigo: 17/jun./03

Consultoria: 28/ago./03 a 19/set./03

Aprovado: 23/set./03

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O Desejo Procriadorentre a Liberdade e aResponsabilidade*   

THE PROCREATION DESIRE BETWEENFREEDOM AND RESPONSIBILITY 

Resumo A partir das discussões sobre o “bebê de proveta”, este artigo chega a ques-tões atuais da bioética. C oncentra-se nas mudanças sociais e tecnológicas que hojepossibilitam a procriação alternativa, independente do casamento e das relações sociaisou sexuais, já que o que conta são os “filhos da ciência” com paternidade e materni-dade comprovadas pelo DNA. A autora ressalta, porém, que essas mudanças tecno-lógicas não conseguem tematizar a dimensão do desejo, a relação fi lial nem outros as-pectos sociais e humanos. Assim, as perguntas da bioética levam à discussão sobre o

desejo, a liberdade e a responsabilidade, tratadas a partir da psicanálise. O papel da psi-canálise, nesse caso, é denunciar a existência de um desejo narcisista que, ao invés darelação com outros, busca a autogeração e a auto-suficiência.

Palavras-chave  PSICANÁLISE  – DESEJO  – PROCRIAÇÃO   – BIOÉTICA  – PROCRIA-

ÇÃO.

Abstract   O n discussing the “test-tube baby” , the article approaches thecontemporary issue of bioethics. It focuses on the social and technological changesthat allow alternative procreation, independent from marriage and social or sexualrelations, since the major issue is the “children of science” with D NA-provedparenthood. The author emphasizes, however, that these technological changes arenot able to approach the dimension of desire, the filial relationship and other socialand human aspects. Thus, the issues on bioethics lead to the debate on desire,freedom and responsibility, which can be dealt with from a psychoanalytical view.In that case, the role of Psychoanalysis is to denounce the existence of a narcissisticdesire that, instead of pursuing the relationship with the other, seeks self-generation and self-suffi ciency.

Keyw ords PSYCHOANALYSIS – DESIRE – PROCREATION – BIOETHICS.

* Traduzido do it aliano para o português por N U NO  COIMBRA MESQUITA. Título original: “I l desiderioprocreativo tra libertá e responsabilitá” .

SILVIA VEGETTI FINZI

Università di Pavia/Itáliawww.silviavegettifinzi.net 

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22 Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

Um a pessoa não será aqu ilo que devese não for aqui lo qu e pode.

GOETHE

partir de 1978, data de nascimento de Louise Brown, aprimeira “menina de proveta”, as intervenções técnicassobre a fecundação humana foram rapidamente se afir-mando em todo o mundo. Contrariamente a todas asexpectativas, as propostas de fecundação artificial nãoencontraram, por parte da opinião pública, as reações dedesconfiança e de medo que poderíamos esperar de umacontecimento assim desconcertante.

Na It ália, apesar da pesada condenação da Igreja C atólica, o eventopassou quase despercebido, como se fosse uma possibilidade obviamente oferecida pelo progresso científico.

H averia aí muito o que se dizer sobre esperanças suscitadas pelopositivismo, quando a cura das doenças e das disfunções parecia um pro-gresso irresistível, resultado de um saber cumulativo e de uma técnicacada vez mais aperfeiçoada.

Mas se a ciência não reconhece os próprios limites, acaba por ter-minar com a magia. A medicina, que perseguia um conhecimento obje-tivo e racional do homem e do mundo, realmente suscitou nos seus fru-tos atitudes mágicas e salvadoras.

Na medida em que a ciência insere-se numa perspectiva messiânica,espera-se que o mal de viver, que aflige o corpo e a mente do homem, se-ja, num futuro próximo, debelado. Para o imaginário, de fato, não exis-tem limites. É só uma questão de tempo e de modo, mas, afinal, cada pro-blema encontrará a sua solução.

C ompreende-se, portanto, como a esterilidade, defaillance  da natu-reza, constitui um desafio para a medicina, para a onipotência que lhevem indevidamente atribuída.

Sabemos que é difícil definir como terapia orgânica as intervençõesbiotecnológicas que procuram combater as condições de esterilidade,

porque o corpo, também quando submetido a condições de procriar, per-manece substancialmente estéril. Entretanto, quem se submete a essasintervenções, ainda que não readquira integridade e funcionalidade, podealcançar um propósito vital, inscrito no corpo e na mente, um objetivocapaz de tornar-se essencial para a definição ou a confirmação da identi-dade pessoal e do casal.1

No entanto, ao privilegiar a dimensão psicológica da fecundação ar-tificial, devemos prestar a máxima atenção à relação terapêutica. Freqüen-

1 C f., nesse sentido, BO C C IA & ZU FFA, 1998.

 AA A A

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temente, nesse âmbito, a relação médico-pacien-te, investida de desejos exagerados, indiferentesao limite e à medida, incapazes de aceitar a injus-tiça e o infortúnio, demonstra-se de alto risco.

U ma vez que a demanda pela fecundidadenão se limita ao obstáculo orgânico, mas colocaem jogo o sentido de existência, o valor de si e aprópria realização, o direito à felicidade acaba en-volvendo toda a esfera psíquica, consciente e in-consciente, racional e irracional.

E o inconsciente, como se sabe, é infantil, oni-potente, intransigente, seguro de obter tudo aquiloque pede. U m regime de alta perturbação emotivaexiste em toda a medicina, mas incide particular-

mente sobre a fecundação induzida, na medida emque o ginecologista intervém no misterioso e emo-cionante procedimento da vida sexual.

O médico, preso ao jogo espetacular dosdesejos, tenta de toda maneira responder, comuma criança, à mulher, que quer um filho a todocusto.2 Entretanto, as dinâmicas do desejo desa-parecem pelo esmagamento da demanda sobre anecessidade. O ginecologista traduz, de fato, umpedido complexo, difícil e contraditório no regis-tro médico da doença e da cura.

O silêncio do sujeito sobre o seu desejo de-termina uma série de delegações: do paciente aomédico, do médico às técnicas.

Introduz-se, assim, em toda a sua comple-xidade, o tema mais desconhecido da medicina eda reflexão bioética: o do desejo.

O DESEJO FEMININO ENTRE A LIBERDADE E A RESPONSABILIDADE 

O termo desejo  é o mais enigmático de todaa psicologia humana.

Etimologicamente desiderium significa ter parado de contemplar as estrelas com intentos de- sejosos . Nesse sentido, remete-se a um processohistórico de laicização progressiva da vida e dodestino. “O homem mostra-se lançado na distân-cia que o exila da ordem do cosmo, da salvaguar-da das constelações, do mito de uma natureza be-névola que rege os modos do acontecer.” 3

U ma vez que se deseja somente aquilo quenão se tem mais e não se possui ainda, o desejo si-tua-se entre o passado e o futuro, e, como tal,consiste na ausência. Não se trata, contudo, de

carência de um objeto, como acontece com a ne-cessidade, inscrita na seqüência linear causa-efei-to, e sim de uma falta do ser, de ausência de si asi. Enquanto a necessidade, por exemplo, a sede,pode ser satisfeita com uma ação específica, be-ber, e com um objeto determinado, a água, o de-sejo, não saturável num agir ou numa coisa, ex-prime sobretudo o desejo de ser reconhecidocomo expressão de um sujeito desejoso. O dese-jo coloca-se, portanto, na dialética com o outro,

na lógica especular da reciprocidade; a demandade reconhecimento funda, ao mesmo tempo, aidentidade e a modificação, duas faces da mesmamoeda.

Para a psicanálise, o desejo pertence à di-mensão do inconsciente e alimenta-se pela marcamnêmica de uma satisfação remota, pré-histórica.

Protótipo de toda satisfação é a unidademãe-fi lho, quando, no período neonatal, o meni-no é a mãe. Ser indistinto, sem falhas, sem defei-

tos, exemplar do uno, de tudo o que o indivíduo,separado da matriz, aspira a retornar.4

O motor do desejo está, então, no passado,numa condição perdida para sempre, inalcançávele, por isso mesmo, telos de toda tensão desejosa.A relação dual mãe-filho situa-se no período pré-edipiano, antes do tempo e do espaço, antes queum sujeito diga “eu”. Só posteriormente a unida-de originária, que não conhece conflito, aparecerealmente separada da proibição do incesto, re-

presentada pelo pai. Como escreve Racamier, “OEu, depois da primeira infância, antes ainda desurgir, e até a morte, renuncia à posse total do ob-jeto, realiza o luto de uma união narcisista abso-luta e de uma constância do ser indefinida, e, a ca-minho desse luto, funda suas próprias origens,opera a descoberta do objeto e do Si e inventa ainterioridade”.5

2 Cf., nesse sentido, FINZI, 1990.3 VEG ETTI, 1998, p. 74.

4 FREU D , 1977.5 RACAMIER, 1993, p. 39.

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24 Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

G raças ao negativo da interdição, o absolu-to positivo se rompe e, na sua densidade, insinua-se a falta. O binômio especular, apoiado no nar-cisismo, articula-se na triangulação edipiana – pai,

mãe, fi lho –, na qual cada um se defi ne pela dis-tância, pela diferença, pela falta. Triangulaçãoimóvel, se no seu interior não continuasse a tra-balhar a capacidade desestruturante da proibição.

Em virtude notadamente da proibição doincesto é que o triângulo edipiano se desmancha,deixando decorrer as energias que o animavamaté o exterior, o não familiar, o estranho, o outro.Passa-se, assim, do regime endogâmico da infân-cia ao exogâmico da maturidade, resultado deuma dupla proibição: aquela relacionada à mãe,“Não reintegrarás o teu produto”, e a associadaao filho, “Não casarás com a mãe e não mataráso pai”.

O desejo de um filho é, por conseguinte,efeito de um regime contraditório, do ser e donão-ser. O primeiro consiste na memória de umasatisfação sem limites; o segundo, na imposiçãode um limite sem satisfação.

Ligado inicialmente à mãe pré-edipiana, odesejo destina-se a nunca encontrar o objeto pro-

curado, impossibilitado pela proibição do inces-to. No vazio criado entre a mãe e o filho, tomaforma, invocada pelo desejo de ambos, aquelaimagem de gerado que denominei criança da noi- te .6 A ausência do fi lho precede a sua imagem e,num certo sentido, o evoca.7

Para a mulher, trata-se de passar da fantasiade dar uma criança à mãe à fantasia de pedir  umfilho ao pai. E se dá aquilo que se tem, enquantose pede aquilo que não se possui. Entre as duas

posições, interpõe-se a proibição do incesto, nãoapenas separando o filho dos seus objetos deamor, das pessoas mais próximas a ele, mas tam-bém o dividindo de si mesmo, impedindo-o desustentar-se na auto-suficiência narcisista. O su-

jeito, mediante o luto da própria integridade ori-ginária, se abre à demanda e, por isso mesmo, aoreconhecimento do outro.

Por séculos a geração tem pedido a união,

vale dizer, o abandono da fantasia infantil de par-tenogênese, substituída pela humilhante  admissãode que ninguém basta a si mesmo e de que, paraprocriar, são necessários dois seres.

No plano da realidade, tal admissão conti-nuará válida até quando não forem disponíveisprocessos de clonagem e de gestação extracorpó-rea. Ent retanto, sobretudo para as mulheres, a re-dução do parceiro a material de geração – comoocorre na doação anônima de esperma – parecerealizar a imagem inconsciente da partenogênese.

Nascer de si e gerar de si são duas faces damesma moeda, expressão da onipotência reinantenos alvores da vida psíquica e que nunca vemabandonada do todo. Nesses últimos anos, a fan-tasia da autogeração manifesta-se publicamenteno pedido (elitista, mas amplamente difundidocomo mensagem expressa por estrelas do cine-ma, da televisão e da música) de ter um filho semempenhar-se na relação sexual, sem pedir nada aninguém.

Independentemente dos limites tecnológi-cos, no pensamento comum a procriação, auto-matizada não só da união conjugal, como tambémda relação sexual, está se tornando uma variávelautônoma concebida pelo Eu como manifestaçãode si, como modalidade de auto-realização.

UNIÃO CONJUGAL E GERAÇÃO:DISSOLUÇÃO DE UM BINÔMIO HISTÓRICO

Ainda alguns anos atrás, a fi liação apresen-tava-se como conseqüência do casamento. U mavez casados, os dois cônjuges tornar-se-iam, au-tomaticamente, pai e mãe dos seus eventuais fi-lhos. Enquanto os matrimônios representavamuma escolha, a geração não, porque, havendo op-tado pelo regime conjugal, a procriação vinha au-tomaticamente.

Dessa forma, faltando um âmbito de refle-xão e decisão, não se punham em ordem ao gerarproblemas particularmente morais; conflitos econtradições ficavam latentes.

6 Para o tratamento desse tema no imaginário individual e cultural,remeto ao já citado I l Bambino della Notte   (FINZI, 1990). Para adimensão evolutiva da imagem, cf. FINZI, 1995, p. 147-190.7 Para uma representação visível da criança da noite , remete-se à pinturarenascentista em que, ao lado do Menino Jesus, aparece a sua cópia, JoãoBatista, retratado mais como uma criatura selvagem, com longos cachosescuros e o corpo envolvido por peles de animais ferozes.

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Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003   25

Somente quando, com a contracepção, a se-xualidade separou-se da procriação e, com a fe-cundação artificial, a procriação se fez indepen-dente da sexualidade, tornou-se possível escolher

se, quando e como tornar-se genitores.Emergiram, então, perturbações do desejo

gerador, deixando problemático o campo da ge-nealogia humana. “Quem é filho de quem?” é apergunta subjacente às transformações produzi-das pela mutação das relações familiares e da di-fusão das biotecnologias.

Enquanto os pais podem ser dois – genéti-co e social –, as figuras maternas podem ser três– genética, biológica e social.

Até agora, a identifi cação da mãe verdadeirabaseia-se, pela nossa legislação, sobre a evidênciado parto. Cabe à gravidez e ao nascimento for-necer a autenticação da relação mãe-filho. Nomomento em que tudo, na nossa sociedade, estáse revelando cada vez mais abstrato e simbólico,enquanto as relações se reduzem a mensagens in-formáticas, e mesmo o corpo parece se dissolverna multiplicidade das próteses   que substituem eampliam as suas funções, a maternidade perma-nece juridicamente ancorada ao cordão umbilical,

último vínculo que o indivíduo moderno man-tém com o seu componente natural, orgânico daorigem.

Ao contrário, o pai aparece cada vez maisfreqüentemente apenas na certidão de família,uma presença ausente , que as mulheres aprende-ram a substituir, assumindo para si ambas as fun-ções de genitor.8

D e um lado, então, um resíduo material, amãe, colo, de outro, um formalismo abstrato, opai, nome, estritamente no cruzamento corpo-Lei. A tentativa é preservar, na dissolução dosvínculos biológicos e sociais, as figuras parentaisde manter a triangulação edipiana como ponto dereferência da identidade de cada recém-nascido.

No entanto, a introdução do divórcio mo-dificou profundamente a estrutura familiar e, éclaro, sobretudo nas novas gerações a ligaçãoconjugal está acabando, ainda que possa durar a

vida toda, ao passo que o núcleo permanente é re-presentado pelos genitores. Pode-se sempre dei-xar de ser marido e mulher ou de constituir umcasal, mas a relação genitores-filhos é para sem- 

pre .9A defasagem entre os tempos da união

conjugal (no papel ou não) e o dos genitores, tor-nando difícil coordenar as funções parentais, so-bretudo em regime de separação, faz com queseja sempre mais desejável um filho próprio, umacriança crescendo numa família monoparental,seja ela constituída pela mãe ou pelo pai.

Se, em determinada época, o filho criadoapenas pela mãe era um filho ilegítimo ou preco-

cemente órfão, agora a sua condição não é neces-sariamente provocada por um destino negativo,por uma privação dolorosa. Pode ser o êxito deum desejo forte e vital, expressão da raiz narcisis-ta do Eu que convém reconhecer e analisar. Nes-ses casos, não se anula somente o pai, como tam-bém a posição paterna na triangulação edipiana; oesquema familiar contrai-se de três a dois lugares.

As novas famílias, compostas ainda origi-nalmente pela mãe e filho/a e, no futuro, pelo paie filho/a, são os êxitos extremos de um processo

de desagregação cujas principais etapas, como vi-mos, são a separação: da sexualidade da procria-ção, da procriação da sexualidade, dos genitoresda união conjugal. Tais cisões se referem, ao mes-mo tempo, à sociedade, ao casal e ao indivíduo.Muda, de fato, também a geometria da mente,sempre menos organizada em torno da base docomplexo edipiano.10

Também as fi guras interiores, consideradaspor Freud universais e perenes, não estão desti-nadas a desaparecer assim rapidamente, poden-do-se prever um período longo de dissonânciaentre o mundo interno e o externo.

A INDEFINÍVEL RELAÇÃO GENITOR-FILHO:FILHO DE SANGUE OU DE NOME?

No que se refere à procriação humana, exis-tem atualmente dois vetores com tendência a

8 C f., nesse sentido, ZO JA, 2000.

9 BERNARDINI, 1995.10 PRETA, 1999.

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unir e a incentivar o fato. Por parte do desejo in-dividual: um filho próprio, não conjugado, parte-nogênico. Por parte da ciência: uma criança per-feita, produto de alto nível da engenharia genéti-

ca. Será difícil, no futuro, resistir à oferta de umacriança extremamente saudável, linda e inteligen-te. Está realmente em jogo a felicidade, o futurodos genitores e sabe-se que eles dificilmente re-sistem à possibilidade de ver realizadas todas assuas expectativas.

O bserva-se, além disso, que quanto mais oproduto da geração vem separado da figura dogenitor, mais ele se torna susceptível àsmanipulações melhoradoras. É significativa, nes-

se sentido, a utopia platônica da República , emque a educação em comum dos recém-nascidos,precedida por uma rígida seleção, é perseguidapor meio de uma manipulação rígida do corpo edo espírito. Q uanto a isso, escreve Patrizia Pinot-ti: “estratégia perseguida pelo pai do discursopara obter uma ótima geração: romper a ligaçãoentre a criança e a mãe biológica, deflagrando essaúltima em uma pluralidade de figuras, a cada umadas quais compete, respectivamente e hierarqui-camente, um segmento de todo o processo gera-

tivo”.11

Vimos de que maneira a família contemporânea,apresentada como estrutura complexa, tem seafirmado sobre o forte núcleo da relação genitor-filho. Mas aquela que se evoca como baluarte daidentidade humana ameaçada é, ao cont rário, a fa-mília imaginária, transmitida pela tradição comoestrutura capaz de organizar socialmente e indi-vidualmente a anarquia impulsiva. Tradicional-mente, o desejo inconsciente, que urge até obje-

tivos anárquicos, foi canalizado na triangulaçãofamiliar, moldado pelo seu sistema de incentivose proibições, de modo que, como observam D e-leuze e Guattari, “não ultrapassa as muralhas do-mésticas para inundar a sociedade”.12

U ma vez inscrita no circuito da transmis-são entre gerações, a onipotência narcisista en-contra automaticamente as suas mediações. En-

tretanto, bem examinada, também a família tra-dicional reveste apenas formalmente uma estru-tura estável e evidente, pois, no seu interior,revelam-se falhas e contradições que colocam em

crise o sistema de cooptação.Ainda que definida aristotelicamente como

célula natural da sociedade , a família paradoxal-mente assinalou, mesmo aos fi lhos naturais, umaposição marginal e estranha. A consangüinidade,embora constitua um traço da natureza, não bas-ta sozinha para atribuir o estatuto de filho.

Nas sociedades tradicionais, o verdadeiro filho   não é o natural, nascido da mãe núbil ouadúltera, fruto de um amor proibido, de um im-

pulso sexual incontrolado, e sim o certificado,vindo ao mundo no espaço protegido pelo ma-trimônio e pela casa dos avós. Assim, o pai au-têntico é o pai social, que legitima com o seu nomeo produto da relação conjugal segundo o pactosolidário entre corpo e Lei, até agora em vigor, ain-da que o novo direito de família tenha, para todosos efeitos, equiparado o filho reconhecido, seja elenascido dentro ou fora do casamento.

À luz das contradições da família tradicio-nal, a criança nascida da fecundação artificial com

sêmen de um doador resulta menos extravagantedo que o previsto. Coloca-se, de fato, a meio ca-minho entre o imaginário e o simbólico, entre osegredo e a evidência, entre a natureza e a cultura.D e um lado, é produto do material genético pro-veniente de um doador desconhecido, do qualnão se conhecem nem a generalidade nem as mo-tivações; do outro, é fi lho de um desejo persona-lizado, a ponto de justificar-se, mas não de reali-zar-se. No cruzamento entre um corpo não sim-bolizado (o doador) e um símbolo incorpóreo (opai social) insere-se a criança tecnicamente indu-zida.

Para muitos observadores, os filhos nasci-dos da fecundação artificial constituem, no quediz respeito à postura do genitor, um recuo moralem relação aos valores de comunidade e solidarie-dade expressos nos anos 70, quando o projeto deadoção parecia assinalar o fim da prioridade atri-buída na família às relações de propriedade e às li-gações de consangüinidade. O motivo que instiga

11 PINOTTI, 2000, p. 493-510.12 D ELEU ZE & G UATTARI, 1973.

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a maior parte dos casais ao longo do percurso di-fícil da fecundação dita heteróloga é notadamentea esperança: “Q ue a criança seja pelo menos par-cialmente nossa, que reproduza as nossas carac-

terísticas, que seja semelhante a pelo menos umde nós”.

A consangüinidade parece, assim, consti-tuir um valor prevalecente quanto à disponibili-dade afetiva e à relação social. Assistimos, atual-mente, a uma proposta de Lei que consente acada nascido, atingida a maioridade, a recupera-ção de seus dados de registro civil: o conheci-mento da mãe e eventualmente dos pais naturais.Se, pouco tempo atrás, o segredo da origem en-

dossava a suficiência da família adot iva e protegiaa sua intimidade, o cancelamento dos dados denascimento mudou improvisadamente de signifi-cado e aparece, então, como uma violência per-petrada às perdas da identidade pessoal. Mas éverdade que o pai e a mãe adotivos não bastam àdefinição de si? É necessário conhecer, salvo ra-ros casos de doenças hereditárias, quem os trans-mitiu o patrimônio biológico que os distingue?13

Não se corre o perigo de, multiplicando as figu-ras dos genitores, acabar deslegitimando todos

eles?A redefinição da condição de genitor, do

primado social ao biológico, foi tão rápida quenão tivemos tempo nem mesmo de analisá-la.D esde o momento em que se possibilitou o filho da ciência  (oferecido pela biotecnologia), o filhoda sociedade (proposto pela adoção) regrediu àsegunda instância, válida no caso de falha da pri-meira hipótese, pelo menos na maioria dos casaisestéreis.

A probabilidade de reintegrar a fecundida-de deu, evidentemente, expressão a um nível im-pulsivo, a um desejo corpóreo, que a incurabili-dade da esterilidade tendia a remover a favor deescolhas mais racionais. Mas a criança adotadanão é imediatamente filha. Torna-se tal somentepor intermédio de um trabalho de elaboração deluto, de aceitação da impossibilidade, de admissãoda necessidade recíproca de amor, graças ao reco-

nhecimento cruzado da condição de genitor efiliação.

A atração, suscitada no casal, da eventua-lidade de um filho próprio, talvez só parcial-

mente próprio, entretanto, gerado em si e parasi, responde, ao contrário, a uma outra lógica, aoemergir do componente inconsciente da psiqueà prioridade da dimensão imaginativa em relaçãoà realidade.

O genitor aspirante que pede um filho aohospital, ao invés de solicitá-lo ao Tribunal, reativaa expectativa da criança da noi te , a fantasia de auto-geração da infância. A escolha revela o quanto éimportante a gestão do desejo inconsciente, na de-

fi nição de si, do próprio papel paterno e materno.Não esqueçamos, porém, que o filho da ciência ,analogamente ao adotivo, não é fruto da relaçãosexual do casal de genitores. Na fecundação indu-zida, ocorre menos um fator simbólico essencialpara o reconhecimento da reciprocidade.

Em certo sentido, o contato ausente doscorpos materno e paterno prefigura o nascimen-to de um só genitor, a objeção à condição de côn-juge que sabemos subsistir no inconsciente. Opai, no caso da doação de esperma, representa um

adotante que, posteriormente, substitui o fatoconsumado. N a realidade, com o projeto geradortem início um envolvimento afetivo e fantástico,alimentando-se, em seguida, no curso da gestaçãovivida em sintonia e do parto emotivamente par-tilhado. Se também a criança não é geneticamenteum filho, a capacidade humana de atribuir senti-do e significado ao acontecimento o restituicomo tal. Para constituir um casal de genitores,na falta de coito fecundo, é necessário que as duasmentes coordenem-se e cada membro do casalrelativize a própria posição em relação à do outro.

A autogeração foi sempre entendida, atéem Aristóteles, como uma ameaça para a socie-dade, por manifestar a conotação narcisista, au-tárquica e anárquica do desejo inconsciente.

Tanto a superação da geração tradicional,em que o filho é produto do útero materno fe-cundado pelo pai social, quanto a supressão daideologia igualitária, pela qual uma criança é iguala outra, e o que conta é a disponibilidade psico-13 BELLO NI, 2001, p. 5.

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lógica e social à afiliação, fazem conseqüente-mente emergir um cenário psíquico mais móvel ecomplexo, trazido à tona pela tentativa do in-consciente. U ma criança nascida do próprio cor-

po é, ao mesmo tempo, um desejo remoto e no-vo. O que muda, pelas obras das biotecnologias,é a passagem do espaço mental ao social. C omfreqüência, as pessoas que gostariam ou já reali-zaram uma fecundação prescindindo da relaçãode casal justifi cam-se, alegando uma série de im-possibilidades: é sempre mais difícil viver juntos,os dois sexos não se toleram mais, pretendemevitar ao fi lho o sofrimento da separação familiar.

Mas privilegiando as motivações defensivas,

desconhecem as raízes vitais de seus desejos, osseus componentes impulsivos e os seus conteúdosimaginários.

A tentativa do inconsciente, ao contrário,dá voz às razões do corpo e liga a anatomia e a fi-siologia a figuras latentes, a precognições instin-tivas que organizam e orientam os impulsos, as-sim como acontece com os animais. Com a dife-rença de que, no homem, o instinto é semprecondicionado por interdições e exortações cultu-rais.

O desejo de um fi lho vem, assim, arrancadoda unidimensionalidade da re-produção   e intro-duzido na complexa relação estabelecida entre aidentidade consigo mesma e com o outro que, aomesmo tempo, a constitui e a ameaça.

O inconsciente diz: “ G ostaria de viver semdepender dos outros”; e a razão: “Não posso vi-ver sem os outros”. Entre autonomia e depen-dência, abre-se o espaço existencial da mediação.Ao cogito ergo sum  cartesiano, a psicanálise con-

trapõe um desidero ergo sum . Aquilo que na subs-tituição se perde é a própria fundação certa e ga-rantida da identidade, a resposta dada, de uma vezpor todas, à questão “Quem sou eu?”.

A equação estática do Eu consigo mesmorevela-se impossível, dá lugar a uma construçãoinexausta de si, a uma narração da subjetividadedestinada a permanecer inconclusa e a abrir no-vos cenários do imaginário, das relações interpes-soais e da sociedade.

No momento histórico em que a técnicaestende, às figuras do inconsciente, o braço tem-poral de suas realizações, impõe-se com urgênciauma nova tarefa: compreender a dinâmica do de-

sejo, governar a sua harmonia caótica, traduzir asua força plástica e as suas energias transforma-doras em projetos racionais, coerentes e, se pos-sível, voltados ao benefício individual e à utilidadesocial.

DESEJO E RESPONSABILIDADE

Freud é claro a esse respeito: a liberdade doindivíduo consiste na expressão incondicionaldos impulsos sexuais e agressivos.14

A prevaricação do outro é, assim, uma leida natureza, que abandonamos contra a nossavontade, somente porque preferimos a segurançaà felicidade. D ado que, no imaginário inconscien-te, o impulso sexual representa os próprios obje-tivos procriadores de forma egoísta, devemossustentar que o pacto entre os genitores seja umaconquista da civilização. Isso prevê, de fato, umempenho contrastante a longo prazo com o ime-diatismo da satisfação impulsiva. Então, o desejode gerar por meios partenogênicos, próximos àautarquia dos animais inferiores, exprime, de cer-to modo, uma aspiração pré-cultural, o retorno aum tempo pré-histórico, anterior ao pacto social.

O pensamento de um produto geradoregoísta recebe um pedido de trabalho mentalprovindo do corpo: é o corpo que tenta fazer va-ler a própria autarquia. Só que, até ontem, suasimagens permaneciam no inconsciente individuale no imaginário social, em que vigora a conven-ção desresponsabilizante de considerá-las irreais:

“é de mentira, não é verdade”.15 Mas o imaginárionão é, em si, ininfluente nem irrelevante, possuiuma potencial eficácia operativa, tanto que, hojeem dia, suas figuras transformaram-se em agirefetivo, comportamentos concretos, conseqüên-cias irreversíveis. “Enquanto algumas das nossasmais duradouras esperanças e dos nossos temo-res de superar as limitações do corpo se fazem reali-

14 FREU D , 1978.15 FINZI, 1990.

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záveis”, pergunta-se J. Turney, “ talvez seja demaispedir para reconhecer que a invenção de históriassobre o futuro é uma atividade séria?”.16

Diante do fato de a fantasia estar invadindo

a existência, assumem-se de costume dois movi-mentos polares: um da negação, da condenação,da interdição; outro caracterizado pelo entusias-mo pelo progresso e pela satisfação pela liberdadedos limites do corpo e dos vínculos da Lei.

Mas se pode falar de liberdade num regimede individualismo anárquico, quando as razõesdos outros não contam?

A liberdade é tal apenas se for definida deforma resídua, descartadas todas as prevaricações

que ela possa provocar em si mesma e nos outros.C omo escreve G iovanni Berlinguer, “É claro quea disponibilidade do corpo nas relações sexuais ea liberdade procriadora (que compreende tam-bém a liberdade de não procriar) implicam tam-bém deveres. Esses são entendidos como a res-ponsabilidade em relação à própria dignidade, emrelação a um sistema de associações entre as pes-soas dotadas de exigências próprias e, sobretudo,em relação a quem nasce”.

O que a psicanálise pode dizer a esse res-

peito? Em primeiro lugar, denunciar, como ten-tamos fazer, a existência de um desejo inconscientenarcisista, onipotente e indiferente à relação, ao li-mite e à medida. U ma vez que o seu ponto de vis-ta não é moral, ao invés de condenar, convémcompreender.

Percebemos, então, que o desejo de procriarcompõe-se de duas dimensões, ainda que distintas,combinadas depois na vida de cada um. A primei-ra, profunda, impulsiva, corpórea, possui uma ex-tensão mais ampla em relação ao indivíduo e à suavida. Representa um plano transindividual, queatravessa o sujeito, mas transcende seus limitessomáticos e mentais.

Amparado na biologia da época, Freud in-troduz uma diferença radical entre o soma , desti-nado a morrer, e as células germinais  (óvulos e es-permatozóides), ao contrário, potencialmenteimortais. Segundo ele,

O indivíduo conduz efetivamente umavida dupla, como fi m de si mesmo e comoanel de uma corrente da qual é instrumen-to, contra ou de algum modo indepen-

dentemente do seu querer. Ele consideraa sexualidade um dos seus próprios fins;mas, de outro ponto de vista, ele mesmoé apenas um apêndice do seu plasma ger-minal, à disposição do qual coloca as pró-prias forças em troca de um prêmio deprazer. Ele é veículo mortal de uma subs-tância virtualmente imortal.17

Essa é uma dimensão gerativa que o ho-mem compartilha com os animais pluricelulares,mas existe uma outra, tipicamente humana, que

corresponde não a um processo impessoal de re-produção, e sim à procriação de um filho.

Nesse caso, há uma dimensão pessoal euma continuidade biográfica do todo desconhe-cido à dinâmica precedente. Escreve Freud:

Se consideramos a atitude dos genitoresparticularmente afetuosa em relação aosseus filhos, devemos reconhecer que talatitude é o renascimento e a reproduçãodo próprio narcisismo ao qual os próprios

genitores renunciaram há tempos. (...) Acriança deve apagar os sonhos e os desejosirrealizados de seus genitores (...). Oamor parental, assim comovente e nofundo infantil, é apenas o narcisismo dosgenitores retornado à nova vida; transfor-mado em amor objetual, revela sem fingi-mentos a sua antiga natureza.18

O produto da fecundação transforma-senum fi lho somente ao se inscrever na história dos

genitores, acolhendo as suas projeções, tornan-do-se parte de seus próprios narcisismos. E, dessamaneira, garantindo a eles um tipo de sobrevivên-cia individual.

Enquanto a reprodução biológica tem pormeta a continuação da espécie, a procriação hu-mana tende inconscientemente à perpetuaçãode si.

16 TU RN EY, 2000, p. 287.

17 FREU D , 1975, p. 448, e 1977, p. 230ss.18 Idem, 1975, p. 460-461.

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Aqui está então a dupla vida  que o homemconduz quando gera. U ma duplicação que per-turba o seu desejo, espremendo-o entre a harmo-nia impessoal da espécie e a consonância perso-

nalíssima da própria biografi a, entre o tempo cós-mico da natureza e o cronológico da cultura.

Se o indivíduo gera apenas porque é domi-nado pela necessidade impessoal da espécie, e nãose arrisca a atribuir ao nascido o estatuto de filho,a relação de genitor aparece rechaçada como im-própria. Assim acontece, ainda que de modo di-verso, no aborto voluntário, no abandono doneonato, no desconhecimento da paternidade.Se, ao contrário, salta a doação de valor e de sen-

tido, a projeção do amor de si sobre o próprioproduto biológico, o projeto filho , toma corpo edesenvolvimento.

É nesse momento que o casal de genitoresconfronta-se com a existência de um terceiro,com as necessidades e os desejos que nascem de-les próprios, sem, no entanto, coincidir. Nesseponto, coloca-se a questão: seria menos lícito pri-var o recém-nascido de uma de suas fi guras de ge-nitores? Atualmente, a figura do pai tem sido amais anulada, mas, no futuro, os dois sexos po-derão igualar-se nesse âmbito.

Ao nos referirmos ao saber psicológico,pertencente, entretanto, sempre ao passado, de-vemos dizer que não conhecemos nenhum sujei-to que não tenha inserido na própria mente omapa edipiano, com as suas três posições: pai,mãe, fi lho. U ma vez que se trata de posições re-lativas, a falta de uma influencia todas as outras.

Embora Freud haja sempre sustentado queo complexo edipiano, base do inconsciente , é eter-

no e universal, não somos obrigados, todavia, aaceitar dogmaticamente essa opção de princípio.As mudanças iniciadas, no século passado, no ar-ranjo da família externa e interna, autorizam a as-sumir uma posição mais aberta à dúvida e à inves-tigação analítica. Talvez seja possível que a passa-gem da família  às famílias , de um modelo único enormativo a uma pluralidade de configurações,comporte uma nova ordem da mente e, conse-qüentemente, subjetividades inéditas.

Já observei como essa possibilidade consti-tui a condição para a abertura do cenário utópico,contudo, até agora, não conseguimos imaginarum palco psíquico e social diferente. É verdade

que sempre existiram crianças crescidas de um sógenitor, mas esse conserva, ainda que vazia, a po-sição do outro. E, como sabemos, a ausênciapode ser mais determinante do que a presença.

A perda acontece, ao contrário, ante oeventual cancelamento do terceiro, na declaração“O fi lho é meu e eu o gero” , em que a concreti-zação de eu  e meu  parece interditar os processosnecessários de autonomia do recém-nascido.

Se a desagregação familiar chegará a corroer

a relação de genitor, atualmente constitutiva donúcleo permanente , deveremos, de algum modo,prestar contas dos efeitos de uma monopaterni-dade radical não eventual.

Para impedir ao genitor único fechar-se naauto-suficiência, e assegurar à criança duas figurasde referência, se terminará provavelmente com oprescindir do estabelecimento da dupla pai-mãesobre a relação sexual, assim como daquele ates-tado social do certificado de matrimônio ou daconvivência.

U ma possível solução é representada poruma aliança entre genitores, na qual dois adultosconcordam em acolher como filho um nascituro,sem que isso comporte uma relação sexual, co-mo, ao contrário, presume-se nos casais oficiaisou de fato.

O empenho diante da comunidade se limi-taria, então, a garantir responsavelmente à criançafunções paternas e maternas. A sexualidade per-maneceria, assim, um fato privado, não dizendorespeito à sociedade. Isso se daria conforme asnovas identidades de gênero: mutáveis, comple-xas, individuais, não necessariamente definidaspelo tipo de parceiro a que se dirigem.19

É difícil, senão impossível, entender todasas conseqüências das mudanças que mesmo Ber-linguer, contrário a cada hipérbole, define comode época . Porém, os indícios apontam que as coi-sas, queiram ou não, caminham nessa direção.

19 H ARAWAY, 1995; FI NZI , 2000.

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Trata-se de refletir responsavelmente por que arealização do desejo não é inibida, por que elacomporta um esgotamento das fontes vitais e daspotencialidades criativas. Mas nem mesmo ime-

diatamente equiparada à liberdade, porque se ar-risca a negar necessidades, desejos e direitos dosoutros.

Se é verdade que a civilização rege-se, comosustenta Freud, sobre o sacrifício impulsivo, aque devemos renunciar para que a geração man-tenha-se humana, não obstante o crescimentodas intervenções técnicas?

A técnica, assim como a geração dirigida àcontinuação da espécie, procede de modo neutro,impessoal, necessário. O encontro com o desejo,ligado à responsabilidade moral, confere ao serhumano uma dimensão subjetiva, colocando-o,em relação à natureza, na posição de pertenci-

mento e transcendência que o distingue. Fica ain-da difícil demonstrar âmbitos de subjetividade noque se refere ao estímulo do impulso e à urgênciada ação. Se existe uma possibilidade, ela consiste

na administração do desejo, função intermédiaentre o corpo e a mente, entre a razão e a paixão,entre o imaginário e o simbólico, entre o eu e ooutro.

A complexidade reconhecida da realidadepsíquica e a evidente fragmentação da realidadesocial representam, portanto, um desafio para acriatividade humana. Não se pedem, de fato, umaadaptação no sentido passivo, e nem mesmo noda refutação do empenho, mas no de utilizar ascapacidades imaginativas, ao mesmo tempo cog-nitivas e afetivas, para configurar um novo arran-jo das relações que o indivíduo mantém consigomesmo e com os outros.

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 32 Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 21-32, 2003

Dados da autora

Escritora italiana, formada em pedagogia, com especialização em psicologia clínica.Trabalhou como psicoterapeuta para problemas da infância, família e escola.

Desde 1975 é docente de psicologia dinâmica no Departamento de

Filosofia da Università di Pavia/Itália.Ex-membro do Comitato Italiano di Bioetica.

Recebimento artigo: 2/set./03

Consultoria: 3/set./03 a 22/set./03

Aprovado: 23/set./03

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Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003   33

Ética Empresarial eResponsabilidade Social

Corporativa à Luz daTeoria de Julgamento Moral,de Lawrence KohlbergBUSINESS ETHICS AND CORPORATESOCIAL RESPONSIBILITY IN LIGHT OFLAWRENCE KOHLBERG’S THEORY OF

MORAL JUDGEMENT Resumo Este ensaio trata da relação entre a ética e as ciências econômicas. Para tanto,discute o interesse na ética empresarial  e a evolução da preocupação com a responsa- bil idade social corporativa , tomando por base as teorias de Swift e Zadek. A seguir,apresenta a teoria do julgamento moral de Kohlberg, comparando os estágios evolu-tivos nela definidos com as categorias das discussões sobre ética empresarial. Mostratambém a necessidade de se reconhecer que a responsabilidade social corporativa sur-giu em resposta às reivindicações da sociedade. Indica que a ação da maioria das em-presas ainda corresponde aos estágios mais elementares de desenvolvimento moral eque as expectativas quanto ao seu papel, como fundamental para reverter o quadro de

pobreza global e a degradação ambiental dificilmente, poderão ser cumpridas por cadauma delas, isoladamente. Conclui sobre a necessidade de maior comunicação e cola-boração entre os vários setores da sociedade para desenvolver uma ética econômica eempresarial aplicada à transformação social.

Palavras-chave ÉTICA EMPRESARIAL – RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA

– JULGAMENTO  MORAL.

Abstract  This paper deals with the relationship between ethics and economic sciences.It discusses the interest in business ethics and the evolution of the concept of corporate social responsibility  as outlined in the theories of Swift and Zadek. Next, it presents

Kohlberg’s theory of moral judgement and compares the evolution of moral stages tothe categories of business ethics. In addition, it shows the need to acknowledge thatcorporate social responsibility came as a response to societal demands. That most of theactions of businesses still correspond to elementary stages of moral developmentindicates that the expectation that business play a fundamental role in reversing thepresent context of global poverty and environmental degradation cannot be met inisolation. In conclusion, communication and collaboration is needed among thevarious sectors of society in order to develop an economic and business ethics whoseapplication could result in social transformation.

Keyw ords BUSINESS  ETHICS  – CORPORATE  SOCIAL  RESPONSIBILITY   – MORAL

JUDGMENT.

MARGARET ANN

GRIESSEGlobal Responsibilit y Project,

Concordia University,

Montréal/Canadámargaret_griesse@ hotmail.com 

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 34 Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

The nature of modern economics has been substantially impoverished by the distance 

that has grown between economics and ethics.AMARTYA SEN

INTRODUÇÃO

economia moderna, na condição de ciência, é geralmentecaracterizada por uma vasta área de pesquisas empíricase teóricas sobre temas como econometria, contabilidade,administração, comércio e marketing, entre outros, queraramente tratam de questões morais. Recentemente,porém, ao avaliar sobretudo processos de tomada de de-cisões e seu impacto global, essa área tem se aberto a dis-cussões ambientais, sociais e particularmente éticas,

mostrando que o diálogo entre ética e economia é possível.1 As empresas, entendidas como unidades fundamentais no contexto

global, são cada vez mais desafiadas a aplicar princípios éticos e a respon-sabilizar-se por atos relacionados direta ou indiretamente com os proble-mas da sociedade. Em casos como esses, elas não podem se limitar a umavisão rígida e estreita de seus interesses particulares, e sim desenvolvercritérios específicos fazendo jus à sua realidade, isto é, considerando nãosomente fatores econômicos, mas também os contextos políticos, os im-

pactos sociais e ambientais e vários outros aspectos associados às suas ati-vidades. C om base nessas considerações práticas, surge, cada vez mais, ecom maior apelo, a ênfase no conceito de ética empresarial .2

O NOVO INTERESSE NA ÉTICA EMPRESARIALA discussão recente sobre ética começou a ganhar força na década

de 1980, provocando uma série de mudanças de comportamento nas em-presas.3  Pesquisa realizada pelo Bentley C ollege Center for BusinessEthics, nos Estados U nidos, com 244 multinacionais, apresenta dadosconcretos sobre tais transformações. Em 1990, 46% delas afirmaram es-tar expandindo suas ações no sentido de incorporar a ética como uma

questão institucional, ao passo que, em 1984, somente 19% haviam to-mado iniciativas nessa área. Por outro lado, 49% já tinham adotado algu-

1 Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, tem sido um dos mais importantes defensoresdesse diálogo. C f. SEN , 1987.2 A expressão ética empresarial é utilizada aqui em sentido amplo, ainda que em alguns estudos ela serefira mais ao comportamento interno da empresa, ou seja, à maneira como os funcionários resolvemproblemas éticos de seu trabalho no dia-a-dia.3 A preocupação com questões éticas nas relações econômicas e comerciais tem antecedentes de longadata, desde o C ódigo de H amurabi, passando pelas associações profissionais da Idade Média, chegandoàs iniciativas hoje em dia consideradas paternalistas, como as ações fi lantrópicas de Ford e C arnegie, nosEstados U nidos, no século XX. C f., por exemplo, BAU TIER, 1971; SWARD , 1972; G IES & G IES,1972; BARBO SA, PED RO N & CAFFARATE, 2003.

 AA A A

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ma forma de treinamento no âmbito da ética em1990, apontando um avanço substancial com re-lação a 1984, quando esse índice foi de 35%.4 Asrazões para essas mudanças são várias.

U ma delas é que as expectativas da socieda-de civil aumentaram com respeito à atuação dasempresas, ao mesmo tempo em que a confi ançada sociedade para com essas instituições dimi-nuía. Para lidar com essa situação, elas começa-ram a desenvolver – após um período de negaçãode sua responsabilidade perante a sociedade –projetos pró-ativos, destinados a evitar o julga-mento social negativo sobre suas atividades. Par-ticularmente as transnacionais, sensíveis a possí-

veis denúncias, passaram a incorporar programasde ética empresarial e organizaram códigos de de-sempenho ético para seus funcionários, criandosetores e recrutando recursos humanos para essefi m.5

Além disso, há uma percepção generalizadade que o Estado nacional não tem tido condiçõespara responder às necessidades de suas popula-ções. Mesmo nos países onde os benefícios doEstado são maiores – nos chamados welfare states ou Estados sociais democráticos –, a cri se do Es- 

tado  tem tornado difícil ao poder público propor-cionar uma vida digna a todos os cidadãos e cida-dãs. Em resposta a essa situação, surgiram outrastentativas de providenciar tais benefícios, tendoem vista o bem comum. No Brasil, por exemplo,empresas, organizações civis e várias instânciasdo Estado envolveram-se em alianças que têm re-dundado no desenvolvimento de novos modelosde atuação para os setores público, privado e tam-bém para o chamado terceiro setor.6

O utra explicação para o interesse na éticaempresarial pode estar relacionada, em parte, aum projeto internacional, delineado pela O NU  epor outras organizações supranacionais, com osobjetivos de reduzir a pobreza no mundo, defen-der o meio ambiente e promover o desenvolvi-

mento sustentável. O Pacto G lobal  foi uma inicia-tiva do secretário-geral das Nações Unidas, KofiAnnan, lançado formalmente em 2000. Ele soli-cita às empresas que explicitem sua adesão a nove

princípios universais, relativos a direitos huma-nos, normas trabalhistas e questões ambientais.Nas palavras de Kofi Annan: “Vamos nos decidirpor unir as forças do mercado com a autoridadede ideais universais. Resolvemos reconciliar asforças criativas da iniciativa privada com as neces-sidades dos desfavorecidos e as demandas dasgerações futuras”.7

Aliado a isso, a ética empresarial pode servista como parte de uma resposta às situaçõescom as quais somos atualmente confrontados:preocupações com o crescente número de pessoasvivendo em condições de miséria, a percepção ge-neralizada de que a integridade do meio ambientenão pode ser mantida com os atuais níveis de de-gradação, o alarmante avanço da pandemia deaids no continente africano, os crescentes confli-tos internacionais e a ampliação do impacto doterrorismo, além da globalização e do aumentona concorrência internacional. Também devemser mencionadas questões que afetam mais dire-

tamente as empresas, entre elas, as exigências e acrescente desconfi ança das sociedades quanto àação empresarial, incluindo as denúncias deorganizações internacionais e da sociedade civil,assim como o desenvolvimento de tecnologias decomunicação a permitir a rápida divulgação de in-formações que podem afetar o desempenho, a vi-sibilidade, a respeitabilidade e o valor de mercadode determinada organização.

Todos esses pont os podem ser encaradoscomo razões para o renovado interesse na discus-

são sobre o papel da empresa na sociedade. Ao le-var em conta esse amplo contexto, podemos con-cluir que o interesse pelo tema da ética empresa- rial   não é um fenômeno puramente endógeno,nascido dentro das empresas e depois ampliadopara esfera social. Pelo contrário, ele não pode servisto de modo isolado, mas também como uma

4 WEISS, 1994, p. 3.5 Para uma análise histórica e evolutiva da reação das empresas àsdenúncias ambientais, cf. HO FFMAN , 2001.6 Cf. FISCHER & FALCONER, 1998; FERNANDES, 1994;FO RSTATER, MAC D O NALD & RAYNARD , 2002.

7 U NI TED NATIO NS G lobal C ompact: < www.unglobalcom-pact.org> , jan./03 [essa e todas as traduções a seguir são da própriaautora].

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 36 Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 33-48, 2003

reação à situação econômica paradoxal em quenos encontramos.

DA ÉTICA EMPRESARIAL À 

RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVAAs razões aqui colocadas não explicitam o

conteúdo das iniciativas, nem como a ética em-presarial poderia ser defi nida. Tampouco dizem,mais especifi camente, como ela é implementadadentro das empresas. Recentemente, expressõescomo responsabilidade social corporativa , filantro- pia , cidadania empresarial , marketing empresarial ,ética empresarial , terceiro setor  e balanço social , en-tre outras, entraram no vocabulário econômico e

ganharam aceitabilidade nos discursos sociais,empresariais e políticos, sem muita reflexão ante-rior sobre seu significado ou suas conseqüências.

Em artigo bem-humorado, Solomon co-menta que o problema referente à ética empresa-rial não é mais a “ignorância”, pois tanto as uni-versidades quanto as empresas e organizações ci-vis são conscientes dos discursos e estão se en-volvendo com o assunto. O problema dizrespeito a “uma confusão muito mais sofisticada”sobre o que devemos esperar do tema e como a

teoria sobre ética poderia ser útil nas práticas em-presariais.8 

D e forma resumida e geral, Weiss propõedefinir a ética empresarial como “a arte e a disci-plina de aplicar princípios éticos para examinar esolucionar dilemas morais complexos”.9  Maisanaliticamente, e tomando a perspectiva das teo-rias micro e macroeconômicas, podemos notartambém duas vertentes gerais nessa discussão.Por um lado, teorias macroéticas sobre ética em-

presarial englobam o direito, a filosofia sociopo-lítica e a economia, tratando, por exemplo, osmecanismos de distribuição de bens dentro domercado livre, os direitos à propriedade e as po-líticas públicas. Por outro, teorias microéticas so-bre ética empresarial focalizam o indivíduo no in-terior da corporação, e o seu papel e comporta-

mento dentro e fora da empresa, ao passo que, nacorporação particular, poderiam discutir a relaçãodela com funcionários e membros da comunida-de, no que diz respeito a discriminação, assédio

sexual, qualidade do produto, relações trabalhis-tas e outros.10 

Visto por outra ót ica, o discurso sobre éticano mundo empresarial e nas organizações civistem enfatizado a idéia de responsabilidade  diantedas expectativas da sociedade e dos complexosdilemas morais que nos confrontam em vários ní-veis. O termo preferido na literatura empresarialpara caracterizar essa questão tem sido responsa- bil idade social corporativa . São várias as suas defi -

nições e múltiplas as dimensões subentendidas:desde a tentativa de definir o compromisso dasempresas com seus próprios empregados e clien-tes, passando pela normatização de seus procedi-mentos internos e chegando ao compromissocom a sociedade, com os direitos humanos, coma preservação do meio ambiente e com o desen-volvimento sustentável.

No Brasil, o Instituto Ethos, criado, em1998, como uma associação de empresas com oobjetivo de disseminar a prática de responsabili-dade social nas organizações brasileiras, num pro-cesso de avaliação e aperfeiçoamento contínuo,relata a sua visão quanto à participação delas daseguinte forma:

As empresas, adotando um comporta-mento socialmente responsável, são po-derosos agentes de mudança para, junta-mente com Estados e sociedade civil,construir um mundo melhor. Este com-portamento é caracterizado por uma coe-

rência ética nas suas ações e relações comos diversos públicos com os quais intera-gem, cont ribuindo para o desenvolvimen-to contínuo das pessoas, das comunida-des e de suas relações entre si e com omeio ambiente.11

8 SOLO MO N, R.C . “C orporate Roles, Personal Virtues: an Aristote-lian approach to business ethics”, in: WINKLER & CO O MBS, 1993,p. 202.9 WEISS, 1994, p. 6.

10 SOLO MO N, R .C . “C orporate Roles, personal virtues: an Aristo-telian approach to business ethics”, in: WINKLER & COOMBS,1993. C f. também SOLO MO N & H ANSO N, 1985.11 IN STITUTO ETH O S: < http://www.ethos.org.br/docs/institucio-nal/visao.shtml> , 2003.

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No quadro internacional, o ConselhoMundial de Negócios para o D esenvolvimentoSustentável (World Business C ouncil for Sustai-nable D evelopment-WBCSD ) chegou a propor,

após pesquisar as tendências regionais, nos várioscontinentes, durante dois anos, a seguinte defi-nição geral de responsabilidade social corporativa :“compromisso das empresas em contribuir parao desenvolvimento economicamente sustentável,trabalhando com funcionários, suas famílias, acomunidade local e a sociedade em geral para me-lhorar sua qualidade de vida”.12

Entre outras tentativas de definir o com-promisso empresarial com a responsabilidade so-cial, essas foram usadas como base para o desen-volvimento de vários códigos e guias, de modo aorientar as empresas a desenvolver ações e medi-das que, em seu conjunto, são entendidas comoindicadores de sua responsabilidade social corpo-rativa. Por exemplo, partindo de sua visão global,o Instituto Ethos publicou uma lista de indicado-res para que a empresa possa avaliar o seu desem-penho nas seguintes áreas: valores e transparên-cia, público interno, meio ambiente, fornecedo-res, consumidores e clientes, comunidade, gover-

no e sociedade.13O utra iniciativa em âmbito mundial é a

Norma de Responsabilidade Social SA8000, lan-çada em 1997 e revisada, pela Social Accountabi-lity Int ernational (SAI), em 2001. A SA8000 con-siste num código para a auditoria de condiçõestrabalhistas básicas, apoiado nas normas da O r-ganização Internacional de Trabalho, na D eclara-ção dos D ireitos H umanos e na Convenção paraos D ireitos da C riança. Abrange nove temas: tra-balho infantil, trabalho forçado, segurança e saú-

de no trabalho, liberdade de associação e direito ànegociação coletiva, discriminação, práticas disci-plinares, horário de trabalho, remuneração e sis-temas de gestão.14 Esse sistema de certificação ésimilar ao esquema internacional de Avaliação da

Conformidade por Organismos Certificadoresde Sistemas de G estão da Q ualidade (ISO  9000) eao Sistema de G estão Ambiental (ISO  14000).15 

A G lobal Reporting Initiative (G RI) é uma

instituição dedicada a desenvolver e disseminar asSustainability Reporting G uidelines, diretrizesvoluntárias organizadas de acordo com as dimen-sões econômicas, ambientais e sociais. A G RI  foidesenvolvida em colaboração com o Programa deMeio Ambiente da O NU  e o Pacto G lobal. Essasdiretrizes ou guias medem não o desempenho,mas as formas de elaboração de relatórios (repor- ting ), para que a divulgação de informação sobrea organização esteja em conformidade com os

princípios de globalidade, transparência, inclusi-vidade, auditabilidade, relevância e contexto desustentabilidade por meio de um processo multi-stakeholder .16

Essas são algumas das inúmeras iniciativaslançadas nos últimos anos. Podemos observar, demodo geral, a tendência de reivindicar a aplicaçãoconcreta dos princípios universais, já aceitos emgrande parte, pela comunidade internacional,como a D eclaração dos D ireitos H umanos e asrecomendações para a diminuição dos níveis de

agressão contra o meio ambiente. A responsabi-lidade social é vista, assim, como um veículo paraa transformação social, desde que a empresa váalém de seus interesses próprios estritamente de-finidos, posicionando-se como ator importantena comunidade, no contexto nacional e até emrelação aos processos internacionais.

Voltando a Solomon, podemos concluirque somos atualmente confrontados por umaconfusão sofisticada   ao tentar relacionar as dife-

rentes defi nições de ética empresarial e de res-ponsabilidade social corporat iva. Tal confusãoocorre não somente por haver concepções de éti-ca empresarial segundo a micro e a macroecono-mia, mas também em razão de diretrizes, guias e

12 H O LME & WATTS, 2000, p. 10.13 IN STITUTO ETH O S: < http://www.ethos.org.br/docs/conceit os_praticas/indicadores/default .asp> , 2003.14 Cf. SOC IAL ACC OUNTABILITY International: < www.sa-intl.org> , ou< www.cepaa.org/Document%20C enter/Standard%20Portuguese.doc> ,2003; e CIC CO, 2002.

15 ISO-International O rganization for Standardization (O rganizaçãoInternational de Standarização) é uma organização não-governamental ea maior organizadora de códigos voluntários para organizações e empre-sas do mundo. O s códigos mais conhecidos são ISO  9000, sobre gestãode qualidade, e ISO  14000, que lida com gestão do meio ambiente. Paramaiores informações, cf. < www.iso.ch> .16 G LO BAL REPO RTIN G IN ITIATIVE, 2002.

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indicadores distintos para definir e operacionali-zar o que se entende por responsabilidade socialcorporativa. Além disso, as expectativas são gran-des e trazem consigo várias questões. Em alguns

casos, as empresas são vistas como catalisadores etransformadores do contexto global. Porém, quecondições elas têm de atender a esses anseios?Trata-se de uma intrincada situação, que nos levaa indagar: até que ponto podemos relacionar essefenômeno com outras conceituações sobre éticae sua aplicação a di lemas morais complexos ?

AS GERAÇÕES EVOLUTIVAS DA RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA

Para dar sentido e sistematização às váriasdefinições e experiências apresentadas, tornamosao trabalho de Tracey Swift e Simon Zadek.17

Eles partem da análise da situação de empresas nomercado europeu para concluir que as iniciativasna área de responsabilidade social corporativapermanecem limitadas, quando não são incorpo-radas em estratégias e políticas mais amplas. Ar-gumentam que, até agora, o foco tem sido a em-presa particular (microética) e a forma como elareage a novas situações e desenvolve políticas deresponsabilidade social, ao passo que o novo de-safio seria a possibilidade de operacionalizar umapolítica em conjunto com outros setores da so-ciedade (macroética).18 Para atingi-lo, as empre-sas precisariam desenvolver um entendimentomais sofisticado sobre responsabilidade socialcorporativa.

Swift e Zadek delineiam três estágios ougerações   de responsabilidade social corporativa,tomando por base suas pesquisas sobre a evolu-

ção do pensamento ético dentro das empresas. Oprimeiro é o estágio básico . Nele, a empresa con-sidera a responsabilidade social corporativa comomera obrigação de cumprir com as leis referentes

a impostos, segurança e saúde, direitos trabalhis-tas, direitos do consumidor, regulamentação so-bre meio ambiente e outras normas vigentes. Paraser considerada boa e responsável, ela deve sim-

plesmente atuar de acordo com as regras do jogo.Esse estágio não significa necessariamente umapolítica de responsabilidade social, e sim o míni-mo a se esperar de uma empresa em termos decomportamento moral, pois cumprir as leis nãoseria necessariamente uma grande virtude, mas osimples exercício de uma cidadania que visa a quesuas ações não sejam consideradas criminosas.

Mais além desse estágio inicial, Swift e Za-dek definem a primeira geração   da responsabili-

dade social corporativa (low-level business case ),19

em que a empresa percebe a importância de evitarriscos ou crises e, para tanto, implementa proces-sos de risk-management   de curto prazo, açõespró-ativas e doações filantrópicas. A expressãobusiness case  trata de uma justifi cativa apoiada nosbenefícios que poderiam melhorar o funciona-mento da empresa, e não em qualquer princípioético além do interesse próprio.

Já na segunda geração  (responsabilidade so-cial corporativa estratégica), a empresa incorpora

tal responsabilidade em sua estrutura, criando-lheuma gerência geral. Isso ocorre quando ela per-cebe, por exemplo, que pode agregar valor a seusprodutos e serviços, ao relacioná-los com progra-mas sociais e benefícios e, assim, atrair e manterfuncionários talentosos. C om uma estratégia deconstante diálogo a longo prazo com a comuni-dade, a empresa pode desenvolver sensibilidadeàs necessidades do consumidor ou usuário e criarprodutos de acordo com elas. Nessa condição, a

responsabilidade social corporativa é vista comouma boa estratégia empresarial e há a tentativa desistematizar a questão ética em todos os setoresda empresa.20

Por fim, na terceira geração  (reformulaçãodas vantagens competitivas), a responsabilidadesocial corporativa é vista não quanto ao compor-tamento exemplar de algumas empresas particu-

17 SWIFT & ZAD EK, 2002. Esse estudo foi organizado por TheCopenhagen Centre (TC C ), centro autônomo de reconhecimentointernacional estabelecido pelo governo da D inamarca, e AccountAbi-lity, organização não-governamental localizada em Londres e uma dasprimeiras entidades a lidar com a questão da responsabilidade socialcorporativa. Simon Zadek é diretor-presidente da AccountAbility eTracy Swif t é diretor de P esquisa dessa organização.18 Ibid ., p. ii.

19 Ibid ., p. 13-14.20 Ibid ., p. 14-15.

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lares, mas como parte do tecido da economia . Issoinclui o desenvolvimento de um modelo de par-ticipação generalizada de múltiplos stakeholders ,parcerias, construção de instituições e políticas

públicas.21 Esse modelo teria de incluir, necessa-riamente, um processo de diálogo e comunicaçãoentre os vários setores do país e até mesmo asorganizações internacionais.

Entre as discussões que poderiam ser levan-tadas nessa geração está, por exemplo, se os có-digos de responsabilidade social teriam como fa-vorecer as empresas multinacionais e prejudicaras microempresas. Na mesma linha, no âmbitodo comércio internacional, a adoção dos precei-tos de responsabilidade social poderia beneficiaros países mais ricos, que têm os recursos para de-senvolver e implementar produtos que adquiremum prêmio intangível .22 Num mundo globaliza-do, onde muitos países pobres dependem particu-larmente do desempenho de organizações meno-res, os códigos poderiam aumentar os problemassociais, ao invés de solucioná-los. Swift e Zadekvêem a resposta a esse dilema no desenvolvimentode clusters de responsabilidade social, ou seja, nacooperação entre empresas, sindicatos, O NG s e

as várias instâncias do poder público. Argumen-tam q ue uma organização mais sistemática e efi -ciente de responsabilidade social no âmbito daeconomia seria capaz de aumentar a competiti-vidade de toda uma nação. Já há tentativas bra-sileiras nesse sentido, por exemplo, os projetosPPP (Parcerias Público-Privado),23 envolvendo ainiciativa privada e o Estado na construção deinfra-estrutura. Porém, de modo geral, esse es-tágio – tanto no Brasil quanto na Europa – aindaestá para ser criado.

É por meio dessa análise evolutiva que sepode avaliar mais precisamente a maneira como oconceito de responsabi lidade social  está sendo im-plementado na empresa e no mundo. D e acordocom os estudos de Swift e Zadek, a maioria dasinstituições atualmente envolvidas com respon-sabilidade social corporativa encontra-se na pri-

meira geração, havendo, porém, um número cadavez maior chegando à segunda geração. Entretan-to, nossa preocupação principal não é necessaria-mente registrar a ampliação no uso desse concei-

to em si, mas questionar de que modo relacionaras práticas econômicas com a concepção de ética,para melhor definir o que é ou não ética empre- sarial . A visão da responsabilidade social corpo-rativa segundo estágios oferece uma boa basepara realizar esse intento, pois podemos compa-rá-los com os estágios do desenvolvimento morale ético, sobre os quais existe ampla literatura aindanão utilizada extensivamente para tratar esse te-ma. C onsideramos, então, necessária uma avalia-ção da atuação da empresa, com base em teoriasmais abrangentes, como os estudos empíricos e asreflexões teóricas desenvolvidas por LawrenceKohlberg.

A TEORIA DE JULGAMENTO MORAL, DE LAWRENCE KOHLBERG 

Kohlberg preocupou-se em definir os níveisde consciência moral dos indivíduos, 24 tendo porbase os estudos de Jean Piaget. Julgamento moralrefere-se aqui à maneira como uma pessoa resolve

dilemas e chega a decisões valendo-se de um fun-damento ético. Portanto, mantemos a definiçãoinicial de Weiss, da ética como a arte e a disciplina de aplicar princípios éticos , enquanto entendemosser a moral o julgamento diante de um problemaconcreto. A moral refere-se, assim, a umacontextualização ou à praticabilidade da ética.

Kohlberg baseia seu trabalho numa defi-nição de justiça , proposta na filosofia moral deKant, que a entendeu como um conceito ético

fundado em princípios universais e em pressu-postos racionais, cognitivos e formais. Apesar desuas raízes obviamente ocidentais e de ser consi-derada muito abstrata, a concepção de princípios éticos universais   tem sido incorporada em docu-mentos internacionais, como nas várias declara-ções referentes aos direitos humanos, apresen-tando, portanto, uma validade não apenas formal,mas também política e social. Além de funda-

21 Ibid ., p. 15.22 Ibid ., p. 18.23 C O NC EITO de PPP, 10/08/03. 24 KO H LBERG , 1981 e 1987.

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mentar seu trabalho nesse conceito, Kohlbergtambém o complementou com estudos empíri-cos, envolvendo grande contingente de pessoasestudadas durante mais de 20 anos. Por isso, con-

sideramos a sua teoria atual e válida para a nossadiscussão, sendo sempre citada como referênciaobrigatória no debate atual sobre o tema.25

O ponto de partida para a teoria sobre éticae julgamento moral, de Kohlberg, são os estudospiagetianos de estágios de desenvolvimento.26 Deacordo com a epistemologia de Piaget, a criançanão nasce inteligente ou com uma moralidade,mas desenvolve suas capacidades por meio de umprocesso de construção cognitiva em interaçõescom o meio ambiente. Nesse processo, a criançapassa por estágios que consistem em sistemascompletos de pensamento, pelos quais se organi-za a informação, de acordo com as estruturas e ospadrões do sistema. Mediante processos cogniti-vos de assimilação e acomodação, a criança avan-ça de uma estrutura mais simples para outra maiorde pensamento, que incorpora os estágios préviosem um sistema mais complexo e abrangente.

Kohlberg, por sua vez, incorpora o cons-trutivismo de Piaget, mas o modifica significati-

vamente no que diz respeito à teoria moral. Deacordo com Kohlberg, os estágios morais repre-sentam esquemas cognitivos qualitativamentediferenciáveis, seqüenciais, integrados hierarqui-camente e considerados universais. O indivíduoteria de passar seqüencialmente pelos distintosníveis, integrando as estruturas prévias de pensa-mento num sistema mais complexo. E Kohlbergargumenta que tais estruturas de pensamentomoral são comuns a todas as pessoas, indepen-dentemente da cultura.

Para sistematizar esses aspectos distintos,ele desenvolveu uma teoria de desenvolvimentomoral que incorpora três níveis: pré-convencio- nal , convencional  epós-convencional , cada um de-les constituído por dois estágios. Assim, chegoua um total de seis estágios progressivos de desen-volvimento moral.

O primeiro nível, pré-convencional , refere-se ao desenvolvimento normalmente encontradoem crianças até aproximadamente os nove anosde idade, fase em que a moralidade é considerada

algo externo, imposto por uma fi gura autoritária.A pessoa raciocina como um indivíduo que aindanão se coloca como membro de uma sociedade.No primeiro estágio desse nível, ela age cegamen-te à autoridade externa – a moralidade é impostapela autoridade por meio de ameaças de punição.Também nessa fase o indivíduo é egoísta e nãotem a capacidade de tomar a perspectiva do ou-tro. Já no segundo estágio desse primeiro nível, apessoa pensa e age de acordo com os próprios in-teresses, mas consegue perceber que outros po-dem ter anseios diferentes. Para lidar com essa si-tuação conflitante, ela se envolve em acordos,apoiados na idéia de troca e seguidos na medidaem que satisfazem os desejos pessoais. Se, no pri-meiro estágio, a ameaça de punição prova quealgo é errado ou imoral, no segundo, o interessepróprio indica o que vale como moral, ao passoque a punição é vista simplesmente como algo aser evitado.

No segundo nível, convencional , o indiví-

duo considera-se membro de um grupo maior etem uma noção da importância das normas sociais.Tende a identificar-se com as normas e acreditarna moralidade como o que é definido pela socie-dade. Tem-se aqui o terceiro estágio, no qual apessoa preocupa-se em possuir característicasconsideradas boas, comportar-se de acordo comas expectativas da família ou do grupo e desen-volver sentimentos como amor, lealdade, empa-tia, gratidão etc. O s sentimentos compartidos e ospapéis sociais a serem desempenhados ganhammais importância do que os interesses individuais.Passando-se, porém, para o quarto estágio – aindacomo parte do nível convencional –, a pessoa en-tende-se como membro da sociedade e preocu-pa-se em cumprir seus deveres e manter a ordeme o bem-estar geral. Enquanto a moralidade doterceiro estágio é defi nida mais pelos laços de fa-mília, grupo social ou comunidade local, a doquarto estágio envolve a organização, instituiçõese responsabilidades com o sistema social maior.

25 C f. as referências a Kohlberg em H ABERMAS, 1993; APEL, 1994;G ILLIG AN, 1982; e a crítica de Sung, em ASSMAN & SUN G , 2000.26 PI AG ET, 1932.

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No terceiro nível, definido por Kohlbergcomo pós-convencional , o indivíduo é capaz de irmais além e olhar a sociedade de uma perspectivaexterior, realizando julgamentos sobre como ela

deveria organizar-se, valendo-se de fundamentospreviamente determinados. D iferentemente doquarto estágio, no qual se dá a preocupação emmanter a ordem vigente, a pessoa no quinto es-tágio apóia a ordem social apenas quando essatem sua base num contrato social, processos de-mocráticos e direitos fundamentais. As leis sãoavaliadas quanto à sua coerência com os princípiosde justiça. No sexto estágio, tais princípios sãoentendidos como transcendentes a sociedades ouculturas e devem ser apoiados independentemen-te das leis, normas ou convenções.

Nesse nível, segue-se a própria consciência– por sua vez, altamente desenvolvida – para de-terminar a moralidade de uma ação, em vez defirmar a decisão ou ação em convenções. Kohh-berg admit iu que poucas pessoas conseguem che-gar a esse último estágio e acabou por desconsi-derá-lo, deixando-o somente como uma possibi-lidade teórica de seqüência na evolução moral.

Em suas pesquisas empíricas, Kohlberg co-

locou cada indivíduo diante de um dilema morale pediu para que justificasse sua opinião sobrecomo ele deveria ser resolvido. Não se preocu-pou com as respostas quanto à definição de açãocerta ou errada, mas com as justificativas e os ar-gumentos, indicativos do nível de julgamentomoral do entrevistado. Por meio de exaustivaspesquisas longitudinais e interculturais, Kohlbergapresentou evidências com relação às suas teses.

É importante novamente enfatizar que Kohlbergbaseia a sua análise nas justificativas, e não nasrespostas afirmativas ou negativas. Por exemplo,a resposta de que alguém ou alguma empresa de-veria obedecer à lei pode receber distintas justifi -cativas, de acordo com os diferentes níveis. Nopré-convencional, a lei deveria ser obedecida porter sido imposta por uma autoridade ou porque anegligência no respeito a ela poderia resultar empunição. No nível convencional, obedecendo alei, a pessoa ou empresa receberia uma boa avalia-ção da comunidade ou estaria fazendo o seu dever

na sociedade, mantendo a ordem social. Finalmen-te, o argumento no nível pós-convencional resul-taria da análise sobre a correspondência entre a leie os princípios universais. Questões a serem res-

pondidas antes da tomada de decisão seriam: nes-se contexto particular, há conexão entre obe-diência à lei e apoio dos fundamentos? O s prin-cípios fundamentais requerem uma ação que in-clui a lei, mas, ao mesmo tempo, vai além dela?

A teoria de Kohlberg tem sido discutidapor vários autores e autoras, levando a uma sériede debates sobre a fundamentação e a universali-dade dos princípios éticos. Por exemplo, a éticado cuidar (caring ), desenvolvida por C arol G illi-gan, defende que o conceito de ética   propostopor Kohlberg é limitado. G illigan afirma que asmulheres têm uma tendência a desenvolver suaética na consideração para com o outro, na ne-cessidade de cuidar e de fazer intervenções navida do outro.27 Nesse sentido, reclama do con-ceito de justiça de Kohlberg como demasiadoabstrato, por não incluir essa dimensão.

A ética do discurso, de Jürgen H abermas eKarl-Otto Apel, incorpora os estágios de Kohl-berg. De acordo com H abermas, o discurso e a

ação comunicativa dentro de uma estrutura demo-crática possibilita a pessoas, grupos, instituições eorganizações internacionais chegarem ao consen-so sobre responsabilidade, moralidade, justiça ouética. Na sua concepção, a teoria de Kohlbergconfi rma a prática da ética discursiva.28 Nesse es-quema, H abermas se interessa sobretudo pelo ní-vel pós-convencional, argumentando que o dis-curso permite a construção de meios e estruturas,tendo em vista a comunicação democrática. Apel,por sua vez, considera que a teoria de Kohlberg

vale como descrição empírica da evolução moral,ao passo que a ética do discurso assume o papelde fundamentação filosófica pragmático-trans-cendental do princípio normativo da ética.29 Tan-to H abermas como Apel incluem a dimensão dacomunicação e do discurso como a instância ca-paz de ajudar a resolver o problema de definir a

27 G ILLI G AN, 1982.28 H ABERMAS, 1983, p. 185ss.29 APEL, 1994, p. 224.

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ética pós-convencional em termos de princípiosuniversais, sem, contudo, submetê-la ao planoexclusivamente ocidental ou puramente mascu-lino.

Por sua vez, D ussel, em sua ética da liber-tação, critica Kohlberg, Habermas e Apel por nãoincluírem um princípio ético-crítico  em suas teo-rias.30 Tomando a vida  como princípio ético fun-damental e discutindo os problemas da globaliza-ção econômica, Dussel afi rma que a opção éticapreferencial deve ser dada às pessoas excluídas dacomunidade de comunicação. Enquanto Kohl-berg se recusa a discutir conteúdos nos estágiosde desenvolvimento moral, D ussel chama a aten-

ção para a necessidade de se construir uma éticaapoiada nas vítimas do processo de exclusão so-cial e econômica. “O juízo de fato crítico (a partirdo marco material da ética) é enunciado como apossibilidade da produção, reprodução, e desen-volvimento da vida dos sujeitos reais do sistema,e como ‘medida’ ou critério dos fins do mesmo:se a vida não é possível, a razão instrumental quese exerce em torná-la impossível é eticamenteperversa”.31

D e acordo com a ética de libertação, de

D ussel, é pela organização crítica de uma comu-nidade de vítimas que a perversidade ética de umsistema evidencia-se. A responsabilidade consisteprecisamente no diálogo com as vítimas e natransformação da sociedade, objetivando a sua in-clusão e a promoção de suas vidas.

Não é nossa intenção resolver essa discussãosobre ética e julgamento moral, mas somente mos-trar a importância da teoria do julgamento moral,de Kohlberg, especialmente sua definição de vários

estágios. Por outro lado, também consideramosque as teorias aqui colocadas já nos providenciamalguns marcos referenciais gerais para o debateacerca da ética e da responsabilidade social da em-presa. O bviamente, empresas não são, nem devemser, consideradas como indivíduos, que desenvol-vem pensamentos ou moralidade. Nossa intençãonão é encaixar rigidamente a teoria de Kohlberg ou

as dos outros na discussão sobre responsabilidadee ética empresarial, mas utilizá-las como instru-mentos a guiarem a nossa reflexão.

ESTÁGIOS MORAIS E GERAÇÕES DE RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA

C omo podemos relacionar os estágios dejulgamento moral, de Kohlberg, com as geraçõesde responsabilidade social corporativa? Swift eZadek não fi zeram, de forma alguma, referência aprincípios éticos ou morais; porém, a descriçãodeles mostra uma evolução de como a empresa seporta diante da questão ética. É esse desenvolvi-mento que nos interessa e que gostaríamos de

analisar.

Estágio Básico

Q uanto à aplicação da teoria de Kohlberg àavaliação de Swift e Zadek, o estágio básico refe-rido por esses dois últimos autores poderia sercomparado, grosso modo, com o nível pré-con-vencional estabelecido pelo primeiro. Esse é o ní-vel no qual a moralidade impõe-se por uma auto-ridade exterior e, no caso da empresa, ocorrequando ela se submete ao sistema jurídico/legis-

lativo do país. Para muitos estudiosos, inclusiveSwift e Zadek, essa fase não deveria ser conside-rada como parte de um programa de responsabi-lidade social corporativa, pois não há necessaria-mente um senso de responsabilidade próprio daempresa, ou seja, uma ética internalizada.

Por outro lado, muito do material sobre otema de responsabilidade social da empresa cor-responde a esse nível de discussão. H á um núme-ro crescente de organizações não-governamen-

tais dedicadas ao trabalho de vigilância com rela-ção ao respeito da empresa às leis. O desrespeitoa elas normalmente aparece na forma de escânda-los, quando se descobre executivos ou funcioná-rios de determinada instituição envolvidos cons-cientemente em atividades ilegais ou que propo-sitadamente obscureceram informação, comoocorreu, recentemente, nos relatórios fi nanceirosda Enron,32 nos Estados U nidos, ou no desastre

30 D U SSEL, 2000, p. 427-431.31 Ibid ., p. 529. 32 C LARK & DEMIRAG, 2002.

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ecológico causado pela indústria de papel C ata-guases, no Brasil, por conta da falta de manuten-ção e inspeção correta de um reservatório de re-síduos químicos tóxicos.33  O utro exemplo é a

denúncia de trabalho infantil e escravo no Brasil,identificando particularmente as empresas agrí-colas que praticam esse tipo de infração das leistrabalhistas.34  O rganizações como G reenpeace,C orpwatch, Anistia Internacional, G lobal Ex-change, Social Accountability International,Transparência Internacional – para nomear so-mente algumas – dedicam-se, entre outras ativi-dades, a denunciar ocorrências de fraude e cor-rupção no mundo empresarial.

Acerca das justificativas encontradas pelasempresas para obedecer a lei, Donaldson argu-menta que a adesão às normas ambientais e tra-balhistas pelas empresas na Noruega é mais umresultado da pressão exterior dos sindicatos e dasorganizações civis do que uma reflexão dos exe-cutivos sobre a ética empresarial.35 Machado Fi-lho e Zylbersztajn36  argumentam que, em suapesquisa, a responsabilidade social corporativaparece ser motivada mais por pressões dos con-sumidores e órgãos financeiros – entre eles, o

Banco Mundial, o BNDES e as normas regulatóriasrestritivas impostas pelo Estado – do que por ra-zões altruístas. Esses casos mostram que, mesmoquando as empresas obedecem a regras avançadasreferentes a direitos trabalhistas e a cuidados aomeio ambiente, como na Noruega, não o fazempor possuir um código de ética avançado, maspor causa das pressões externas. Do ponto de vis-ta da teoria de Kohlberg, isso indica um nível bai-xo de evolução moral, além da importância do

papel das organizações da sociedade civil em re-gulamentar o comportamento das empresas.

Por outro lado, seguir a lei nem semprecorresponde a respeitar regras definidas e óbvias.Às vezes, há ambigüidades sobre a lei ou sobrequal das leis a empresa deve respeitar. O fato de

todas as organizações mencionadas acima serementidades de alcance internacional indica a preo-cupação com a conduta consistente das empresasno âmbito global. A mão-de-obra barata nos paí-

ses menos desenvolvidos economicamente tematraído corporações a desenvolver atividades deprodução nessas áreas, abrindo, assim, uma ques-tão ética menos definida, não podendo ser vistacomo o simples respeito às autoridades políticase às leis locais. Por exemplo, a permissão conse-guida pelas fábricas contratadas pela Nike –como forma de incentivo –, por parte do governodo país onde se instalaram, para oferecer saláriosabaixo do estabelecido como mínimo estimuloudiscussões e denúncias internacionalmente. Asfábricas não estavam, tecnicamente, desrespeitan-do a lei, no entanto a Nike havia utilizado o seupoder de lobby  para conseguir vantagens que re-sultavam em salários abaixo do necessário à so-brevivência (li ving wage ).37 

Exemplo semelhante se dá com as leis am-bientais. Quais delas deveriam ser respeitadas poruma empresa que atua em rede mundial? E comoa empresa deveria proceder quando se cria umproduto novo, para o qual ainda não foi concebi-

da qualquer regulamentação, como no caso deorganismos transgênicos? Essas ocorrências le-vantam questões que dificilmente poderiam serponderadas, de forma adequada, no nível pré-convencional ou mesmo no convencional, poisexigem uma reflexão sobre princípios para alémdas regras convencionais de um contexto parti-cular.

Portanto, o nível básico de funcionamentodo sistema capitalista, definido por Swift e Zadek,

de obedecer às leis requer, na verdade, um sistemadesenvolvido de informação e regulamentaçãopela sociedade civil e pelo poder público, comotambém um espaço para refletir sobre casos aindanão totalmente definidos. Tal atividade tem exi-gido uma grande dedicação de tempo e energia devárias entidades e, por isso, corresponde a umaárea de responsabilidade e ética empresarial signi-ficativa.

33 G EN TILE, 2003.34 O RGANI ZAÇÃO INTERNACI O NAL DO TRABALHO , 2003.35 DO NALDSON , J.Key I ssues in Business Ethics . N ew York: Acade-mic Press, 1989, citado em BU LL, 2003.36 MACH ADO FILH O & ZYLBERSZTAJN, 2003. 37 C LEAN C LO TH ES CAMPAIG N, 1999.

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Prim eira Geração

A primeira geração corresponde aproxima-damente ao segundo estágio de desenvolvimentomoral, pois a empresa considera a responsabilida-

de social de acordo com os seus próprios interes-ses, particularmente como uma troca, e não umaforma de seguir uma ética maior ou melhorar a si-tuação social ou ambiental. Esse tipo de compor-tamento, caracterizado pelo ato de oferecer doa-ções filantrópicas insignificantes ou envolver-seem atividades sociais com a finalidade única deevitar danos ou punição, tem também sido moti-vo de denúncia pelas organizações não-governa-mentais. Ele corresponde a uma atitude defensi-

va, de proteção, e não de engajamento social. Porexemplo, o termo Greenwash  foi cunhado para sereferir às empresas que fazem campanhas de ma-rketing sobre responsabilidade social, especial-mente ambiental, sem ter realmente projetos sig-nificativos na área, ou que os utilizam para desviara atenção de outras atividades que desrespeitam anatureza ou que exploram os trabalhadores oufornecedores.38

Por outro lado, analisada do prisma da teo-ria do desenvolvimento moral, essa primeira ge-

ração signifi ca um pequeno avanço no sentido deque a empresa reconhece, embora de forma limi-tada ou enganosa, a importância de lidar com oaspecto social e ambiental.

Segunda Geração

A segunda geração representa uma fasecom potencial de muita atividade e criatividadeentre empresa, poder público e organizações ci-vis. A maioria das ações caracterizadas como de

responsabi lidade social  poderia ser considerada re-sultado dessa geração. Corresponde, grosso mo-do, ao nível convencional de julgamento moral,sobretudo ao terceiro estágio, no qual a empresase situa como um ator numa sociedade com vá-rios setores e com interesse em gozar de boa re-putação e ser bem-vista pela comunidade. A maio-ria das empresas nessa geração desenvolve uma sé-rie de atividades de acordo com o interesse de-

monstrado pelos funcionários ou executivos porum assunto particular, sendo essa uma oportuni-dade para que elas mostrem um lado bom peran-te a comunidade, ou também a convicção de que

isso pode oferecer benefícios mútuos para si e osoutros stakeholders . Programas de treinamento ebenefícios para atrair e manter funcionários ta-lentosos e investimentos em projetos ambientaise sociais de impacto mercadológico são exemplosde ações de responsabilidade social nessa geração.

A chegada a essa geração significa uma am-pliação na capacidade da empresa de ver sua atu-ação além do nível técnico ou do simples aumen-to de lucro. Implica uma abertura para as neces-

sidades da sociedade e a possibilidade de chegar asoluções em conjunto. Nas palavras do WorldBusiness C ouncil on Sustainable Development,

para qualquer empresa, dar alta prioridadeà RSC não é mais visto como algo que re-presente um custo não produtivo ou des-perdício de recursos, mas como um meiode melhorar sua reputação e credibilidadeperante os stakeholders   – algo do qual osucesso ou mesmo a sobrevivência depen-dam. Entender e tomar conta das expec-tativas da sociedade é simplesmente inte-resse próprio esclarecido dentro do mun-do interdependente de hoje.39

A justificativa das empresas para se envol-ver em programas de responsabilidade social nes-sa geração corresponde ao modelo win-win , noqual tanto a sociedade quanto a empresa se bene-ficiam com a interação.

A organização econômica do capitalismocontemporâneo difi culta e quase proíbe uma em-presa de chegar a níveis de decisões morais alémdesse, convencional. Mesmo assim, indicações daexistência de princípios éticos universais que vãoalém do que podemos encontrar na sociedadeconvencional aparecem nos discursos de empre-sas e representam, pelo menos, o reconhecimen-to da relevância deles. Kenneth G oodpaster citauma carta escrita por um alto executivo, demons-

38 G REER & BRU NO , 1996. 39 H O LME & WATT, 2000, p. 7.

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trando suas justifi cativas por apoiar a ação afir-mativa da empresa.

Freqüentemente me perguntam porque

essa [ação afirmativa] é uma prioridadetão alta em nossa empresa. H á, por su-posto, a resposta óbvia de que é de nossomaior interesse buscar e empregar pessoasboas de todos os setores da sociedade. Ehá a resposta que o interesse próprio es-clarecido nos diz que mais e mais pessoasjovens, as quais devemos atrair como fu-turos funcionários, escolhem uma empre-sa tanto por seus indicadores sociais quan-to por suas perspectivas nos negócios.Mas a razão principal  para essa ênfase épor- 

que écorreto fazer isso. 40 

É interessante notar que, nessa carta, as jus-tificativas óbvias  são aquelas que se referem ao in-teresse próprio, relativo aos níveis pré-convencio-nal e convencional, indicadores do comporta-mento esperado no funcionamento normal daempresa. O executivo precisa fazer quase umaapologia para usar princípios que vão além dessesníveis. Porém, esse documento mostra uma exce-ção, não a regra.

Terceira GeraçãoA terceira geração difi cilmente se encaixa

na teoria de Kohlberg, a não ser com a ampliaçãosugerida por H abermas e Apel. Nessa geração, aempresa reconhece ter deveres sociais, afora osseus próprios interesses de lucro e crescimento.Mas, além disso, esse reconhecimento significauma mudança no conceito sobre o papel da em-presa na sociedade, pois o centro deixa de ser aempresa rodeada pelos stakeholders , sendo essa

posição ocupada por ela em conjunto com os ou-tros setores, na tentativa de construir uma socie-dade saudável. Iniciativas desse tipo são, porexemplo, as parcerias entre organizações civis e opoder público para melhoria na infra-estrutura,adoção de escolas, organização de fóruns sociaise desenvolvimento de políticas públicas que in-centivem a cooperação entre os vários segmen-

tos. Essa fase implica o diálogo entre os diversossetores da sociedade. A teoria discursiva de H a-bermas e Apel é necessária para complementar oconceito de moralidade   nessa fase, pois ele não

poderia ser alcançado pela empresa sem estrutu-ras de participação e comunicação comunitária.

Por razões de clarificação teórica, as gera-ções da responsabilidade social corporativa foramcomparadas com os níveis de julgamento moral,como se a empresa passasse por elas em sua ínte-gra. Na prática, mesmo que as empresas repre-sentem um conjunto organizacional com umacerta cultura empresarial, não se pode esperar queelas possuam uma organização cognitiva sistê-mica, como se fossem pessoas. É mais provávelque algumas áreas da empresa se comportem demaneira diferente com relação a outras. D e fato,várias das empresas denunciadas por práticascorruptas tiveram programas de ação socialexemplares.41

Na verdade, uma empresa tem inúmerosníveis e áreas de atuação e, em cada um, poderiaapresentar um nível distinto de comportamentoético. Sem um programa de integração da respon-sabilidade social, a empresa dificilmente alcança

uma uniformidade ética. Por outro lado, isso in-dica a complexidade da empresa e o desafio pre-sente de encontrar modelos para desenvolveruma ética empresarial. Finalmente, observamosque, sem pressão, colaboração e parceria dos ou-tros setores da sociedade, a empresa pouco con-segue implementar a ética empresarial. Em outraspalavras, a ética empresarial é uma questão de in-cluir a participação de outros setores, e não me-ramente instituir uma iniciativa corporativa.

CONCLUSÃOD evemos reconhecer, primeiramente, que a

aproximação entre ética e economia é um reflexoda condição global de desequilíbrios sociais cres-centes, degradação da natureza e falta de um de-senvolvimento sustentável. A exclusão de umagrande parcela da população humana tambémtornou necessária uma nova organização e arti-

40 G O O D PASTER, K. “ Business Ethics and Stakeholder Analysis”,in: WIN KLER & C O O MBS, 1993, p. 241. 41 U TTIN G , 2003.

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culação social, mesmo que de forma precária, eresultando em ações voltadas a aliviar sua situa-ção. D evemos concordar com D ussel ao ele afi r-mar que o dilema complexo moral, nesse período

da história, é a preocupação com a vida – seja elahumana seja no sentido mais amplo, o meio am-biente. E essa é a principal justificativa encontra-da nas declarações sobre a ética empresarial e so-bre a responsabilidade social da empresa. Comoparte de uma resposta a essa situação, as empresase organizações civis, além do poder público e dasentidades internacionais, têm proposto um novopapel para as empresas, fazendo-as assumir res-ponsabilidades para reverter esse quadro e desen-

volver uma ética sustentável e socialmente res-ponsável. As propostas daí advindas chamam aatenção para uma ética apoiada nos princípiosuniversais de direitos humanos e de respeito à vi-da, aplicada também às relações econômicas.

Embora esse desenvolvimento seja positi-vo, nossa análise de Swift e Zadek e a comparaçãocom Kohlberg mostraram que a maioria das ati-vidades relacionadas a esse tema se concentra emníveis éticos bastante elementares. Mesmo sendo

um avanço com referência ao passado, a exigênciade respeitar a lei, ou de reconhecer os interessesde outros setores, não é considerada por muitoscomo parte de um programa ético, mas comosimples observância às convenções vigentes:cumprir com aquilo que todo mundo deveria fa-zer. Portanto, é válida a descrição realística deH oward Bowen, de 1953, sobre o que se pode es-perar da responsabilidade social corporativa:“Responsabilidade social é a obrigação dos em-

presários de seguir as políticas, tomar as decisõesou seguir as linhas de ação desejáveis aos objetivos e valores da sociedade ” .42 Bowen posiciona a res-ponsabilidade social diretamente no nível con-

vencional de moralidade, obrigando as empresasa incorporar os objeti vos e valores da sociedade .D esse modo, o apelo para que elas incorporemprincípios éticos capazes de transformar a socie-dade parece-nos ser uma expectativa longe do seualcance.

É necessário um sistema de interação maisglobal para fazer transformações significativas.Para a empresa ir além do princípio do lucro e dointeresse próprio, de modo sistemático, há que

ter o apoio institucional da sociedade, do poderpúblico e de outras empresas para transformar otecido cultural  e a forma de se entender a ética nosnegócios. O princípio da comunicação, propostopor H abermas e Apel, é um elemento fundamen-tal a essa mudança, pois a dimensão comunicativaé essencial ao desenvolvimento e à evolução dosníveis morais em direção a estágios ou geraçõesmais avançadas. Significa que a responsabilidadesocial corporativa deve ser comunicativa e coope-

rativa, incluindo a participação dos outros setoresda sociedade, sem limitar-se à ação individual oudesenvolvida em isolamento. Nesse sentido,pode-se concluir que a condição para que as em-presas possam transformar a sociedade é a sua ar-ticulação em conjunto com outros setores, obje-tivando a promoção da vida e tornando possívelo diálogo entre ética e economia.

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42 C itado em BATTEMAN, 2003 (grifos acrescidos).

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Dados da autora

PhD em educação e desenvolvimentointernacional pela Universidade deFrankfurt/Alemanha, é membro do Grupo de

Pesquisa sobre Responsabilidade Social deEmpresas na Concordia University e

desenvolve projetos sobre estudos de gênero edireitos humanos no Brasil, Estados Unidos e Europa.

Recebimento artigo: 9/set./03

Consultoria: 10/set./03 a 18/set./03

Aprovado: 23/set./03

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Ética e Criminologia.O caso “medo dacriminalidade”*   

ETHICS AND CRIMINOLOGY.THE “FEAR OF CRIMINALITY” CASE 

Resumo O presente artigo trata de várias formas de se entender a ética na crimino-

logia, concentrando-se nas estatísticas sobre o “medo da criminalidade”. Entre as di-mensões freqüentemente relacionadas, ao se abordar ética e criminologia, estão o

atendimento aos direitos da pessoa, a limitação das técnicas de obtenção de informa-

ção, os procedimentos do método de investigação, ou a definição do objeto de pes-

quisa. Porém, este texto se concentra em dois aspectos: 1. o ponto de vista ético apli-

cado para se colher e utilizar os resultados de uma pesquisa empírica, e a paradoxal re-

lação entre medo e criminalidade que tais dados geram; 2. a ética como objeto de pes-

quisa, especialmente ao se ver como são elaborados os discursos que têm o medo

como tema e que projetam determinado modelo de sociedade. A distinção entre esses

dois planos permite entender melhor o papel dos discursos sobre a criminalidade e de-

finir critérios para sua elaboração.

Palavras-chave CRIMINOLOGIA – MEDO  – ESTATÍSTIC AS – SEGURANÇA PÚBLICA –

DISCURSOS.

Abstract  The present article approaches the many ways of understanding ethics in

criminology, focusing on the statistics on the “fear of criminality”. When approaching

ethics and criminology, frequently related dimensions are: serving the person’s rights,

the restriction of techniques for gathering information, the methods of investigation

or the definition of the research object. Nevertheless, this text focuses on two

aspects: 1. the ethical view applied to collecting and using the results of an empirical

research, and the paradoxical relation between fear and criminality that such data

generate; 2. ethics as a research object, especially when analyzing the elaboration of

discourses that approach the issue of fear and that devise a certain model of society.

The distinction between these two plans makes it possible to better understand the

role of the discourses on criminality and define the criteria for its elaboration.

Keyw ords CRIMINOLOGY – FEAR – STATISTICS – PUBLIC  SAFETY – DISCOURSES.

*Traduzido do it aliano para o português por N U NO  C OIMBRA MESQUITA. Título original: “ Etica e cri-minologia. I l caso ‘paura della criminalità’” .

ROBERTO CORNELLI

Università degli Studi diMilano-Bicocca, Milão/Itáliarobycorne@ tiscalinet.it 

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INTRODUÇÃO

tica é um termo encontrado freqüentemente nos textosde criminologia, sobretudo nas seções dedicadas à meto-

dologia da pesquisa. As questões éticas normalmente ci-tadas referem-se à modalidade com a qual se obtêm in-formações e dados dos autores do delito, das vítimas, dosistema de justiça criminal, dos operadores sociais ou dopúblico em geral. Assim, sobre a base de algumas dire-trizes elaboradas, sobretudo no âmbito sociológico e

médico-psicológico, afirmam-se os princípios da não exposição dos su-jeitos que fornecem informações de riscos ou danos, de confidencialida-de, de respeito às pessoas envolvidas na pesquisa e de transparência, queimplica a concessão de um consentimento informado da parte do entre-vistado.

Mas se pode falar de ética e criminologia   de, pelo menos, outrasduas formas: 1. pontos de vista éticos, relativos ao uso dos resultados dapesquisa e ao impacto dela sobre a sociedade; 2. ética como objeto de pes-quisa.

1. O s resultados das pesquisas criminológicas muito freqüente-mente vêm sendo utilizados pelos policy makers , algumas vezes, como ar-gumento para reformar instituições ou práticas e, outras, simplesmentepara legitimar intervenções de política criminal. O estudioso encontra-seforçado a confrontar-se com o ingresso dos resultados de suas pesquisasna arena política e com possíveis distorções  de seus significados. Essa co-

nexão entre a pesquisa criminológica e a política gera problemas poste-riores de natureza deontológica, referidos mais à correção dos procedi-mentos adotados durante a pesquisa, que podem evitar mal-entendidosou manipulações políticas.

Além disso, o próprio estudioso, no momento em que escolheo objeto de pesquisa (e, talvez, também as modalidades com as quaisinvestigá-lo), tende a pressupor o possível impacto de seus resultadosno debate social e político e que, de algum modo, o condicionam. Aofazê-lo, adota cri térios éticos   de valorização do próprio trabalho depesquisa, capazes de estabelecer se aquilo que está fazendo é justo eleva a efeitos sociais desejáveis, além de orientá-lo no seu prossegui-

mento. Pesquisar exige uma contínua referência aos valores e a per-manente reorientação do trabalho de investigação, de modo a torná-lo eticamente sustentável.

2. A ética, do pont o de vista antropológico, pode ser definida comoo conjunto de valores que caracterizam a cultura de certa sociedade emdeterminado período. N esse sentido, nas suas conexões com a cultura, aética pode constituir um objeto de estudo criminológico, numa perspec-tiva que visa ir além da descrição dos fatos sociais, para observar os pro-cessos culturais que os acompanham.

EEEE

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O medo da criminalidade é, já há algunsanos, tema de interesse criminológico e pareceser um bom instrumento para exercitar a obser-vação das possíveis conexões entre ética e crimi-

nologia.Até mesmo nas origens, o estudo do medo

da criminalidade foi ligado a exigências políticas,levando alguns estudiosos a duvidar da correçãodas modalidades com que estiveram envolvidas asprimeiras pesquisas e sondagens de opinião. Nes-sa primeira fase emerge, portanto, a questão éticana forma de correção dos processos de pesquisa.Mas, já aí também, começa a surgir uma posiçãocrítica de alguns especialistas, resultando, em se-guida, na formulação de novos critérios para in-vestigar o assunto, prontos a produzir o conceitode medo da criminalidade  não manipulável pelopoder político. Nessa segunda etapa, a questãoética considera as possíveis manipulações políti-cas dos conteúdos das pesquisas e requer maioratenção ao uso dos termos e à apresentação dosresultados da pesquisa fora do ambiente universi-tário.

Os estudos antropológicos e sociológicossobre o risco apontam, hoje em dia, uma moda-

lidade diferente da perspectiva do estudo domedo da criminalidade, que abrange aspectos po-líticos do conceito desse tema. Visto dessa ótica,é central a análise das orientações socioculturaisque fazem o medo da criminalidade ser um dosprincipais itens do debate social e político. A éti-ca, que pode ser entendida como a visão particu-lar do mundo expressa por essas orientações so-cioculturais, torna-se, ela mesma, tema de estudopara se compreender como nasce o discurso pú-blico sobre o medo da criminalidade e que efeitos

sociais ele produz.As implicações ético-políticas dessa visão

diferente do medo da criminalidade serão abor-dadas na conclusão deste artigo.

1. DÚVIDAS SOBRE A CORREÇÃO DOS PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS DE INVESTIGAÇÃO

As pesquisas sobre o medo da criminalida-de surgiram, pela primeira vez, nos Estados U ni-

dos, na metade dos anos 60, no apoio à guerra contra o crime , programa de ponta do governoamericano. A guerra contra o crime , segundo a in-terpretação dominante nos dias de hoje, serviu,

sobretudo, para desviar a atenção do público deuma guerra desagradável e impopular no exterior,a do Vietnã, para os problemas da política interna.A comissão presidencial encarregada, em 1967,de estudar os aspectos ligados à vitimização (C o-missão Katzenbach) parou de impulsionar os es-tudos sobre o medo da criminalidade no âmbitoda pesquisa da vitimização. Assim, uma parte daprimeira investigação da vitimização americana(N ational C rime Survey), conduzida, em 1972,

pelo D epartamento de Justiça dos Estados U ni-dos, foi inteiramente dedicada ao medo do crime,objetivando comparar a amplitude do fenômenocom o risco efetivo de sofrer um delito.

A partir daquela data, as pesquisas multipli-caram-se e mostraram que a maioria dos ameri-canos temia ser vítima da criminalidade. É sobrea base dos materiais da C omissão Katzenbach,dos dados do National Crime Survey e de algu-mas sondagens de opinião anteriores ao National

C rime Survey que foi se construindo, no iníciodos anos 70, o conceito demedo da criminalidade como aquele ocorrido em conseqüência de umato criminal. A origem das pesquisas sobre o te-ma, portanto, sofreu com a proximidade das exi-gências político-governamentais da época, tantoque alguns autores sustentam que “existem boasrazões para acreditar que a efetiva preparação dosquestionários de opinião pública, que medem omedo do delito, não tenham sido imparciais”.1 

Não obstante, boa parte das pesquisas so-bre o medo da criminalidade desenvolveu-se so-bre o modelo das primeiras investigações ameri-canas. Trata-se de uma pesquisa do tipo descriti-va, que mede o nível de medo da criminalidadenum dado território, freqüentemente identifican-do a posteriori  as características sociodemográfi -cas das pessoas inseguras .

1 Q U INN EY, R. Criminology . Boston: Little Brown and Company,1979, apud  LYNC H , 1991.

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Outros estudos, a fim de individualizar ascausas do medo da criminalidade, tentaram expli-car por que algumas pessoas são mais insegurasque outras, por que em algumas regiões o nível de

medo da criminalidade é mais alto do que em ou-tras e por que o nível desse medo aumenta em al-guns momentos e diminui em outros. O estudodas causas da criminalidade levou a resultados im-portantes. De um lado, mostrou como era fraca aligação entre a vitimização e o medo da crimina-lidade (e, portanto, quão arbitrário era consideraros medos e as preocupações das pessoas comofruto da soma da criminalidade). De outro, con-tribuiu para o surgimento da questão da correção dos instrumentos de investigação do assunto  utili-zados.

Vejamos especificamente os resultados des-se esforço de pesquisa.

O senso comum sugere (também aos pes-quisadores) que sofrer um delito é uma experiên-cia que condiciona o movimento da pessoa, incu-tindo o medo de sofrer outro. Mas nem sempreos resultados da pesquisa estão de acordo com osenso comum. A relação entre vitimização   emedo da criminalidade parece ser, de fato, mais

complexa e os resultados apresentados na litera-tura são freqüentemente contrastantes.

Em 1967, a comissão Katzenbach estabele-ceu que a conseqüência mais danosa de um crimeviolento é o medo dela derivado. Assim, ao con-trário, ter sofrido um crime violento é causa domedo de sofrer um delito. Tal afi rmação constituiassunto para muito tempo. Já os primeiros resul-tados das investigações sobre o medo da crimi-nalidade começaram, entretanto, a colocar em

dúvida a solidez do tema. O s jovens do sexo mas-culino da classe trabalhadora mostravam-se me-nos preocupados em sofrer um delito, em com-paração a mulheres e idosos, mesmo sendo maisatingidos por atos criminosos. C onsiderando es-ses resultados, alguns autores levantaram a hipó-tese da existência de um paradoxo  nas pesquisassobre o medo da criminalidade:2 as pessoas maisvelhas e as mulheres são menos expostas a atos

criminosos, menos vitimizadas, no entanto, pos-suem mais medo de sofrer um delito.

O s pesquisadores tomaram vários cami-nhos para solucionar tal “paradoxo”. Todos esses

caminhos levam a entender, como complexa, a li-gação entre vitimização e medo da criminalidade.

Alguns negaram a existência do paradoxo,sustentando não existir nenhuma discrepânciaentre risco e medo. Stafford e G alle, analisandoos dados de algumas pesquisas realizadas em C hi-cago, levantaram a hipótese de que nem todas aspessoas são igualmente expostas ao risco de so-frer um delito: episódios criminais ocorrem commuito mais freqüência fora de casa, sobretudo na

rua ou em outros espaços públicos.3 Elas passamdiferentes períodos de tempo fora de casa e algu-mas ficam, assim, mais expostas ao risco de viti-mização do que outras. A probabilidade de estarfora de casa se dá em razão do estilo de vida. D i-ferentes estilos de vida são ligados a diversos pe-ríodos de exposição ao risco.4 O raciocínio é li-near: os jovens passam mais tempo fora de casa e,por isso, sofrem mais delitos do que os idosos; se,entretanto, forem considerados os números dedelitos sofridos pelos jovens e pelos idosos du-

rante o mesmo período de tempo em que jovense idosos estão fora de casa, os idosos seriam maisatingidos pela criminalidade do que os jovens. Omedo deles torna-se, assim, mais compreensível.Stafford e G alle propuseram, então, utilizar, nocruzamento com o nível de medo da criminalida-de, não a taxa de vitimização convencional, e simuma de vitimização ajustada à exposição ao risco.O resultado demonstrou que, para boa parte dosgrupos da população, entre eles, os idosos, há um

nível de correspondência entre a taxa ajustada devitimização e o medo da criminalidade. Esse re-sultado implica que esse medo seja estreitamenteligado à experiência de vitimização, mediada, en-tretanto, pelo esti lo de vida .

D iferentemente de Stafford e G alle, outrospesquisadores procuraram resolver tal contradi-ção introduzindo novos fatores explicativos do

2 STAFFO RD e GALLE, 1984.

3 Ibid .4 Ibid ., p. 174.

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medo da criminalidade, entre os quais, a vulnera- bilidade . As mulheres são mais vulneráveis à viti-mização do que os homens, pois conseguem, emmenor grau, fugir ou resistir às agressões físicas e

porque estão mais sujeitas a crimes violentos,como a violência sexual (tanto que, repetidamen-te, o medo da criminalidade coincide, nas mulhe-res, com o de sofrer violência sexual).5 Portanto,segundo essa interpretação, as mulheres reagemaos mesmos níveis de risco com mais medo, emrelação à reação dos homens. Além disso, a maioratenção   das mulheres, resultante de sua maiorvulnerabilidade, influi na percepção dos riscos.Elas percebem mais situações como risco , com-parado aos homens, e essa percepção diferente dorisco leva também a um nível diferente de medo.Numerosos estudos sugeriram que os idososigualmente se consideram mais débeis e vulnerá-veis, e valorizam com maior preocupação as con-seqüências de sofrer um delito.

LaG range e Ferraro forneceram uma inter-pretação ainda mais diferente do paradoxo vitimi- zação-medo .6 O maior nível de medo da crimina-lidade dos idosos seria por conta de um erro deavaliação derivada do uso incorreto dos indicado-

res para medir esse medo. O estudo dos dois au-tores confrontou a relação entre idade e gênero,de um lado, e medo da criminalidade, de outro,adotando o indicador de medo da criminalidadedo N ational Crime Survey (NC S) e outros 13 in-dicadores alternativos, incluindo os de percepçãode risco e os de medo de delitos específicos.C omo imaginado pelos autores, a análise produ-ziu resultados contraditórios. Quando confron-tadas com a pergunta do ncs (“Q uão seguro vocêse sente ou se sentiria de estar fora sozinho, no

seu bairro, à noite?”), as mulheres mais idosas

disseram ter muito mais medo do que as mais jo-vens; quando são usados os indicadores alterna-tivos relativos a medos específicos, os adultosmais idosos dizem ter menos medo do que os

mais jovens. Além disso, os indicadores de per-cepção de risco e os de medo da criminalidadenão geram resultados equivalentes. O s níveis depercepção de risco são mais elevados do que osde medo da criminalidade.

C omo se pode notar também nessa breveresenha, o paradoxo vitimi zação-medo   induziu,por um lado, à pesquisa de novas causas do medoda criminalidade (além do estilo de vida e da vul-nerabilidade, podem ser citados o nível de con-

trole social do bairro, a informação da mídia, apresença de desordem e má educação e a confi -ança nas instituições) encarregadas de explicar adiscrepância entre a taxa de criminalidade e o ní-vel de medo da criminalidade. Por outro lado,mais recentemente, abriu-se caminho para a crí-tica dos instrumentos tradicionais da percepçãodo medo da criminalidade.7  Realmente, comoobservam alguns autores, os resultados contras-tantes na análise dos fatores do medo da crimi-nalidade são mais fruto da confusão das metodo-

logias empregadas nos estudos empíricos e, emparticular, da falta de clareza do t ermo fear of cri- me  (medo da criminalidade).8

2. A ATENÇÃO ÀS MANIPULAÇÕES POLÍTICAS: A QUESTÃO TERMINOLÓGICA

Até hoje, os principais problemas verifi ca-dos nas pesquisas sobre o medo da criminalidadedizem respeito aos instrumentos de medição uti-lizados. Em geral não se mede o medo, mas ou-

tros estados de ânimo (preocupação, ansiedade,valorização do risco); da mesma forma, não semede o medo referente à criminalidade, e simuma ansiedade genérica, apontada por algunscomo formless fear  (medo sem forma), isto é, umsentimento genérico de mal-estar na vida cotidia-na, não necessariamente determinado por se tersido vítima de um delito . A pergunta “Q uão se-

5 SMITH & TO RSTEN NSSO N (1997) analisaram a literatura sobreo medo e as mulheres e propuseram quatro hipóteses explicativas paraos altos níveis de medo da criminalidade entre elas: 1. taxa real de viti-mização – se a verdadeira taxa de vitimização das mulheres fosseconhecida, seria mais alta do que a dos homens e explicaria os maisaltos níveis de medo entre as mulheres; 2. generalização – as mulherestransferem o medo de um contexto a outro, e de um tipo de vitimiza-ção a outro, com mais facilidade que os homens, generalizando, assim,o medo; 3. vulnerabilidade (já descrita no texto); 4. neutralização – oshomens neutralizam ou escondem os medos de si mesmos e dosoutros muito mais que as mulheres.6 LAG RANG E e FERRARO, 1989, p. 713-715.

7 Ibid ., 1989.8 H ALE, 1996.

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guro você se sente ou se sentiria de estar fora so-zinho, no seu bairro, à noite?”, usada nas pesqui-sas de vitimização americana e em muitas outras,não deve ser um indicador do medo da crimina-

lidade, pois omite a referência à criminalidade.C omo sugerem alguns autores, o entrevistadopoderia ter medo do ataque de um cão, de seratropelado por um carro ou, simplesmente, doescuro.9 

D ada a confusão sobre o conceito de medo da criminalidade   na literatura criminológica, al-guns autores procuraram recuperar o signifi cadodo termo medo  nas ciências humanas e sociais eaplicá-lo ao medo da criminalidade, mediante a

especificação do contexto em que surge o me-do.10  Nessa linha, o medo da criminalidade foidefinido como uma emoção nascida da percepçãode uma ameaça iminente medida num ato de ou-tra pessoa e que provoque uma reação psicofísica.Em outras palavras, um indivíduo experimenta omedo da criminalidade quando, numa certa situa-ção, percebe estar em perigo, porque se senteameaçado pelo comportamento de outro e, por-tanto, reage, aumentando o batimento cardíaco ea pressão sangüínea, enfraquecendo a respiração e

enrijecendo os músculos. Enquanto isso, os sen-tidos estão em alerta e a mente se concentra emrememorar episódios semelhantes, com a finali-dade de encontrar soluções e comportamentosúteis para evitar o perigo.

Essa definição específica de medo da crimi-nalidade permite diferenciá-lo de outros estadosde ânimo. A ansiedade  difere do medo, na medidaem que não é gerada por um sinal concreto de pe-rigo (mesmo se isso, num segundo momento, re-

sultasse não real ou não efetivo). Ela é um tipo deinquietude contínua, sustentada pelo pressenti-mento, sem base em sinais externos concretos deque alguma coisa desagradável e perigosa estápara acontecer. A preocupação é um sentimentofundado na percepção da realidade mediada pelosvalores e pelo juízo pessoal sobre ela. Q uando seestá preocupado com alguma coisa, não aconte-

cem mudanças psicofísicas, nem mesmo ocorrempressentimentos negativos, mas normalmente háalgum problema ocupando a mente e os pensa-mentos. Brodeur clarifica a diferença entre preo-

cupação e medo de uma maneira muito sugestiva:os moradores de Quebec podem estar preocupa-dos com o problema da fome no Terceiro Mun-do, mas, seguramente, não têm medo de sofrer afome eles mesmos.11 A valorização do r isco , porfi m, relaciona-se com o juízo da probabilidade deum evento (delito) acontecer e não necessaria-mente provoca o medo de que ele ocorra.

U m estudo recente, desenvolvido sobre arealidade da região de Trento e da Emília-Roma-nha, em curso de publicação,12  na mesma linhaproposta por LaG range, Ferraro e Hale,13  de-monstra o quanto os indicadores do medo da cri-minalidade normalmente utilizados medem, naverdade, de maneira confusa diferentes estadosde ânimo e sugerem algumas hipóteses para aferircorretamente a emoção medo da criminalidade .Sugerimos esse estudo para o aprofundamentodos aspectos metodológicos.

Importa aqui sublinhar que, embora nas ciên-cias humanas e sociais (particularmente no âmbi-

to da psicologia cognitiva14  e da filosofia15) oconceito de medo seja utilizado normalmentesem demasiadas discussões em relação ao seu sig-nificado, há em criminologia a tendência de iso-lar, sem motivo, a definição de medo da crimina- lidade , presumindo que ele difere de outros me-dos, como o de um acidente de automóvel ou ode um dano à saúde.16 Por que o medo da crimi-nalidade deveria ser diferente de outros medos?Por que ele aparece como um conceito pega-tu- do ,17 tão amplo e cheio de signifi cados que tornaa sua utilidade insignificante?

A utilização ampla, não específica e evoca-tiva do termo medo da criminalidade  sugeriu a hi-pótese de que, até hoje, como talvez tenha acon-

9 WILLIAMS, MC SHANE & AKERS, 2000.10 C f. C O RNELLI, 2003.

11 C f. D EPARTMENT OF JU STIC E C ANADA, 1995.12 CORNELLI, 2003.13 LAG RANG E & FERRARO , 1989; e HALE, 1996.14 Cf. FRJIDA, 1986.15 C f. MAGRI , 1999.16 C f. WARR, 2000.17 C f. PAVARINI , 1994.

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tecido na metade dos anos 60, nos Estados U ni-dos, esse tema seja utilizado por políticos e pelamídia conivente (além dos pesquisadores) paraofuscar as mentes das pessoas, desviando-as de

perigos bem mais graves, ou para legitimar polí-ticas de caráter repressivo. Portanto, o termomedo da criminalidade , segundo essa perspectiva,seria empregado de modo impreciso e “onicom-preensivo”   tanto na mídia quanto nas pesquisascientífi cas, com o fi m de supervalorizar a sua im-portância aos olhos do público, sempre que asexigências políticas o pedem.

C om referência a essas possíveis instru-mentalizações, alguns autores tentaram recuperaro significado específico de medo da criminalida- de . Mas essa tentativa, relevante apenas no âmbi-to dos estudos da dimensão individual do medoda criminalidade, arrisca ocultar uma dimensãopolítica. O medo da criminalidade é igualmenteum fato social  e estudado, portanto, também por-que emerge na comunicação social e política: pelasua penetração nos discursos públicos e pela plu-ralidade de significados adotada nesses discursos.

3. O MEDO DA CRIMINALIDADE COMO 

F ATO  S OCIALA interpretação de que o temamedo da cri- minalidade  é usado instrumentalmente pelo po-der torna-se útil quando são analisados alguns ca-sos específi cos (como fez Q uinney, com primei-ras pesquisas americanas), mas arrisca-se, comoafirmação geral, em exemplificar excessivamenteo que acontece em situações nas quais o discursosobre o medo da criminalidade permeia a vida so-cial.

O s estudos sobre o pânico moral, vale di-zer, sobre aquelas situações em que se difunde,em amplos estratos da sociedade, um estado dealarme não justificado, marcado pela hostilidade agrupos de pessoas marginais, mostraram como asua difusão é efeito não só de campanhas provo-cadas pelas classes dominantes, com o objetivode desviar a atenção do público de fatos graves,como a recessão econômica, e de manipulaçãodas classes médias, que empregam o pânico socialpara obter o acolhimento de pedidos por parte

das instituições estatais. Mas que ele resulta, tam-bém, do emergir espontâneo e difuso da preocu-pação entre a população por motivos ideológicose morais.18 

Efetivamente, observando a proliferaçãodos discursos sobre o medo da criminalidade emvários contextos da vida em sociedade, fica-seconvencido de que as pessoas na família, nosescritórios ou nas empresas, nas associações, emgrupos, comitês ou instituições formais não sãosimplesmente espectadoras, mas, pelo contrário,contribuem de maneira decisiva à circulação domedo da criminalidade  na sociedade. Esse tema,às vezes, emerge de baixo , quando grupos de ci-

dadãos se reúnem para pedir maior segurança apolíticos e administradores. Outras vezes, aflorano diálogo entre as instituições formais , comoquando os sindicatos pedem mais fundos para asegurança ao governo nacional ou esse, por suavez, solicita que a Justiça Penal seja mais sensívelàs exigências de segurança da sociedade. Aindaoutras vezes, surge de modo casual , ou melhor,nos percursos difíceis de reconstruir, envolvendodiversos cont extos e atores sociais.

Nesse sentido, o medo da criminalidade

não é apenas uma emoção individual  manipuláveldo poder constituído. No momento em que setorna terreno de choque político, de confrontoentre as instituições e de reivindicações sociais,por meio das quais criam-se novos agregados so-ciais, instituições e modalidades comunicativas, omedo da criminalidade assume necessariamenteuma conotação política . Tudo isso implica que,além de estudado no plano individual comomedo do indivíduo confrontado com um ato cri-minoso, mensurável, e sobre o qual se deve agirintencionalmente, o medo da criminalidade deveser analisado também nos seus aspectos políticos ,que consideram, em outras palavras, as modalida-des de regulação da vida em comum das pessoas(da res publica ).

A literatura existente não é de grande ajudana análise dos aspectos políticos do medo da crimi-nalidade. Assim como os estudiosos de percepção

18 C f. BARBAG LI, 1999.

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do risco se ocupam, há tempos, somente da ca-pacidade cognitiva do indivíduo diante do risco,sem reconhecer a politicidade do conceito de ris- co ,19  atualmente os pesquisadores do medo da

criminalidade se esforçam para ver além das suasdimensões individuais, de modo a concentrar-senos processos: 1. de afirmação do medo da cri-minalidade como tema político; 2. de que essaafi rmação se insere nas relações sociais.

Para começar a observar o primeiro item (osurgimento do medo da criminalidade comotema político), é útil ver os resultados da litera-tura sobre a percepção de risco, em particular, aperspectiva conhecida como teoria cultural , enun-

ciada por D ouglas e Wildavsky.O s estudos sobre a percepção do risco, des-de os anos 70, demonstraram que as pessoas nãovalorizam os riscos em relação à sua efetiva peri-culosidade. D iante de uma gama de perigos dife-rentes, elas tendem a superestimar os casos inco-muns e espetaculares e a subestimar os comuns.20

Esses resultados foram interpretados à luz doconceito de disponibilidade cognitiva   (cognitive availability ). Sobre a base de estudos psicológi-cos, acerca do papel dos modelos heurísticos nodecision-making , revelou-se que os perigos maisdramáticos e espetaculares são também mais fa-cilmente lembrados e essa sua disponibilidadecognitiva mais elevada poderia, portanto, explicarpor que são superestimados em relação a outrosperigos.

Tais observações são úteis para tentar expli-car o surgimento do medo da criminalidade noplano individual e a sua autonomia quanto à efe-tiva pressão da criminalidade, abrindo caminho

para a pesquisa dos fatores que influem na capa-cidade cognitiva dos indivíduos.21  No entanto,

ainda não são suficientes para explicar por que omedo da criminalidade toma relevância não sócomo fato individual, mas como discurso públi-co.22 U m argumento a mais é oferecido por es-

tudos antropológicos sobre o risco.C omo observa Douglas, as conclusões de

grande parte da pesquisa antropológica indicamque os indivíduos, quando se vêem forçados acalcular a probabilidade de um evento que com-porta graves conseqüências (como o desastre am-biental), são já embebidos de suposições e orien-tações adquiridas culturalmente.23  Tais suposi-ções e orientações, segundo a teoria cultural, têma ver com a forma das relações sociais mantidas

pela pessoa, com os preconceitos culturais, entreeles, os valores compartilhados e as crenças (in-cluindo, portanto, a visão do mundo e das rela-ções sociais), e com as estratégias comportamen-tais preferidas. É como se o indivíduo, no mo-mento em que age na realidade, por exemplo, ob-servando-a, fosse dotado de mapas cognitivos,24

que o ajudam na seleção de coisas a ver e inter-pretar. Assim, convém estudar essas suposições e orientações culturaiscomuns a largas faixas da po-pulação, mais que as modalidades de percepção

do indivíduo, para compreender como um certo fenômeno, entre os tantos possíveis, torna-se um pe- rigo temido por toda a coletividade , a ponto de criaralarme social. É necessário, como sugere Roché,considerar como central a questão da seleção so-cial e política do risco.25 E estudar as orientaçõessocioculturais que contribuem para a construçãode um fenômeno como risco a ser temido. A li-teratura sociológica vem ajudar a compreenderalgumas dessas orientações.

D e Leonardis sublinha a tendência àprivatização dos serviços primários à pessoa e,mais em geral, à redução da intervenção públicanos campos tradicionalmente ocupados pelas po-líticas do welfare state .26 Na área da ordem e se-

19 Por politicidade do conceito de risco  entende-se a sua dependênciade diferentes visões de mundo, que subentendem estruturas diversasde conhecimento e sistemas variados de valor, os quais determinam asmodalidades com que diferentes grupos confrontam experiênciascomuns de eventos e ações perigosas. Para aprofundar a literaturasobre a percepção de risco, cf. DO U G LAS, 1986.20 LIC H TEN STEI N et al., 1978, p. 551-578.21 Efetivamente, trata-se de uma área que ainda fornece muitos argu-mentos para o estudo dos fatores que influenciam a percepção da cri-minalidade. Para uma análise rápida dos principais fatores estudadosem relação à percepção do risco, cf. BO H O LM, 1998, p. 135-163.

22 C omo lembra Pitch, realmente desde Durkheim, sabemos que não élícito somar percepções e valorizações individuais para explicar e com-preender situações sociais. C f. PI TC H e VENTIMIG LIA 2001, p. 38.23 D O U G LAS, 1992, p. 67.24 D E LEO NARD IS, 2001, p. 52-59.25 ROCHÉ, 1996.26 DE LEONARDIS, 1998.

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gurança pública, está acontecendo um duplo pro-cesso de privatização:27 1. privatização da deman- da de segurança – o Estado não é mais o coletordas demandas de segurança da sociedade: cida-

dãos e empresas assumem diretamente o ônus (ea responsabilidade) de pedir e pagar   serviços desegurança; 2. privatização da oferta de segurança  –o Estado não é mais, nem mesmo, o único for-necedor de serviços de segurança: empresas eindivíduos os organizam e os fornecem, tantopara o setor privado quanto para o público.

O Estado está perdendo a centralidade queo caracterizou por cerca de um século, diante dastendências econômicas globalizantes, com as suas

cargas de incerteza e capacidade destrutiva, e pe-rante um enfraquecimento do instrumento polí-tico, a lei, à qual tradicionalmente se deu forte va-lor simbólico.28 A tendência à privatização se en-trelaça com a da individualização, de um lado, e àpesquisa de identidade em comunidadeshomogêneas, de outro. G iddens trouxe à tonacomo, nesse clima, as pessoas são condenadas afazer escolhas incessantes sobre bases incertas,sozinhas e com uma sobrecarga de responsabili-dades subjetivas.29 Bauman sublinhou que, num

ambiente de constante precariedade (entendidocomo insegurança do próprio status social, incer-teza do futuro e sensação de não ser dono do pre-sente), a tendência dominante, também na orga-nização dos espaços de vida, é refugiar-se na idéiade comunidade como espaço purificado e separa-do da sociedade.30 

Essas tendências – que podemos definircomo desinstitucionalizantes 31 e que chegam a fas-cinar uma sociedade privada de mediações e com

os nervos à flor da pele, na qual as instituições, pa-trimônio de inteligência coletiva, se deterioram afavor do imediatismo das relações sociais – favore-cem as percepções (também emotivas) dos pro-blemas individuais: cada um vive a própria ansie-dade sozinho, segundo Bauman, tentando en-

contrar soluções pessoais às contradições siste-máticas.32 

Assim, a criminalidade também não surgecomo problema social  de se confrontar com ações

coletivas, mas como problema indi vidual . O pe-rigo e o dano do crime sobre a pessoa (tanto ofurto quanto o homicídio) são considerados emtermos exaustivos. Não há mais preocupação  emgerir a questão da criminalidade confrontandopoliticamente  as condições estruturais que podemgarantir maior segurança; a vítima em potencialtem medo   de ser atingida pela criminalidade   etende a agir individualmente  para afastar os fato-res de risco. E é próprio desse medo individual,mais que da criminalidade, o fato de querer falar

e discutir em público. O medo da criminalidadetorna-se terreno de encontro entre as pessoas ede desencontro político e institucional, instru-mento para fazer avançar pedidos de mudança,fator de legitimação de novas instituições, saberese figuras profissionais, oportunidade para afirmarnovos setores empreendedores e pretexto paraesconder insucessos políticos ou recessões eco-nômicas, para aumentar o nível de controle e derestrição da liberdade e para definir quem estádentro e quem está fora, decretando a exclusão

daqueles que, de fora, apertam o cerco à comu-nidade compacta. O discurso público sobremedo da criminalidade torna-se, então, aqueleque constrói novas identidades, cria novasreferências culturais e novos valores e redefine osequilíbrios na sociedade.

D esse modo, chegamos também ao segun-do tema abordado: quais as conseqüências pro-duzidas pelo discurso sobre o medo da crimina-lidade? Como cada prática discursiva, o medo dacriminalidade vem utilizado a critério ético e polí-

tico de interpretação da realidade e, ao mesmo tem-po, termo de referência para transformar a realida-de: dá vida a novas classificações, das quais bro-tam novos modos de pensar e agir, novas formase novos objetos. O caso de City Walk, descritopor Lopez,33 é um exemplo macroscópico dessaforça geradora do discurso sobre o medo da cri-minalidade. Trata-se de um complexo nos arredo-27 BAYLEY & SH EARI NG 2001; LO AD ER, 2000.

28 CHIODI, 1996.29 G ID D ENS, 1994.30 BAU MAN, 2001.31 DE LEONARDIS, 2001.

32 BAU MAN, 2001; BEC K, 1986.33 LO PEZ, 1994.

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res de Los Angeles, situado entre o centro co-mercial e o parque de diversões, que oferece aosvisitantes (o bilhete de ingresso custa 15 dólares)a possibilidade de passear em uma Los Angeles li-

vre da violência e da criminalidade. O medo dacriminalidade torna-se critério para pensar, proje-tar e realizar a vida em comunidade.

NOTAS CONCLUSIVAS: AS POLÍTICAS DE SEGURANÇA COMO MENSAGENS  ÉTICAS 

Estudar os aspectos políticos  do medo da cri-minalidade, assumindo uma perspectiva que co-loque como central a dimensão cultural e ética davida social, permite distinguir dois planos: o dapessoa que vive  uma situação geradora de medoe o da sociedade que fala  difusamente de medo dacriminalidade, e, ao fazê-lo, a descontextualiza e aaplica a diversas funções (coesão social da comu-nidade, afi rmações de poder, atribuição de res-ponsabilidade a grupos marginais etc.), produzin-do, ao mesmo tempo, novos modos de pensar, deagir e, portanto, de entender as relações sociais.

Essa distinção de planos permite olhar apolítica de segurança de uma ótica diversa da ha-bitual. As instituições falam de medo da crimina-

lidade por meio de caminhos políticos contidosnos atos que emitem. As políticas de segurançaconstituem, por conseguinte, parte integrante dodiscurso sobre o medo da criminalidade e desem-

penham papel importante (ainda que nem sem-pre determinante) no fornecimento de critériospara (re)pensar a vida social. Se, dessa forma, aspolíticas têm, de um lado, a fi nalidade evidente dereduzir os medos das pessoas (diminuindo os de-litos e a desordem social, aumentando a assistên-cia às vítimas, requalificando as áreas urbanas,adotando sistemas de videovigilância etc.), de ou-tro, exprimem necessariamente uma visão idealda sociedade e das relações sociais sobre a base naqual caracterizam-se as necessidades de interven-ção. As políticas podem ser vistas, assim, comorecipientes que veiculam mensagens à coletivida-de acerca daquilo que é justo fazer para adequar-se a um modelo de sociedade a que implicitamen-te se adere. Estudar os conteúdos, antes de tudoéticos, dessas mensagens permite ter maiores in-formações sobre a direção pretendida pelasinstituições de fiscalização. E, talvez, permita a to-dos nós refletir, com mais atenção, sobre as carac-terísticas da sociedade que estamos construindo.

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Dados do autor

Doutor em pesquisa em criminologia,desenvolve atividades de pesquisa sobre temas

de segurança urbana e justiça criminal. Colaboracom atividades didáticas e de pesquisa da

cátedra de Criminologia da Università degliStudi di Milano-Bicocca, Milão/Itália.

Recebimento artigo: 5/set./03

Consultoria: 8/set./03 a 17/set./03

Aprovado: 23/set./03

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Dilemas na PesquisaCientífica

D i l emmas i n

Sci en t i f i c Resear ch

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Salvar o Dito, Honrar aDádiva – dilemas éticosdo encontro e daescuta etnográfica

TO SAVE THE SAYING, TO HONOR THE GIFT– ETHICAL DILEMMAS OF ETHNOGRAPHICENCOUNTER AND LISTENING 

Resumo A preocupação com a ética da pesquisa não é nova na antropologia e tem

sido atualizada constantemente, na medida em que acompanha o desenvolvimento da

disciplina. O encontro e a escrita etnográfi ca, bem como as dimensões subjetivas e

políticas do conhecimento têm sido alvo de intensa problematização por parte dos

antropólogos. No Brasil, a resolução 196/96, do Ministério da Saúde, que normatiza

as pesquisas com seres humanos, recolocou a questão em outros termos, por exem-

plo, a necessidade de formalização do consentimento informado pelos pesquisados,trazendo problemas adicionais à sempre complexa relação antropólogo/nativo, temá-

tica recorrente na reflexão teórico-metodológica da disciplina. N este artigo, propõe-

se pensar a ética da pesquisa no âmbito da teoria da reciprocidade, tendo por foco a

posição ocupada pela antropologia na sociedade brasileira, na qual, historicamente, as

diferenças têm sido fonte de desigualdade e exclusão social.

Palavras-chave ÉTICA – ENCONTRO  ETNOGRÁFICO  – RECIPROCIDADE.

Abstract  The concern with ethics in research is not new to anthropology. It has been

constantly updated as this discipline develops. Ethnographic encounter and listening,

as well as subjective and political dimension of knowledge, have been extensivelyreviewed by anthropologists. In Brazil, Resolution 196/96, from the Health Ministry,

that regulates research on human beings, positions the issue in other terms – for

example, the need of a formally informed consent by potential subjects. That brings

additional problems to the complex relationship between anthropologist/native, a

recurring theme in the discipline’s theoretical-methodological reflection. In this

article, the author approaches ethics in research within the scope of reciprocity theory,

focusing on the position of anthropology position within Brazilian society, in which

differences have been historically the source of inequality and exclusion.

Keyw ords ETHICS – ETHNOGRAPHIC  RELATIONSHIP – RECIPROCITY.

CARMEN SUSANA

TORNQUISTUniversidade do Estado de

Santa Catarina (UDESC)carmentornquist@ hotmail.com 

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m 1996, foi aprovada, pelo Ministério da Saúde, a Reso-lução 196/96, intitulada Normas para a Pesquisa com Se-res H umanos, que regulamenta as pesquisas realizadasfundamentalmente no campo da saúde. Essa resolução

foi fruto de um longo processo de discussão, do qualparticiparam entidades profissionais, organizações não-governamentais e agências estatais, reunidos em comis-

são específica, tendo em vista normatizar essa delicada questão na socie-dade brasileira.

D esdobramentos muito controversos a partir da aprovação e ope-racionalização dessa resolução não tardaram a ser vivenciados: pesquisa-dores acostumados a realizar suas pesquisas em saúde coletiva e saúde emgeral, tanto no nível institucional (postos de saúde, hospitais etc.) quantono domiciliar, viram-se constrangidos a elaborar verdadeiros dossiês con-tendo projeto de pesquisa, aprovação de instituições envolvidas, declara-ções diversas, documentos institucionais e, ainda, um formulário intitu-lado consentimento livre e esclarecido ou informado.

O argumento maior de todo esse esforço institucional e legal eraeminentemente ético e estava embalado por discussões contemporâneas deponta, geradas sobretudo por empreendimentos como o Projeto G enoma.Pesquisadores e profissionais da área da saúde, pressionados por um con-texto favorável à reivindicação de direitos humanos, deram-se conta de quea dimensão ética da produção de saber envolvendo seres humanos era pre-mente e não poderia ser mais decidida unicamente por critérios corporati-vos ou estritamente acadêmicos, mas também políticos e extra-acadêmicos.

Embora aparentemente restrito a pesquisas da área biomédica, osefeitos de tal resolução transbordaram esse campo de pesquisa e passarama dizer respeito à antropologia. Primeiro, porque vários antropólogostêm se dedicado ao estudo da saúde de diferentes grupos da população(incluindo aí a saúde indígena), passando, portanto, a dispor de mais uminstrumento de controle e regulamentação de seu métier , quando já pos-suem seu próprio código, formação que inclui essa discussão e fórunsespecíficos para tratá-la. Segundo, porque os antropólogos fazem falta norefinamento desse debate, dada a profundidade de sua experiência e re-flexão no que diz respeito à ética da pesquisa.

A questão da ética na pesquisa e na profi ssão de antropólogo não

é nova; pelo contrário, é mesmo constitutiva da disciplina, se pensarmosna própria origem e no desenvolvimento dela ao lado de agentes coloniaise práticas de conversão de sociedades não-ocidentais, desde o século XX .

Embora tenha sempre estado presente, a reflexão ética emerge comgrande força nos anos 80. Nela, a crítica dessa colaboração com o colo-nialismo é rechaçada, passando a tornar-se congênita à prática antropo-lógica.1 É bom lembrar que o Código de Ética da Associação Brasileira

1 MEN EZES BASTO S, R. “Antropologia como crítica cultural e como crítica a esta: dois momentosextremos de exercício da ét ica antropológica (entre índios e I lhéus)”. In: LEITE, 1997, p. 100.

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de Antropologia (ABA) data justamente desse pe-ríodo, embora tenha existido de modo informalanteriormente, conforme relata um dos fundado-res da entidade, Roque Laraia.2  A preocupação

com os destinos das pesquisas antropológicas ébem anterior: veja-se o caso de Franz Boas, que,em 1919, foi crítico intransigente da participaçãode antropólogos em planos de espionagem dosEU A na América C entral, dividindo a opinião dospesquisadores da Associação Americana de An-tropologia.

O caso levanta dilemas que não deixarão deatormentar a vida de antropólogos até hoje: quaisos limites do fazer ciência e da intervenção polí-tica?, quais as fronteiras entre o dever cívico e ocompromisso com o que Boas defi ne como a ver-dade científica?3  A postura weberiana de Boas,marcando a necessária separação entre o juízo devalor da verdade empírica, ajuda-nos a pensar queética profissional e participação política são coisasdiferentes; no entanto, sabemos que suas frontei-ras são sempre incertas e instáveis. Sobretudoquando o contexto sociohistórico é de ausênciade direitos humanos básicos, como nos países deTerceiro Mundo restringir-se a salvar o di to 4 sig-

nifica testemunhar o extermínio de populações,registrar e dar notícias desses fatos.A complexidade é grande, mas um aspecto

parece ter se tornado consensual nos últimosanos: a necessidade de transparência das ações eintenções dos pesquisadores em campo, comoforma de garantir os direitos humanos dos po-vos/grupos anfitriões. Nesse sentido, posturasfrancamente incômodas   à corporação dos antro-pólogos, como as do projeto C amelot e de RuthBenedict durante a Segunda G uerra Mundial, es- 

tudando um suposto inimigo  da democracia, pare-cem ter sido abandonadas definitivamente. Tantoo mestre quanto a aprendiz viveram na pele, e emposições opostas, os dilemas do antropólogo ci-dadão que fazem parte do cotidiano dos antro-

pólogos brasileiros de modo bastante candente.Voltarei a essa questão no fi nal deste texto; porora priorizarei a dimensão da ética profissional,pensada no plano da comunidade de antropólo-

gos com valores e regras legitimadas e, em algunspontos, normatizadas formalmente.

O propósito deste artigo é discutir a pre-mência de uma participação à altura da trajetóriada antropologia nessa questão, t endo em vista seumétodo clássico (aquilo que restou  como distintivida-de do antropólogo, como sugere James Clifford),5

ou, mais do que isso, aquele método visceralmen-te intrínseco à antropologia, segundo têm argu-mentado vários antropólogos diante das críticas

pós-modernas. O trabalho de campo, hoje emdia, após a consciência hermenêutica e o barulhodos pós-modernos, mostrou-se alargado o sufi-ciente para incluir relatos de viajantes, cronistas,imagens, fotografias, filmes e ciberespaço, entreoutros.

No entanto, a questão ética, na formacomo será pensada aqui, tratará a etnografia clás-sica, legitimada por Malinowski e transformadaem ritual de iniciação do antropólogo preocupa-do com a compreensão do

ponto de vista dos na- tivos .

NOSSA AVENTURA TEM  MÉTODO

Na medida em que a antropologia legiti-mou a prática etnográfica como uma experiêncianecessária à formação do etnógrafo, a questão doencontro etnográfico passou a ser alvo de refle-xões e recomendações acerca do como fazê-la adequadamente. Há que se considerar que os cri-térios atuais referentes aos chamados procedi- mentos inerentes àprática científica , para usar ostermos do Código de Ética da ABA, não corres-pondem àqueles princípios orientadores da an-tropologia no começo do século XX – se aqui es-tamos em tempos de consciência hermenêutica,lá vivia-se a necessidade de objetividade científica em moldes positivistas. C om tal preocupação, re-ponta em Malinowski a idéia de mostrar ao leitor

2 LARAIA, R. “Ética e antropologia: algumas questões”. In: LEITE,1997, p. 90.3 MOONEN, 1998.4 A expressão foi cunhada por G eertz, ao argumentar que a descriçãoetnográfi ca é sempre interpretativa e que essa interpretação busca inscre-ver o discurso nativo, portanto, salvar o di to  (G EERTZ, 1989, p. 31). 5 C LIFFO RD , 1998, p. 20.

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como ele obteve seus dados, t al qual um cientistanatural:

Antes de proceder ao relato do kula, será

melhor descrever os métodos usados nacoleta do material etnográfico. Em qual-quer ramo do conhecimento, os resulta-dos da pesquisa científica devem ser apre-sentados de maneira absolutamente im-parcial e honesta. Ninguém ousaria fazeruma contribuição experimental às ciênciasfísicas ou químicas sem relatar, detalhada-mente, todos os arranjos experimentais,sem descrever com exatidão a aparelha-gem utilizada, o modo pelo qual as obser-vações foram conduzidas, o número de

observações realizadas e o tempo dedica-do a isto. (...) Infelizmente, na etnografi a,onde uma apresentação franca destas in-formações se faz mais ainda necessária,estes dados não tem sido oferecidos comsuficiente generosidade e muitos autoresnão recorrem ao farol da sinceridade me- todológica  para iluminar os fatos, que sãoapresentados como que surgidos do na-da.6

Ao propor essa forma de descrição etno-

gráfica, Malinowski está preocupado em mostrarque tal aventura tem método – e, portanto, podeser ensinada e aprendida. U m etnógrafo deve sertreinado para vivê-la de maneira adequada – e ele,já em Os Argonautas do  Pacífico O cidental , traçavários desses procedimentos: domínio da língua,isolamento proposital e radical dos demais bran-cos, participação no cotidiano da aldeia, registrodetalhado em um diário de campo, incluindoeventos extraordinários e ordinários da vida – a

imponderabili a da vida cotidiana , para usar seuspróprios termos –, a capacidade de suportar pe-ríodos difíceis, a necessidade de ir a campo comquestões, além da já citada importância de expli-citar as condições em que foi feita a pesquisa. Elemesmo faz referências a essas condições, cha-mando a atenção para informações a que não teveacesso (no caso, o que seria o paradoxo das teo-rias da concepção e práticas sexuais dos nativos/

as ou dos costumes sexuais das nativas diante dosestrangeiros), em virtude de sua condição de ho-mem, antropólogo e branco.

Evans-Pritchard, outro antropólogo de re-

conhecidas preocupações estéticas e talento au-toral, também preocupa-se em tecer considera-ções acerca do trabalho de campo, visto comomisto de talento e preparo, rendendo tributo aMalinowski em vários aspectos (necessidade dedominar a língua, de viver intensivamente com osnativos por um período significativo e de estabe-lecer com eles vínculos psicológicos). Ele defen-dia a necessidade da tradução do idioma e dosconceitos nat ivos para a língua do pesquisador, ao

contrário de Malinowski, que, diante de algunstermos como notadamente o kula , evitava forçaruma tradução que traísse o sentido original dotermo. Além disso, sublinha que o antropólogodeve construir  os fatos etnográficos, selecionandoe interpretando o que observa, e que tal processoé marcado pelas idiossincrasias de cada um:

Si bien créo que los diferentes antropólo-gos sociales que estudien a un mismo pu-eblo registrarán hechos similares en suscuadernos de notas, también créo que loslibros que escribirían serían muy distin-tos. Dentro de los límites impuestos porsu disciplina y la cultura que están inves-tigando, los antropólogos se guián por in-tereses diferentes para la elección de lostemas, la seleción y las disposiciónes delos hechos que los ilustren, para escogeraquello que resulta importante dentro delconjunto. Esto se refleja en las variacionesde personalidad, educación, status social,opiniones politicas, convicciones religio-

sas, etc.7 

Para ele, o antropólogo teria um toque degênio e sua produção, uma dimensão propria-mente artística, articulando, ao mesmo tempo, atarefa de escrever livros sobre a vida social da co-munidade o mais corretamente possível, mas semeliminar sua personalidade, já que o caráter desseprofissional faria parte intrínseca de seu contato

6 MALIN O WSKI, 1986, p. 26 (grifos acrescidos). 7 EVANS-PRITCH ARD , 1975, p. 99.

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com o outro. Evans-Pritchard, que não parece ter  jamais posto   em dúvida sua autoridade, embora

buscasse sua diferenciação dos missionários, via-jantes e agentes coloniais, não estava preocupado

nem com os fins de suas pesquisas, nem mesmocom a sinceridade no que tange aos nativos. Nes-se ponto, o diálogo com um dos nuer , relatado noinício de seu livro, é emblemático do que atual-mente chamaríamos de falta de ética profissional– ele, literalmente, mentiu para o nativo, que, deseu lado, não parece ter abandonado suas descon-fianças, já que também classifica   o antropólogocomo branco e colonizador:

C uol: – Você quer saber o nome de minha

linhagem?E-P: – Sim.C uol: – O que você vai fazer com ele seeu disser? Você vai levá-lo para seu país?E-P: – Eu não quero fazer nada com ele.Eu só quero saber, já que estou vivendoem seu acampamento.Cuol: – Ah bom, nós somos lou.E-P: – Eu não perguntei o nome de suatribo. Isso eu já sei. Eu estou perguntandoo nome de sua linhagem.

C uol: – Por que você quer saber o nomede minha linhagem?E-P: – Eu não quero saber.C uol: – Então por que está me pergunta-do? D ê-me um pouco de tabaco.8

O diálogo mostra a tensão da negociaçãoentre as partes, inevitável no trabalho do autor,sobre a qual ele se refere como produtora de umanuerose , mas entendida como necessária para ha-ver reciprocidade – tabaco em troca de informa-ções e desconfiança mútua.

H oje em dia, podem parecer banais as ob-servações de Evans-Pritchard, já que, num con-texto pós-moderno, a dimensão autoral e a sub-jetividade do pesquisador em campo são conside-radas inevitáveis, uma vez que dão o tom e o li-mite também das relações intersubjetivas docampo e sua tradução para a escrita. Nesse caso,ao contrário dos clássicos, sabemos estar conde-

nados a fazer interpretações de segunda mão – oque não impede o projeto antropológico de pro-curar aproximar-se o melhor possível de como pensam os nativos .9

No entanto, como bem colocam TerezaC aldeira, Wilson Trajano Filho e Mariza Peirano,entre outros autores, a crítica dos pós-modernosaos temas aqui apontados pode nos levar equivo-cadamente a abandonar a boa tradição da etno-grafia, ou seja, a realização de trabalho de campoe a reflexão sobre a especificidade do encontro et-nográfico. Mesmo que as dimensões enfatizadascontemporaneamente tenham de ser considera-das, já que podem ser vistas como refi namento

do debate.

O ENCONTRO ETNOGRÁFICO EM  TEMPOS PÓS-MODERNOS

Luís Eduardo Soares argumenta que essesautores têm o mérito de revitalizar o debate sobreo encontro etnográfico, radicalizando a reflexãosempre necessária e dilemática da experiência et-nográfica, embora com ênfase especial na textuali-dade dos relatos.10 A preocupação deles com a rea-

lização de experimentos sobre o que Soares cha-ma de dimensão existencial, e menos sobre a di-mensão epistemológica do encontro, atenta paraaspectos políticos e éticos envolvidos na traduçãoda relação intersubjetiva para textos dirigidos aopúblico especializado e mesmo leigo. As refle-xões sobre a escrita etnográfica adquirem, então,um peso significativo, levando vários autores abuscar formas polifônicas de escrever, opondo-seveementemente, nesse particular, à tradição mo-nográfica e autoral da antropologia. Segundo

C aldeira,11 embora alguns deles, com especial ên-fase, recuperem a dimensão política e ética do en-contro e da escrita, não têm considerado os as-pectos mais amplos que envolvem inevitavelmen-te a profissão, restringindo-a uma micropolítica

8 Idem, 1999, p. 21.

9 G eertz, em sua conhecida reflexão acerca das chamadas interpreta-ções de primeira e segunda mão, diz que “somente os nativos podemfazer interpretações de primeira mão”, cabendo ao antropólogo atarefa de registrar as interpretações nativas (G EERTZ, 1989, p. 25).10 SOARES, 1994.11 C ALD EIRA, 1988, p. 24.

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textual em sentido estrito. Isso sem refletir deforma mais ousada acerca dos condicionantesmacropolíticos do próprio contexto estaduni-dense e suas relações com antigas colônias, onde

boa parte das etnografias é feita. Além do mais,careceriam de uma auto-reflexão sobre o campocientífico do qual são filhos heréticos , segundoNéstor G arcía C anclini.12

Essas propostas envolvem dimensões éticase políticas mais amplas e, na medida em que en-volvem explicitamente pesadas críticas ao colonia-lismo, cabe fazer as mediações e comparações de-vidas com a antropologia produzida nos paísescoloniais  ou nas ex-colônias. O contexto brasilei-

ro é efetivamente diferente, marcado por uma co-munidade de antropólogos que, segundo a suges-tiva análise de Marisa Peirano,13 é atravessada poruma dupla alteri dade  – subalterna na comunidadeacadêmica internacional, mas hegemônica quantoaos seus conterrâneos, constituindo uma relaçãode engajamento e comprometimento políticosignificativos, que, junto com a tradição ensaísti-ca, parecem fazer parte da história da antropolo-gia no País. É bom lembrar que tal postura de en-gajamento passou de um paternalismo inicial,

como aquele praticado pelo indigenismo tradicio-nal, a outros termos de engajamento com movi-mentos indigenistas protagonizados pelas pró-prias nações indígenas, significativo nas três últi-mas décadas, mas que manteve outros elos de ar-ticulação.

A recuperação da subjetividade dos antro-pólogos homens vem estimulando pesquisasacerca das peculiaridades do trabalho de campofeito por suas mulheres, em geral visto como me-

nor ou subsidiário; às vezes elas são verdadeirasco-autoras dos trabalhos, sugerindo uma especi-ficidade da escrita feminina e da própria relaçãoentre mulheres e nativos.

A consciência hermenêutica consolidada nadisciplina, nas últimas décadas, levou a reflexõesmais detalhadas (e não apenas como curiosidadebiográfica) sobre o lado até então oculto da ex-

periência existencial do antropólogo. Entre ou-tros trabalhos, O D iário Secreto , de Malinowski,Os Tristes Trópicos , de Lévi-Strauss, Afrique Fan- tôme , de Leiris, as cartas de Margareth Mead e as

memórias de Ruth Landes14 acerca de sua margi-nalização no trabalho de campo, além do seu li-vro, têm alimentado reflexões importantes, quepassam cada vez mais a fazer parte da própria for-mação do antropólogo e de sua sinceridade me-todológica. Trata-se de um esforço fundamentalde relativizar o próprio conhecimento produzi-do, mas, ao mesmo tempo, sem abandonar os ob-jetivos propriamente científicos da disciplina. Mi-riam G rossi acentua que a presença da subjetivi-dade no trabalho de campo sempre esteve pre-sente, mas na qualidade de curiosidades ou denão-ditos do fazer científico, e que atualmentecoloca-se como fundamental na análise dos da-dos, uma vez que a relação pesquisador-pesquisa-do é decisiva no trabalho de campo.15

ALÉM  DA INTERSUBJETIVIDADE

A magia do antropólogo de ter visitadoilhas e praias distantes é vista como um mito fun-dador da antropologia moderna. Mesmo com oalargamento do campo  de trabalho da antropolo-gia para além desses lugares longínquos, incluin-do cada vez mais o estudo da própria sociedadeocidental, de seus grupos, suas tribos e seus gue-tos, a mística permanece: o antropólogo é umaespécie viajante on the road , disposto a passar portodas as agruras de ser hóspede de desconhecidose viver na própria pele e psique o impacto dessaexperiência, um sujeito corajoso e sem preconcei-tos ou, pelo menos, disposto a colocar em cheque

os seus preconceitos. Ao estudar seus vizinhos eseus pares, e não mais necessariamente as tribosdistantes, esse eterno viajante depara-se, então,com a tarefa de construir a alteridade lá onde elanão está explícita, não está dada. Não que nãoseja preciso fazer o mesmo com sociedades não

12 C ANC LINI , 1993, p. 26-33.13 PEIRANO, 1991.

14 O caso Landes é recuperado por Vagner da Silva, em seu trabalhocom pesquisadores de religiões afro-brasileiras, chamando atençãopara os imbróglios políticos internos ao campo cientifico, envolvendo,no caso, nítidas discriminações de gênero (SILVA, 2000, p. 81).15 G RO SSI, 1992, p. 8.

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ocidentais, mas aqui o esforço parece redobrado.Transformar o exótico em familiar inverte-se,sendo preciso estranhar o que é conhecido, ou se-ja, o visceral, o estomacal   de DaMatta,16  proce-

dendo a uma série sucessiva de objetivações equestionamentos das categorias de entendimento.O bviamente, a comparação com aquelas socieda-des distantes será parte desse processo de estra-nhamento e eis aí a importância da estratégiacomparativa na antropologia.

A antropologia urbana, significativa na his-tória da antropologia brasileira mais recente,criou instrumentos próprios para lá onde ela pa-recia inexistente ou muito tênue. As mesmas di-

retrizes clássicas da aventura antropológica se fa-zem presentes nesses estudos, tanto entre os gru-pos mais distantes dos universos simbólicos dospesquisadores quanto daqueles dos quais fazemparte. O esforço de estranhar relativizando passaa ser uma tarefa não dada nesses contextos – épreciso construir a alteridade, procedendo ao queLévi-Strauss dizia ser uma das contribuições maisimportantes de Marcel Mauss em termos meto-dológicos, como se esse autor, mais uma vez emseus insights  sugestivos, tivesse pensando a singu-

laridade da antropologia, repousando antes sobre oseu método, o seu olhar, e não sobre o seu objeto.

É o encontro com outras pessoas, diferen-tes entre si, e com as quais o antropólogo terá denecessariamente envolver-se, dialogar, estabelecerrelações intersubjetivas suficientemente densaspara que se possa compreender a forma como osnativos pensam.

Esse encontro ocupa um lugar decisivo, e éde sua intensidade que depende, em grande parte,

o sucesso do empreendimento. As mudanças detemáticas, de estratégias e de técnicas no decorrerdo trabalho de campo, justamente por isso, fa-zem parte dessa atividade empírica, muito maisdo que em outras ciências sociais, pois o que sepretende é escutar o “ O utro” e a escuta implicarecolocar as questões. Essa capacidade de adapta-ção ao campo (e aos nativos) é constitutiva da et-nografia moderna.

O encontro etnográfico é sempre comple-xo, intransferível, incerto, tenso e instável. Nes-sas condições, a dimensão artesanal e mágicaexige efetivamente uma sensibilidade diferente

do necessário polimento  do olhar do antropólo-go, construído com base numa formação espe-cífica.17

O antropólogo nunca sabe, de fato, se re-almente será recebido, que dirá bem recebido, emesmo que metodologicamente já saiba que, em-bora não o sendo, poderá observar e participar doponto de vista existencial-subjetivo, não é fácil li-dar com esse encontro.

A dimensão existencial do encontro, assim

como sua dimensão epistemológica, envolvequestões éticas. Mas se, nesse caso, a ética encerraoutros atores implicados na pesquisa (a comuni-dade acadêmica, os agentes financiadores e tam-bém os nat ivos), é no plano da dimensão existen-cial que a ética parece assumir um tom mais dra-mático. Isso porque o encontro etnográfico é umencontro entre pessoas, premeditado, de um la-do, e espontâneo, de outro. Ao obrigar-se a seraceito pelo grupo/sociedade em que pretendepermanecer, observar e participar, o antropólogo

vê-se envolvido com questões nada epistemoló-gicas, que o aproximam dos nativos de formamuito imediata – classifi cado por D aMatta comomomento prático seguido do existencial. É quan-do o pesquisador arruma a sua mochila, preparaseus adereços e seu equipamento, arma a sua bar- raca  e coloca-se, enfim, como um igual – um serhumano como outro qualquer, e não um pesqui-sador com capital cultural, legitimidade acadêmi-ca, assepsia profi ssional. A vulnerabilidade dessemomento pode e deve ser objeto de atenção eanálise, pois há um impacto psíquico nesse en-contro das diferenças simbólicas entre as culturasa que pertencem ambos os lados da relação. Aanálise desse impacto – já sugerida por Evans-Pri-tchard – faz parte de nosso dever do ofício.

A aceitação pelo grupo anfitrião, mais pre-cisamente pelas pessoas de carne e osso  (lembremosda ênfase nessa dimensão dada por Malinowski), e

16 DAMATTA, 1974, p. 25. 17 LEITE, 1997, p. 42.

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as relações que se sucedem após a desejável e ar- quitetada  acolhida inauguram um circuito de re-ciprocidade. Sem ela não haverá nem trabalho decampo nem escrita etnográfica. Alguém já disse

que não haverá observação participante rentávelque não se apóie profundamente nessa participa- ção . Esse tipo de observação envolve partilha,trocas, intersubjetividade, face-to-face  e tête-à-tête e, justamente por isso, viabiliza a riqueza das aná-lises – com todos os dramas e dilemas que acar-retam.

Sabemos q ue existem controvérsias quantoà ênfase na participação ou na observação. Elasparecem apontar divergências epistemológicas,

nas quais ora se pensa segundo uma perspectivahermenêutica, sendo, então, a subjetividade umaconvidada bem-vinda do trabalho de campo, orase postula que essa subjetividade deve ser mini-mizada ao máximo, num ideal de naturalidadeaxiológica. Mas, em campo, esses limites são tê-nues: sobretudo aquelas ocasiões envolvendo si-tuações limites, como as de vida ou de morte, co-locam o desafio aos antropólogos de escolher en-tre a intervenção ou a não intervenção. O caso re-latado por Alba Zaluar,18 de que o seu professor

Max G luckman revela ter intervido ativamenteem campo para evitar a morte de uma criança, éum entre infindáveis exemplos reveladores dosdilemas éticos e existenciais do trabalho de cam-po, e relacionados com a própria natureza do en-contro etnográfi co.

É com base na teoria da reciprocidade quepretendo analisar, agora, os dilemas éticos do en-contro etnográfi co.

UMA DÁDIVA SOLICITADANo seu clássico e inspirador “Ensaio sobrea D ádiva”, Marcel Mauss lembra que o dom su-põe um contra-dom, e que a dádiva não é algoque se dá por dar ;19 há uma expectativa de con-trapartida implícita cuja temporalidade não estásenão obscurecida pela incerteza da relação. Aorecuperar a lógica da reciprocidade, Bourdieu su-

blinha que a dádiva requer um tempo de esperaque não pode ser explícito. Essa espera implícita,portanto, é decisiva, pois, se houvesse explicita-ção das regras interiorizadas, romper-se-ia o cir-

cuito da reciprocidade. Além disso, segundo ele,a reciprocidade implica assimetria, trocar envolvepoder, desigualdade, subalternidade:

Q uando se estabelecem condições queexcluem a possibilidade de contrapartida,a própria esperança de uma assimetria du-rável revela uma reciprocidade ativa.C ondição de uma verdadeira autonomia,são de natureza a criar relações de depen-dência duráveis, variantes eufemizadas(...). Tendem a se reinscrever nas dobrasdo corpo, sob forma de crença. Confian-ça, paixão, qualquer tentativa de transfor-má-las pela consciência e pela vontade sechocam com as resistências ocultas dosafetos e com as injunções tenazes de cul-pabilidade.20

É interessante pensar no encontro etnográ-fico apoiado nessas relações de poder e na cul-pabilidade que aparece envolvida nesses inter-câmbios. O pesquisador fala de um lugar social,

muitas vezes mais prestigioso que seus informan-tes. Mas na dádiva do encontro, na qual o antro-pólogo quer escutar o outro e não espera recebergratuitamente o prazer da escuta, ele precisa so-licitar ao informante o seu consentimento. Nãohá espontaneidade nesse pedido; há intencionali-dade plena. O consentimento do informante   (enão o consentimento informado ) é obtido de for-mas diversas, valendo-se de contatos de tempo-ralidade instável, que dependem da empatia e dasnegocia-ções estabelecidas entre antropólogo enativos.

Doação de tempo, informações confidenciais,depoimentos, pedaços da vida dos nativos são dá- divas conquistadas  pelo antropólogo ao longo doestar em campo , junto com o Outro – e podem sedar de maneiras tão diversas quanto correr da po-lícia junto com os praticantes das rinhas de galo,ceder tabaco, doar remédios, participar de muti-

18 ZALU AR, 1993, p. 150.19 MAU SS, 1974. 20 BO U RD IEU , 1996, p. 15.

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rões, auxiliar na confecção de um abaixo-assina-do, participar do baile de carnaval, escrever a me-mória de um grupo, defendê-lo diante de autori-dades e tantas outras, que possam viabilizar a

construção de uma fusão de horizonte na prática.A confiança é uma conquista do devir da relação.

C ada vez mais, os nativos são ativos, recu-sando-se a ocupar o lugar de objetos passivos:eles igualmente nos classificam em suas categoriasprévias e também querem trocar – participam doespírito da dádiva que concedem. C ompreenderqual ou quais os contra-dons esperados a partirdo consentimento do informante tornou-se maisuma dimensão a ser pensada em campo e nos

momentos de escrita e socialização da pesquisa.Perceber os implícitos das relações intersubjeti-vas, as expectativas, as frustrações de ambas aspartes e seus condicionantes sociológicos é parteintrínseca do nosso esforço de entender os pon-tos de vista dos nativos. Se, de um lado, sabemosque explicitar os não-ditos pode romper com areciprocidade, de outro, começamos crescente-mente, em razão de confl itos teóricos, a pensar senão é da negociação transparente dos termos do

trabalho etnográfico que a tensão po-de ser in-corporada na própria escrita do texto.

A proposta de G adamer, recuperada porCrapanzano,21 de que deveríamos investir no diá-logo de tipo engajado, no qual as tensões e osconflitos fazem definitivamente parte, pareceapontar nesse sentido, embora seja, talvez, umdos planos mais difíceis de estabelecer as negocia-ções. A própria existência de conflitos pode, equem sabe deva , fazer-se presente no diálogo e naescrita; a conversa espontânea e efetiva traz im-plicações, já que, para ambos os lados, exige o su-jeito efetivamente. Mas trata-se, muitas vezes, deuma conversa entre pólos assimétricos – o antro-pólogo norte-americano e o marroquino fazedorde telhas, no caso de C rapanzano, a intelectual eos pobres da favela, em Zaluar – e a consciênciadessa assimetria, sobretudo no momento da es-crita da monografia, parece dar o tom das preo-

cupações éticas daqueles que estiveram lá, de pas-sagem.

A ruptura radical entre o trabalho de cam-po (a vida na rua) e o momento da escrita (a re-

clusão da casa) é apontada como um momentodifícil por vários antropólogos, como aqueles es-cutados por Vagner da Silva.22  Nessa passagemradical, as pessoas de carne e osso tornam-se per-sonagens de um texto, desencarnadas e frias, ain-da que os saberes da escrita possam inscrevê-lasem narrativas mais ou menos vibrantes. Mesmotrazendo para o interior dos textos monográfi cosou polifônicos esses sujeitos, agora, sim, inevita-velmente transformados em indivíduos socioló-

gicos (objetivados), os desencontros dos antro-pólogos têm sido grandes, muitas vezes identifi -cando-se com um sentimento de culpa, uma dí-vida a ser saldada.23

H á efetivamente um luto a ser feito: se aexperiência foi mesmo impactante, do ponto devista psíquico/afetivo, e se o encontro ou o diá-logo mostrou-se efetivo por parte do antropólo-go que agora, diante dos seus deveres acadêmi-cos, deverá recuperar – caso tenha abandonadopor um tempo – sua função de escritor, pensador,

analista e intérprete.24

Manifestações de desagrado e decepçãoquanto aos resultados da pesquisa não raro sãoexpressas diante das boas intenções dos agora au-tores em socializar os resultados, como o depoi-mento da mãe de santo reclamando da frieza dotexto em que figura como personagem:

eu estive num encontro da U nesco, e mesenti assim, tão do outro lado da jaula,que eu disse ao Sérgio Ferreti – O lha, vo-

cês têm que ver como lidam com o pes-quisado, porque às vezes a pessoa que é

21 CRAPANZANO, 1991.

22 SILVA, 2000.23 Janaína Amado fala da culpa nossa de cada di a , presente no trabalhodos historiadores que atuam com história oral e memórias de vida,acentuando que somente a participação para além dos textos, na esferapolítica propriamente dita, pode dar conta de mitigar essa culpa(AMAD O, 1997, p. 154).24 Mariza Peirano considera que duas dimensões importantes do tra-balho de campo e do encontro  deveriam ser aprofundadas: o impacto psíquico e a relação de transferência  e o fenômeno da conversão religiosa ,explorado por Vagner da Silva, com base nos estudiosos das afro-reli-giões (PEIRANO, 1995).

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pesquisada, quando vê exposto aquilo quefalou ou que o outro falou, se sente ummico dentro de uma jaula. (...) Eles estão pesquisando gente, sabe ? Eu não sou um

braço. Acho que se eu estivesse ali comoum objeto de medicina e me falassem –este abdome hoje entrou para uma cirur-gia, eu haveria de ficar muito triste, por-que não sou um abdome, sou uma pessoa.O u ele entrou numa casa e pesquisou talsegmento, tal setor, e tal o que. Isto cho-ca. Ficamos irr itados com este modo frio,não como o pesqui sador nos trata, mas como a pesquisa éapresentada . Sei que énecessário uma série de coisas que nósnão sabemos, mas, q ue diabos, sejam mais

amáveis, principalmente se o pesquisadoestiver sentado perto.25

Às vezes, a própria questão do anonimato,vista como ponto chave na negociação com os in-formantes, é motivo de frustração, pois muitaspessoas querem dar seu nome, como freqüente-mente acontece em pesquisas feitas com grupospopulares. O consentimento informado, obriga-tório segundo a Resolução 196/96, e o C ódigo deÉtica da ABA prevêem o anonimato como forma

de preservar a intimidade, provavelmente partin-do-se de um entendimento de que nem sequer ospesquisadores têm controle total sobre os desti-nos da pesquisa – esse é um ponto delicado daquestão. São muitos os casos paradigmáticos des-sa falta de controle sobre os destinos da produ-ção e os limites do anonimato, chamando-nosatenção para cuidados adicionais na preservaçãodos informantes quando na presença da mídia,sedenta de assuntos picantes e nem sempre aten-ta aos princípios éticos que deveriam tambémorientá-la.

Numa antropologia marcada pelo engaja-mento direto com seus nativos, como é a brasi-leira, há que pensar se a reciprocidade não temtranscendido mesmo o seu circuito tradicional, jáque as assimetrias sociais entre antropólogos enativos, em geral, são incorporadas nas negocia-ções e no engajamento durante o próprio traba-

lho de campo. Salvar o dito e dar testemunho dastrajetórias de vida de indígenas, negros, mulheres,crianças, pobres e marginais, num contexto comoo nosso, vem permitindo que a participação dos

antropólogos como tal nos embates e debates(políticos, jurídicos, sociais) em terras brasileiraspossa fazer diferença.

As delicadas questões éticas envolvem, his-toricamente, menos as relações entre comunida-de de antropólogos e populações estudadas, emais as complexas ligações entre esses profi ssio-nais e agências estatais, essas últimas espaços emque até os preceitos constitucionais de inspiraçãoliberal-iluminista não são compartilhados por to-

dos. U m bom exemplo nesse sentido é o estudode G ilberto Velho,26 que evitou divulgar sua pes-quisa nos anos 70 em razão do contexto políticono Brasil de então. Igual é a situação daqueles quetrabalham com questões indígenas ou de grupospopulares, alvo de violências institucionais co-muns em países onde os direitos de cidadania sãomuito frágeis, como sublinha C aldeira: “Antro-pologias nativas como a nossa, que sempre estu-daram sua própria sociedade, são claramente umcaso à parte: o processo de entender um outro

que faz parte de nossa cultura conduz quase queinevitavelmente a pensar criticamente sobre anossa relação com ele e sobre o seu lugar na so-ciedade”.27

Instalados nessa desconfortável posição –porém, profícua – de dupla alteridade, muitos an-tropólogos brasileiros têm assumido para si essadívida eterna do Estado brasileiro para com osdeserdados  da terra. Podem ser vistos como pe-quenos presentes de espera , carregados desse hau 

do encontro etnográfico, envolvendo livros, ví-deos, os ditos  salvos e inscritos em leis, políticase resoluções. A crítica cultural, dever de ofício doantropólogo, tem feito a diferença lá onde tempodido estar presente, cada vez mais, não emnome do outro que se estuda, e sim ao lado dooutro com quem se convive. Salvar o dito, nasnossas aldeias, tem significado honrar essa dívida.

25 MEDEI RO S, S.apud  SILVA, 2000, p. 140 (grifos acrescidos).

26 VELH O, 2000.27 C ALD EI RA, 1988, p. 145.

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Dados da autora

Mestre em sociologia política e doutoranda emantropologia social (UFSC). Professora da

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74 Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 63-74, 2003

Faculdade de Educação da UDESC epesquisadora do Núcleo de Identidades de

Gênero e Subjetividades (NIGS), do Laboratório deAntropologia Social da UFSC, onde atualmente desenvolvepesquisas relacionadas a parto, maternidade e feminismo.

Recebimento artigo: 1.º/jul./03

Consultoria: 28/ago./03 a 12/set ./03

Aprovado: 23/set./03

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Nanotecnologia:consideraçõesinterdisciplinares sobreprocessos técnicos, sociais,éticos e de investigaçãoNANOTECHNOLOGY: INTERDISCIPLINARYCONSIDERATIONS ON TECHNICAL, SOCIAL,ETHIC AND RESEARCH PROCESSES 

Resumo O presente texto visa refletir sobre o caráter epistemológico e metodológicodo tema nanotecnologia, sociedade e ética , mediante a contribuição das disciplinas ofe-recidas no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em C iências H umanas, daU niversidade Federal de Santa C atarina. A leitura e a discussão de textos e livros deexpressivos estudiosos das ciências naturais e humanas, concomitantemente à parti-

cipação de professores de distintas disciplinas, promovem a possibilidade de uma for-mulação interdisciplinar dessa temática, pondo em relevo o desafio de dinamizar a re-lação entre nanotecnologia, sociedade e ética, ao considerar as suas implicações legais,políticas e sociais. Tal desafio é ainda inédito no Brasil e constitui a indagação centralde um estudo a ser aprofundado e repensado.

Palavras-chave TÉCNICA MODERNA – NANOTECNOLOGIA – NANOMÁQUINA –ÉTICA.

Abstract  The present text aims at eliciting the epistemological and methodologicalcharacter of reflections on nanotechnology, society and ethics through the contribution

of disciplines that integrate the Interdisciplinary Post-G raduation Program inH uman Sciences of the Federal U niversity of Santa C atarina. The reading anddiscussion of texts and books of expressive scholars of the human and naturalsciences, together with the participation of professors of several disciplines, allow aninterdisciplinary formulation of the theme in question. It highlights the challenge ofdynamizing the relationship between nanotechnology, society and ethics whenconsidering its legal, political and social implications. This challenge is still unpublishedin Brazil and is the central question that must be deepened and rethought.

Keyw ords  MODERN  TECHNOLOGY  – NANOTECHNOLOGY  – NANOMACHINE  –ETHICS.

MARISE BORBA DA

SILVAUniversidade do Estado de

Santa Catarina (UDESC)marise@ matrix.com.br 

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INTRODUÇÃO

os fins dos anos 60, na década de 70 e parte da de 80do século passado, quando o Brasil era marcado por

profundas transformações no seu sistema de ensino einfluenciado por um novo modelo de crescimento emodernização, é interessante recordar que, na forma-ção do biólogo, sobretudo na do graduando em ciên-cias biológicas, não eram tão latentes e graves as res-trições éticas e legais ligadas às práticas de investigação,

por exemplo, os problemas em relação à ética ambientalista ou quanto aquestões tecnológicas. Prevalecia, na época, uma preocupação maior comas questões ambientais associadas à preservação e à conservação do meioambiente, destinadas prioritariamente a estabelecer limites e visões de fu-turo para essa área, ao passo que a idéia de uma ética de vida global nãoera ainda um campo de reflexão.

H avia, no ensino das disciplinas curriculares – zoologia, botânica,anatomia, fi siologia, genética, embriologia, histologia, física, química etc.–, a impregnação da ciência experimental, predominando a idéia de que omundo é observado  com base no real, no observável e no controle práticoda natureza. Assim, era comum e necessária a vivência da metodologia deinvestigação pautada na capacidade do pesquisador de problematizar a reali-dade, formular hipóteses sobre os problemas suscitados pela observaçãodos fenômenos, planejar metodicamente e executar as investigações paradesvendar as causas ou os efeitos dos fenômenos, mensurar e analisar da-

dos, estabelecer críticas e fechar o ciclo com suas conclusões.O método positivista das ciências biológicas, sem entrar no méritodas suas contribuições à ciência, sobretudo no que diz respeito a “forne-cer explicações dignas, bem fundadas e sistemáticas para numerosos fe-nômenos”,1 contribuía para o pesquisador, em sua formação inicial, co-locar-se diante de um mundo predeterminado, com suas característicasfísicas, biológicas e sociais a serem por ele decifradas. Esse mundo, no en-tanto, regido por leis externas e independentes da intervenção subjetivado pesquisador, difi cultava, desde então, uma aproximação entre as ciên-cias naturais e as humanas, e tal distanciamento entre elas aliado ao mé-todo positivista representavam limitações para a análise de novas ques-

tões.A biologia, por exemplo, tinha por objeto estudar os seres vivos, a

relação entre eles e o meio ambiente, cuidando dos processos e mecanis-mos reguladores da vida  e de seus fenômenos decorrentes. O s profissio-nais formados na área eram, assim, capacitados especificamente para atuarnas questões que diziam respeito ao conhecimento da natureza. Não secogitava, portanto, ao estudar tal conhecimento, a hipótese de uma ne-cessária interface entre ciências duras  (as formais, como física, química e

1 NAG EL, 1979, p. 18.

NNNN

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matemática, e as naturais clássicas) e as brandas (as sociais e humanas), pois, de certa forma, essaconexão tornaria opaca ou diluiria os limites pró-prios de cada ciência, podendo incorrer no apa-

recimento de questões de investigação inéditas,com as quais não se saberia lidar fora da especia-lidade.

À história do desenvolvimento dessas ciên-cias, contudo, veio somar-se, no final do séculopassado e no início deste, a história das técnicas.A essência da técnica moderna transformou detal modo a natureza em algo diferente do que eraanteriormente, introduzindo ações de magnitudebastante diversas, com objetos e conseqüências

tão novos, que o marco da ética anterior não po-deria mais abarcá-los.2  H ans Jonas sugere que,pela enormidade de suas forças, a técnica moder-na impõe à ética uma nova dimensão de respon-sabilidade,3  que não pode igualar-se à ética daépoca de Kant, uma vez que essa não era pensadapara levar em conta as condições globais da vidahumana, do futuro remoto e, sobretudo, a pró-pria existência da espécie.

Na ordem atual das coisas, o avanço das mo-dernas técnicas de manipulação de material bioló-gico humano, o fato de a vida e a civilização hu-mana nada poderem dizer por si só, sem levar emconta a artificialização 4  da natureza pela cultura(ou a desnaturalização  do mundo), e a constata-ção de que a ciência não é infalível, nem livre decustos e lucros, e seu mau uso depende de quema utiliza, apenas muito recentemente demanda-ram para os biólogos, entre outros profissionaisformados nas ciências duras, a necessidade de no-vas abordagens científicas naturais, sociais e hu-

manas. É importante destacar que essaartificialização  da existência suscitou novos desa-fios éticos e culturais, que passaram a dependerda mobilização das ações individuais e coletivas.

Assim, com a demarcação do campo da bioética,no final da década de 70,5 surgiu essa nova disci-plina como capaz de possibilitar a passagem parauma melhor qualidade de vida. No Brasil, ela

consolidou-se nos anos 90. D esde então, foramcriadas diferentes associações (como a SociedadeBrasileira de Bioética) e a bioética foi gradativa-mente incorporada nos currículos das graduaçõese pós-graduações, em especial da área da saúde,com um triunfo construído de forma acrítica emseu processo de afi rmação, lacuna essa repensadaatualmente por estudiosos, entre eles, alguns in-dicados neste estudo.

Embora tenha se processado verdadeira re-

viravolta no campo das ciências naturais, com aintrodução crescente das tecnologias modernas, apossibilidade mediadora de dilemas éticos nas ciên-cias biológicas demandou, em princípio, um tempomais demorado de adaptação às novas orienta-ções bioéticas, no que se refere a reduzir os riscosambientais e, ao mesmo tempo, manter os bene-fícios tecnológicos. O próprio C ódigo de Éticado Profissional Biólogo6 não menciona o termobioética  em seu texto, referindo-se apenas às nor-mas éticas. A discussão sobre a que veio a bioética 

é fundamental. Saber melhor sobre o surgimentodesse campo não tem tanto a preocupação de daruma resposta ou alternativa à crise própria do nii-lismo, mas corre o risco de ser uma das suas maiscompletas expressões.7 Esse impasse pode repre-sentar uma ponte entre as ciências naturais e associais e humanas, vislumbrando, com isso, apossibilidade de integração entre seus diferentesaspectos, o aprofundamento de temas relativos àsobrevivência da humanidade, da dignidade e da

liberdade humanas e uma discussão interdiscipli-nar séria diante dos desafios dos avanços tecno-lógicos emergentes.

O s recentes avanços da técnica, como tam-bém alguns progressos científicos, têm geradofortes intervenções na vida humana, de forma2 JO NAS, 1995.

3 Ibid .4 Sobre isso, cf . BATESO N (1997, p. 23). A autora observa que arotulação de determinados objetos e materiais, de comidas a fibras emoléculas, como naturais ou não naturais gera um domínio desvirtuadodo natural. Considera a natureza como algo q ue não acaba ou é substi-tuído e que, na verdade, tudo é natural, pois, se não o fosse, não existi-ria. De acordo com Bateson, “As coisas são assim: naturais”.

5 D IN IZ & GU ILH EM, 2002.6 C onselho Federal de Biologia. Resolução n. 2, de 5/mar./02: “Aprovao C ódigo de Ética do Profi ssional Biólogo” .7 < htt p://ww w.pucsp. br/fecultura/esposi01.htm> . Acesso em: 27/out./03.

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que “os âmbitos da técnica e da natureza come-çam a se confundir”.8 Não obstante, reconhecen-do a vida como um valor humano ou social, agoranuma condição em que se interpenetram técnica

e natureza, é alvo inédito dessa preocupação nadamenos que a inteira biosfera do planeta.9 Crescea necessidade de reflexão sobre o poder da técni-ca moderna e seus efeitos, na tentativa de preverseus benefícios ou malefícios e, também, avaliarsuas novas possibilidades à luz de consideraçõesde ordem ética, que impliquem responsabilidadee conhecimento do significado do destino do ho-mem sob controle ou não da manipulação tecno-lógica.

Muitos pensadores vêm fazendo, há algumtempo, contundentes críticas às mudanças ocor-ridas nos caminhos tomados pela ciência e pelatécnica, embora o façam fundamentados na ex-periência negativa de ambas. Seus recados , contu-do, têm contribuído para o aniquilamento do dis-curso tecnocrata sobre a suposta neutralidadecientífica e sobre o emprego da técnica e dos sa-beres como se não exigissem reflexão ou estudomais aprofundados. O s críticos clássicos da mo-dernidade e da técnica, como H eidegger, Fou-

caut, Nietzsche, Jonas, Arendt e Freud, entre ou-tros, demonstram que a técnica moderna é umacriação do homem e que o seu poder sobre a na-tureza, como nenhum outro, mudou irreversivel-mente os pressupostos da condição humana demaneira tal que se torna imprescindível à mais en-tusiasmada confiança posta na técnica, em nossaépoca, não se deslumbrar e perder de vista seusentido ético e sua relação com a natureza. Nãose trata de negar a técnica, e sim de repensar a re-

lação que com ela mantemos.C omo expressão do poder humano e dapotência ordenadora da natureza, a técnica é umfenômeno essencial dos tempos modernos, capazde suplantar, como bem o fez, as técnicas de ou-tras épocas. A tecnologia, em geral apoiada nosconhecimentos da física e da química, e por suasligações com a biologia e a comunicação, contri-

buiu para produzir grande desenvolvimento nes-sas áreas, suscitando um espaço de reflexão quenão tem sido suficientemente aprofundado: a se-paração entre as ciências da natureza e as do ho-

mem. Essa cisão precisa ser superada, se quiser-mos efetivamente progredir nas noções especiali-zadas por meio de um conhecimento unitário in-tegrado, não apenas estudando de longe oimpacto das tecnologias, a exemplo das maisavançadas, como a biotecnologia e a nanotecno-logia, cada uma em seu reduto. É preciso consi-derá-las conjuntamente, debruçando-se sobre ofuncionamento dessas novidades na sociedade(como no caso dos transgênicos), analisando areação dos diferentes meios sociais à sua chegadae penetração, às transformações por elas produ-zidas e as condições de aceitação e de recusa ve-rificadas nesse processo.

RESPONSABILIDADE ÉTICA E INTERDISCIPLINARIDADE

Tomando como referência as consideraçõesfeitas até aqui, parece mais evidente que a ciênciamoderna assume outro aspecto quando concebi-da como algo mais humano, o que permite pen-sar que ela é humana, pois é nossa obra, e mesmoo moderno pode se quebrar.10 Nesse sentido, im-porta às ciências sociais rever sua posição quantoà distância que mantêm da biologia, fortalecen-do-se, do mesmo modo, uma convergênciaepistemológica entre as ciências da natureza e associais e humanas. Tal aproximação torna-se umanecessidade ao incremento e aparecimento deobjetos de pesquisa de interesse comum, a exem-plo das criações nanotecnológicas, influenciando

a obrigatória mudança das ciências para além desuas fronteiras e preocupações com valores her-dados, que restringem, muitas vezes, o seu hori-zonte a um sentido predeterminado.

O s séculos XVII, XVIII e XIX foram marca-dos, sobretudo, pelo desenvolvimento das ciên-cias naturais e, a partir do século XX , consagra-ram-se as conquistas científicas e tecnologias ex-

8 KESSELRIN G , 1992, p. 34.9 JO NAS, 1995.

10 D e acordo com a expressão de LATO U R (1994), aliás, de muitapropriedade.

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traordinárias, especialmente no campo da biotecno-logia e da nanotecnologia. Essa última representauma das grandes inovações tecnológicas dos últi-mos tempos, uma nova manifestação da potência

humana em sua capacidade criadora, tanto de ob-jetos quanto de condições de vida. O perandonuma escala equivalente à manipulação da maté-ria no nível molecular, as aplicações nanotecno-lógicas visam à criação de novos materiais, subs-tâncias e produtos, com uma precisão de átomo aátomo, esperando que essa revolução na naturezada própria estrutura da matéria traga profundastransformações também às relações dos homensentre si e com o mundo, como jamais houve. Es-tamos a caminho de nos tornar menos dependen-tes da tecnologia na macroescala (na qual opera-mos normalmente e que não nos espanta tanto)com o advento da tecnologia na micro e na na-noescala.

C onsiderando as raízes lingüísticas da pala-vra nanotecnologia , ela deriva do prefixo nano  e éuma medida de grandeza usada na ciência paradesignar um bilionésimo. Assim, um nanômetro(símbolo nm ) é relativo à escala nanométrica.U m milímetro, como sabemos, é muito peque-

no, mas podemos enxergá-lo até numa régua. Jáum micrômetro (1 µm = 1 x 10-6) corresponde aum milionésimo do metro e a um milésimo domilímetro e, por sua vez, um nanômetro (1 nm =1 x 10-9  m) equivale à bilionésima parte de ummetro, ou seja, a um milionésimo de milímetroou, ainda, a um milésimo de mícron.

O mundo nano, portanto, não se trata dealgo naturalmente assimilado por todos nós. Épossível afi rmar, com segurança, que sobre essastecnologias tão pequenas, ínfimas, praticamenteo mundo sabe muito pouco. Elas não são cons-truídas na escala comum em que percebemos omundo e, segundo a qual, desenvolvemos a visãodas coisas que nos rodeiam, nos dizem respeitoou nos acostumamos a pensar a relação entre na-tureza e cultura. C onvém lembrar, porém, queesse novo  surgiu com a modernidade, tal o avan-ço da física quântica e da biologia molecular, mar-cando nossas vidas, por inaugurar dimensões dever o mundo além daquelas de épocas anteriores,

ou seja, a biotecnológica, a nanotecnológica e ainformática (tecnologias de informação), avançoscientífi cos de importância ímpar para o homem epara a sociedade.

Mas quais são as novas possibilidades quedespontam com a aplicação da biotecnologia e dananotecnologia? Q ue desafios parecem se apre-sentar? Q uais dilemas éticos podem ser aponta-dos na esteira de seu desenvolvimento? Seriam osmesmos sentimentos negativos sobre nanotec-nologias, sem fundamento preciso, como aconte-ceu com a preocupação pública a respeito dostransgênicos?

As aplicações dessas tecnologias do peque-

no à dimensão humana estão, certamente, numestágio muito inicial. No entanto, evidências deseu desenvolvimento apontam-nas como domi-nantes nas próximas décadas. Além disso, se apossibilidade de manipular os átomos já é para ocientista algo extraordinário, imaginemos o queisso significa para os leigos, pois uma coisa é po- der ver  os átomos e outra, bem diferente, até hápouco inimaginável, é poder agora manipulá-los !É natural, portanto, que essa inovação venha en-

volta em visões especulativas, magias  e críticas detodo tipo, por exemplo, a manifestada por gru-pos de pressão ambientalistas em relação à bio-tecnologia e, com eco muito mais forte, à nano-tecnologia. O utros argumentos ainda discutíveis,tratando-se desse assunto, colocados pela mídia,são de que as nanotecnologias poderão nos brin-dar com a imortalidade, possibilitando congelar ocorpo humano após a morte e utilizar robôs mo-leculares capazes de reverter os danos celulares

que a ocasionaram. Mas, por certo, a mais atônitade todas essas notícias , suponho, é a de que essasmáquinas nanotecnológicas serão capazes de seauto-reproduzirem incontrolavelmente, com aperspectiva de destruir a atmosfera, aniquilar oplaneta e outras ameaças afins.11 Tal fenômeno éconhecido como o fantasma da gray goo   (popu-larmente denominada gosma , meleca   ou praga 

11 C f. considerações feitas por REG IS (1997), que, com muita habili-dade, apresenta as idéias de Eric D rexler a respeito desse fenômeno.

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cinzenta ), que teria assombrado Bill Joy12 num deseus famosos artigos para a revista Wired ,13  em2000.

Sobre as considerações de caráter alarmanteou pessimista similares a essas, faço algumas pon-derações. A nanotecnologia não é algo fictício oucriado pela fértil imaginação humana. Todos osorganismos vivos possuem nanomáquinas extre-mamente complexas e especializadas; basta lem-brarmos das células que se reproduzem, das en-zimas que catalisam reações químicas e dos anti-corpos que combatem doenças, entre outras es-truturas. G reg Bear,14 em algumas de suas obras,analisa o futuro das nanomáquinas, fazendo uma

analogia com um DNA motorizado , como se elasfossem verdadeiros robôs em escala molecular, aexemplo da estrutura do ácido desoxirribonucléi-co. A estrutura molecular do D NA, descobertapor James Watson e Francis C ricky, é um modelovivo e precursor do caminho para a melhor com-preensão do mecanismo de uma nanomáquina(ou nanocriação), entendida numa dimensão ín-fima, mas tão complexa quanto as nossas célulase o nosso organismo em sua dinâmica, com suasreações moleculares num nível atômico, cuja pre-cisão ainda não temos o domínio total.

Todo processo celular característico da vidaestá associado a dois tipos de macromoléculas –D NA e RNA – e com a maioria dos demais pro-cessos envolvendo proteínas. Se deixadas nummeio apropriado, essas macromoléculas têm a es-pantosa propriedade de construir e depois produ-zir cópias exatas – ou quase – de si mesmas. Den-nett explica que as capacidades de auto-replicação ,mutação incessante, crescimento e reparo das es-

truturas dessas moléculas são atividades caracte-rizadas como nanotecnologia , pois tais operaçõesobedecem a um propósito e são sistemáticas,com complexidade suficiente para realizar ações,em vez de permanecer submetidas a efeitos. “Seus

sistemas de controle não são apenas eficientes noque fazem; eles são apropriadamente sensíveis àsvariações, oportunistas, engenhosos e dissimula-dos. Podem ser enganados , mas apenas por novi-

dades não encontradas regularmente por seus an-cestrais.”15

O ra, é nessa engrenagem biológica (quenada tem de mecanicista, de linear, como numencadeamento determinista) que se baseou a en-genharia genética, em suas manipulações dos ge-nes. Modifi car um gene ou substituí-lo por outrosignificava modificar o D NA, base molecular davida, programação que controla as células do cor-po.16 Tratava-se de uma intervenção humana naordem natural das coisas, tentando-se simples-mente “realizar feitos similares com intenção eplanejamento”.17

 Por mais estranho e antinatural que pareça,tal empreendimento é um fenômeno q ue aconte-ce o tempo todo na natureza, por exemplo, quan-do um vírus reproduz a si mesmo e quando pen-samos a diversidade de funções encontradas nasenzimas, máquinas biocatalizadoras que são, emsua grande totalidade, moléculas de natureza pro-téica. As enzimas podem quebrar determinadas

moléculas, formando moléculas menores, e mo-dificar proteínas de modo a desenhar novas es-truturas moleculares, processos de manufaturasnaturais no nível micro, bio e nanotecnológicos.Além disso, as enzimas incrementam velocidadea certas atividades biológicas dos seres vivos, queseriam irrealizáveis sem a interferência delas, emuitos dos processos vivos tornar-se-iam extre-mamente lentos. Essas poderosas estruturas vivasvêm, há milhares de anos, evoluindo e atingindouma fabricação   cada vez mais perfeita de seus

produtos químicos, alcançando, na maioria doscasos, os limites da perfeição. E, desse modo, avida tem se mantido.

Imitando  tais modelos, do D NA e das enzi-mas (entre outros, como os hormônios, o RN A eos anticorpos), as nanotecnologias, inteligente-mente construídas pelo homem, permitem me-12 C o-fundador da Sun Microsystems e um dos pioneiros da internet;

também tem responsabilidade direta na criação da linguagem Java.13 < http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u8518.shtml> .Acesso em: 15/out./03.14 G reg Bear é autor dos livros Rainha dos Anjos (1990) e Marte se Move (1993 ) .

15 D EN NETT, 1997, p. 26-27.16 REG IS, 1997.17 Ibid ., p. 48.

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lhor compreender que, comparada à escala daação humana, a ação da natureza é de uma lenti-dão infinita.18  As enzimas e o D NA, espécie demáquinas  biológicas denominadas nanotecnologias 

úmidas  (por estarem vinculadas ao mundo líqui-do do ser vivo), assim como as nanotecnologiaschamadas secas  (criadas pelo homem) e a possívelcombinação entre ambas, representariam a capa-cidade de construir e recombinar produtos cadavez menores, controlando, ainda, o ritmo dereconstrução. São nanomáquinas. No caso dasduas últimas, além da miniaturização de disposi-tivos, seria expressivo o êxito econômico, porexemplo, com a eliminação de grande parte dos

custos gerados nas fundições e soldaduras indus-triais.

É importante recordar que as propriedadesdos diferentes produtos manufaturados das socie-dades industriais, resultantes até hoje, dependemda forma com que os átomos são dispostos naconstituição dos materiais. Nos reportemos, en-tão, ao que pode surgir com a fronteira do co-nhecimento, que se move muito rapidamente,fundindo-se com áreas de futuro, como a nano-tecnologia, a biotecnologia e os novos materiais.

Basta pensar que o rearranjo nanotecnológicodos átomos de carbono na grafite de um lápis re-sulta na produção de um diamante; com os áto-mos de silício de grãos de areia pode-se fabricarmicrochips  de computador e, indo mais além, po-der-se-ia pensar na recombinação dos átomos dasujeira, da água e do ar poluídos, produzindo, porexemplo, outras coisas menos problemáticas emais salutares. As possibilidades são virtualmenteinfinitas para a realização das pesquisas na direção

da miniaturização, sobretudo em torno da fabri- cação  das menores máquinas possíveis, do tama-nho de moléculas, de sistemas eletrônicos nano-particulados, nanopartículas, materiais nanopo-rosos, novas formas de arranjos de carbono, su-pramoléculas, sensores biológicos e outroseventuais produtos com forte conteúdo nanotec-nológico.

A defi nição da nanotecnologia reveste-sede uma infinita multiplicidade, que possibilita asua aplicação a todos os setores. Falar em nano-computadores, por exemplo, abre caminhos para

pensar concretamente em andróides, inteligênciae vida verdadeiramente artificiais, mais precisa-mente em controle planejado e reflexivo da natu-reza pelo conhecimento da íntima estrutura mo-lecular. Constitui-se rapidamente uma rede iné-dita já concentrada no desenvolvimento de novosmateriais e de alternativas inovadoras, direciona-das ao conhecimento de ponta. Admite-se que ananotecnologia, reconhecido o limitado acesso aessa informação, t em apresentado forte impactona área da saúde e uma verdadeira revolução naforma de fabricação de uma infinidade de pro-dutos.

Além do surgimento de novos computado-res (menores e mais rápidos, baratos e podero-sos), projeta-se o desenvolvimento de automó-veis, componentes metálicos e não-metálicos,equipamentos para uso aéreo e espacial, instru-mentos de proteção do meio ambiente, aplica-

ções no campo da energia, da óptica e da ciênciados materiais. Também não esqueçamos que, namedicina e na farmácia, o seu emprego já é am-plamente favorável a avanços de todo tipo, além,é claro, da produção de medicamentos potentes,de creme anti-rugas, entre tantos outros produ-tos comerciais beneficiados. Nesse aspecto, im-porta destacar, particularmente, a proposição queconsta no documento de trabalho da Comissãoda Indústria, do C omércio Externo, da I nvesti-

gação e da Energia do Parlamento Europeu,19

 deque seja introduzido o conceito de materi ais es- 

truturais e inteli gentes  em lugar de materi ais inte- 

ligentes .

18 LÉVY (1998) oferece interessante e entusiasmada abordagem sobreas técnicas de domínio da matéria (mecânicas, quentes e frias).

19 Trata-se de documento sobre a decisão do Parlamento Europeu e doC onselho relativa ao Programa-Quadro Plurianual 2002-2006, daC omunidade Européia, de ações em matéria de investigação, desenvol-vimento tecnológico e demonstração, destinadas a contribuir para arealização do Espaço Europeu da I nvestigação.< http://www.euro-parl.eu.int/meetdocs/commit tees/itre/20010827/434204pt.pdf> .Acesso em: 24/dez./04.

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M anipulando átom o por átomo

Vale ainda mencionar que a eletrônica játrazia em seu arsenal as idéias de tratar o muito pequeno . A nanotecnologia é, portanto, perfeita-mente compatível com as leis da física. Embora,na década de 1930, Arthur Von H ippel tenha ex-posto idéias semelhantes, o termo nanotecnologia foi proposto pela primeira vez em 1959, por Ri-chard Feynman, destacado físico americano eprêmio Nobel de Física, em 1965. Em seu artigo“There’s Plenty of Room at the Bottom”,20  eledeixa claro que nada, nas leis da física e da mecâ-nica quântica, impede a existência de máquinasdo tamanho de moléculas. Basta manipular as

coisas, átomo por átomo! Em 1959, Feynmanchamava a atenção para o fato de que, na dimen-são atômica, se está t rabalhando com leis diferen-tes e, assim, devem ser esperadas coisas diversas:novos t ipos de efeitos e novas possibilidades. Osestudos sobre a nanotecnologia, porém, reapare-ceram com mais vigor em junho de 1992, com ofísico K. Eric D rexler, do Instituto de Tecnologiade Massachusetts (MIT, EU A), e esse assunto en-contra-se especialmente abordado em sua obraEngenharia da C riação , editada em 1987. Outro

nome notável, que não pode ser esquecido aqui,é o do físico Richard W. Siegel, um dos pioneirosmundiais na investigação, fabricação e promoçãodos materiais nanoestruturados.

D e lá para cá, o processo de miniaturizaçãoavançou muito, tornando-se indispensável consi-derar as escalas que fogem dos nossos padrõessensoriais, ao sermos tomados de surpresa pelosrumos que a nanotecnologia pode adotar. Teriasido, quem sabe, bem menos problemático o ad-

vento do mundo microscópico, da biotecnologia,dos transgênicos, se medidas de grandezas ade-quadas à sua compreensão tivessem sido mais po-pularizadas. Ainda é quase impossível ao leigoorientar-se por uma dimensão equivalente à bilio-nésima parte do metro. Q ualquer tecnologia si-tuada fora das magnitudes com que estamosacostumados em nossa vida diária, e com as quais

nossos órgãos sensoriais são capazes de lidar, ain-da assombra e apavora! Por que o pequeno de-mais ou o grande demais nos assustam tanto? Oque na verdade nos aterroriza?

C ertamente, tais temores estão relaciona-dos ao que desconhecemos. Por isso, é bastanteapropriada a consideração de Arthur C . C larke,numa de suas leis, de que qualquer tecnologia su-ficientemente avançada é indistinguível da mági-ca.21  Também merece destaque a recomendaçãode C ylon G onçalves da Silva, de que as pessoas,desde a educação infantil, deveriam entrar emcontato com medidas de grandezas fundamentais(peso, comprimento, tempo, volume, área, tem-peratura), inclusive as relativas a propriedadesatômicas.22  Tal iniciat iva os americanos já vêmtendo, segundo esse professor, para facilitar acompreensão de fenômenos somente situadosmediante o conhecimento de grandezas muitopequenas. Ainda de acordo com ele, a nanotec-nologia é interessante para o Brasil porque estáainda em desenvolvimento inicial e, sendo umaatividade de ponta, exigirá das empresas brasilei-ras grande investimento em tais processos, demodo a que não corram o risco de ficar defasadas

das demais.As repercussões da nanotecnologia – ques-tão ainda complicada e difícil de avaliar – avançamem diversas frentes. Certamente se farão notarem todas as áreas, sobretudo na indústria, na me-dicina,23 na farmacológica e no setor da informá-tica, refletindo-se na vida cotidiana. Contudo,ainda que a introdução dos materiais nanomanu-faturados revolucione essas esferas, as maioresimplicações quanto ao desenvolvimento dessa

20 A tradução desse título, em inglês no original, é “H á muito espaçono fundo”.

21 Cf. C LARKE (1977), em que o célebre autor de fi cção científicainglês estabelece leis e formula alguns julgamentos de valor sobre omundo tecnológico do futuro.22 Essa consideração fo i apresentada na palestra “A revolução nano tec-nológica”, no auditório do Centro de Convenções da Federação dasIndústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC ), em Florianópolis (25/out./03). D outor em física pela Universidade da C alifórnia, Berkeley,C ylon G onçalves da Silva é professor da Unicamp.23 Por exemplo, na construção de dispositivos diminutos que, emquantidade suficiente, poderiam percorrer o corpo humano, detec-tando precocemente doenças que ainda vitimam muitas pessoas, entreelas, o câncer, ou na introdução de máquinas-enzimas específi cas, quedepositariam no lugar apropriado a quantidade mínima e adequada demedicamentos, potencializando os benefícios terapêuticos, sem afetaro resto do organismo.

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tecnologia são esperadas no setor produtivo e,conseqüentemente, na economia, partindo-se doprincípio de que será possível fabricar qualquertipo de coisa com precisão e qualidade insuperá-

vel a um custo acessível. Isso faz lembrar Fer-ry,24  que, muito provocativamente alerta para aimpossibilidade de ignorar os desafios lançadospelas ciências duras , aqui já mencionadas. Tal de-bate instigado por esse filósofo ilustra o que sepretende alcançar com este ensaio. Entretanto, sea discussão não foi tão contundente com relaçãoà micro e à biotecnologia, não há de arrefeceragora. Trata-se de colocar bem o dedo numa feri- da criada pela pretensão humanista em defesa dosinteresses humanos e com sentido apenas nocontexto da vida humana, além de que é precisocicatrizá-la, para fazer voltar o interesse por ou-tras coisas do mundo que requerem responsabi-lidade, afora o próprio homem. Exemplifico a res-ponsabilidade pelas coisas da natureza, denomina-das inanimadas  – há que se ter com elas, também,extremo zelo!

A nanotecnologia é uma realidade da qualnão se pode fugir e seus rebatimentos serão con-sideráveis. Imaginemos o significado, para a hu-

manidade, de mexer  na intimidade da matéria, demanipular átomo por átomo , atividade essa semprecedentes, num trabalho de nanoengenhariaque compreende a poderosa “habilidade de setrabalhar no nível molecular, ou mesmo átomopor átomo, para criar estruturas complexas comcontrole de sua organização em dimensões debilionésimos do metro”.25 Imaginemos a concre-tização das potenciais realizações: síntese de materiaise manufaturamento, produção de nanoeletrônica e

de nanotecnologia computacional, medicina e saú-de, aeronáutica e exploração espacial, ambiente eenergia, biotecnologia e agricultura, segurançanacional, ciência e educação, competitividadeeconômica e outras tantas aplicações.

Se essas pretensões se realizarem, toda a vi-são da humanidade mudará. Essa nova materiali-dade representa verdadeiro desafio à idéia que te-mos de comportamento humano, comporta-

mento moral, ética do trabalho26 e educação, aba-lando a estrutura fragmentária que tornouirreconciliáveis a esfera natural, a artifi cialidade, obiológico, o social, o histórico e o ambiental. Lo-go, o problema implícito nas predições feitas atéagora, e nas apostas  já consolidadas por cientistaspesquisadores das nanotecnologias e governosinteressados, não é somente traçar os avanços datecnologia. É também marcar outras conquistas etransformações na sociedade por algum tempo,

assim como outras inovações anteriores repre-sentaram avanços sociais e assinalaram o tempode determinada sociedade. D aí a importância dasciências sociais (e humanas) de estudar as conse-qüências sociais, éticas e legais das nanotecnolo-gias, oferecendo novas possibilidades para proje-tar pesquisas e conclusões. Afinal, haverá umanotável diferença para a humanidade, ao passar aconviver entre dois mundos, o macro e o nanos-cópico. Surgirão, com as criações nanotecnológi-cas, fenômenos na dimensão da nanoescala, ine-

xistentes no macromundo, a exemplo da peculia-ridade atômica, da precisão humana necessáriacom modos de ações finos, direcionados, preci-sos, rápidos, econômicos, qualitativos, discretos,calculados e aplicados com mais exatidão, apon-tados por Lévy,27 materializando-se um viver semequivalente no mundo do grande.

D esde o início de suas pesquisas, e longe deser profético, D rexler falava do surgimento dananotecnologia.28  Foi, inclusive, avesso ao uso

24 C O MTE-SPO NVILLE & FERRY, 1999, p. 67.25 C onselho Nacional de D esenvolvimento C ientífico e Tecnológico(CNPq), Edital 01/01. “C hamada de C onvocação para Apresentação dePropostas de Projetos Inter e Multidisciplinares Visando a Formação deRedes Cooperativas de Pesquisa Básica e Aplicada em Nanociências eNanotecnologia”.

26 Não é essa a ética que nos rege, uma ética fundamentada no deter-minismo do trabalho físico, como se estivesse o homem programado para executá-lo? Sobre essa questão, cf. C O MTE-SPO NVILLE &FERRY, 1999, p. 127-156. C f. também ETGES (1996) e sua análise dascontradições resultantes das transformações da revolução tecnológica,desemprego e o valor do trabalho reproduzido no período pós-indus-trial. São textos essenciais para imaginar uma era em que o trabalhofísico não mais será necessário.27 LÉVY, 1998.28 Bacharel em ciências interdisciplinares, mestre em aeronáutica eastronáutica, e doutor em filosofia, no campo da nanotecnologia mole-cular, pelo Massachusett s Inst itute of Technology, teve o primeiro graude doutoramento no assunto concedido em todo o mundo. Cf.REG IS, 1997.

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desse termo no sentido de “glamourizar a produ-ção de besteiras em nanoescala”.29 O ptou por ou-tro novo termo, na tentativa de manter o signifi-cado distinto desse entendimento: nanotecnolo- 

gia molecular . D iferentemente das reações aoprojeto genoma (e depois aos transgênicos), deacordo com esse cientista, os propósitos de taisiniciativas não eram “mudar a natureza humana,mas alterar os resultados fi nais corrigindo os des-vios da norma naturalmente induzidos, pensandona possibilidade de o homem passar pelas próxi-mas centenas de anos em perfeita saúde e juven-tude perene, o tempo todo imerso em condiçõesinauditas de abundância material”.30

O que aqui nos interessa é sobretudo a aná-lise das questões econômicas e sociais feitas porD rexler, em sua obra, considerada incomum, En- gines of Cration ,31 e expressivamente trabalhadaspor Regis e por Lampton,32 embora com direcio-namentos diferenciados – o primeiro apresenta ananotecnologia de forma mais sedutora, ao passoque o segundo parece brincar, falando sério, deuma inevitável aventura nanotecnológica que te-remos de viver, expondo conquistas que virãocom ela. A respeito do fenômeno da gosma cin- 

zenta   e seus efeitos de destruição do planeta,D rexler é otimista ao considerar a possibilidadede se construir sistemas confiáveis , como têmacontecido ao longo da existência viva com as na-nomá-quinas naturais – as enzimas e o D NA  –,preocupando-se, contudo, não somente com ascoisas vivas, incluindo animais e plantas, o planetae toda a biosfera. Entre os benefícios sociais porelas gerados, aponta o que alguns clássicos pen-sadores já haviam vislumbrado acerca da liberta-ção do trabalho físico escravizante,33  que seria

transferido às máquinas nanotecnológicas.

D e certa maneira, esse contexto não nos énovo. Já temos a experiência com a introdução damicro e da biotecnologia, em que a revolução nomundo do trabalho gera desemprego, trabalha-

dores excedentes e crises, liquida e faz nascer no-vas profissões, novos trabalhadores e novas exi-gências de conhecimento e habilidade, com suasconseqüentes necessidades. C omo será com asnanomáquinas ainda não é possível afirmar nada.James Albus, pesquisador em robótica, afirmaque “Não há uma quantidade fixa de trabalho.Mais trabalho pode ser criado”.34 Ele nos ajuda apensar que a própria inteligência artifi cial podecriar novos empregos – o que já está acontecen-do. Na sua visão de economista, Friedman,35

numa palestra sobre nanoconferência ,36  conside-rou que enquanto a tecnologia aumentou a pro-dutividade e criou mais riqueza, concedendo àspessoas mais tempo livre, a nanotecnologia leva-ria isso ao extremo. Porém, ele não foi bem-su-cedido ao discorrer acerca das conseqüênciaseconômicas e comerciais da nanotecnologia, tam-pouco sobre o que com ela mudaria para as pes-soas, exatamente por não ter dominado o grau deextensão da matéria, o que o impediu de romper

com o passado da tecnologia ao falar de umainovação sem precedentes.D ois anos depois dessas colocações polê-

micas de Friedman, Mac G ellivray,37 a convite domesmo patrocinador – NSG/MIT –, fez uma inter-venção que ressoou como um raio irrompendoentre os pessimismos tradicionais direcionadosao novo, buscando indicar novos caminhos.C oncebeu mudanças profundas nos valores hu-manos e no próprio materialismo , que seria bas-tante afetado, uma vez que os bens materiais se

tornariam mais acessíveis em troca de quase nada.Postulou que o dinheiro perderia sua reverênciacomo símbolo de status social e que o desempre-29 Ibid ., p. 262.

30 Ibid ., p. 144.31 O livro Engines of Creation: the coming era of nanotechnology, de EricD rexler, encontra- se disponível para download no site do Foresight Ins-titute: < http://www.foresight.org/ EOC > , com permissão para cópia.32 C f. REG IS, 1997. A mesma idéia se encontra em LAMP TO N, 1994.33 C f. ETGES, 1996. O autor lembra que o notável clássico H egel indica,em suas obras, a trajetória e os meios pelos quais a lógica do trabalho levaráos homens, reportando-a a um juízo de passagem, em termos hegelianos.Lembra também que Marx analisa as modificações no trabalho humanoque constituem ruptura com o que se apresentaria como formas determi-nantes, situando-as lógica e historicamente em movimento.

34 REG IS, 1997, p. 169.35 Ibid ., p. 170. David M. Friedman, economista da universidade deC hicago, é filho de Milton Friedman, prêmio N obel de ciência econô-mica. U ma de suas obras mais conhecidas é The Machinery of Free- dom:guide to a radical capital ism. 36 Essa palestra foi patrocinada pelo Nanotechnology Study G roup(NSG ), do MIT, e proferida em jan./87.37 Sobre essa questão, cf. REG IS, 1997, p. 176-178. Jeff MacG illivray édoutor em física no MIT.

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go seria extremo, porém, não representaria umproblema, por não se ter de trabalhar para viver,pois o trabalho mundial seria realizado pelasnanomáquinas. D isse que haveria uma sociedade

do entretenimento, e não da informação, em queas pessoas se dedicariam ao conhecimento, ao la-zer e às atividades artísticas.

Quanto a Drexler, tido por muito tempocomo louco e alvo das mais variadas críticas, eleconservou aparente calma, frieza e prudênciacom relação ao assunto nanotecnologia ,38 mesmodiante dos seus bons prenúncios – fi nal do enve-lhecimento, adiamento radical da morte, amplascondições de abundância e riqueza, ausência defome e de outras necessidades – possíveis com aconstrução dos primeiros montadores operacio-nais, que trabalhariam em nanoescala pela mani-pulação molecular sem fronteiras. Simultanea-mente, porém, o cientista manifestava suas preo-cupações com essa mudança paradigmática, ten-dendo a pensar os riscos que poderiam surgir danova forma de lidar com a economia mundial,quanto à produção de bens materiais sem limitese com custo praticamente zero. Ele inquietava-setambém com o destino das grandes corporações,

o desemprego em massa diante da plena automa-tização, o sentido que as pessoas dariam às suasvidas na falta do que fazer, uma vez liberadas dotrabalho físico, a possibilidade da saúde e da ju-ventude eterna, e assim por diante. N ão ignorava,da mesma forma, a possível ameaça provenientedo mau uso das criações nanotecnológicas porpessoas de intenção duvidosa e sem propósitossatisfatórios previstos para os indivíduos e a so-ciedade.

D rexler é convicto ao dizer que os perigos

físicos já são enfrentados pela sociedade há muitotempo e considera muito mais sérios os riscos so-ciais e psicológicos, merecedores de maior aten-ção. Afi nal, perigos f ísicos sempre existiram paraas pessoas, como o simples fato de viver, de sub-meter-se à velhice, às doenças e à morte, e, sobre-tudo, às guerras, ao crime, à carnificina e a todo

tipo de ações violentas e malévolas. Nesse caso,os riscos sociais e psicológicos seriam mais fortes,pelo fato de os indivíduos passarem a dominarpor completo a matéria, o que jamais fizeram.

C onsidero esse o patamar, em que se colo-cam as questões mais complexas, não só filosófi-cas, mas também sociológicas, antropológicas,psicológicas e psicanalíticas, entre outras, demodo a refletir sobre o quanto vale à pena con-cretizar a nanotecnologia, manipular o ínfimo damatéria e dispor de uma natureza mais condes-cendente e maleável, na qual o próprio ser inani-mado não mais ofereça resistência à ação huma-na, tornando-se uma cont inuidade dela. Também

acredito que seria um problema, para C liffordGeertz,39 um dos mais originais e instigantes an-tropólogos de sua geração, a questão do tempo li-vre e o que fazer com ele, uma vez que muito tra-balhou o impacto do conceito de cultura  sobre aconcepção de homem , como também o cresci-mento da cultura e a evolução da mente. No ce-nário antropológico, como ficaria a redefiniçãoda cultura? C om que noções lidariam os antro-pólogos? Até mesmo os psicanalistas poderiamapresentar indicativos de impasses, ao ter de co-

gitar a idéia de substituição total do homem pelamáquina, além de analisar as conseqüências daociosidade gerada e as possibilidades de aumentara recorrência à bebida alcoólica, às drogas e aosquadros de loucura ou depressão, passando, tal-vez, a questionar a natureza da loucura, a ética oua liberdade, por força de novos comportamentos,de novas opções morais e estéticas.

C omo se pode notar, são inúmeras e com-plexas as implicações da nanotecnologia e da na-

nociência, sem nenhuma resposta precisa, nem acerteza do que parece ser suficientemente razoá-vel. Convém, enfim, fazer as mesmas perguntasque as de Regis, ao final de seu livro: “Mesmocom todos os seus aspectos desconhecidos, mes-mo com todos os seus perigos e riscos, quem di-ria não à nano?”.40  E arrisco acrescentar, nessamesma direção: que poderá acontecer, se disser-

38 A contribuição de REG IS (1997) foi essencial, por demonstrar cla-ramente o posicionamento de D rexler, ao relevar a nanotecnologia emmeio a um contexto de zombarias e acusações que teve de enfrentar.

39 G EERTZ, 1989.40 REG IS, 1997, p. 288.

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mos não à era nano?, sobre qual parte recairia oônus dessa indiferença? C ertamente restam aindaoutras perguntas. D uas delas mais se pode deixarcomo subsídios para manter acesa a necessidade

de continuar tal discussão: o que faz determina-das tecnologias serem consideradas mais avança-das do que outras? O que faz uma moderna tec-nologia parecer tão surpreendente ou fantástica?

A evolução na nanotecnologia ilustra quepassamos de uma visão molar 41  do mundo parauma visão molecular .42  Isso está acontecendocom a biotecnologia (precisão gene por gene,molécula por molécula) e com a nanotecnologia(precisão átomo por átomo), campos ainda ex-

plorados por alguns poucos eleitos com maiordomínio das grandezas escalares ínfimas e fora donosso conhecimento comum. É preciso, então,ingressar no mundo desse pequeno, no mínimosabendo um pouco mais de grandezas escalares,de física e de matemática, pois trata-se agora dealgo ainda muito novo, para além da escala huma-na: o mundo da tecnologia molecular, da nano-tecnologia.

Explorar os domínios no nanomundo assi-

nala a possibilidade de manipular individualmenteos átomos e as moléculas de qualquer ser vivo, dequalquer ser humano, de qualquer coisa. Fazer arelação entre o macro e o nanomundo suscitapensar uma nova concepção de universo, de ma-téria, de mundo, de sociedade, de homem, de na-tureza. Enfim, refletir sobre uma relação tecno-lógica de grande abrangência e repercussão semprecedentes na história, não apenas formas ecomportamentos imprevisíveis e incontroláveis,

mas também de modo a interpretar quais delessão naturais ou de origem técnica, se continuamsempre naturais ou se são ambas as coisas, semnenhuma fronteira rígida.

As nanotecnologias, portanto, exigem, pornatureza, uma operação interdisciplinar, pois têmo potencial de revolucionar amplamente várioscampos e trazem consigo maiores chances de êxi-

to para dar um salto por cima das aparentes fron-teiras que dividem as ciências e fazê-las consilien-tes,43  reuni-las num todo complexo segundoprincípios e terminologias idênticos, desde a físi-ca, a química, a matemática e as ciências naturaisaté as mais reticentes ciências sociais e humanas,procurando conjugar enfoques e tradições distantessobre a realidade contemporânea. Já em 1975, noC olóquio da U nesco, acentuava-se que um dosproblemas mais importantes em todo o mundo re-

sidia no fato de as ciências sociais e humanas nãoprogredirem no mesmo ritmo das ciências naturaise biológicas. Com efeito, durante muito tempoaquelas ciências ignoraram, de modo geral, a ne-cessidade de reajustar seus próprios sistemas devalores em razão das estruturas da sociedade mo-derna, assistindo muito mais atônitas, do que asciências duras, os acontecimentos mais revolucio-nários da vida humana, por exemplo, o uso dostransgênicos e das novas tecnologias reprodutivasconceptivas. Isso limitou a capacidade delas de

influir mais incisivamente nos sistemas éticos, le-gais, políticos e sociais, e, conseqüentemente, nadireção e aplicação do desenvolvimento tecnoló-gico.

Por sua vez, o potencial inovador das nano-tecnologias demanda um esforço colaborativo deestudiosos de diferentes disciplinas das ciênciasformais, naturais, sociais e humanas, com cora-gem e determinação para pesquisar conjunta-mente o que pode representar, para o destino do

homem, do universo, da cultura, da vida, enfim, ocontrole absoluto da estrutura da matéria. E, so-mado a isso, uma maior consciência da dimensãodesse domínio incomparável em todos os tem-

41 Tecnologias com base na transformação da matéria em grande q uan-tidade, manejando os objetos em massa; são maciças e quentes, usadasnos últimos cem anos, em geral com alto custo energético, poluindo,desperdiçando e esgotando energias.42 Tecnologias ultrafinas que se afastam da massificação; são ultra-rápi-das, bastante precisas e agem na escala ínfima, sobretudo, da micro, dabio e da nanoestrutura, com dispêndio mínimo de energia, reduzindoao mínimo os desperdícios e as rejeições.

43 Tal expressão, um pouco estranha, é do entomólogo americanoEdward O . WILSON (1999), que a utiliza originalmente para referir-se à necessária unidade das ciências. A consiliência desempenha umpapel epistemológico importante, no sentido de ser um elemento dinâ-mico de referência a uma maior proximidade entre diferentes classesde fenômenos explicados de maneira distinta, como uma tentativa dedispor de um princípio integrador de to dos o s nossos conhecimen-tos.

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pos, mostrando em que medida as nanotecnolo-gias colocam um novo desafio ético, legal, políti-co, social e econômico para o Brasil, analisando seo País está ou não preparado para essas tecnolo-

gias emergentes. É importante não esquecer que,embora não seja uma temática muito freqüenteno cotidiano, essa tecnologia está aí com todas assuas implicações e complicações, e, por se tratarde uma área em pleno avanço, a nanotecnologiatraz perguntas até há pouco impensáveis, cujasrespostas estão vindo paulatinamente ou aindainexistem.

O s problemas complexos não têm soluçõessimples e, para essa inovação, poucas são as res-

postas satisfatórias que se pode dar à sociedade, afim de que as pessoas optem conscientementeentre as várias possibilidades apresentadas pelasnanotecnologias e opinem sobre os riscos e po-tencialidades a elas vinculados.

DISCUSSÕES E REFLEXÕES METODOLÓGICAS E EPISTEMOLÓGICAS 

A expectativa é de que a nanotecnologia te-rá, no cotidiano das pessoas, efeitos muito maio-

res do que os microeletrônicos, que possibilita-ram o surgimento dos microcomputadores e re-volucionaram as telecomunicações, e do que aprópria biotecnologia, processo tecnológico que permite a utilização de material biológico e a  ma-nipulação genética, produzindo organismos ge-neticamente modificados e revolucionando o ca-ráter genético da própria vida. D ifícil é pensarnessa temática sem lembrar, também, da relaçãoatual entre ciência, tecnologia e inovação, entrenanotecnologia e biotecnologia, avaliando o sig-

nificado de uma pesquisa que avança no setor tec-nológico industrial e traz uma série de aplicaçõesanteriores e de produtos e melhoramentos resul-tantes de soluções tecnológicas no que diz res-peito à inovação de materiais ou processos técni-cos em geral e ao desenvolvimento de novos ma-teriais44 com propriedades impossíveis de se ob-ter de outra maneira. Não sabemos, no entanto,com segurança até que ponto existe uma preocu-pação com a compatibilidade entre o uso dos no-

vos meios de controle técnico do homem e da so-ciedade e o devido respeito à pessoa humana.

Interessa aqui notar que, para tratar essaproblemática emergente, surgem de imediato

duas questões bastante imbricadas e que não di-zem respeito apenas ao círculo dos cientistas eeticistas: o advento das nanotecnologias repercu-tindo nas mais distintas áreas e a disposição deabordá-las mediante trabalhos de pesquisa, vincu-lando todas as questões envolvidas no seu desen-volvimento. Discorrer sobre isso é, inegavelmen-te, procurar ao mesmo tempo possíveis interlo-cuções entre as ciências naturais e as humanas, deforma a contornar as esqui nas e sair do labirinto.No contexto das incertezas éticas, vale ressaltarque não é preciso um conhecimento rigoroso datécnica, mas a compreensão da nova trajetóriahumana, incluindo ao lado do bem-estar dos se-res humanos o dos outros seres vivos e a mesmapreocupação com o meio ambiente e o cosmo.

D e certa maneira, isso representa um ri to de passagem , ao transitar de uma condição a outra,sem lugar e posição determinados. O u, no dizerde Abelés,45 entender que pesquisa das nanotec-nologias está em mi l lugares  na compreensão de

um universo novo , destinada a alcançar uma novavisão do homem e da sociedade no movimentoque nos leva para fora de nosso próprio mundo eacaba por nos trazer para mais dentro dele, ondecontam nossas origens culturais e intelectuais.Além disso, coloca-se uma condição de estranha- mento , não porque necessariamente a antropolo-gia sustente ser preciso estranhar o que já nos éfamiliar, mas para ter clareza de que o objeto deestudo não é simplesmente dado, nem necessaria- mente conhecido .46 

Esse objeto é construído mediante relaçõesinterativas sobre alguma coisa investigada, delaconstituindo-se o contexto total de conhecimen-

44 Trata-se dos denominados metamateriais , com propriedades e com-portamentos específicos, fi sicamente impossíveis a materiais naturais econvencionais e que podem nem existir na natureza, projetados compropriedades próprias para quebrar   leis de natureza inconveniente.U ma aplicação desses metamateriais é a construção de antenas paratelecomunicações e sinais de satélites altamente sensíveis, dadas as for-mas de ajuste, e também o aperfeiçoamento de lentes óticas.45 ABÉLÈS, 2002.46 DAMATTA, 1981, p. 159.

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tos, o princípio que governa a interdisciplinarida-de. O estranhamento é também necessário parapermitir a revelação de algo que não é mais ape-nas nem da ordem do eu , nem da ordem exclusiva

do outro . É algo da ordem do sujeito do conhe-cimento, possibilitando também não perder aconfiança na objetividade, como propõe Cupani,ao referir-se à necessária adequação do sujeito aoobjeto pesquisado.47  Essa adequação não repre-senta, no entanto, a imposição total dos fatorespessoais, da paixão pelo assunto e de interessesindividuais que possam gerar um caminho ten-dencioso aos resultados de uma pesquisa. Tam-pouco se deve recair num subjetivismo exacerba-do ou negar a intervenção do sujeito.

O estudo de qualquer problemática vincu-lada à nanotecnologia insere-se, desde o início,numa polêmica reconhecidamente forte, tantopor suas conseqüências quanto pelo que afeta arelação entre natureza e cultura. As implicaçõessobretudo no campo do debate ético, legal e so-cial são de tal relevância, que o estudo da inter-venção das nanotecnologias representa, por si só,um desafio que não apavora, mas atrai, por seuineditismo. O questionamento ético da nanotec-

nologia consiste numa problematização, que é oseu fundamento, e conduz diretamente a discus-sões filosóficas e políticas contemporâneas, pornão ter surgido repentinamente, mas, ao contrá-rio, se constituído em relação a uma série de de-senvolvimentos tecnológicos precedentes.

O mesmo ocorreu com a aplicação da ener-gia nuclear, a constatação da contaminação doambiente, as inovações e manipulações biotecno-lógicas e as modernas tecnologias de informação

e comunicação, que deram e ainda dão lugar à re-flexão e a análises em distintas áreas de interesseético. Muitas delas pressupõem algum conheci-mento das discussões em história, filosofia, an-tropologia, sociologia (já temos a filosofia daciência, a antropotecnologia e a sociobiologia emação), assim como dos processos legais. Sobre es-ses últimos, vale ressaltar alguns aspectos ligadosà questão nanotecnológica, fornecendo funda-

mentos para a avaliação da legislação vigente, di-namizada sobretudo com o uso dos transgênicos,e para o futuro desenvolvimento de instrumentoslegais adequados e suas possíveis relações. C on-

siderando tal iniciativa, cabe refletir que, na velo-cidade com que sopram os ventos tecnológicos , asrestrições a esse desenvolvimento são antes éti-cas, morais, legais e políticas do que técnico-científicas e econômicas, no que se refere ao usoda tecnologia moderna, podendo denominar-se,com mais propriedade, de ética da tecnologia .48 

C onsiderando as dimensões escalares dasnanotecnologias, os objetos nanométricos pare-cem compartilhar características próprias dos ob-

jetos grandes  ou clássicos e dos moleculares , mas,sobretudo, de novos atributos muito próprios.Nesse mundo de construções híbridas, as inves-tigações que não fogem dos nossos padrões sen-soriais podem deparar-se com limites, pois mui-tos dados e resultados serão da ordem do peque- no  e tratados formalmente como simples pertur-bações no macromundo. Entretanto, fora dele,deve-se ter clareza de que essas perturbações po-derão ser tão importantes quanto o fenômenoprincipal.

Resta aqui definir as grandes questões en-volvidas na avaliação das perspectivas científicas enas conseqüências políticas, legais, éticas e sociaisaportadas pelas nanotecnologias à sociedade bra-sileira. Existe a hipótese de que as nanotecnolo-gias, em seu alto poder tecnológico e de transfor-mação, não dispõem ainda de uma base mais fir-me para consolidar-se no País quanto a legislaçãoadequada, princípios éticos condizentes e avançossociais convenientes com sua receptividade. C om-

parando-se com a direção da inovação biotecnoló-gica, torna-se importante conhecer o que o Brasildeseja e como reage, para que possa se desenvolvereconomicamente, com tecnologia de ponta, aexemplo das nanotecnologias. E também pensarse a nanotecnologia produz uma forma de conhe-cimento compatível com outras ciências, em qualescala possibilita uma interdisciplinaridade equais as possibilidades das universidades, ou seja,

47 C U PANI, 1990. 48 G ARC IA et al., 1996, p. 218.

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se elas estão ou não preparadas para uma culturainterdisciplinar sobre essa inovação.

Nesse contexto, a abordagem das implica-ções das tecnologias mais avançadas deve, atual-

mente, apoiar-se numa reflexão metodológica eepistemológica, na medida em que indique olharo mundo de forma antes não cogitada pelas ciên-cias biológicas, nem sequer compartilhadas com afísica, a química e a matemática ou pelas ciênciassociais e humanas em geral. É possível buscar sis-temas conceptuais e recorrer à diversidade meto-dológica, propondo novas formas de conceber omundo até então ignoradas, pois, ainda que asteorias de distintas ciências não apresentem uma

estrutura comum, elas tampouco duram parasempre, podendo ser descartadas por razões teó-ricas. D a mesma forma, segundo Feyerabend, “Eldescubrimiento científi co no está sujeito a méto-do fi jo”.49 

Ainda no rumo do pensamento desse filó-sofo, é possível que, no estudo de seus objetos,em virtude dos problemas enfrentados, as ciênciaspossam recorrer a um método ou a outro, nãoquerendo dizer, porém, que se esteja afirmandoque tudo vale  na investigação científica. O estudo

de um problema de pesquisa não só depende dealgumas teorias determinadas, mas há problemasque só podem ser resolvidos quando se produ-zem num contexto formado por um conjunto deteorias, incomensuráveis ou compatíveis. Issopermite dispor de uma coleção  de métodos e deum novo marco teórico, mediante o qual se possaassumir a divergência metodológica entre teoriasrivais e transitar por distintas questões que nãodizem respeito somente a campos específicos.

O papel dos envolvidos nesse trabalho in-terdisciplinar suscita autores, como Tornquist eAbelés,50 entre outros, a esclarecer questões éti-cas resultantes da transposição do pesquisadorpara outra cultura, ressaltando a alteridade   noprocesso de pesquisa e ilustrando o espaço docampo , construído pela interferência do referen-cial teórico do pesquisador e das circunstâncias

advindas dos seus pares e colaboradores. Nesseprocesso, não se pode ignorar que os atos de co-municação são marcados pela tensão de valores ecomportamentos representando contextos socio-

culturais diferenciados e que nem tudo pode sernegociado. Tais categorias reportam à ética napesquisa, especialmente às negociações estabele-cidas, por exemplo, entre pesquisadores e entrepesquisador e pesquisado, podendo resultar numtranqüilo ou tenso processo.

A tarefa exigirá exercitar uma visão inter-disciplinar efetiva e desenvolver um olhar pluri-dimensional. No primeiro caso, já é bastante evi-dente que a complexidade crescente da realidade

social caminha no sentido contrário à comparti-mentalização do conhecimento. No segundo, otrabalho em distintas áreas, por diversos profis-sionais, vem demonstrando há anos que a com-preensão e as explicações unidimensionais da rea-lidade são muito pouco fidedignas. D o mesmomodo, não é mais possível desintegrar subjetivi-dade e objetividade, na abordagem dos objetos deestudo das ciências naturais, formais, sociais ouhumanas. O bjetividade, subjetividade e intersub-jetividade são condições para se compreender o

homem.Recentemente, a filosofia passou a estudar

os problemas emergentes da mudança na formade pensar a ciência, a técnica, a ética e a política,produzindo transformações também nos seus re-ferenciais de pesquisas. A descrença no progressoe a desconfi ança dos rumos t omados pela ciênciamotivaram igualmente nos antropólogos a perce-pção do indivíduo e a consideração desse comosujeito da história. Coube-lhes os desafios daconvivência metodológica interdisciplinar nainvestigação de novos temas que se oferecem aoolhar antropológico, com ênfase à intersubjetivi-dade, com o diálogo entre pesquisador e pesqui-sado, assumindo o lugar da mera descrição mecâ-nica do homem, da sociedade e da cultura. Tal de-safio exige não apenas para a antropologia, mastambém para a sociologia, desvendar os significa-dos novos imbricados nas relações sociais e a cer-teza de que não é preciso manter uma distânciacultural e geográfica como forma de garantir o

49 C f. EC H EVERRÍ A, 1999, p. 230.50 TO RN Q U IST, 2001; e ABÉLÈS, 2002.

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encontro com o outro , realidade materializada pe-los avanços tecnológicos.

D a mesma forma, num olhar historiográfi-co, a negação das estruturas estáveis do ser, carac-

terística do pensamento moderno, orientando aperspectiva dita pós-moderna, aponta para umamultiplicidade de histórias, situando o homemno contexto histórico-cultural do qual fazemparte os indivíduos. Não se pode pensar no atocomunicativo, implícito numa pesquisa de qual-quer natureza, sem levar em conta a saga da buscapelo outro (a exemplo do outro do nanomundo),entendendo a presença da intersubjetividadecomo co-construção, co-autoria, compartilha-

mento e como representação das grandezas e doslimites de nossa espécie.

Eis um desafio com o qual, desde o séculopassado, os estudiosos (psicólogos, sociólogos,antropólogos, historiadores, psicanalistas, cien-tistas políticos, filósofos, engenheiros, biólogos,físicos ou químicos) vêm lidando: a compreensãoda intersubjetividade, do diálogo possível, daconstrução da identidade e dos laços sociais emface de uma nova realidade, que se instaura quan-do a técnica passa a tornar-se uma questão de éti-

ca, de valores e de responsabilidade. Isso porque,mais do que nunca, é necessário avaliar as açõesda perspectiva das conseqüências que possam vire integrar a sua dimensão na construção do sabere das práticas sociais, em especial aquelas apoia-das em técnicas  que potenciam de tal modo o agirhumano a conferir efeitos incalculáveis aos pró-prios agentes, pondo em risco a vida da espéciehumana ou as condições de vida na Terra, porconta de ações irrefletidas e irresponsáveis, nocontexto da moderna tecnicização.

A história tem sido um lugar   fundamentalpara conhecer o ponto de vista de uma época,para tomar dela significados, como disse Bertaux,em Les Récits de Vie ,51 pertinentes ao objeto deinvestigação e assumindo o status de indicadores,de modo a compreender os aspectos culturais eos contextos políticos imbricados. Isso, sem es-quecer que também entra em jogo, ao falar no de-

senvolvimento do homem tecnizado , o que essehistoriador assinala como as duas escalas tempo-rais, referindo-se ao tempo histórico coletivo e aotempo biográfi co, seguindo juntos, e as conexões

entre esses dois níveis da dimensão socioespacialapontando a interação entre pólos que se interin-fluenciam constante e mutuamente. Como lem-bra Braudel, criam-se fluxos de comunicação ge-rados nos intercâmbios levados a cabo entre ospaíses que intervêm na reconstrução da históriano mundo inteiro,52  sobretudo numa sociedadede forte impregnação ocidental, que buscou porséculos o seu próprio desenvolvimento e avançourumo a grandes descobertas na ciência e na tec-nologia, em que a cientifização marcou época,transformando as realidades sociais e chegando ànanotecnologia. É fundamental destacar que his-tória e sociologia são ciências humanas, sem ra-zão de ser se não estudam e acompanham as so-ciedades em seu processo de desenvolvimento.

Apresentar os principais conflitos éticos,legais, políticos e sociais advindos das nanotecno-logias exige muitas reflexões e discussões, nasmais diversas áreas do conhecimento, sobre essaintervenção do ser humano no mundo (ou no

cosmo) do qual é parte integrante, recorrendo-sea perspectivas de diferentes posições e à disponi-bilidade de documentos de tipos distintos, bus-cando decifrar   o alcance da técnica moderna.Nesse aspecto, a nanotecnologia e a (bio)ética,em sua mais estreita relação, podem unir diferen-tes visões de ciência.

CONSIDERAÇÕES ÚLTIMAS

Apesar dos vários aspectos positivos da na-

notecnologia, cresce o debate sobre o que essainovação representa para o futuro das pessoas, dasociedade e da natureza. A técnica e a ciência têmproporcionado uma potência ao ser humano, atéum tempo atrás considerada pouco importante,cujos fenômenos dela derivados, posso dizer, nãosão mais peculiares apenas à maneira de estar nomundo ocidental. Essa é uma questão epistemo-lógica importante a ser considerada, uma vez que

51 BERTAU X, 1997. 52 BRAU D EL, 1989.

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é preciso pensar a simultaneidade do local e doglobal propiciada pelas tecnologias mais recentes.C riaram-se modernos e eficientes sistemas nacio-nais de ciência e tecnologia que incentivam a

pesquisa básica, mas, simultaneamente, facilitamas soluções tecnológicas emergentes para asse-gurar, conseqüentemente, o desenvolvimentosocioeconômico de determinados países e sua re-levância competitiva, atingindo muitos outros,num circuito decorrente da expansão desse de-senvolvimento.

A história recente da nanotecnologia e deuma nanociência ainda pouco definida demons-tra, nos países em desenvolvimento, o incentivo eo financiamento das pesquisas científicas ou tec-nológicas nesses campos, mediante planos e pro-gramas que estão sendo impulsionados. Por suavez, a sociedade tem se relacionado com a ciênciae com os seus avanços de forma muito mais rá-pida e integrada que em outros tempos, provo-cando discussões sobre as implicações éticas emvários campos científicos. Mas não basta o con-senso de que uma política técnico-científi ca devaser orientada para a inovação apenas como modode garantir competit ividade nos mercados nacio-

nal e internacional. É necessário pensar os crité-rios que devem nortear tal política.A universidade, nesse cenário, pode contri-

buir fundamentalmente às novas gerações na for-mação intelectual, científica e tecnológica e nasdiscussões sobre as conseqüências éticas na maisampla dimensão. O utra ação de extrema impor-tância consiste em fortalecer um imediato, inten-

so e empenhado diálogo entre as ciências da na-tureza, as engenharias e as ciências sociais e hu-manas.

Para não fugir dos entrelaçamentos que

busco fazer, ao abordar a necessidade de um tra-balho interdisciplinar, concluo que as nanotecno-logias colocam o homem diante de decisões, damesma forma como ele se via, nos primórdios desua existência, no que se refere a um fundamentoobjetivo: a vida! A avaliação das significações éti-cas, das implicações tecnológicas, políticas e so-ciais subjacentes à introdução das nanotecnologiasno Brasil e de seus desafios na legislação, na po-lítica e na ética, bem como a análise de suas opor-

tunidades e possibilidades requerem a superaçãode obstáculos amparados no dogma da diferençaepistemológica e metodológica entre as ciênciashumanas e as naturais.

Assim, manifestam-se promissoras oportu-nidades de realizar uma abordagem da técnicamoderna verdadeiramente interdisciplinar. D einício, é possível contar com áreas que já tenhamalguma contribuição a dar nesse sentido, uma vezque oferecem análises sobre os efeitos das tecno-logias na vida do homem, no que diz respeito aos

seus métodos e enfoques, e com base nos princí-pios de formação dos conceitos apropriados, quepermitam capturar o significado desejado, sem apreocupação do que seja a natureza da teoriacientífico-social e da teoria das ciências naturais,em sua aparente irreconciliação.

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Dados da autora

Doutoranda do Programa de DoutoradoInterdisciplinar em Ciências Humanas (DICH) daUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC),

e professora de curso de Graduação ePós-Graduação a Distância daUniversidade do Estado de Santa Catarina.

Recebimento artigo: 10/jul./03

Consultoria: 28/ago./03 a 12/set ./03

Aprovado: 23/set./03

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Bioética e Comitêsde ÉticaBIOETHICS AND COMMITTEES ON ETHICS 

Resumo Esta comunicação visa a provocar discussões em torno da bioética e dos co-mitês de ética em pesquisa. Parte da tese de que as questões e a prática da bioética pas-sam de través a constituição de qualquer comitê de ética e de que a bioética traduz-se, muito mais do que os preceitos morais ou deontológicos, como uma prática cul-tural que regulamenta a atividade de um pesquisador ou de um grupo de pesquisa.

Palavras-chave BIOÉTICA – PESQUISA – CIÊNCIA.

Abstract The present text aims at provoking debate on bioethics and the Committeeson Ethics Research. The thesis is that the issues regarding bioethics and its practicethe constitution of any committee on ethics and also that bioethics, more than the

moral or deontological precepts, is a cultural practice that regulates the activity of aresearcher or a research team.

Keyw ords BIOETHICS – RESEARCH – SCIENCE.

WALTER MATIAS LIMA

Universidade Federal deAlagoas (UFAL)waltermatias@ ig.com.br 

walter.lima@ chla.ufal.br 

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ossa perspectiva consiste em traçar alguns aspectos dadiscussão sobre a bioética e a importância de um co-mitê de ética na pesquisa. Pretendemos provocar o de-bate, muito mais que apontar definições ou assertivas

peremptórias, as quais, no fundo, impedem umainterlocução ampla ou a confluência de posições dife-rentes, pois o importante é diminuir as posições dog-máticas que minam práticas sadias e destroem a digni-

dade das pessoas.Partimos da idéia de que o âmbito da bioética não envolve só a res-

ponsabilidade dos médicos, cientistas e biotécnicos, mas também as de-cisões e o destino de cada homem, as responsabilidades políticas e cul-turais da coletividade e, por isso, vai além do âmbito da deontologia puraprofissional e da ética médica. A bioética não é uma ética da ciência, nemuma ética científi ca. A ética da ciência, mesmo estritamente ligada à bioé-tica, não a esgota. Se fosse fundada na ética científica , a bioética seria re-duzida a um prontuário, um sistema de normas regulares em linha deprincípio e em abstrato de todas as situações problemáticas cuja soluçãoestaria dedutivamente contida nas premissas. A bioética, fundada na ra-cionalidade prática, ao contrário, é aberta, não deduz os comportamentose as decisões das normas gerais, mas, inspirando-se nessas e nos valores,encarna as situações e chama o indivíduo particular à difícil e insubstituí-vel característica de pessoa.

No agir moral e, em especial, na prática da bioética, aplicar não éadaptar. C ompreender as situações particulares não significa justificá-las.

A justifi cação das situações comportaria a negação dos princípios éticos.Na ação moral concreta, os valores se realizam na situação, que se com-preende e encontra seu sentido no horizonte dos preceitos morais. Por-tanto, a ética não pode constituir-se independentemente das situaçõeshistóricas, dos casos particulares, do próprio tempo, e deve elaborar suaestratégia entre os princípios e os meios para não desembocar no cinismoe na desmoralização, pois o caráter específico da exigência moral está emsua possibilidade de animar uma ação que não tem possibilidade de vitó-ria. Assim, em sua prática, a bioética deve ajudar a consciência moral dohomem a discernir, inventar, o próprio modo de agir numa dada situação,em conformidade aos princípios e valores morais.

A bioética é uma ética aplicada que complementa e complexifica aética científica e a ética na pesquisa. C om essa nova aplicação dos prin-cípios, aparece a exigência de coerência no agir ético. Não a coerência doato em si, mas a dos seus efeitos últimos com a permanência do agir hu-mano no futuro. O homem tornou-se um dos objetos da tecnologia euma maneira de minimizar essa tendência é a premência de novas regraséticas, destinadas a evitar a neutralização axiológica em curso pelo pró-prio homem e a afirmar a objetividade da verdade. Essas novas exigênciasdo agir moral põem em evidência a necessidade de pensar os princípiosinstauradores da ética e de pesquisar não só o bem do homem, como

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também o bem das coisas extra-humanas, umavez que os fins em si estão para adiante da esferado homem em sua singularidade, e, por fim, defazer com que o bem desse inclua a responsabi-

lidade por tais fins.É dessa ótica que entendemos a prática da

bioética e dos comitês de ética na pesquisa. U mcomitê de ética na pesquisa é transversalizado porquestões que o ultrapassam, mas não o abando-nam: a consistência da pessoa, o valor do conhe-cimento, as relações entre ética do indivíduo e ada coletividade, ética e normas de comportamen-to profi ssional, ética e educação etc. Assim, umcomitê não pode conceber-se como uma simples

comissão de especialistas, pois deve efetivar a di-mensão pública da pesquisa – sem confundir es-fera pública com esfera privada –, esforçando-sepor trabalhar com os parceiros mais diversos, ex-por os seus pareceres à crítica de todos, incitar aparticipação da sociedade civil na discussão dasquestões, envolver a passagem da ética ao direitoe à lei e desenvolver atividades pedagógicas tendoem vista a elaboração de uma cultura bioética.

A prática da bioética que encontra resso-

nância em um comitê de ética em pesquisa com-bate a comercialização do corpo humano emqualquer condição em que essa seja possível.

Portanto, um comitê de ética em pesquisatransdisciplinar age propedeuticamente para quedecisores e cidadãos entrem em confluência comos conhecimentos e a cultura que permitem acompreensão da responsabilidade social dos cida-dãos com o corpo humano e o dos animais. Di-zemos isso por não restar dúvidas de que alguns

profissionais, como médicos, juristas ou filóso-fos, precisam conhecer, no que diz respeito à bio-ética, os textos ofi ciais, as problemáticas clássicas eas jurisdições. Mas guardar esses conhecimentos éuma postura deveras limitada ante a exigência dareflexão ética e importa projetar-se para assumir asresponsabilidades correspondentes, pois, sem adiscussão pluralista e a experimentação das noçõese dos princípios apoiados nas situações concretas,não existe formação ética que valha a pena.

Nesse sentido, fazer do comitê de ética empesquisa um lugar apenas para reunião de parece-ristas, em que se discute somente a aprovação ounão de determinado projeto ou procedimento é,

no mínimo, desconhecer o seu significado.Por conseguinte, a atividade científica,

como toda ação humana, regula-se por normas eorienta-se por valores. Finca-se nos valores cole-tivamente compartilhados, que definem tanto oscomportamentos apropriados na produção doconhecimento quanto os relativos à incidência dainvestigação nos indivíduos e na sociedade. A ta-refa dos comitês de ética é elucidar os valores emjogo na investigação científica e tecnológica e ex-

por os seus resultados a consideração e discussãopúblicas. Desse modo, os comitês de ética sãouma instância de argumentação crítica fundadana transversalidade de diversos saberes sobrequestões relevantes à sociedade, à integridade eao desenvolvimento dos sujeitos envolvidos noprocesso de pesquisa, e, ao mesmo tempo, à in-tegridade e ao desenvolvimento da ciência. C a-racteriza, dessa forma, uma instância que podepromover novos diálogos, tanto no âmbito daprodução científica e da transmissão de seus re-

sultados como entre a ciência e outras dimensõesda sociedade. Em outras palavras, na ciência e natecnologia, a ética é uma categoria que abarca aresponsabilidade social da ciência: não é um ins-trumento para impor ditames ou repúdio a pro-jetos de investigação.

O investigador t ransita por uma área de co-nhecimento, reconhecido como tal por seus pa-res e pela sociedade, e pertence a inst ituições cujaoperação se ajusta a regras específicas. Por suacompetência, tem responsabilidade sobre o saberno qual atua, sobre as instituições científi cas e so-bre suas próprias práticas: a produção de conhe-cimento, o exercício de pesquisador, de docente,amigo e avaliador do trabalho de seus pares. Odesenvolvimento da ciência e a sua importânciano mundo contemporâneo têm estendido a res-ponsabilidade na produção de conhecimentos elevado a incluir os efeitos sociais da pesquisa e aconstrução permanente de vínculos de confiançaentre as diversas instâncias da sociedade e os pes-

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quisadores. A integridade da prática científica sóserá mantida se afastarmos as pretensões de im-punidade que poderiam estar presentes na comu-nidade acadêmica. Confi ança e verdade não são

apenas aspectos do trabalho científico, mas tam-bém exigências éticas.

A constituição de um comitê de ética deveespelhar-se nas diversas experiências nacionais einternacionais para evitar o erro de atribuir a seusintegrantes o caráter de representantes de gruposde interesses, como também a adesão a determi-nadas crenças religiosas ou a certas instituiçõescorporativistas. O comitê de ética não é o lugarpara a negociação de interesses corporativos, em-presariais ou profi ssionais e essa é uma condiçãofundamental para a sua constituição em um paíscomo o Brasil.

O comitê deve definir critérios inequívocospara aceitar ou repudiar os estudos de casos quelhe cheguem. E concentrar-se em questões rela-cionadas com a integridade da ciência e de suasinstituições, a dignidade dos sujeitos envolvidosno processo da pesquisa e os efeitos, sobre a so-ciedade, dos resultados da investigação. Ele não éum tribunal de ética, nem uma instância de apela-

ção de decisões tomadas por outros, salvo no quese refere à vulnerabilidade de princípios éticos.D eve abster-se de expedir sobre interpretaçõesestatutárias da carreira do investigador, de audi-torias administrativas ou, ainda, possíveis delitosde ordem penal cometidos no âmbito acadêmico.Pode tratar casos concretos que suscitem contro-vérsias éticas e suas conclusões têm por objetivoelaborar recomendações de ordem geral, úteispara casos similares; salvo quando um projeto depesquisa, por exemplo, suscite a perda da digni-dade dos sujeitos nele envolvidos.

A ética pode ser entendida como um modode enfocar os problemas e as condutas da socie-dade. Para cultivar esse procedimento, é precisoconstruir a capacidade de considerar criticamenteas circunstâncias em que os sujeitos estão inseri-dos. A ética é capaz de conduzir à definição denormas morais e até legais, quando essas gozamde consenso e são admitidas ou estimuladas pelasociedade ou por seus grupos. As normas éticas

exigem responsabilidade na relação intersubjetiva,mas não coerção. Não se deve confundir normaética com lei, pois essa última necessita da aprova-ção formal dos órgãos legislativos e cria obrigações

externas mediante, muitas vezes, coerção física,além de apresentar menos universalidade, poisobriga as pessoas a cumprir o ordenamento jurídi-co do país em que vivem.

No entanto, podem ocorrer comporta-mentos não condenáveis penalmente, mas repro-váveis do ponto de vista ético. O importante, diantedessas questões, é manter a preocupação com acriação de uma cultura da bioética que prime pelaconfl uência dos saberes e das práticas, integrando

a pesquisa acadêmica com as demandas sociais.A bioética nasceu das práticas sociais que

lhe deram demanda, o que a caracteriza comoresponsabilidade partilhada, e não apenas discipli-na ensinada. Não podemos nos contentar em di-zer que a ética em nosso tempo se realiza sim-plesmente por disposições regulamentares, e simpor iniciativas transformadoras. Para todos osprofissionais de saúde que não a tratam comopuro custo ou lucro, a cultura da bioética leva a

encarar essa esfera como exigência de dignidade aser promovida. A prática da bioética não apenasanuncia novos procedimentos, mas denuncia to-dos aqueles moralmente inadmissíveis, utilizadosnas inst ituições acadêmicas e nas empresas. Só as-sim os valores esboçados nos tratados internacio-nais e nas resoluções nacionais (por exemplo, naResolução 196/96, no Brasil, que institui a Co-missão Nacional de Ética em Pesquisa) poderãofrutificar em dimensão universal da consciênciasocial, irrigando novas instituições públicas plu-

ralistas, adaptadas ao necessário seguimento dosproblemas. Assim, a bioética, escapando à sua es-treiteza biologista, torna-se uma ética do mundodo homem, ou seja, da pessoa compreendidacomo societária do gênero humano exigindo ini-ciativas civilizadas em que se esboça uma nova vi-são da política. Isso porque a bioética tambémpode ser compreendida como uma eticização dacidade: o seu futuro e o da pesquisa científica é ofuturo de todos nós.

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Portanto, para uma relação mais coerenteentre ética (eticidade) e pesquisa, é decisiva a plu-ralidade de critérios de gestão de pesquisas cientí-fi cas e de conflitos morais. E, salientamos, urgen-

te o exercício de um comitê de ética em pesquisacomo prática ética para aumentar a responsabili-dade pública dos pesquisadores. Trabalhar parapromover tal responsabilidade é o mínimo a serfeito por um grupo coerente de pessoas envolvi-das com a pesquisa que garanta a dignidade de to-dos os sujeitos nela envolvidos.

Se ainda há como confiar no projeto mo-derno de desenvolvimento da humanidade, a éti-ca na pesquisa e a bioética reclamam uma culturada autodeterminação. N esse caso, ética consiste abusca por justifi car nossas escolhas (de ser ou deperder-se no nada) entre necessidades e desejos,entre ser e ter, pois é preciso encontrar práticasde promover a dignidade humana e a qualidadede vida. Nesse sentido, a ética na pesquisa cientí-fica, diante do progresso e do domínio tecnocien-tífico, exige uma prática de responsabilidade   ecompetência moral , o que requer a existência deum sujeito consciente, ou seja, do pesquisador oucientista não submetido às ideologias tecnológi-

cas (apologias irrestritas da técnica). Por conse-guinte, trata-se de construir os meios para ensejaro desenvolvimento técnico-racional – no âmbitoda pesquisa –, pautado por éticas que esclareçam

normativamente o que deve   ou não   ser feito, oque se pode  ou não , diante das possibilidades dainvestigação científica.

Nesse ínterim, é importante, para um co-

mitê de ética em pesquisa interessado na constru-ção de uma cultura da bioética, permear suas dis-cussões pela racionalidade, entendendo-se aquipor racionalidade a razoabilidade. A legitimidadenasce na confluência da vida da razão com as ra-zões da vida. Assim, a razoabilidade aparececomo a racionalidade humana de maneira teleo-lógica, de maneira a tornar a razão razão do ho-mem, pelo homem e a serviço de todo homem,respeitando as diferenças , sem confundi-las comdesigualdade. Isso atrai para o comitê de ética empesquisa a necessidade de manter coesa a inter-re-lação entre os protocolos metodológicos das pes-quisas clínicas e o acesso aos melhores dia-gnósticos e terapêuticas existentes, sem que talinter-relação seja minimizada em favor de práti-cas contextualistas que excluam nações ou man-tenham a vulnerabilidade (individual e coletiva)daquelas consideradas pobres ou mesmo de cer-tos grupos internos a elas. A ética e a bioética,nos dias de hoje, são importantes oponentes às

práticas tirânicas e totalitárias, assim como seopõem às manipulações espúrias do corpo huma-no e dos animais, reificando-os e transformando-os em mercadorias.

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Dados do autor

Professor do Departamento de Filosofia daUniversidade Federal de Alagoas.

Recebimento artigo: 17/jun./03

Consultoria: 28/ago./03 a 17/set./03

Aprovado: 23/set./03

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Pode-se Fazer Tudo oque se Pode Fazer?MAY WE DO EVERYTHING THAT CAN BE DONE? 

Resumo O artigo resume a história da ética no O cidente, com o objetivo de mostrarcomo surgiu a bioética diante dos desafios postos pela biotecnologia. Parte da per-gunta geral sobre o que é permitido fazer, para mostrar como várias vertentes do pen-samento ocidental tentaram respondê-la e, a partir daí, às distintas respostas que a fi -losofia contemporânea tem dado a tal questão.

Palavras-chave HISTÓRIA DA ÉTICA – BIOÉTICA – PRUDÊNCIA – PRINCÍPIOS UNI-

VERSAIS.

Abstract   The article summarizes the history of Western ethics, with the aim ofshowing how bioethics emerged in the face of biotechnological challenges. The

author shows how the several lines of Western thought have tried to answer a generalquestion: What is permitted? Then, the author goes on to show the different answersthe contemporary philosophy has given to the same question.

Keyw ords HISTORY OF ETHICS – BIOETHICS – PRUDENCE – UNIVERSAL PRINCI-

PLES.

ÁLVARO LUIZ

MONTENEGRO VALLSUniversidade do Vale do

Rio dos Sinos (Unisinos),

São Leopoldo/RS

alvalls@ portoweb.com.br 

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s antigos filósofos gregos, inventores da ética comociência (episteme , conhecimento certo, garantido, re-lacionado ao universal e fundamentado em razões),aproximavam a práxi s  ao esforço artístico: viver cons-

tituía uma arte, cuidado de si, busca da perfeição doideal do belo e do bom, e a vida deveria ganhar a for-ma de uma obra de arte construída ao longo dosanos. O que caracterizava a vida ética eram as virtu-

des, intelectuais e morais. No teatro trágico, a catársis  ou purificação eraproduzida pela identificação com um herói nobre, mas não perfeito, quena trama se deixava levar ao erro, em parte pelo destino e em parte porengano pessoal, e, no desenlace (catástrofe ), vinha a ser castigado por umerro de que não era totalmente culpado. Pela identificação com esse he-rói, o espectador passava pela experiência do terror (fobia ) e da compai-xão e se reconhecia no papel de homem, ser limitado, finito, que deve evi-tar a hybris  (as atitudes desmedidas) e colocar as barbas de molho paratentar ser melhor do que fora, tentar ser mais virtuoso, desenvolvendoaquelas forças que estavam nele.

O s gregos são os fundadores da ética em dois sentidos. Esboçaramquase todas as doutrinas possíveis – hedonismo epicurista, estoicismo,eudaimonismo aristotélico, racionalismo, ceticismo, cinismo – e redigi-ram alguns dos principais livros até hoje lidos e respeitados, como os D iálo- gos , de Platão, e Éti ca a Nicômaco , de Aristót eles. O gosto pelo estudosobre os gregos foi muito forte no século XIX e Nietzsche deve muito desua fama à filologia clássica. Q uando a G récia, cativa, dominou intelec-

tualmente Roma, seu pensamento se espalhou por todo o Império. C omos séculos, as teorias foram se misturando, os argumentos se embara-lhando e a tendência ao ecletismo baixou o nível da teoria e da prática.

Num canto obscuro do Império, surge, há cerca de dois mil anos,um novo ensinamento existencial que, graças aos apóstolos e mártires, aoviajante Paulo de Tarso e depois ao imperador C onstantino, acabou avan-çando de seita de pobres a religião oficial. A doutrina básica do carpin-teiro de Nazaré era a do amor fraterno e do perdão dos pecados. D ou-trina depois deturpada quando a Igreja, de militante na Terra, assume opapel de triunfante. Com a ruína de Roma, foi na fi gura dos papas e nosmosteiros que um certo poder misturando espiritual, temporal e alguma

coisa do melhor pensamento se conservou.A Idade Moderna é a idade das ciências empíricas e matemáticas e

traz em seu bojo o movimento da Aufklärung , o Esclarecimento. Con-forme Galileo G alilei, o mundo foi escrito em linguagem matemática eera preciso aprender a ler essa linguagem. A razão cartesiana é matema-tizada, abstrata e universalizadora, e dominou a política cultural européiaa partir da corte de Versalhes. O s alemães, melhores na teoria do que napolítica, refletem sobre o mundo e sobre o agir humano, de modo quepensadores como Kant e H egel são incontornáveis para qualquer estu-dioso sério dos problemas da ciência e da moral. H egel acreditou que a

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filosofia deveria transformar-se em saber univer-sal e sistemático, Wissenschaft . Sua tentativa desistematizar todos os conhecimentos disponíveisna época não deu certo e parece que, já desde Lei-

bniz e Lessing, essa era uma tarefa superior àsforças humanas. O s anglo-saxônicos, no Velho eno Novo Mundo, buscavam, então, em seu prag-matismo t ípico, respeitador da empiria e dos cos-tumes tradicionalmente estabelecidos, investigaras bases mais sólidas de um agir que tornasse omundo um pouco melhor e buscasse o maiorbem possível para o maior número de seres hu-manos. Eles fundaram teorias utilitaristas ou con-seqüencialistas, preocupadas, em primeiro lugar,com os resultados práticos da ação humana, poissabiam que, como diria Max Weber, o agir tem deser responsável até o fim, uma vez que, na vidaem sociedade, das boas intenções muitas vezessurge o mal.

Weber cunhou o termo Zweckrationali tät ,traduzido corretamente como racionalidade dos meios em razão de um fim , às vezes estabelecidopor outros e não refletido pelos agentes. O sécu-lo XX  assombrou o mundo pelos efeitos do di-vórcio entre o agir moral e o agir técnico. Práxis 

e téchne , que, em Aristóteles, formavam uma tri-logia com a theoría , isolam-se, perdem o contato.O homem antigo, ao atacar ou defender-se comseu machado, enfrentando cara a cara o adversá-rio, ainda se deixava influenciar pelas emoções,pelas tradições e tinha tempo de refletir sobre ajustiça ou não de suas ações. Nas trincheiras enos ataques aéreos ou submarinos da PrimeiraG rande Guerra, e depois de Hiroshima e Naga-saki, o homem percebeu ter perdido o controleético de suas ações. U m alemão que executava,em obediência jurada ao Führer  e à constituiçãovigente, as operações que buscavam racionalizarao máximo a solução definitiva  para os judeus, ou,mais recentemente, os pilotos dos bombardeirosque lançavam Napalm  no Vietnã são também ví-timas do divórcio entre o que o homem é capazde fazer e aquilo que deveria fazer: divórcio entreos dois sentidos, em nosso idioma, do verbo po- der , pois em verdade não se pode fazer tudo o que se pode , não é lícito realizar toda e qualquer ação

só porque somos capazes tecnicamente de levá-las a cabo.

A bioética surgiu como área de conheci-mento e prática científicos, de base filosófica,

mas essencialmente interdisciplinar, e se concen-trou sobre dois pólos principais: meio ambiente esaúde. H oje em dia, com o Projeto G enoma, fala-se até de um ramo da bioética que se poderia ape-lidar gen-ética . É um ramo da bioética entendidocomo ciência da responsabi lidade , de acordo coma visão de Potter e Jonas, surgido da consciênciado problema do divórcio entre o que tecnica-mente já somos capazes de fazer e aquilo que tal-vez deveríamos fazer ou deixar de fazer. Portan-to, da consciência de que o homem já tem nasmãos poder sufi ciente para o suicídio coletivo, li-quidando o planeta.

*C onvém afastar um preconceito. Muitos se

preocupam por que o homem, nas últimas déca-das, estaria querendo brincar de Deus. U ma visãoimparcial nos mostrará que ele faz isso desdesempre. Se o D eus bíblico ordenou a Adão e Eva“C rescei e multiplicai-vos e dominai a Terra”, os

homens captaram a parte final do mandamento eos séculos testemunham como eles vão arrancan-do a um destino impessoal os poderes concedi-dos pelo Pai. H oje em dia, apenas chegamos auma nova fronteira, a dos genes, ou dos cromos-somos – mas estruturalmente o problema éticonão difere de quando a humanidade inventou aluz elétrica (e disseram que D eus fi zera a noitepara dormirmos) ou ainda o motor (e afirmaramque D eus criou os bovinos e os muares para a tra-ção dos veículos) ou criou métodos de controleda concepção (e disseram que o amor era obriga-do a manter-se sempre aberto para o que desse eviesse). É claro que há na natureza mecanismosde autocontrole para evitar e anular os excessos e,por muitos milênios, milhões de mortes de crian-ças e mães equilibraram os milhões de nascimen-tos, atualmente defendidos por medidas de saúdepública. Poderíamos dizer, inversamente, que osmilhões de espermatozóides apresentados a cadaejaculação são a defesa da vida contra os poderes

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insidiosos da morte, assim como o padre repre-sentado por G ianfrancesco G uarnieri, no fi lmeO Quatrilho , reflete que, quando uma mocinha dacolônia sente sua idade avançar e decide mostrar

ao namorado as vacas do fundo do quintal, nãoestá sendo arrastada pela concupiscência da car-ne, mas pela ânsia da vida de não se deixar derro-tar pela morte.

Todos entendem que intervenções apressa-das sobre processos milenários da natureza acar-retam, a curto prazo, desequilíbrios que, com oacúmulo de poderes nas mãos dos cientistas e dosfabricantes, podem ser fatais para muita gente.Por isso, uma das virtudes aristotélicas volta ao

primeiro plano, a prudência , ligada à experiênciaacumulada e à reflexão que compara meios e fins,e, como toda virtude, consistiria num justo meio-termo em relação ao homem. Como a coragemnão era pólo oposto à covardia, mas meio-termoentre o defeito da covardia e o excesso da teme-ridade, assim também a prudência não pode serapenas um freio de mão sempre puxado. Em am-bientes de pesquisa, seria importante lembrar quea prudência do pesquisador não deve ser sinôni-mo de covardia, nem de omissão. O medo de

pesquisar novos processos pode ser responsávelpela fome de muitos, e o de experimentar novastecnologias é capaz de levar ao esgotamento deoutras. C itando livremente Millôr Fernandes,perguntaríamos: quando a população do planetachega a seis bilhões de humanos, surge a questãosobre o que é pior agora – matar ou desmatar ?D esmatamentos podem significar a morte ou aproibição de vida a milhões ou bilhões de descen-dentes nossos.

Eis aí uma nova discussão da bioética: o di-reito dos que (ainda) não existem. Se os filósofostenderam a ignorar os que não mais existiam ouainda nem existem, e a concentrar-se sobre o pró-ximo no sentido f ísico, natural (a população pre-sente), agora não mais podemos adotar tal pers-pectiva, pois, dependendo de nossas decisões nohoje de nossa vida e de nosso trabalho, é possívelque muitos nem cheguem à existência ou venhama ter péssima qualidade de vida. Os mecanismosde controle, ou de defesa, invenção da própria na-

tureza em sua evolução, quem sabe até precondi-ção da evolução, e aperfeiçoada pelo próprio pro-cesso natural, devem, nos dias de hoje, ser com-pletados conscientemente pelo próprio ser hu-

mano, individualmente e/ou em equipe. Emespecial pelo cientista, que, ao precisar incluir emsua reflexão também os fins, próximos e últimos,de sua atividade, e não só os meios e recursos,torna-se um verdadeiro filósofo. Aliás, o proble-ma não é novo, pois já Aristóteles perguntava seera correto deixar aos médicos a manipulação dosvenenos, de onde provêm muitos medicamentos.A solução por ele encontrada era a de deixar aosmédicos a responsabilidade moral, mesmo porfalta de alternativas melhores. Q uem, com efeito,sem o conhecimento técnico, pode ditar em sãconsciência o procedimento melhor àquele queconhece o como, o quanto, o quando e o em quecondições? Na falta de opção viável, há que seapostar na formação moral dos que trabalham naárea da saúde ou na pesquisa em favor da vida.

Q uem sabe caiba aqui contribuir com algu-mas indicações no terreno da reflexão moral. In-cumbido de pensar eticamente pari passu   comsuas pesquisas tecnológicas, e consciente de ha-

ver uma coisa chamada ética profi ssional, que nãoregula apenas níveis salariais e coisas semelhantes,o cientista pode pedir ao filósofo alguns linea-mentos gerais para esclarecer e acelerar o pro-gresso de suas considerações nesse campo pormuito tempo negligenciado. Não é fácil ao bomcientista ter a humildade de dar a palavra ao cha-mado eticista . Afinal, que podem ter esses gene- ralistas  (especialistas em generalidades?) amantesde obviedades acacianas a dizer, se não vivem noslaboratórios e não participam dos congressoscientíficos? Essa seja talvez uma vingança mereci-da por séculos de predomínio das chamadas ciên-cias dos sentidos, como a teologia, o direito ou afilosofia, sobre as chamadas exatas e as da natu-reza. Mas a simples inversão entre oprimido eopressor não serve ao bem comum. D uas saídasimediatas seriam viáveis: a formação de pesquisa-dores anfíbios, t reinados para se movimentar nosdois âmbitos, e a criação de comitês interdiscipli-nares, em que gente de várias especialidades, até

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mesmo movida pela lei da simpatia desenvolvidaem grupos específicos, acaba aprendendo a dialo-gar de modo objetivo, senão fraterno.

*Algumas sugestões. No âmbito da ética

profissional, o cientista e o técnico ou o profissio-nal da área de pesquisa da vida deve encarar suasatividades como uma vocação, e não apenas ga-nha-pão. E também considerar-se um funcioná-rio do bem comum, consciente de ter o privilégiode executar tarefas que nitidamente fazem senti-do, carregadas de um significado ideal. Precisa,pois, executar as tarefas do dia-a-dia com afi nco e

interesse, com um certo amor e uma grande pai-xão por fazer aquilo sempre melhor. Mas a pro-blemática ética não se esgota no nível da relaçãoprofi ssional. H á uma dimensão específi ca e umadimensão política. U m profi ssional dessa áreadeve procurar ter suas opiniões a respeito da po-lítica mais geral do setor. Pois opinião é isso, umsaber que talvez esteja certo, mas que pode aqualquer momento ser corrigido por outra me-lhor. Opiniões são convicções ainda não demons-tradas e não devem ser defendidas com fanatis-

mo, mas mesmo com pouca certeza pode se estarna verdade, e aí teremos o que Platão chamava deopinião certa  ou opinião melhor . Portanto, o pro-fissional da área deve dispor-se a opinativamentepesar e sopesar os prós e contras dos métodos,procedimentos e tecnologias a serem utilizados.Por exemplo, citado o mais rapidamente possível:quais os prós e cont ras do uso de produtos trans-gênicos, e quais, por outro lado, os prós e contrasdo não uso deles?

Enfrento, enfim, a questão mais geral dosprincípios éticos ou morais do trabalho de pes-quisa e aqui precisarei fi car num nível talvez bas-tante etéreo, embora espere que algumas coisastenham lá o seu proveito. O que a ciência da éticanos pode auxiliar no dia-a-dia? U ns dois pontosjá foram mencionados: levar em conta fi nalidadesúltimas, e não apenas refletir de maneira imediatasobre os meios e objetivos de curtíssimo prazo;voltar a recorrer à reflexão, buscando uma certaprudência, já definida, como regra do agir. C abe-

ria agora acrescentar que um pesquisador quetem em suas mãos, de alguma maneira, a saúde dapopulação, pode aprender bastante das tradiçõeséticas da área médica com os princípios da bene-

ficência e não-maleficência, da justiça e outros se-melhantes. O u seja, o próprio juramento de H i-pócrates poderia ser estudado e meditado porgente dessa área.

Mas dos moralistas é possível aprendermais alguma coisa. U m tópico fundamental da fi-losofia moral kantiana, mais uma vez em granderelevo na atual ética do discurso , defendida porpensadores como Jürgen H abermas e Karl-O ttoApel, é o chamado princípio da universalização

ou, se quiserem, da universalizabilidade . Antes deme decidir por uma ação, devo refletir sobre seessa máxima que pretendo seguir é digna de seruniversalizada. Eu poderia, em sã consciência, de-sejar que todos os homens, numa situação seme-lhante à minha, fi zessem o mesmo que estou pre-tendendo fazer? Isso vale em todas as esferas,vale para o que quer torturar, o que quer sonegar,o que quer escapar de um aperto por meio deuma mentira, para o que se pergunta se pode pro-meter algo que sabe que não pretende cumprir, e

assim por diante. Numa palavra que todos enten-demos: o princípio da universalização é antípodada chamada Lei de Gérson , em que busco sempretirar vantagem de qualquer situação e a qualquerpreço, a ser pago obviamente pelos outros. Talprincípio, Kant sempre aplicava junto com outroaspecto, que dizia pertencer ao mesmo preceito:o do respeito pela dignidade do ser humano. Sa-ramago, em palestra na UFRGS, formulou a ques-tão nos seguintes termos: “Se não podemos pre-tender que todos os homens se amem uns aos

outros, poderíamos ao menos lutar para que nosrespeitássemos mutuamente” . Kant diz que sem-pre é preciso tratar a humanidade, em nós mes-mos ou nos outros, também como um fim em si,e jamais apenas como um meio.

Mantido o princípio da universalização,pois na ética se faz o que égeral , é possível levarem conta outras reflexões, como a ação do duploefeito (em que se busca um bem maior, precisan-do aceitar uma conseqüência menos positiva que

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acompanha o resultado), ou o princípio do malmenor (quando somos obrigados a agir escolhen-do entre dois resultados negativos), ou o do cus-to e benefício (nascido na economia e transplan-

tado para os setores administrativos) e o da sepa-ração das decisões macro e micro (a direção geralse responsabiliza pelos investimentos básicos e asinstâncias inferiores administram, da melhor ma-neira possível, os recursos disponíveis). Formula-ção superior à do mal menor é, obviamente, a dobem maior, ligada à chamada regra de ouro , de fa-zer aos outros o que queremos que façam emnosso proveito, base do contrato social, seja esseprincípio articulado de maneira positiva seja deforma negativa.

A via dos princípios  tem sido seguida tradi-cionalmente e não sei até que ponto é proveitosa.

Mas princípios éticos são instrumentos para re-flexões grupais e particulares. Acredito nos gru-pos de reflexão, em que se se exerce e se aprendea exercer a reflexão ética. A comunidade dos pes-

quisadores é um sujeito digno, no campo da epis-temologia. Também no plano da moral, tal comu-nidade é um sujeito sério, mas aí talvez fosse pre-ciso atentar para o fato de que, idealmente, deve-ria incluir, de alguma forma, todos os sujeitosconcernidos. Porque, quando pesquiso sobre coi-sas que atingem a vida e a saúde de muitos aomeu redor, não posso considerar-me a instânciaúltima das decisões (no máximo uma instânciapróxima ). Os desastres de Chernobil, Bopal etantos outros sugerem humildade à comunidadedos pesquisadores e técnicos. Mas também ospraticantes da filosofi a têm de ser humildes.

Dados do autor

Doutor em filosofia pela Universidade deHeidelberg, desenvolve pesquisas sobre Adorno

e Kierkegaard. Atua nas áreas da estética, ética e b ioética.Tradutor e professor na Unisinos, é pesquisador do

CNPq, membro de comitês de ética em pesquisa e

autor deO que éÉtica  (Brasiliense).

Recebimento artigo: 11/set./03

Consultoria: 12/set./03 a 22/set./03

Aprovado: 23/set./03

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Comunicações& Debates

Guerra, terrorismo eas relações internacionais

Commun ica t ions

Debates

War er r ori sm and he nternati onal relati ons

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Introdução a umDebate FilosóficoINTRODUCTION TO APHILOSOPHICAL DEBATE 

ano de 2003 testemunhou uma série de debates so-bre temas como terrorismo, a guerra no I raque, a si-tuação das N ações Unidas e questões relativas às re-

lações internacionais. Esta seção de debates apresen-ta as posições de Jürgen H abermas sobre tais temas,bem como a reação de Iris Young a um manifestofi rmado pelo fi lósofo alemão e Jacques Derrida re-lativo à G uerra no Iraque. E é fechada por uma en-

trevista inédita de H abermas a Eduardo Mendieta, na qual contesta e es-clarece uma série de questões, inclusive as levantadas por Iris Young.

H abermas, professor emérito da U niversidade de Frankfurt, é umdos mais importantes herdeiros da teoria crítica da sociedade e autor deobras como Strukturwandel der Öffentl ichkeit  (Mudança Estrutural da Es- fera Pública , 1962), Erkenntnis und I nteresse (Conhecimento e Interesse ,1968), Theorie des kommunikativen H andelns  (Teoria da Ação Comuni- cativa , 1981), Fakti zität und Geltung  (D ireito e Democracia , 1992), e D ie Zukunft der menschlichen N atur  (O Futuro da Natureza H umana , 2001).D estaca-se há cinqüenta anos – desde a publicação de um artigo critican-do H eidegger, em 1953 – como um intelectual atuante no âmbito da es-fera pública, sempre intervindo por meio de entrevistas e artigos em jor-nais como um defensor do “projeto da modernidade” nos mais impor-tantes debates filosóficos, políticos e culturais. Isso se vê desde o pós-guerra na Alemanha, passando pelo movimento estudantil e pela críticaao neoconservadorismo, chegando às discussões atuais sobre biotecno-

logia e relações internacionais.Já no fi nal de 2002, Habermas havia publicado uma “C arta à Amé-rica” no jornal The Nation , na qual afi rmava que os Estados U nidos nãodeveriam invadir o Iraque sem o consentimento das Nações U nidas.Após as várias manifestações contra a iminente invasão, ocorridas emtodo o mundo no dia 15 de fevereiro de 2003, H abermas insistiu nos pro-nunciamentos sobre o tema. Em 17 de abril desse mesmo ano, publicouo artigo “ Was bedeutet der D enkmalsturz?” (O que significa a queda domonumento?) no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung , no qual refletesobre as ambigüidades do ato de destruição de um monumento a Saddam

AMÓS NASCIMENTO

UNIMEP, Piracaba/SPasnascim@ unimep.br 

OOOO

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H ussein em Bagdá. Mais do que a queda de umditador, aquele ato denunciava, para H abermas, a“domesticação do direito internacional” e a“violação dos direitos humanos” por uma política

internacional neoconservadora, liderada por Wol-fowitz nos Estados Unidos. O monumento acair seria, portanto, a autoridade normativa e a le-gitimidade política dos Estados U nidos no âmbi-to internacional.

Em 31 de maio, o jornal alemão Frankfurter Al lgemeine Zeitung   e o jornal francês L ibération publicaram simultaneamente um manifesto con-tra a invasão do Iraque, fi rmado por H abermas eD errida. Ambos conclamavam a Europa a se unir

em oposição à guerra e ao modelo estadunidense,tomando como exemplo as manifestações inter-nacionais de 15 de fevereiro, e propondo uma es-fera política internacional alternativa. O utros in-telectuais, como U mberto Eco, G ianni Vatt imo eRichard Rorty, apoiaram essa posição. Porém,muitos viram tal iniciativa como surpreendentecapitulação do pós-modernismo ao projeto mo-derno, além de identificarem traços eurocêntri-cos nas posições de Habermas e D errida, que jávinham mantendo posições similares em uma sé-

rie de encontros e em entrevistas a G iovannaBorradori sobre terrorismo, publicadas sob o tí-tulo Philosophy in a Time of Terror  (Fi losofia em um Tempo de Terror , 2003).

É nesse momento que temos a reação deIris Young. C omo destacada representante dopensamento crítico contemporâneo nos EstadosU nidos, tem liderado os debates sobre feminis-mo, justiça social, defesa das minorias e o diálogointernacional. Em Throwing like a Girl and other Essays in Femini st Phi losophy and Social Theory (Arremessando como uma Menina e outros Ensaios em Fi losofia Feminista e Teoria Social , 1987) elaapresenta um tom bastante crítico ao tratar docorpo e do comportamento humanos, mostran-do como as mulheres são educadas para certoscomportamentos culturais – andando, sentando ejogando bola “como meninas” – que levam à ob-jetifi cação do corpo feminino. No premiado livroJustice and the Poli ti cs of D ifference   (Justiça e a Política da D iferença , 1990), Iris amplia sua visão,

partindo de D errida para analisar múltiplos con-ceitos de justiça e advogar a necessidade de umaconcepção plural, inclusiva, participativa e nãohomogênea da alteridade, concluindo com a pro-

posta de tratamento diferenciado a grupos sociaisdistintos. Em I ntersecting Voices: dilemmas of gen- der, poli ti cal philosophy and policy   (Vozes em I n- tersecção: dilemas em gênero, filosofia política e po- líticas públicas , 1997), ela debate os dilemas do fe-minismo desde Simone de Beauvoir até as posi-ções recentes de Luce Irigaray e vai mais além, aointegrar discussões atuais sobre gênero – envol-vendo mulheres e homens – ao debate sobre co-municação e cidadania.

Mais recentemente, em I nclusion and D e- mocracy   (I nclusão e Democracia , 2002), IrisYoung trata do multiculturalismo e das formas departicipação de grupos sociais nos processos de-mocráticos, enfatizando processos diferenciadosde comunicação, especialmente no nível de umasociedade civil global. Nesse ponto já se vê suacrítica as concepções habermasianas “ação comu-nicativa” e “esfera pública”, pois a pensadora es-tadunidense as considera abstratas demais parapoder incluir os “outros concretos” [concrete 

others ], geralmente esquecidos nos debates polí-ticos. Atualmente Iris Young finaliza o livro On Female Body Experience   (Sobre a Experiência do Corpo Feminino ) e atua como membro do Co-mitê Científi co da revista I MPULSO , mostrandocrescente interesse sobre a situação social no Bra-sil. Sua reação ao que denomina um certo euro-centrismo da parte de H abermas e Derrida, e afalta de diálogo com países do hemisfério sul, éconseqüente com o desenvolvimento de sua po-sição teórica, descrita acima. Foi discutida e apre-

sentada em vários locais – inclusive no C ongres-so Mundial de Filosofia realizado em Istambulem 2003) – e comentada em vários jornais nosEstados U nidos, Itália, Alemanha e outros países.É agora publicada em português nesta seção.

H abermas não respondeu diretamente àscríticas de Young. Porém, após receber o P rêmioPríncipe de Asturias em novembro de 2003, naEspanha, juntamente com o presidente LuísInácio “ Lula” da Silva, G ustavo G utiérrez e ou-

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tros líderes sociais, concedeu em dezembro de2003 entrevista a Eduardo Mendieta, na qual re-flete retrospectivamente sobre os vários temasacima mencionados. Mendieta, professor na

State University of New York at Stony Brook,estudou com H abermas em Frankfurt e é hojeum dos expoentes da teoria crítica nos EstadosU nidos. Traduziu e editou em inglês vários tex-tos de H abermas, Karl-O tto Apel e EnriqueD ussel, além de publicar The Adventures of Transcendental Philosophy. Karl-O tto Apel’s se- miotics and discourse ethics(As Aventuras da Fi- 

losofia Transcendental. A semiótica e a ética do discurso de Karl-O tto Apel , 2002), Reli gion and Rationality. Essays on Reason , God and Moder- nity   (Religião e Racionalidade. Ensaios sobre a 

Razão, D eus e a Modernidade , 2002) e vários ar-tigos sobre teoria crítica e globalização. Nessaentrevista, Mendieta levanta uma série de ques-tões que remetem a vários pontos dos debatesmantidos por H abermas em 2003, permitindoao filósofo alemão que complemente e esclareçasuas posições.

Dados do autor

Filósofo e assessor para Assuntos Internacionais na UNIMEP,foi aluno tanto de Iris Young como de Jürgen Habermas.

Recebimento artigo: 11/set./03

Consultoria: 12/set./03 a 22/set./03

Aprovado: 23/set./03

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Descentralizando o Projetode Democracia Global*   

DECENTRALIZ ING THE PROJECTOF GLOBAL DEMOCRACY 

Resumo N este texto, a autora reage a uma declaração co-assinada por Jürgen Haber-mas e Jacques Derrida, na qual eles conclamam os Estados e cidadãos da Europa a de-senvolver uma política internacional que estabeleça um ponto de equilíbrio com re-lação aos Estados U nidos. Embora concorde com a necessidade de relações maisequilibradas no cenário internacional, a autora argumenta que a declaração revela-seeurocêntrica e não reconhece os esforços feitos em prol de uma democracia global apartir do H emisfério Sul, especialmente nas reuniões do Fórum Social Mundial. Combase nessa constatação, enfatiza a necessidade de um diálogo Norte-Sul, ao invés dese colocar os destinos das relações internacionais nas querelas do Norte, entre a Eu-ropa e os Estados U nidos.

Palavras-chave JÜRGEN HABERMAS – JACQUES DERRIDA – DEMOCRACIA GLOBAL

– EUROPA – ESTADOS UNIDOS – DIÁLOGO  NORTE-SUL.

Abstract  This text reacts to a declaration co-signed by Jürgen Habermas and JacquesD errida, in which they make a call for the need of a consensual European internatio-nal politics to counterbalance the hegemony of the United States. While agreeingwith the need to establish more balanced relations at the global level, the declarationremains Eurocentric and does not recognize the efforts towards a global democracy,which are being made in the Southern H emisphere, especially in the meetings of theWorld Social Forum. O n this basis, the text concludes by stressing the need ofa North-South dialogue, instead of putting the destiny of international relations on

the North-North disputes between Europe and the United States.

Keyw ords JÜRGEN  HABERMAS – JACQUES DERRIDA – GLOBAL DEMOCRACY –EUROPE – UNITED  STATES – NORTH-SOUTH  DIALOGUE.

* Escrito para apresentação em um painel sobre o tema “D iálogo N orte-Sul” , no C ongresso Mundial deFilosofia em I stambul (ago./03). Versão em alemão publicada sob o t ítulo “ Europa, leere Mittelpunkt,”no Frankfurter Rundschau , (22/jul.03): < www.fr-aktuell.de> ; versão em italiano publicada como“Europa, provincia del mondo”, em I l Manifesto (7/ago./03): < www.ilmanifesto.it> ; versão em inglêspublicada na revista online Open D emocracy : < ww w.openD emocracy.net> . Tradução do inglês para oportuguês de AMÓ S NASCIMENTO.

IRIS MARION YOUNG

UNIVERSITY OF CHICAGO,Chicago/EUA

iyoung@ uchicago.edu 

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m uma declaração importante, co-assinada por JacquesD errida e publicada no Frankfurther Allgemeine Zeitung ,no dia 31 de maio de 2003, Jürgen H abermas conclamaos Estados e cidadãos europeus a forjar uma política ex-

terna européia comum para poder estabelecer um pontode equilíbrio com relação ao poder hegemônico dos Es-tados U nidos. Segundo ele, os europeus deveriam forjar

uma identidade política limitada à identidade européia para, assim, resistirao poder hegemônico norte-americano. Porém, tal identidade estariaaberta aos ideais de uma democracia cosmopolita.

Reconheço a iniciativa desses influentes filósofos ao chamarem àresponsabilidade pública, naquele momento histórico em que EstadosU nidos e Reino U nido estavam prontos para ocupar o I raque indefini-damente, e os EU A  ameaçavam outros Estados da mesma forma. Tam-bém dou boas-vindas a esse chamamento para que a Europa seja mais in-dependente dos Estados U nidos, avaliando seus próprios interesses eaqueles internacionais mais amplos. Além disso, concordo que uma po-sição européia unida e diferencial poderia servir de contrapeso à arrogân-cia da política externa estadunidense.

Porém, me pergunto sobre quão cosmopolita é, de fato, a posiçãoapresentada nessa declaração. D o ponto de vista de outras partes domundo, sobretudo da ótica dos Estados e das pessoas no H emisfério Sul,tal apelo lançado por esses fi lósofos pode parecer mais uma tentat iva derecentralização da Europa do que um clamor por uma democracia globalinclusiva.

H abermas inicia o documento citando os eventos de 15 de feverei-ro de 2003, encarando essa data como um dia histórico, “que pode ficarpara a posteridade como o sinal para o nascimento de uma esfera públicaeuropéia”.1  Naquele dia, segundo ele, milhões de pessoas se reunirampara se opor à G uerra no I raque, em cidades pela Europa, incluindo Lon-dres, Roma, Madri, Barcelona, Berlim e Paris. É a simultaneidade coor-denada dessas demonstrações, sugere Habermas, que se apresenta comoprecursora de uma esfera pública européia.

Mas tal interpretação distorce os fatos históricos. Naquele mesmofi m de semana, houve também demonstrações em massa em várias outrascidades, em todos os demais continentes – Sidney, Tóquio, Seul, Manila,

Vancouver, Toronto, C idade de México, Tegucigalpa, São Paulo, Lagos,Johannesburg, N airobi, Tel Aviv, C airo, Istanbul, Varsóvia e Moscou, en-tre várias centenas de outras, diversas delas nos EU A. De acordo com aspessoas com quem falei, a coordenação mundial dessas demonstraçõesfoi planejada no II I Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em janeirode 2003. A ampla coordenação mundial dessas demonstrações pode si-nalizar o aparecimento de uma esfera pública global , da qual as manifesta-

1 HABERMAS, J. & DERRIDA, J. In Frankfurther Allgemeine Zeitung , Frankfurt, 31/maio/03.

EEEE

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ções públicas européias podem ser consideradasas asas, mas cujo centro se encontra no H emis-fério Sul.

O apelo dos filósofos aqui citados sugere

que a Europa tem uma obrigação especial nessemomento histórico: promover a paz e a justiçapor meio do direito internacional, agindo, assim,em oposição à política estadunidense, que contra-diz tal internacionalismo. A Europa deve ser a lo- comotiva , propalando os cidadãos do mundo emuma viagem com destino à democracia cosmopo-lita. U tilizando as instituições internacionais dasNações U nidas, as grandes cimeiras econômicas,como as reuniões do G -8 e da Organização Mun-

dial de Comércio, do Fundo Monetário Interna-cional e do Banco Mundial, os países do chamadoNúcleo-Europa  deveriam “exercer a sua influên-cia, moldando o desígnio de uma democracia glo-bal para um futuro próximo”.2 

C ertamente a Europa deveria mostrar a suainfluência, especialmente contra os esforços dosEstados U nidos em utilizar subterfúgios para to-mar atalhos e contornar ou desconsiderar as li-nhas mestras que definem a tênue conexão inter-nacional, oriundas de políticas internacionais sur-

gidas na última metade do século XX . A imagemque deduzo dessa proposta de adotar alguns fó-runs públicos como a O NU , a O MC , o FMI  e as ci-meiras econômicas implica, porém, somentereuniões entre os Estados industriais mais avan-çados do H emisfério Norte que se opõem unsaos outros. N essa imagem, a maioria das pessoasdo mundo assiste os rivais estadunidenses e eu-ropeus do Norte se debatendo e alguns outrospaíses entrando na discussão, temporariamente,

de um lado ou de outro. Mas do ponto de vista damaioria, a confrontação entre Europa e EstadosU nidos mais parece uma rivalidade entre irmãos.Se a hegemonia estadunidense deve ser confron-tada, e caso se proponha exercer uma oposição aela, o que é realmente desejável, por que não re-crutar, desde o princípio, os esforços dos povosda África, Ásia e América Latina, além da Euro-pa?

Para que a Europa leve a cabo a sua missãoglobal como máquina do trem cosmopolita, H a-bermas afirma que os europeus têm de forjar umsenso mais forte de identidade européia, que

transcenda o sentido paroquial de uma identidadenacional. Muitas das instituições e dos valoresoriginados nesse continente, como o cristianis-mo, o capitalismo, a ciência, a democracia e os di-reitos humanos, de acordo com ele, proliferarampara além do território europeu. U ma identidadeeuropéia, nos dias de hoje, pode ser provenientedo modo distintamente reflexivo como as socie-dades européias responderam aos problemas ge-rados pela modernidade, pelo nacionalismo e pelaexpansão capitalista. Nos Estados europeus ca-racterizados pelo bem-estar social, desenvolveu-se uma solução às desigualdades geradas pelo ca-pitalismo, conseguindo-se manter tais padrõesdiante das fortes pressões econômicas globaispara que essa situação fosse alterada. O s euro-peus também começaram já a superar os perigosagressivos do nacionalismo, ao instituir a U niãoEuropéia. Sem dúvida, esses sucessos podem edevem servir de exemplo para o mundo todo.

Porém, uma identidade européia não pode

existir sem que haja outras, das quais ela se dife-rencie. O chamado para que se abrace uma iden-tidade particularista européia pode ser, então, ummeio para construir uma nova distinção entre osinsiders   e os de fora, os estrangeiros. A preocu-pação principal de Habermas é distinguir umaidentidade européia da americana. “Para nós, é di-fícil imaginar um presidente que abre suasreuniões diárias com uma oração pública e relacionaas suas decisões mais importantes como uma

missão divina”.3

 O utros, no Leste e no Sul, sãovistos como outros   externos, que permanecemnas sombras, reunidos talvez nas extremidadesdesse playground  onde os meninos grandes brin-cam e xingam uns aos outros. E quanto àquelesoutros, que, na verdade, estão dentro da brinca-deira? U ma identidade européia seria expansiva osuficiente para incluir os milhões de crianças asiá-ticas ou de descendência africana, cujos pais e

2 Ibid . 3 Ibid .

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avós migraram para a metrópole? Como muitosestadunidenses, muitos europeus reagiram a re-centes conflitos globais, distanciando-se daquelesidentificados como estrangeiros. Ao invocar uma

identidade européia, seguramente se inibe a to-lerância com os de dentro e a solidariedade comos de fora. E aqui eu temo que H abermas possaestar simplesmente reaplicando a lógica do Esta-do-Nação no âmbito da Europa, ao invés detranscender esse modelo.

Em The I nvention of Ameri ca , EnriqueD ussel conta a história da modernidade como ba-seada no projeto colonial europeu.4  Depois degastar séculos lutando contra os muçulmanos e

os forçando para o Leste, e descobrir os tesouros,o poder e a inovação técnica dos impérios no cha-mado Extremo Oriente, a Europa se encontrounas extremidades do mundo. A imaginação euro-péia inventou a América, afirma D ussel, comoum dos meios para se colocar no centro da his-tória. Por sua vez, o apelo dos filósofos não pa-rece uma tentativa de recolocar a Europa no cen-tro? N a visão desse autor, a Europa se posiciona-ria entre o poder dos Estados U nidos e os inte-

resses de uma ordem global inclusiva, amainandoos ímpetos do primeiro e, ao mesmo tempo, co-locando-se como liderança para os demais. Con-cordo que a hegemonia estadunidense deve serconfrontada e resistida, e os eventos recentesmostraram que europeus unidos em resistênciatêm o potencial de contribuir para um maiorequilíbrio de poder. No entanto, a Europa nãopode nem deve se envolver em tal confrontaçãoem nome  das outras partes do mundo, e sim em parceria  com elas.

O apelo apresentado em defesa de uma po-lítica externa européia termina com a proposta dese recorrer a uma relação entre os países europeuse o Hemisfério Sul em escala global. Lembremo-nos do passado imperial da Europa! H á cerca decem anos, as grandes nações européias experi-mentaram um florescimento   do poder imperial.

D esde então, esse poder foi declinando e os eu-ropeus experimentaram a perda  de seus impérios.Tal experiência de declínio, segundo H abermas,permitiu a eles desenvolver um processo reflexi-

vo. “Foi possível aprender, partindo da perspec-tiva dos derrotados, para, então, perceber o papelduvidoso de vencedores, chamados à responsabi-lidade pela violência de um forçoso e desarraiga-do processo de modernização.” 5

Nessa reflexão, vejo que Habermas convidaa sua audiência a adotar, valendo-se de suas ima-ginações, a visão daqueles colonizados antiga-mente pelos outros e, assim, aprender a olharpara a Europa e para os europeus desse outro

ponto de vista. C ertamente, a iniciativa de talexercício é melhor que a perspectiva centrada emsi mesma, como a que se pode observar com re-lação aos Estados U nidos e muitos estaduniden-ses. Mas não seria melhor ter reais discussõescom pessoas e Estados do Sul e do Leste, com-partilhando uma base comum, de modo que elaspudessem falar aos europeus (e estadunidenses)o que esses podem não desejar ouvir, por exem-plo, sobre os seus preconceitos e suas responsa-

bilidades? Em que fórum a Europa participoupara receber a legitimação de seus direitos e de-veres quanto a essas questões?

Recorrer ao colonialismo e ao imperialismocomo um processo desarraigado de modernização leva a pensar que a herança colonial é apenas umsubproduto infeliz, entre os muitos resultadospresumidamente positivos do projeto universa-lista e iluminista conduzido pela Europa, estabe-lecendo os princípios dos direitos humanos, a

universalização da lei e a ampliação da produtivi-dade. Entretanto, o colonialismo não somente foium processo vicioso de modernização, comotambém um sistema de escravidão e exploraçãodo t rabalho. Q uais são os sinais dados por pes-soas e Estados europeus como resposta ao cha-mado à responsabilidade, indicando gestos decontrição e reparação?

4 DUSSEL, E. The I nvention of America . New York: Continuum,1995. 5 H ABERMAS & D ERRIDA, op. cit .

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C omo estadunidense, eu e outros como eutemos responsabilidades distintas para resistir àspolíticas unilaterais do governo dos Estados U ni-dos e forçar uma mudança positiva. C idadãos de

Estados europeus possuem as suas próprias obri-gações para com seus Estados e políticas daU nião Européia. Em lugar de depositar na Euro-pa o papel de jogador central nas políticas globais,porém, creio que o projeto progressivo deveriaser, na f rase de D ipesh C hakabarty, provincializar a Europa (como também os Estados U nidos).Indivíduos de todas as partes do globo, especial-mente daquelas partes cujas pessoas são, na maio-ria, excluídas e dominadas pelos movimentos de

capital conduzidos por norte-americanos e euro-peus, deveriam poder participar desse processoem condições de igualdade, ter o reconhecimentodas suas particularidades e trabalhar juntos nassoluções dos problemas globais.

O s fóruns propostos por H abermas para aEuropa poderiam mostrar a sua influência contraa perigosa visão unilateral imposta atualmentepela política externa norte-americana e que tendea privilegiar o Norte global e dominar o Sul glo-

bal. A estrutura do C onselho de Segurança dasNações U nidas privilegia os cinco países sóciospermanentes. As constituições do Fundo Mone-tário Internacional e do Banco Mundial dão maispoder e influência aos países ricos do que aos po-bres que a eles recorrem. Muitos povos do H e-misfério Sul sofrem as conseqüências de uma es-magadora dívida externa e a coerção microeconô-mica impostas por algumas dessas instituições in-ternacionais, em nome da responsabilidade fiscal

e da estabilização de mercados em moeda corren-te. U m projeto destinado à ampliação da demo-cracia cosmopolita não deveria perguntar-se so-bre como reformar ou abolir tais instituições?

As desigualdades globais não são apenasum legado do colonialismo, mas também resul-tado de processos estruturais contínuos, que dia-riamente ampliam a abertura entre aqueles quenada têm e os que vivem com abundância e pri-vilégios. Enquanto até mesmo o país mais pobre

tem as pessoas mais ricas, e países com recursosabundantes têm pessoas pobres, a maioria quepode ter acesso a recursos e conforto comomodo de vida mora no Norte das Américas e da

Europa. Sem dúvida, os países europeus realizama justiça social melhor que os Estados U nidos, aoprover transferências significativas de recursospara reparar desigualdades. Porém, mesmo essagenerosidade da Europa quanto à transferênciade recursos tem um impacto minimamente con-siderável e, como no caso dos Estados U nidos,suas contribuições ao exterior vêm diminuindodesde 1990.

O s privilégios de riqueza, ordem social, di-reitos de consumidor, infra-estrutura bem desen-volvida, capacidade para financiar a atividade degoverno e cultura da solidariedade colocam osEstados e cidadãos europeus em boa posição paraassumir a liderança de um projeto tendo em vistao fortalecimento do direito internacional e à re-solução pacífica de conflitos, além da instituiçãode mecanismos para a redistribuição da riquezaglobal. C ertamente, eles deveriam exercer sua in-

fluência para pressionar, constranger e encorajaros Estados U nidos e seus cidadãos a integrar talprojeto. Porém, não estaremos dando nenhumpasso em direção à democracia cosmopolita, se osvários outros povos do mundo não tiverem as-sentos infl uentes na mesa de negociações, ao ladodos poderosos e responsáveis pela pobreza e pelapossibilidade de influenciar, de fato, a situação emregiões menos afl uentes. O fi m de semana de 15de fevereiro de 2003 sinalizou uma esfera pública

global existente antes desse tempo e que persis-tiu. Muitos europeus e estadunidenses que parti-cipam da sociedade civil global tiveram de olharpara os ativistas em países como Brasil, Q uênia,Índia ou Sri Lanka para buscar sua perspicácia eliderança. U ma política externa européia demo-crática deveria abrir mão de pretender ocupar ocentro e escutar, mais além desse centro vazio, aessas e a outras vozes do Sul, sentando-se comelas em um verdadeiro círculo de igualdade.

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118 Im pu lso, Piracicaba, 14(35): 113-118, 2003

Dados da autora

Professora no Departamento de Ciência Políticana University of Chicago, se dedica à pesquisa sobre

filosofia política e estudos de gênero. Entre outras obras,

publicou Justice and the Politics of Difference (Princeton University Press, 1990),Intersecting Voices: dilemmas of gender, polit ical philosophy, and policy 

(Princeton University Press, 1997) e Inclusion and Democracy (Oxford University Press, 2000).

Recebimento artigo: 10/set./03

Consultoria: 11/set./03 a 22/set./03

Aprovado: 23/set./03

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Sobre a Guerra, a Paz e oPapel da Europa.

Entrevista com JürgenHabermas*   

ON WAR, PEACE, AND EUROPE'S ROLE.INTERVIEW WITH JÜRGEN HABERMAS 

duardo Mendieta – Professor H abermas, deixe-me ini - ciar congratulando-o pelo Prêmio espanhol Príncipe das Asturias e também pela M edalha de Ouro da Fundação Madri lenha de Belas Artes. O senhor   deve ter pegado mui tos espanhóis de surpresa, os quais, assim como eu,não conheciam sua admiração por Miguel de U namuno e Miguel de Cervantes, autores espanhóis  apaixonadamente 

existencialistas. Jürgen Habermas – Essa admiração vem desde a minha época de

escola e de universidade. Naquele momento, logo após a SegundaG uerra Mundial, o que dominava nosso ambiente eram as peças literá-rias de franceses como Sartre, Mauriac e C laudel, executadas nos tea-tros de porão – o existencialismo permitiu a expressão de nosso senti-mento de vida. U m livro do fi lósofo de Tübingen, Friedrich Bollnow (que, aliás, também completaria 100 anos de idade em 2003, assimcomo Adorno), me chamou atenção, naquele momento, para o “D onQ uixote” de U namuno. De modo semelhante, também fui levado nadireção de Kierkegaard, do Schelling tardio e do H eidegger à época deSer e Tempo . O fato de eu logo haver me distanciado da perspectiva doSer e me voltado, de modo mais enfático, para questões relativas às teo-rias sociais, políticas e jurídicas tem uma razão simples: em um país, aRepública Federal da Alemanha, que se encontrava mental e moralmen-te desacreditado e tratava de lidar com o que Jaspers denominou situ- ações-limite   [Grenzsituationen ], era mais pertinente valer-se e discutirnos termos da linguagem de Marx e Dewey do que ter de se debatercom o jargão da autenticidade.

*   Entrevista fi nalizada em dezembro de 2003 e traduzida do alemão por AMÓ S NASCIMENTO (U NIMEP).

 JÜRGEN HABERMAS

Universität Frankfurt a.M .,Frankfurt/Alemanha

EDUARDO MENDIETAState University of New York

at Stony Brook,

Nova York/EUA

emendieta@ notes.cc.sunysb.edu 

EEEE

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Mendieta – Para voltar àoportunidade do Prêmio recebido recentemente, poderia nos dizer algo sobre o fato de que, entre os demais homena- geados, também estavam Susan Sontag, Gustavo 

Guti errez e o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva – ou seja, figuras inequivocamente da esquerda e que se expressaram em alto e bom tom contra a Guerra no Iraque? 

Habermas – Esse prêmio desfruta de umapublicidade surpreendente no âmbito de fala his-pânica. Q uando se reflete um pouco, essa coinci-dência pode ser mais do que um acaso. Na Espa-nha, de qualquer maneira, os protestos nas ruascontra a política de Aznar e seu apoio à G uerrano Iraque foram ainda mais imponentes do quenos demais países europeus.

Mendieta –O senhor  também foi muito crí- ti co das guerras conduzidas pelosEU A no Afeganis- tão e no I raque. Mas durante a crise no Kosovo,apoiou o mesmo uni lateralismo e justificou uma forma dehumanismo militar, para usar a expressão de Chomsky. Como se pode di ferenciar esses casos – o I raque e Afeganistão, de um lado, e Kosovo, de outro?

Habermas – Sobre a intervenção no Afega-nistão, expressei-me de modo bastante reservado,em uma entrevista com G iovanna Borradori. De-pois de 11 de setembro, o governo Taliban se re-cusou veementemente a retirar o seu apoio aoterrorismo da Al Qaeda. Até então, o direito in-ternacional não havia perpassado tais situações.As objeções que levantei naquele momento nãoeram, porém, de natureza legal, como o foram nocaso da campanha no Iraque. Independentemen-te das manobras e mentiras utilizadas pelo gover-no atual dos Estados Unidos a partir de setembrode 2002, reveladas nesse meio tempo, essa última G uerra no G olfo era uma óbvia oposição de Bushàs Nações Unidas, bem como uma ameaça públi-ca e um desrespeito ao direito internacional. Ne-nhum dos dois possíveis fatos justificáveis, osquais legitimariam uma intervenção, poderia serobservado naquele momento: nem uma corres-pondente resolução do C onselho de Segurançada O NU , nem um ataque ou invasão iminente por

parte do Iraque. E isso tem sua validade, indepen-dentemente do fato de se encontrar ou não armasde destruição em massa – atômicas, biológicas equímicas – no Iraque. Não existe nenhuma

justificação para algo como um ataque preventi-vo: ninguém pode iniciar guerras com base emsuspeitas.

Aqui se vê o contraste com a situação no Kosovo , quando o Ocidente se viu forçado a de-cidir, sobretudo depois das experiências acumu-ladas na G uerra da Bósnia – pensemos aqui nodesastre de Sebrenica! –, se assistiria mais umavez a outro processo de limpeza étnica por partede Milosevic ou se faria uma intervenção – sem

que tivesse, nesse caso, ao menos aparentemente,interesses particulares para tanto. D e fato, oC onselho de Segurança fi cou bloqueado. Aindaassim, havia duas razões legitimando a interven-ção, uma formal e outra informal, mesmo queelas não pudessem necessariamente substituir oconsentimento do C onselho de Segurança, comoestabelecido na C arta da O NU . Por um lado, po-der-se-ia apelar ao erga omnes – direcionado a to-dos os Estados – como ordem de apoio deemergência, no caso de um genocídio ameaçador,

princípio esse que representa um sólido compo-nente do direito internacional consuetudinário.Por outro, pode-se também pesar na balança acircunstância de que a Organização do Tratadodo Atlântico Norte (NATO) representa uma ali-ança de Estados liberais, cuja construção internase apóia nos princípios da Declaração dos D ireitos H umanos  promulgada pela O NU . Basta compararisso com a coalizão dos dispostos   (Coali tion of Willing ), que levou à divisão do O cidente e en-volveu Estados que desrespeitam os direitos hu-

manos, como o U zbekistão e a Libéria de Taylor.Tão importante quanto esses fatos é a pers-

pectiva de que os países da Europa continental,como França, Itália e Alemanha, justificaram suaparticipação na intervenção em Kosovo naquelemomento. Na esperança de aprovação adicionalpelo C onselho de Segurança, entenderam tal açãocomo antecipação  de um direito cosmopolita efe-tivo, um passo partindo do direito internacionalclássico em direção ao que Kant definira como

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condição cosmopolita , a qual concederia tambémaos cidadãos de um Estado o direito de proteçãocom relação aos crimes de seu próprio governo.Já naquela época, em 29 de abril de 1999, em um

artigo para o jornal D ie Zeit , estabeleci uma dife-rença característica entre as duas iniciativas, a eu-ropéia continental e a anglo-saxã: “U ma coisa équando os EU A seguem os rastros de sua admirá-vel tradição política e assumem, instrumentaliza-dos nos direitos humanos, o papel de fiadorhegemônico da ordem. Outra coisa é quando nósfazemos a transição ainda precária de uma clássicapolítica de poder para uma condição cosmopolita(...) entendo-a como comum processo de apren-dizagem a ser a administrado mutuamente. Aperspectiva mais abrangente também requer umaprecaução maior. A auto-autorização da NATO

não pode se transformar em regra”.1 

Mendieta – Em 31 de maio de 2003, o se- nhor  e Jacques Derrida publi caram um tipo de ma- ni festo com o título “O 15 de fevereiro ou: o que une os europeus – defesa de uma política internacio- nal comum – primeiro no Núcleo-Europa”. No prefácio, Derrida explica que assinou o arti go escri- 

to pelo senhor. Como éque dois dos mais impor- tantes pensadores atuai s – que se olharam com sus- peita durante as duas últimas décadas, considera- ram de forma cautelosa o que um ou o outro fazia mais além da outra margem do Reno, e têm sido vistos por muitos como totalmente disti ntos e não compreendidos um pelo outro –, de repente, se en- tendem e decidem publi car juntos um documento tão importante? I sso ésimplesmente uma questão política ou o texto assinado em conjunto étambém um gesto filosófico? Uma suspensão, um cessar- fogo, uma reconciliação, um presente filosófico? 

Habermas – Não tenho qualquer idéia so-bre como D errida responderia a essa pergunta.Para o meu gosto, você exagera um pouco na im-portância do assunto com tais formulações. Pri-meiro, é claro que se trata de um posicionamentopolítico, com o qual D errida e eu concordamos,o que, aliás, tem ocorrido freqüentemente nos úl-

timos anos. D epois do encerramento formal daG uerra no Iraque, quando muitos temiam que osgovernos pouco di spostos a colaborar  com Bush seajoelhariam perante ele, eu e D errida – assim

como Eco, Muschg, Rorty, Savater e Vattimo –fomos convidados por carta a nos envolver emuma iniciativa relativa ao tema (Paul Ricoeur foio único que não participou, apoiado emconsiderações políticas, ao passo que Eric Hobs-bawm e Harry Mulisch não puderam fazê-lo porrazões pessoais). D errida não estava em condi-ções de escrever seu próprio artigo, pelo fato deestar passando por uma série de exames médicos,um tanto desconfortáveis, naquele momento.Mas gostaria de estar envolvido com a idéia e mepropôs o procedimento, que colocamos em prá-tica. Eu fiquei bastante contente com isso. H avía-mos nos encontrado, pela última vez, em 11 de se-tembro de 2002, em Nova York. Já tínhamos re-tomado nosso diálogo fi losófico havia alguns anose nos encontrado em Evanston, Paris e Frankfurt.Portanto, não há necessidade de nenhum grandegesto agora.

Na ocasião em que recebeu o PrêmioAdorno, D errida fez um discurso altamente sen-

sível na Paulskirche, em Frankfurt, manifestandode modo bastante impressionante a relação de si-milaridade, no que diz respeito à mentalidade, en-tre ele e Adorno. Algo assim não deixa ninguémintato. Mais além de aspectos políticos, é areferência filosófica a um autor como Kant queme conecta com D errida. O que nos separa, po-rém, é o H eidegger tardio – já que temos apro-ximadamente a mesma idade, mas histórias devida bem distintas como pano de fundo. Derridase apropria do pensamento de H eidegger inspi-rado na visão judaica de um Levinas. Eu me de-parei com Heidegger como um filósofo que fa-lhou e silenciou como cidadão – em 1933 e, acimade tudo, depois de 1945 –, mas também como fi -lósofo que se tornou suspeito a mim, já que, nosanos 30, absorveu o pensamento de Nietzscheexatamente como os novos gentios (Neuheiden )que, como ele, estavam em voga na época. D ife-rentemente de D errida, que empresta à memória (Andenken ) um caráter afeito ao espírito da tra-1 H ABERMAS, J. D ie Zeit , 29/abr./99.

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dição monoteísta, considero a forma pervertidacom que H eidegger pensou o Ser (H eideggers vermurkstes   “Seinsdenken ”) como nivelamentodaquele limiar epocal da história da consciência

humana, denominado por Jaspers de tempo axial (Achsenzeit ). Segundo minha compreensão, H ei-degger comete uma traição àquele momento decesura, expresso de modo distinto t anto pelas pa-lavras profético-despertadoras no Monte Sinaiquanto pelo esclarecimento filosófico de Sócrates.

Na medida em que Derrida e eu consegui-mos entender mutuamente essas distintas moti-vações como pano de fundo, nossa diferença noque diz respeito às versões não significa, necessa-riamente, nenhuma divergência quanto aos fatos.De qualquer forma, cessar-fogo   ou reconciliação provavelmente não são as expressões adequadaspara caracterizar o contato amigável e aberto quemantemos.

Mendieta–Por que o senhor  deu o título “15 de fevereiro” ao texto, e não, como proporiam al- guns americanos, “9 de setembro” ou “9 abri l”?  O 15 de fevereiro foi uma resposta histórica ao 9 de se- tembro – em vez das campanhas contra o Taliban e 

Saddam H ussein? Habermas – Esse é um número grande de-

mais. A redação do jornal Frankfurt Allgemeinze Zeitung , aliás, publicou o artigo com a seguintemanchete: “N ossa renovação. D epois da guerra:o renascimento da Europa”, talvez querendo de-monstrar e jogar com o significado dasdemonstrações ocorridas em 15 de fevereiro. Aindicação dessa data deveria fazer lembrar asdemonstrações maiores ocorridas em cidadescomo Londres, Madri e Barcelona, Roma, Berlime Paris, ao fi m da Segunda G uerra Mundial. Taisdemonstrações não eram nenhuma resposta aoataque de 11 de setembro, as quais levaram ime-diatamente a uma impressionante reação de soli-dariedade por parte dos europeus. Mas, pelo con-trário, t rouxeram a expressão da revolta furiosa eimpotente de uma grande variedade de cidadãos,muitos dos quais nunca, até então, haviam parti-cipado de demonstrações nas ruas. O apelo dosque se opuseram à guerra voltava-se inequivoca-

mente contra as políticas mentirosas e inaceitá-veis perante as leis internacionais, colocadas emprática por seus próprios governos ou por gover-nos aliados. N ão considero esse enorme protesto

uma pequena amostra de antiamericanismo , domesmo modo que, em outro momento, asmanifestações cont ra a G uerra no Vietnã não oforam – somente com a triste diferença de quenão pudemos nos aliar aos impressionantes pro-testos ocorridos, entre 1965 e 1970, nos EstadosU nidos. Por isso, fiquei muito feliz quando meuamigo Richard Rorty espontaneamente tomou ainiciativa intelectual, de 31 de maio, de participardesse processo, ao escrever um artigo que, polí-tica e intelectualmente, foi o mais preciso entretodos os publicados sobre o tema.

Mendieta – Conti nuando a questão referen- te ao título ori ginal do arti go, que conclama a uma política externa européia comum, incorporada pri-meiramente no Núcleo-Europa, ele sugere a exis- tência de um centro e de uma periferi a – algo que é insubsti tuível e algo que não é. Para alguns, essa ex- pressão soou como um tímido eco da diferenciação feita por Rumsfeld entre a Europa velha e a Europa 

nova. Estou seguro de que, tanto para D errida quanto para o senhor, a atribuição de tal semelhan- ça e afinidade pode trazer dores de cabeça. Vocês lu- taram vigorosamente em favor da constituição da U nião Européia, na qual tais gradações geopolíticas não têm lugar algum. O que o senhor  quer dizer com Núcleo-Europa? 

Habermas – Núcleo-Europa  é, em primeirolugar, uma expressão técnica, introduzida pelosperitos em políticas internacionais do partido ale-mão U nião D emocrática Cristã (Christiche De- mokratische U nion- C D U ) Schäuble e Lamers nasdiscussões durante os anos 90, quando o proces-so de unifi cação européia tornou-se moroso, parafazer lembrar aquele momento em que seis dosiniciadores da C omunidade Européia haviam ad-quirido um papel pioneiro. Tanto naquela épocacomo hoje em dia, tratava-se de realçar a França,os Estados do Benelux, a Itália e a Alemanhacomo a força motriz na fundação  das instituiçõesda U nião Européia. Enquanto isso, a decisão ofi -

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cial tomada na cimeira dos chefes de Estado daU nião Européia, reunida em Nizza, optou atémesmo pela cooperação reforçada  entre os mem-bros individuais quanto a questões políticas espe-

cíficas. Esse mecanismo é agora conhecido pelonome de cooperação estruturada  e foi adotado noesboço da Constituição Européia. Alemanha,França, Luxemburgo, Bélgica e, mais recente-mente, a própria Grã-Bretanha fi zeram uso dessaopção no plano comum para o estabelecimentodas forças armadas européias. O governo dosEU A  se utiliza admitidamente de considerávelpressão sobre a G rã-Bretanha para tentar evitar aconstrução de quartel-general europeu, que seriaapenas associado da NATO  e nada mais. Nesse as-pecto, o Núcleo-Europa  já é uma realidade.

Por outro lado, é claro que, nos dias de ho-je, existem muitas associações com o que Rums-feld e seus consortes propositadamente definemcomo uma Europa dividida e debilitada. A idéiade uma política internacional e de segurança de-senvolvendo-se de modo comum no Núcleo-Eu-ropa, e ampliando-se para além dele, desperta me-dos, especialmente numa situação em que aU nião Européia torna-se difi cilmente controlá-

vel, após a sua ampliação em direção ao Leste eu-ropeu – acima de tudo, quando se trata de paísesque, por razões históricas compreensíveis, lutamcontra uma integração continuada. Muitos dosEstados-membros querem se agarrar a seus cam-pos de ação política no âmbito nacional. Estãomais interessados no modo já existente de deci-sões intergovernamentais do que na consolidaçãode instituições supranacionais com decisões damaioria sobre campos políticos cada vez maisamplos. Assim, os países coligados, oriundos do

C entro e do Leste europeu, estão mais preocu-pados com soberania nacional há pouco alcança-da, ao passo que a G rã-Bretanha teme danifi car asua relação especial com os EU A.

A política estadunidense de divisão encon-trou dois ajudantes dispostos em Aznar e Blair.Essa afronta completa deparou-se com o que fi-cou conhecido na Europa como a linha de fratu-ra, latente havia muito tempo, entre os integracio-nistas e seus oponentes. O Núcleo-Europa é uma

resposta a ambos – à desgastante disputa interno-européia relativa à finalidade  do processo de uni-fi cação, totalmente independente da G uerra noIraque, como também à corrente motivação ex-

terna que leva a esse contraste. As reações na pa-lavra-chave Núcleo-Europa  são ainda mais nervo-sas quanto mais se considera a pressão externa ea interna sobre essa questão. O unilateralismohegemônico do governo dos EU A demanda vir-tualmente que a Europa finalmente aprenda a fa-lar de política internacional a uma só voz. Mas emvirtude do aprofundamento bloqueador repre-sentado pela U nião Européia, somente podere-mos aprender a fazer isso quando dermos umpasso inicial a partir do centro.

França e Alemanha já adotaram freqüente-mente esse papel no curso das últimas décadas.D ar continuidade, nesse caso, não signifi ca ne-cessariamente excluir. As portas estão franca-mente abertas a todos. A crítica severa, expressaacima de tudo pela G rã-Bretanha e pelos paísesdo C entro e do Leste europeu à nossa iniciativa,pode também ser explicada por uma circunstân-cia provocante, ou seja, de que o impulso para atomada de posição em favor de uma política in-

ternacional e de segurança comum ao núcleo eu-ropeu deu-se num momento oportuno, quando,em toda a Europa , a grande maioria da populaçãorecusou uma participação européia nas aventurasde Bush no Iraque. Esse elemento provocante meocorreu com a nossa iniciativa de 31 de maio. In-felizmente, não se desenvolveu nenhuma discus-são fértil desde então.

Mendieta – Nós sabemos claramente que os Estados Unidos também utilizaram o jogo entre a nova e a velha Europa para denotar a influência deles sobre a NATO . O futuro da U nião Européia estáconectado mais a uma redução ou a um au- mento do poder desse organismo internacional? ANATO  pode ou deve ser substi tuída por alguma ou- tra coisa?

Habermas –  Ela desempenhou um papelpositivo durante a G uerra Fria e também poste-riormente – mesmo quando se trata de evitar queuma saída unilateral, como a ocorrida no caso da

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intervenção em Kosovo, não se repita periodica-mente. Porém, a NATO  não terá nenhum futuro,se for considerada não tanto como uma aliançacom funções consultivas, mas, cada vez mais, o

instrumento de uma política de poder internacio-nal unilateral, voltada a interesses nacionais pró-prios. A força particular da NATO  poderia con-sistir justamente no fato de ela não se esvaziar nafunção de um poderoso exército aliado, mas deseu poder e efetividade militar estarem conecta-dos ao valor agregado (Mehrwert ) de uma dupla legitimação . Vislumbro uma justificativa de suaexistência somente como uma aliança de Estadosindubitavelmente liberais, podendo atuar apenasse estiver declaradamente de acordo com a polí-tica de direitos humanos das Nações U nidas.

Mendieta – “O s americanos são de Marte e os europeus, de Vênus”, afirma Robert Kagan, num ensaio que recebeu mui ta atenção por parte dos dis- cípulos neoconservadores de Strauss e de membros do governo Bush. Pode-se entender esse ensaio, que originalmente deveria ser intitulado “Poder e fra- queza”, atémesmo como o manifesto então traba- lhado por Bush para desenvolver sua doutrina da 

segurança. Kagan di stingue os americanos dos eu- ropeus, caracterizando os primeiros como hobbesia-nos e os segundos como kantianos. O s europeus en- traram realmente no paraíso pós-moderno kantia- no de uma paz perpétua, ao passo que os ameri ca- nos permanecem do lado de fora no mundo do poder políti co, de cunho hobbesiano, para poder atuar como guardas das muralhas que não podem ser defendidas por europeus, os quais somente se aproveitam das benesses disponíveis? 

Habermas – A comparação filosófica nãoleva muito longe. Kant foi, em certo sentido, umdiscípulo leal de H obbes; de qualquer modo, des-creveu o modo compulsório como o direito mo-derno se impõe e o caráter de dominação do Es-tado de forma tão sombria quanto o fez H obbes.No que se refere à maneira de um curto-circuitoexagerado como Kagan tenta conectar esses doispólos, ao relacionar tradições filosóficas, de umlado, e mentalidades nacionais e políticas, de ou-tro, é melhor que a deixemos de lado. As diferen-

ças de mentalidade, que alguém estaria tentado adeterminar valendo-se de uma tomada de distân-cia entre anglo-saxões e europeus continentais,refletem experiências históricas de longo prazo,

mas não vejo nenhuma relação entre elas e as mu-danças político-estratégicas de curto prazo ocor-ridas atualmente.

Na tentativa de separar os lobos das ove-lhas, Kagan recorre, porém, a alguns fatos: o rei-nado de terror dos nazis apenas foi superado pelouso de força militar e, enfim, pela intervenção dosEU A. D urante a G uerra Fria, os europeus somen-te conseguiram garantir o desenvolvimento e areforma do Estado de bem-estar social por conta

da proteção atômica dos EU A. Na Europa, e es-pecialmente nas populações das classes médiasmais abastadas, espalharam-se as convicções decaráter pacifista. Enquanto isso, os países euro-peus apenas poderiam se opor ao poderio militarestadunidense por meio de palavras vazias, já quedispunham de um orçamento comparativamentepequeno e de forças armadas mal equipadas paraqualquer confronto. Por tudo isso, a interpreta-ção caricaturesca, feita por Kagan, desses fatosleva-me ao seguinte comentário:

• a vitória por sobre a Alemanha nazistatambém se deu em razão das lutas egrandes perdas do Exército Vermelho;

• constituição social e peso econômicosão fatores relativos a um poder brando e não-militar, que dão aos europeus umainfluência no equilíbrio de forças glo-bais, o qual não deve ser subestimado;

• hoje em dia, na Alemanha, tambémcomo conseqüência de uma reeducação

promovida pelos Estados U nidos, do-mina um pacifismo sempre bem-vindo,que, entretanto, não impediu a Repúbli-ca Federal da Alemanha de participar deintervenções lideradas pela O NU  em re-giões como Bósnia, Kosovo, Macedônia,Afeganistão e, finalmente, de se envol-ver no oeste da África;

• e são os próprios EU A que pretendem secontrapor aos planos de construção de

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uma força européia independente daNATO .

C om essa troca de acusações, porém, nãonos colocamos no nível correto de um debate. O

que considero incorreto é a forma unilateral umtanto estilizada da qual Kagan caracteriza a polí-tica dos EUA no século passado. A luta entre o rea- lismo  e o idealismo   em políticas internacionais ede segurança não se dá necessariamente entre oscontinentes, mas no interior da própria políticaestadunidense. Sem dúvida, a divisão bipolar daestrutura do poder mundial, entre 1945 e 1989,levou a uma política de equilíbrio fundada no po-der de aterrorizar. Durante a G uerra Fria, a com-

petição entre os dois sistemas de armas nuclearesconstituiu o pano de fundo para Washington im-por uma crescente influência da escola realista  nasrelações internacionais. Mas não podemos esque-cer nem o impulso dado pelo presidente Wilson,após a Primeira G uerra Mundial, à fundação daLiga das Nações, nem a influência dos advogadose políticos americanos depois da retirada do go-verno estadunidense da Liga das Nações, em Pa-ris. Sem os EU A, não se chegaria ao Pacto Briand-Kellog, ou seja, à primeira iniciativa de direito in-

ternacional proscrevendo as guerras por razõesunilaterais. Acima de tudo, porém, as políticas dovencedor introduzidas por Franklin D. Roose-velt, em 1945, atrapalham o quadro beligeranteque Kagan deseja pintar como o único papel dosEU A. Em seu discurso não realizado, o U nde- livered Jefferson D ay Address , de 11 de abril de1945, Roosevelt exigiu que o mundo deve buscarnão somente o fim da guerra , mas o fim do come- ço de toda e qualquer guerra .

Nesse período, o governo estadunidensehavia se assentado no topo do novo internacio-nalismo e tomado a iniciativa de fundar asNações U nidas, em São Francisco. O s EU A  fo-ram a força motriz por trás da O NU , que, não pormera casualidade, tem sua sede em Nova York.Eles foram responsáveis por trazer à vida as pri-meiras convenções internacionais em defesa dosdireitos humanos, lutaram para garantir a super-visão global, e também a prossecução judicial emilitar dos que desrespeitassem tais direitos, e le-

varam os europeus, primeiro contra a resistênciados franceses, a aceitar a idéia de uma unificaçãopolítica da Europa. Esse período de um interna-cionalismo sem precedentes causou uma onda de

inovações no direito internacional nas décadas se-guintes, iniciativas admitidamente bloqueadasdurante a G uerra Fria, mas, ainda assim, parcial-mente realizadas após 1989. Naquele momento, aúnica superpotência que restara ainda não tinhase decidido entre duas possibilidades: se voltaria aexercer seu papel de liderança, no sentido de levarao caminho de uma ordem mundial cosmopolita,ou se assumiria o papel de um poder hegemônicoimperial, que se pretende mais além do direito in-ternacional.

G eorge Bush, pai do presidente atual, teveoutra visão da ordem mundial, embora de formavaga, que as esboçadas por seu filho. A ação uni-lateral do governo atual e a reputação de seus in-fluentes membros e conselheiros neoconserva-dores têm, certamente, alguns precedentes, comoa recusa em assinar o Protocolo de Kyoto, o acor-do para a não proliferação de armas atômicas, bio-lógicas e químicas, a Convenção das Minas Ex-plosivas e o protocolo relativo às chamadas crian-

ças-soldado, entre outros. Mas Kagan sugere umafalsa continuidade. A negação defi nitiva do inter-nacionalismo permaneceu sob reservas para o re-cém-eleito governo de Bush: a recusa em aceitara C orte Criminal Internacional já não poderia sermais vista como uma ofensa de cavaleiro. N o en-tanto, a marginalização ofensiva das Nações U ni-das, assim como o desprezo indelicado ao direitointernacional, do modo com que esse governodeixa transcorrer, não devem ser consideradoscomo expressões consistentes de algo que valha

como constante na política internacional estadu-nidense. Esse governo, que perdeu obviamentede vista a sua meta declarada de dar maior atençãoaos interesses nacionais internos, pode ser reelei-to ou não. Por que, então, não separar essa admi-nistração já em 2004  daquela visão de governoque Kagan penaliza com mentiras?

Mendieta– Nos Estados U nidos, a guerracontra o terrorismo transformou-se em uma guer-

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ra contra liberdades civis e a infra-estrutura jurí- dica que torna possível uma cultura democráti ca viva foi contaminada. O Ato Patriótico,  de O rwell , éuma autodestrutiva vi tória pirrônica, na 

qual nós somos os perdedores junto com nossa de- mocracia. Essa guerra contra o terrorismo chegou a afetar a Europa de maneira semelhante? Ou a ex- periência com o terrorismo dos anos 70 fez com que os europeus se tornassem imunes a uma desvalori- zação de liberdades civis, em favor de um Estado de segurança nacional?  

Habermas – N ão creio que isso ocorra. NaRepública Federal da Alemanha, as reações ocor-ridas no outono de 1977 foram suficientemente

histéricas. Além disso, nós conhecemos outrotipo de terrorismo nos dias de hoje. Eu não sei oque teria acontecido se as Torres G êmeas tives-sem desmoronado em Berlim ou em Frankfurt. Éclaro que, após as experiências de 11 de setembro,também fomos submetidos a pacotes de seguran- ça , mas não na extensão estranguladora e de ta-manha inconstitucionalidade como se vê nas re-gras surpreendentes impostas nos EU A, analisa-das e atacadas pelo meu amigo Ronald D workinde modo inequívoco. Se há, nesse sentido, dife-

renças de mentalidade e práticas entre um lado eoutro do Atlântico, eu as veria muito mais comrelação ao pano de fundo de suas respectivas ex-periências históricas. Talvez o choque bastantecompreensível resultante dos atentados de 11 desetembro por lá seja realmente maior do que po-deria ocorrer em um país europeu acostumadocom guerras – mas como ter certeza disso?

C ertamente, os êxtases patrióticos que seseguiram ao choque tiveram um caráter bem es-tadunidense. Mas eu buscaria a chave para enten-der as razões à restrição de direitos, por vocêmencionada – desrespeito à C onvenção de G ene-bra, em G uantânamo, à criação do Ministério deSegurança Nacional (Department of H omeland Security ) etc. –, em outras considerações. De fa-to, se vê a militarização da vida dentro e fora dopaís, a política belicista deixando-se contaminarpelos métodos dos presumidos oponentes e, comisso, a evidência do Estado hobbesiano no palcomundial, em que a globalização dos mercados pa-

rece forçar o elemento político completamentepara a periferia. A população dos EU A politica-mente esclarecida não teria respondido e aceitadonada disso com o aval da grande maioria, se o go-

verno não houvesse reagido ao choque de 11 desetembro com pressão, propaganda inescrupulo-sa e exploração das incertezas de modo manipu-lador. Para um observador europeu e um gato es-caldado como eu, a intimidação sistematicamentedirigida e a indoutrinação impressa nos meses deoutubro e novembro de 2002, quando eu me en-contrava em Chicago, incomodaram bastante.Essa não era mais a minha  América. Meu pensa-mento político se alimenta dos ideais estaduni-denses do final do século XVIII desde quando eutinha 16 anos de idade, graças a à perspectiva deuma razoável política de reeducação (reeducation- policy ), implementada pela ocupação da Alema-nha no pós-Guerra.

Mendieta – Em sua conferência para a seção plenária do Congresso Mundial de Filosofia, ocor- rido em 2003, em I stambul, o senhor disse que a se- gurança internacional éameaçada atualmente de maneira nova, sob as condições da constelação pós- 

nacional, por três lados: o terrorismo internacional,os Estados que desrespeitam as leis internacionais, e as novas guerras civis que originam Estados desin- tegrados. O terrorismo éalgo contra o qual os Es- tados democráti cos podem declarar uma guerra?

Habermas – D emocrático ou não, normal-mente um Estado pode declarar guerra   somentecontra outros Estados, entendendo-se essa pala-vra num sentido preciso. Q uando, por exemplo,um governo aplica sua força militar contra rebel-des, esse método nos faz lembrar uma guerra,mas tal iniciativa possui outra função – o Estadotem a prerrogativa de zelar pela ordem e pela paz,dentro de seus limites territoriais, quando os ór-gãos da polícia não estiverem em condições sufi -cientes de fazê-lo. Apenas quando a tentativa deuma pacificação forçosa falha, e o próprio gover-no sucumbe à luta interna entre várias partes emconflito, é que se deve falar de guerra civi l . Essaanalogia lingüística com relação à guerra entreEstados é correta, porém, somente num sentido

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– ao se tratar da dissolução da autoridade estatale da desintegração do executivo, a simetria entreadversários políticos em disputa é similar ao casonormal de conflito bélico entre Estados. Não

obstante, falta aqui o sujeito próprio das ações enegociações: a organização coercitiva do poderestatal. Perdoe-me por essa conceitualização pe-dante. Entretanto, no caso do terrorismo inter-nacional, que atua mundialmente e se espalha pormeio de células operacionais em grande partedescentralizadas e conectadas unicamente demodo solto, deparamo-nos com um novo   fenô-meno, que não devemos tentar assimilar apressa-damente como algo simples e conhecido.

Sharon e Putin podem se sentir encoraja-dos por Bush, porque ele considera tais diferen-ças como farinha do mesmo saco. C omo se AlQaeda não fosse algo distinto da luta partidáriapor determinados territórios, como a levada acabo por movimentos terroristas de independên-cia ou de resistência na Irlanda do Norte, na Pa-lestina, na Tchechenia etc. A Al Q aeda tambémdifere do que se entende por grupos terroristas egrupos tribais mantidos por corruptos senhoresda guerra, que atuam sobre as ruínas de processos

frustrados de descolonização, além de ser algo di-verso do governo criminoso de Estados que con-duzem à guerra, a fim de promover limpezas ét-nicas e genocídios contra sua própria populaçãoou, ainda, como no caso do regime Taliban, queapoiou o terrorismo mundial. Com a G uerra noIraque, o governo dos EU A não apenas empreen-deu uma tentativa ilegal, mas também incompe-tente de substituir a concepção de uma guerraassimétrica entre Estados pela assimetria entreum Estado de tecnologia altamente sofisticada euma rede terrorista intangível, que, até então, atuavaà base de facas e explosivos caseiros. As guerras en-tre Estados são assimétricas, quando um agressorobjetiva não a vitória de forma convencional, masa destruição de um regime, com base na presun-ção a priori do equilíbrio transparente de forças.Pensemos na movimentação de tropas ocorridadurante meses, ao longo das fronteiras do Iraque:não é preciso ser nenhum especialista em terro-rismo para reconhecer que isso não destrói a in-

fra-estrutura de uma rede, as logísticas da Al Q a-eda e as suas bases escondidas, nem afeta o am-biente no qual um grupo com essas característi-cas vive.

Mendieta – Juristas defendem, com base no di reito i nternacional clássico, a opinião de que o jusad bellum traz consigo uma limitação inerente ao jus in bello. János ordenamentos sobre as guerras entre países, elaborados de modo detalhado pela Corte Internacional de H aia, busca-se limitar a vio- lência exercida sobre a sociedade civil e contra sol- dados pri sioneiros de guerra, o meio-ambiente e a infra-estrutura da sociedade em questão. As regras da guerra também têm o objetivo de tornar possível 

um acordo de paz aceitável por todas as partes. Mas a disparidade monstruosa no equi líbrio da força tecnológica e mi litar entre os Estados U nidos e seus respectivos oponentes – no Afeganistão ou no I ra- que – torna quase impossível aderir ao jus in bello.O sEU A não deveriam ser acusados e julgados pelos crimes de guerra que têm cometido de modo óbvio no I raque, mesmo que em seu própri o território es- sas questões estejam sendo totalmente ignoradas pela população? 

Habermas – O Ministério de Defesa dos

Estados U nidos estava, exatamente com relação aessa questão, orgulhosamente entusiasmado pelautilização de armas de precisão, que – presumi-damente – iriam fazer com que as perdas na po-pulação civil fossem mantidas no menor nívelpossível. Porém, quando, em 10 de abril de 2003,se lê uma reportagem, na edição vespertina doNew York Times , sobre as vítimas civis no Iraque,e nela o relato de uma regra segundo a qual Ru-msfeld assume as mortes da população civil como

meras casualidades , a alegação de que a populaçãoestaria protegida pela precisão das armas já nãooferece nenhum consolo: “ O s comandantes daaeronáutica deveriam se reportar ao secretário deD efesa, Donald L. Rumsfeld, e obter sua aprova-ção, caso qualquer ataque pudesse resultar emmortes de mais de 30 civis. Foram feitas mais de50 propostas para operações desse tipo e todaselas foram aprovadas”.2 Não sei o que a Corte In-

2 New Yok Times , Nova York, 10/abr./03.

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ternacional de H aia diria sobre esse acontecimen-to. Mas considerando as circunstâncias de queesse tribunal não é reconhecido pelos EU A, e deque o C onselho de Segurança da O NU  não pode

tomar nenhuma decisão contra um de seus mem-bros com direito a veto, toda essa pergunta pro-vavelmente deve ser feita de modo diferente.

Estimativas conservadoras assumem já ha-ver cerca de 20 mil iraquianos mortos. Esse nú-mero monstruoso, comparado com perdas ocor-ridas nas próprias frentes, jorra luz sobre a ver-dadeira obscenidade moral que experimentamospor meio das telas de televisão, com imagens se-lecionadas e até mesmo controladas tão cuidado-samente, revelando-nos essa guerra como umevento militar assimétrico. Essa assimetr ia das for- ças militares teria outro significado  se refletisse nãotanto a relação entre força superior e a impotên-cia entre dois oponentes em uma guerra , e sim opoder de polícia de uma organização mundial.

Às Nações Unidas é dada atualmente, se-gundo sua Carta, a função de garantir a manuten-ção da paz e da segurança internacional, bemcomo a implementação da proteção aos direitoshumanos individuais. Se considerarmos de modo

contrafactual a possibilidade de essa organizaçãoter assumido mesmo tal função na situação atual,ela teria de cumpri-la unicamente sob a condiçãode dispor do poder de sanção não-seletiva cont raos atores e Estados que desrespeitassem as regras,aplicando a intimidação por meio de sua superio-ridade. Nesse caso, a assimetria das forças teriatido outro caráter.

A transformação infinitamente árdua e ain-da improvável, levando a possíveis ações de cará-ter policial autorizadas pelo direito internacional,ao invés de guerras criminosas e seletivas, exigemais do que uma corte imparcial para decidir so-bre as penas adequadas, necessárias a determina-das ofensas. Nós também precisamos aprimoraro jus in bello  para transformá-lo num direito deintervenção, fazendo o direito penal no âmbitointerno dos Estados nacionais funcionar demodo semelhante à ordenação da C orte de Haia,que, todavia, trata as ações de guerra , e não as for-mas civis de adscrição de penas ou do sistema pe-

nal. Graças ao fato de a vida de outros inocentestambém estar em jogo, sempre no caso dasintervenções humanitárias, a força necessária de-veria ser regulada de maneira estreita para que

ações ostensivas de uma polícia mundial percamo caráter de pretexto e, assim, ganhem aceitaçãomundial. U m bom teste são os sentimentos mo-rais dos observadores globais – não para ver seformas de lamentos ou piedade tendem a desapa-recer, e sim como testemunha da revolta espon-tânea perante algo obsceno, que muitos de nóssentimos ao assistir, durante semanas, os ataquesde mísseis sob o céu iluminado em Bagdá.

Mendieta –  John Rawls vêa possibilidade de as democracias realizarem guerras justas contra estados criminosos(unlawful states). Mas o senhor vai ainda mais longe em seu argumento, afirmando que mesmo os Estados indubitavelmente democrá- ti cos não teriam o di reito de decidir por suas pró- prias medidas e arbítr io sobre o início de uma guer- ra contra um Estado que fosse, presumidamente,déspota, ameaçador da paz ou criminoso. Em sua conferência, em I stambul, o senhor diz que os jul- gamentos imparciais nunca podem chegar a agra- 

dar um só lado. Por essa razão cogni ti va, deve-se abandonar o unilateralismo de alguma parte que se afirme como a hegemonia da legitimi dade, mesmo a mais bem-intencionada: “Essa falta não pode ser resolvida com a constituição democrática baseada no intento de uma hegemonia bondosa”. O jus adbellum, que caracteriza o núcleo do direito inter- nacional clássico, não se torna obsoleto também no caso de uma guerra justa ?

Habermas – O último livro de Rawls, Law of Peoples , já foi bastante criticado, e com razão,porque, em certo sentido, afrouxa os rígidosprincípios da justiça, a serem satisfeitos pelos Es-tados democráticos constitucionais para que hajauma relação e um trânsito com Estados autoritá-rios ou meio-autoritários, e põe a proteção dessespreceitos reduzidos nas mãos de Estados demo-cráticos específicos. Nesse contexto, Rawls cita,com aprovação, a doutrina de guerra justa pro-posta por Michael Walzer. Ambos consideram a justiça entre nações   desejável e possível, mas se

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contentam em deixar a execução e implementa-ção da justiça internacional ao julgamento e à de-cisão de certos Estados soberanos. C om isso,Rawls parece pensar, assim como Kant, em uma

vanguarda liberal da comunidade de Estados(Staatengemeinschaft ), ao passo que Walzer con-sidera que isso remete às nações envolvidas emcada caso, independentemente de suas respecti-vas constituições internas. Diferentemente doproposto por Rawls, a desconfiança de Walzercom relação aos procedimentos e às organizaçõessupranacionais tem motivação em suas conside-rações comunitaristas. A proteção da integridadedas formas de vida e do ethos  de uma comunidadeorganizada de modo estatal deve ter prioridadepor sobre a implementação global de abstratosprincípios de justiça, contanto que isso não leve agenocídios e a crimes contra a humanidade. Émais fácil refletir e esclarecer a q uestão subjacen-te à concepção de Walzer do que considerar adefesa indiferente que Rawls fez do direito inter-nacional.

D esde o Pacto de Briand-Kellog, de 1928,as guerras de invasão estão proscritas do direitointernacional. A aplicação de força militar só de-

veria ser permitida quando se trata da autodefesa.Assim, o jus ad bellum  foi abolido, em sua com-preensão segundo o direito internacional clássico.Mas como as instituições estabelecidas pela Ligadas Nações, após a Primeira G uerra Mundial, fo-ram consideradas muito débeis, depois da Segun-da G uerra Mundial as Nações U nidas passaram aser implementadas com a autoridade para realizaroperações destinadas à manutenção da paz e paraexecutar sanções, tendo pagado o preço de dar odireito a veto às grandes potências mundiais deentão, de modo a obter a cooperação por partedelas. A C arta da O NU  fixa a prioridade do direi-to internacional por sobre os sistemas jurídicosnacionais. A articulação da C arta com a D eclara-ção U niversal dos D ireitos H umanos e com a au-toridade ampla desfrutada pelo C onselho de Se-gurança, segundo o capítulo VII , causou umaonda de inovações jurídicas, que, embora nãoutilizadas de modo efetivo até 1989, foram com-preendidas corretamente como um processo de

consti tucionalização do di reito internacional  (Kons- ti tutionalisierung des Völkerrechts ). A organizaçãomundial, incluindo, nesse meio tempo, 192 Esta-dos-membros, tem uma verdadeira constituição

que fixa os procedimentos segundo os quais asinfrações internacionais são determinadas e pena-lizadas. D esde então, não há mais nenhuma guer-ra justa ou injusta, apenas guerras legais ou ile-gais, ou seja, guerras justificadas no direito inter-nacional ou guerras sem justificação.

É necessário ter em mente esse impulso daevolução do direito para poder reconhecer a rup-tura radical impressa pelo governo Bush – tantopor meio de sua doutrina da segurança nacional,

ignorando as condições prévias legais atuais parao propósito de qualquer intervenção com o usode força militar, como também mediante seu ul-timato ao C onselho de Segurança, para que aben-çoasse a política agressiva dos Estados U nidoscom relação ao Iraque ou se tornasse inútil e semsentido. No nível retórico da legitimação, não setratava, de maneira alguma, de uma redenção rea- lista  das idéias idealistas . Ainda que Bush tivesse ointeresse de alijar um sistema injusto e democra-tizar a região do O riente Médio, os objetivos

normativos ou prescritivos não estariam em de-sacordo com o programa das Nações U nidas. Oque torna a sua iniciativa discutível não é a pos-sibilidade de justiça entre nações, mas a maneirade implementá-la. D e modo ad acta , e com apelosmorais, o governo Bush descartou o velho proje-to de regulamentação jurídica  das relações inter-nacionais (Verrechtlichung der internationalen Be- ziehungen ), proposto há mais de 220 anos porKant.

O comportamento do governo estaduni-dense somente admite a conclusão de que, na suaconcepção, o direito internacional, como meio para a solução de confl itos internacionais e para aimplementação da democracia e dos direitos hu-manos, foi manipulado. Esses objetivos fazemcom que a potência mundial afirme, pública e de-claradamente, o conteúdo de uma política funda-da não mais no direito, e sim em seus valores éti-cos e convicções morais particulares, impondo,assim, suas próprias justificativas normativas, ao

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invés de seguir os procedimentos jurídicos. Po-rém, uma coisa não substitui a outra. A renúnciaà utilização de argumentos jurídicos sempre sig-nifica uma desconsideração das normas gerais re-

conhecidas previamente. Partindo-se da visão li-mitada da própria cultura política e do próprioentendimento do mundo, mesmo o poderhegemônico bem-intencionado não pode sempreter a certeza de que entende e leva em conta a si-tuação e os interesses das demais partes do pro-cesso. Isso vale tanto para os cidadãos de uma su-perpotência fundada democraticamente quantopara os políticos que a governam. Sem a inclusãode ações legais contemplando todas as partes en-volvidas e considerando as suas respectivas toma-das de posição, não se constrange a parte superiora deixar a perspectiva central de um grande im-pério para se envolver pela descentralização desuas perspectivas de interpretação, como exige oponto de vista cognitivo da apreciação de todosos interesses.

Mesmo um poder ultramoderno como odos EU A  acaba caindo novamente no falso uni-versalismo dos velhos impérios, quando substituio direito positivo por moralidades e éticas, em

questões relativas à justiça internacional. Na pers-pectiva de Bush, os “nossos” valores valem tantoquanto os universais, devendo ser aceitos da me-lhor maneira possível por todas as demais nações.O falso universalismo nada mais é do que umaampliação do etnocentrismo. Não há nenhumarelação entre ele e uma teoria da guerra justa, de-rivada de tradições teológicas ou do direito natu-ral, mesmo quando assume hoje o vestuário co-munitarista. Não digo que as razões oficiais dogoverno estadunidense com a G uerra no Iraqueou as convicções religiosas expressas oficialmentepelo seu presidente sobre o bem   e o mal   cum-pram os critérios estabelecidos por Walzer parajustifi car uma guerra justa . Como jornalista,Walzer não deixou nenhuma dúvida quanto à suaprópria oposição. Mas como filósofo, ele defineseus critérios, independentemente do fato de se-rem racionais ou não, com base unicamente emprincípios morais e considerações éticas, e, por-tanto, não no marco de uma teoria do direito, que

relaciona o julgamento sobre guerra e paz comprocedimentos imparciais de produção e aplica-ção de normas aceitáveis.

Nesse contexto, interessa-me apenas uma

conseqüência de tal posição: os critérios de julga-mento sobre uma guerra justa não foram tradu-zidos no âmbito jurídico. Somente assim pode-setratar de uma sempre controversa justiça  materiale verifi car como as guerras podem ser julgadasem sua legalidade. O s critérios de Walzer parauma guerra justa são, mesmo quando encontra-dos no direito internacional habitual, de naturezaessencialmente ético-política. Sua utilização emcasos específicos escapa à verificação por tribunaisinternacionais de justiça, já que tais situações ficamsob a jurisdição da esperteza (Klugheit ) e do sensocomum de justiça de cada Estado nacional.

Mas por que o julgamento imparcial deconflitos deveria ser salvaguardado apenas numEstado valendo-se dos meios legais? Por que suavalidez não deveria ser aplicada também às dispu-tas internacionais? Trata-se de algo trivial: quemdeveria determinar, no plano supranacional, se osnossos   valores realmente merecem o reconheci-mento universal ou se nós verdadeiramente em-

pregamos, de modo imparcial, os princípios reco-nhecidos universalmente? Isto é: se nós, de fato,não atuamos de modo seletivo numa situaçãodiscutível, ao invés de meramente considerar oque nos é relevante. Esse é o grande sentido dosprocedimentos jurídicos inclusivos, os quais arti-culam as decisões supranacionais à condição datomada de perspectiva envolvendo as distintaspartes e seus interesses.

Mendieta – Mas, para honrar o seu projeto kanti ano, o senhor assume o papel de advogado de um humanismo militar?

Habermas – Não sei o contexto exato des-sa expressão, mas suspeito que ela aluda ao perigode se tentar um reducionismo das oposições aoprocesso de moralização cultural (Moralisierung ).Exatamente quando se trata do plano internacio-nal, a demonização do lado oposto – pensemosno eixo do mal  – não contribui em nada para a so-lução de conflitos. Hoje em dia, o fundamenta-

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lismo cresce por todos os lados, tornando osconflitos insolúveis – no Iraque, em Israel e emoutros lugares. C om esse argumento, incidente-mente, Carl Schmitt também defendeu um con- 

ceito de guerra não-discriminatório  durante toda asua vida. O direito internacional clássico, de acor-do com o argumento de Schmitt, considerava aguerra sem maiores necessidades de justifi caçãocomo método legítimo para a solução de confli-tos entre Estados, mas, com isso, servia, ao mes-mo tempo, de importante precondição para a ci-vilização de confrontações bélicas. Por sua vez, acriminalização dos ataques bélicos, que se dá apartir do Tratado de Versalhes, fez com que a

própria guerra fosse vista como crime, causandouma dinâmica de desfronteirização de limites(Entgrenzung ). Isso porque, assim, o oponentesentenciado moralmente transformava-se numinimigo a quem se devia aversão e se buscava des-truir. Q uando, nesse processo de moralização, aspartes contrárias não se consideram mais mere-cedoras de respeito – justus hostis  –, as guerras, atéentão restritas, se degeneram em guerras totais.

Até mesmo quando a guerra total se volta

logo para uma mobilização nacionalista em massae para o desenvolvimento de armas atômicas, bio-lógicas e químicas, de destruição em massa, nãose pode dizer que tal argumento seja falso. Po-rém, isso referenda a minha tese de que a justiça entre as nações  não pode ocorrer por meio de umamoralização, e sim pela regulamentação jurídica(Verrechtlichung ) das relações internacionais. Ojulgamento discriminatório é contrário à paz so-mente quando uma das partes reivindica, com base em seus próprios padrões morais , o julgamen-

to da outra como tendo cometido um crime.Não podemos confundir tal julgamento subjeti-vo com a condenação legal de um governo com-provadamente criminoso, por meio de um pro-cesso jurídico ocorrido diante dos foros e de umacomunidade supranacional constituída por Esta-dos (Staatengemeinschaft ). Tal procedimento am-plia a proteção legal também para uma parte que,embora acusada, tem sua inocência validada atéque se prove o contrário.

A diferenciação entre moralização culturale regulamentação jurídica das relações internacio-nais não teria, de forma alguma, agradado a C arlSchmitt, pois, para ele e seus contemporâneos

fascistas, a luta existencial fundamental sobre avida e a morte possuía uma aura decididamentevitalista. Por isso, Schmitt considera que a subs-tância do político ou a auto-afirmação da identi-dade de um povo ou de um movimento não po-dem ser domesticadas normativamente, além deafirmar que cada tentativa de se domar algo juri-dicamente deve ser reagida de maneira selvagem,valendo-se da cultura moral. Se o pacifi smo legalpudesse ter sucesso, ele nos roubaria o meio es-sencial para a renovação da autêntica existência.D e qualquer modo, não precisamos nos determais sobre esse confuso conceito.

O que devemos tratar, nesse ponto, é o em-prego de uma suposta premissa realista , defendi-da por hobbesianos de esquerda e de direita: o di-reito, mesmo na forma moderna do Estado cons-titucional democrático, sempre é unicamente oreflexo e a máscara do poder econômico ou po-lítico. Sob essa condição prévia, o pacifismo legal,que quer estender o direito ao estado natural

como condição para a relação entre os Estados,aparece como pura ilusão. D e fato, o projeto deKant objetivando uma constitucionalização(Konstitutionalisierung ) do direito internacionalse ressente de um idealismo sem ilusões. A formado direito moderno tem, como tal, um núcleomoral que não dá margem a dúvidas, afirmando-se e se fazendo notar a longo prazo como civili- zador gentil   (gentle civi li zer , de Koskenniemi) –uma força suavemente civilizatória –, em que omeio jurídico é aplicado como um poder amol-

dado à constituição (eine verfassungsgestaltende Macht ).

D e qualquer modo, o universalismo iguali-tário, inerente ao direito e a seus procedimentos,deixou rastos empiricamente verificáveis na reali-dade política e social do O cidente. A idéia do tra- tamento igualitário , investido pelo direito t anto àspessoas quando aos Estados, somente pode servista como cumprindo uma função ideológica,quando entra em jogo, ao mesmo tempo, como

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um padrão para a crítica da ideologia. Por isso, osmovimentos de oposição e de emancipação, nomundo inteiro, utilizam atualmente o vocabulá-rio dos direitos humanos. Mesmo quando a retó-

rica dos direitos humanos se presta aos fins daopressão e da exclusão, tal abuso pode ter o seuantídoto ao se lançar mão dessas mesmas palavras.

Mendieta – Justamente como um defensor incorr igível do projeto kantiano, o senhor  deve ter ficado profundamente desapontado com as maqui- nações maquiavélicas que freqüentemente domi- nam a prática das Nações U nidas. O senhor  mes- mo jápercebeu e discutiu a seletividade monstruo-

sa com a qual se tratam casos que chegam ao Con- selho de Segurança para que ele tome alguma ini ciativa práti ca. O senhor  fala da prioridade semvergonha desfrutada pelos interesses nacionaisdiante das obrigações globais. Como as insti tui - ções das Nações U nidas devem ser alteradas e re- formadas para que essa organização não seja mais vista como uma defensora dos interesses e objeti vos unilaterais pró-ocidentais, e sim como uma ferra- menta efeti va para a busca e a garantia da paz? 

Habermas – Esse é um tema amplo. Não se

conclui tudo com as reformas institucionais. Sãoimportantes as ações como a composição doC onselho de Segurança proporcional à mudançanas circunstâncias e relações de poder atuais, dis-cutida nos dias hoje, e a restrição ao direito deveto por parte dos grandes poderes. No entanto,elas não são sufi cientes. D eixe-me selecionar al-guns pontos de vista sobre esse complexo, emque o todo não é muito transparente.

A organização mundial apóia-se correta-mente na inclusão completa. Ela é aberta a todosos Estados comprometidos com as formulações do texto da Carta  e as declarações relativas ao di-reito internacional propostas pela O NU   – inde-pendentemente da correspondente extensão daaplicação prática, de fato , desses princípios no âm-bito doméstico. C onsiderada em relação às suaspróprias bases prescritivas, existe – apesar daigualdade formal entre os membros – uma ten-dência comum quanto à legitimação, que une osliberais, os quase-autoritários e, às vezes, até mes-

mo os Estados despóticos membros da organiza-ção. Isso chama a atenção, por exemplo, quandoum Estado como a Líbia assume a presidência doC omitê de D ireitos H umanos. John Rawls teve

o mérito de advertir sobre o problema funda-mental da legitimação por níveis distintos. A van-tagem na legitimação, a ser exercida pelos paísesdemocráticos, e no que Kant já havia colocadotoda a sua esperança, não pode ser formalizada.Mas poderiam ser desenvolvidos hábitos e méto-dos que a levassem em conta. D esse mesmo pon-to de vista, torna-se clara a necessidade de refor-ma do direito a veto dos membros permanentesdo C onselho de Segurança.

O problema mais urgente é, certamente, alimitação da ação de uma organização mundial,que não dispõe de nenhum monopólio de podere necessita do apoio ad hoc   de seus membrosmais poderosos, sobretudo em casos de interven-ção e processos de construção de nações. O pro-blema não se dá, porém, na ausência do monopó-lio de poder e de força – a diferenciação entre opoder constitucional e o Poder Executivo tam-bém pode ser observada em outras situações,como na U nião Européia, em que o direito dela

rompe com os direitos nacionais, ainda que osEstados nacionais possuam os métodos alojadospara o exercício legítimo da força militar. Alémde sua condição financeira subdimensionada, asNações U nidas sofrem, acima de tudo, com a suadependência de governos, que não apenas bus-cam os seus interesses nacionais, mas tambémdependem do voto e do consentimento de suasrespectivas populações. Até que venham a ocor-rer mudanças no nível sociocognitivo, já que, emsua autopercepção, os Estados-membros se en-

tendem, desde sempre, como protagonistas sobe-ranos, devemos refletir sobre como alcançar umdesacoplamento relativo (relative Entkoppelung )dos níveis de decisão. O s Estados-membros po-deriam, por exemplo, manter certos cont ingentesmilitares à disposição permanente da O NU , sem,no entanto, restringir seus direitos nacionais demanter suas próprias forças armadas.

D e modo realista, contudo, a meta ambicio-sa de uma política internacional integrada, sem

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governo mundial, apenas pode ser pensada, comoprojeto, sob a condição de que a organizaçãomundial se limite a suas duas funções mais im-portantes – a manutenção da paz e a implemen-

tação global dos direitos humanos –, deixando aoutros sistemas e instituições de negociação, denível intermediário, a coordenação política nasáreas da economia, meio-ambiente, transporte,saúde e outras. Porém, no momento atual, essenível de global players   capazes de atuar politica-mente e negociar entre si para chegar a acordossó pode ser ocupado por algumas instituições,como a O rganização Mundial do C omércio.U ma simples reforma bem-sucedida das NaçõesU nidas não causaria nada se os Estados-naçãonão se unissem, em cada continente distinto, emregimes continentais segundo o modelo daU nião Européia. Para isso, existem atualmente al-gumas iniciativas modestas. É aqui, e não na re-forma da O NU , que se dá o elemento utópico deuma condição cosmopolita.

Sobre a base de uma divisão de trabalho nointerior de um sistema global com seus vários ní-veis, poder-se-ia cobrir, de modo parcialmentedemocrático, a demanda por legitimação necessá-

ria a uma O NU  decididamente capaz de ações efi -cientes. Em outras palavras, uma esfera públicaglobal como essa que se deu, pelo menos até ago-ra, apenas em ocasiões de grandes eventos histó-ricos mundiais, como o 11 de setembro. G raçasàs mídias eletrônicas e aos sucessos surpreenden-tes de organizações não-governamentais comoperações mundiais, entre elas, a Anistia Interna-cional e a H uman Rights Watch, é possível, po-rém, constituir uma infra-estrutura mais sólida daesfera pública, que um dia poderá ganhar maiorcontinuidade. Sob tais circunstâncias, não estariatão longe o dia em que seja realidade a idéia de seestabelecer um Parlamento da Cidadania Global ao lado da segunda câmara  da Assembléia G eraldas Nações U nidas ou, ao menos, acrescentaruma representação dos cidadãos à já existente câ-mara de representantes dos Estados. C om inicia-tivas desse tipo, a evolução do direito internacio-nal, que já vem ocorrendo há muito, teria sua ex-pressão simbólica e uma correspondente amarra-

ção institucional. Porque nesse ínterim, nãosomente os Estados, mas também os próprios ci-dadãos transformaram-se em sujeitos do direitointernacional: como cidadãos cosmopolitas, to-

dos também podem clamar por seus direitos, fa-zendo-os valer, se necessário, até mesmo contraseus próprios governos.

D ecerto o pensamento sobre a idéia abstra-ta de um parlamento cosmopolita causará fraudesfáceis. Mas, considerando as funções limitadasdas Nações U nidas, devemos ter em conta que osdeputados desse parlamento representariam po-pulações não necessariamente interconectadaspor meio de densas tradições, como se dá com os

cidadãos de uma comunidade política. Em vez dasolidariedade cívica, bastaria um acordo negativo,isto é, a revolta comum contra iniciativas de guer-ra e o desrespeito aos direitos humanos por partede grupos criminosos e governos, ou mesmo ohorror comum com relação aos processos de lim-peza étnica e genocídios.

Porém, as resistências e recaídas a serem su-peradas no caminho de uma const itucionalizaçãocompleta são tão grandes que o projeto só terásucesso quando os EU A se colocarem novamente,

como em 1945, na condição de locomotiva àfrente desse movimento. Isso não é tão imprová-vel como talvez pareça no atual momento. Porum lado, trata-se de um golpe de sorte da históriamundial que a única superpotência seja, ao mes-mo tempo, a democracia mais antiga na Terra e,por isso, diferentemente do que Kagan nos querfazer crer, apresenta afinidades, de fato e desdesempre, com a idéia kantiana de regulamentaçãojurídica das relações internacionais. Por outro la-do, é do próprio interesse dos Estados U nidosfazer com que a O NU  se torne capaz e efetiva, an-tes que outra grande potência, menos democrá-tica, t ransforme-se numa superpotência. O s im-périos vêm e vão. Finalmente, a U nião Européiachegou há pouco a um acordo quanto aos prin-cípios de uma política de segurança e defesa in-ternacionais (Sicherheits- und Verteidigungspoli- tik ) em oposição ao ataque antecipado  (pre-emptive strike ) e propôs o engajamento preventivo   (pre- ventive engagement ), tornando-se, com isso, ca-

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paz de influenciar a formação da opinião na esferapública política de seus aliados americanos.

Mendieta – O desprezo do governo dosEU A

pelo direito internacional e pelos pactos internacio- nais, o seu uso brutal da força mi litar e sua políti ca da mentira e da extorsão levaram a um antiameri - canismo não injustificado, pelo menos quando apli cável ao presente governo dos Estados U nidos.Como a Europa deveria tratar esse sentimento ge- neralizado e tentar prevenir que o antiamericanis- mo mundial se degenere em ódio contra o Ociden- te? 

Habermas– O antiamericanismo é um pe-rigo na própria Europa. Na Alemanha, ele semprese uniu com os movimentos mais reacionários.Então, é importante para nós, como na época daG uerra do Vietnã, poder fazer frente às políticasdo governo americano lado a lado com uma opo-sição interna dos próprios americanos a seu go-verno. Se pudermos nos relacionar com um mo-vimento de protesto dentro dos Estados U nidos,a acusação contraprodutiva de um antiamerica-nismo aqui encontrada seria nula. O utra coisa é aemoção antimodernista contra o mundo ociden-

tal. Nesse sentido, carece implementar uma defe-sa autocrítica das realizações da era moderna oci-dental, mas, ao mesmo tempo, sinalizando a fran-queza e a abertura para aprender, dissolvendo,acima de tudo, a identifi cação idiota da ordem de-mocrática e da sociedade liberal com o capitalis-mo selvagem. Devemos, por um lado, estabelecerum limite inequívoco com relação ao fundamen-talismo, inclusive com o cristão e o judeu, e, poroutro, reconhecê-lo também como fruto de umamodernização desarraigadora (einer entwurze- 

lnden M orenisierung ), em cujo desenvolvimen-

to os disparates de nossa história colonial e a des-colonização frustrada desempenharam papel cru-cial. Em oposição às estupidezes fundamentalis-tas, podemos sempre colocar claramente que,

afinal de contas, a crítica justificável ao Ocidentese apóia nos padrões dos discursos desenvolvidosao longo de dois séculos de autocrítica ocidental.

Mendieta –  Recentemente, foram pratica- mente rasgados dois planos políticos desde os im- pulsos oriundos da guerra e do terrorismo: o cha- mado “ roteiro de percurso”  (roadmap), que levaria  àpaz entre israelenses e palestinos, e o cenário im- periali sta de Cheney, Rumsfeld, Rice e Bush. O script para o conflito em I srael deveria ter sido es- cri to junto com um programa para a reconstrução de todo o O riente Médio. Mas as políticas dos Es- tados U nidos amalgamaram o antiameri canismo com o anti -semi tismo. N os dias de hoje, o anti ame- ricanismo se aproxima de velhas formas de um anti-semiti smo assassino. Como se pode desati var essa bomba com uma mistura explosiva? 

Habermas – Esse é um problema especial-mente na Alemanha, onde atualmente as eclusasse abrem para um contato narcisista com as suas

próprias vítimas, depois de certa censura, impostaao longo de décadas, tanto às conversas informais(Stammtische ) quanto à opinião ofi cial sobre o as-sunto. Mas essa mistura, que você descreve cor-retamente, nós somente conseguiremos colocarem acordo, se tivermos sucesso em separar con-vincentemente a questão da crítica legítima à vi-são fatal de Bush sobre a ordem mundial dos exa-geros de ações antiamericanas. Assim que a outra América  possa ser vista em contornos visíveis, abase que serve para acobertar o anti-semitismo

também cederá.

Dados do entrevistado

Professor doutoremeritus  da Universidade de Frankfurt,o filósofo alemão JÜRGEN HABERMAS é o maior representante

da teoria crítica da sociedade. Entre seus títulos mais significativos,traduzidos ao português, encontram-seConhecimento e Interesse ,

Direito e Democracia  eA Inclusão do Outro . Sua obra mais importanteéTheorie des kommunikativen Handelns  (1981), ainda não publicada no Brasil.

Em 2003 recebeu, juntamente com o presidente Luís Inácio “Lula” da Silva,o Prêmio Príncipe de Asturias, na Espanha.

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Dados do entrevistador

EDUARDO MENDIETA estudou filosofia com Jürgen Habermas em Frankfurt,havendo traduzido e editado textos de Habermas, Karl-Otto Apel,

Enrique Dussel e de vários outros autores em inglês. Entre suas recentes

publicações encontram-seThe Adventures of Transcendental Philosophy.Karl-Otto Apel‘s Semiot ics and Discourse Ethics(Row man &Littlefield, 2002),Religion and Rationality. Essays on ReasoneGod and Modernity  (MITPress, 2002),

além de vários artigos sobre teoria crítica e globalização.

Recebimento artigo: 11/set./03

Consultoria: 12/set./03 a 22/set./03

Aprovado: 23/set./03.

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Resenhas&  ImpressõesReviews Impressions

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Une Histoire du Racisme,des origines à nos jours,

de Christian DelacampagneParis: Librairie G énérale Française, 2000

288p. ISBN 2-253-90575-5

hristian D elacampagne, filósofo francês e estudiosodas letras, professor em universidades americanas, ébem conhecido do público brasileiro por sua H istória da Filosofia no Século XX  (Rio de Janeiro, Zahar, 1997)e por A Filosofia Políti ca Hoje  (Rio de Janeiro, Zahar,2001), ambos bastante utilizados nos cursos de filo-sofia e de ciências humanas, em geral. Seu doutora-mento, publicado em 1983, tornou-se um clássico so-

bre a I nvenção do Racismo: Antigüidade e I dade Média . Este novo volumecondensa suas reflexões sobre o racismo, desde seus começos, até a atua-lidade, num esforço de fôlego que merece ser lido com atenção, a come-

çar por sua definição mesma do racismo: “ o racismo é o ódio do outro en- quanto outro . O ódio do negro porque negro, do policial porque policial,do homossexual porque homossexual” (p. 12). D istingue o racismo doetnocentrismo e da xenofobia, pois, em teoria, um indivíduo pode mudarde categoria e evitar tais discriminações, ao passo que o racismo impos-sibilita tal mudança. Embora não haja fundamento para as definições ra-cistas, pois não se baseiam em qualquer critério objetivo, por isso mesmosão incontornáveis.

O livro apresenta-se como uma reflexão engajada na luta contra oracismo. D elacampagne começa por tratar da Antigüidade e por lembrarque gregos e romanos não diferenciavam as pessoas pela cor da pele,

como já mencionava Aristóteles (Metafísica , 1.058a-b). Remonta o anti-semitismo ao período helenístico e localiza no filósofo grego (384-322a.C .) um discurso racista, na medida em que procura dar às desigualdadessociais uma justificação na natureza, acompanhada de referências explí-citas a elementos biológicos. Justifica-se pela natureza a submissão damulher e dos escravos, assemelhados aos animais domésticos (Aristóte-les, Política , 1, 5, 6-9). Já na Idade Média, era destacada a caracterizaçãodos judeus como distintos e inferiores, com traços físicos particulares,como nariz adunco, lábios espessos, mau cheiro, descendentes do demô-nio, uma tara hereditária que nem mesmo o batismo poderia superar. Em

PEDRO PAULO A.

FUNARIDepartamento de História,

IFCH /Unic amppedrofunari@ sti.com.br 

CCCC

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1233, o bispo de Lincoln, na Inglaterra, preocu-pava-se com a contaminação que podiam causare, em seguida, começaram a ser expulsos de di-versos reinos. A ‘pureza de sangue’, de origem

medieval, distinguirá e discriminará os descen-dentes de judeus, muçulmanos e de outros gru-pos, oficialmente até o século XIX. Relata o casoparadigmático dos ‘cagots’, grupo inventado desupostos descentes de leprosos, conhecidoscomo agotes na Península Ibérica, até o final doséculo XX discriminados na Espanha e em Portu-gal.

A destruição dos índios da América liga-seao ideal medieval de reconquista da Palestina e do

desaparecimento dos infiéis, na linha do cristia-nismo mata-mouros. O objetivo dos conquista-dores, mais que o extermínio, era a conversão oua escravidão para os renitentes. A escravidão dosafricanos, iniciada pelos portugueses no séculoXV, fundava-se em um racismo cristão de origemantiga, já que os negros foram considerados des-centes do personagem bíblico C am, pai de Ca-naã, raça maldita destinada a ser escravizada (Gê- nesis , 9, 25: “maldito seja Canaã, ele será escravodos escravos de seus irmãos”). O s racismos de

caráter mágico-religioso passam por grandetransformação com o racionalismo iluminista. Osurgimento da história natural inaugura o concei-to científico, que está conosco até hoje, de ‘raça’,originário de ratio , “ordem das coisas, categoria,espécie, descendência”, como se racismo e racio-nalismo fossem, por natureza, uma única noção.O conceito moderno, racionalista, de raça só sur-ge em fins do século XVII, com as duas raças daFrança, o sangue nobre e azul da nobreza (osfrancos) e o sangue vermelho do povo (os gaule-

ses). Lineu (1707-1778) distingue quatro raçashumanas: europeus, americanos, asiáticos e afri-canos, em ordem decrescente de capacidades in-telectuais e morais. A craniologia, conosco tam-bém até hoje no século XXI, inicia-se com PierreC amper (1722-1789) e culminará com a supostasuperioridade dos dolicocéfalos sobre os braqui-céfalos.

C ria-se o mito da raça superior. Gobineaupublica seu ensaio sobre a desigualdade das raças

(1855) e suas características. É em G obineau,lembra o autor, que se encontra a tese, ainda hojea circular no estudo dos nossos indígenas, que associedades ‘primitivas’, ‘selvagens’, seriam sem

história, simples, sem complexidade. A biologiatudo determinaria. Surge o conceito de línguasindo-européias e povo superior ariano, por opo-sição aos semitas e a todos os outros povos. Nes-se contexto, D elacampagne trata do genocídiodos armênios no início do século xx e, depois, dejudeus e ciganos, durante o regime nazista. Re-trata, ainda, o ant isemitismo na França após a Se-gunda G uerra e o racismo contra negros e árabes.C onclui o volume com um balanço sobre o ra-cismo no mundo desde 1945, com diversos estu-dos de caso. Mostra como o genocídio dos tutsispelos hutus, em Ruanda, foi possível pelo uso decategorias racistas de origem européia, como seos puros bantus autóctones e sedentários (os hu-tus) tivessem sido dominados por uma elite se-mita de comerciantes. O massacre resultante fun-dava-se em um racismo europeu ‘científico’.

No epílogo, Delacampagne conta como,passado um quarto de século de pesquisas sobreo racismo, o autor, confrontado com os docu-

mentos analisados, mudou de opinião. D e início,considerava que as discriminações contra os jo-vens, as mulheres, os homossexuais não eram ra-cismo. Ao cabo, toma a posição contrária: “todaforma de ódio do outro em si, fundado não noque o outro faz, mas pelo que se considera queseja (jovem, mulher, homossexual, muçulmano,cristião), é racismo” (p. 278). Suas ponderaçõespartem de dois argumentos. Já que não existe ‘ra-ça’ de forma objetiva, não há porque não usar ra-cismo para o ódio contra grupos ou subgrupos

humanos. Em seguida, pondera que quase todasos ódios, como o religioso, adotam contornos ra-cistas, assimilados a um grupo humano part icular.

A pertinência da obra de D elacampagne,em princípios do século XXI, é muito clara. As-sistimos, nos últimos anos, a uma crescente ca-racterização de grupos humanos como inferiores,elimináveis. Políticas de estado são adotadas apartir de tais critérios racistas e indivíduos, esco-rados por tais políticas, levam a cabo assassinatos

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de um índio, porque índio (como o caso de G al-dino, em Brasília), ou de um homossexual por-que homossexual (como em caso famoso em SãoPaulo), no Brasil e no mundo. No campo da ciên-

cia, conceitos essencialistas continuam a caracte-rizar inteiras populações como menos sofistica-das (como se houvesse grupos mais sofisticadosdo que outros). D elacampagne mostra a impor-

tância de uma abordagem bem inserida no con-texto social da H istória da C iência, na esteira deseus mestres Foucault, Sartre e Poliakov, paracompreender como conceitos culturais adquirem

foros de ‘ciência’ e justificam, tantas vezes, aopressão. Leitura importante para lembrar quenada menos natural, neutro e inofensivo, do queas certezas do discurso científico moderno.

Recebimento artigo: 15/set./03

Consultoria: 16/set./03 a 22/set./03

Aprovado: 23/set./03

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R EVISTA I M PULSO 

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

PRINCÍPIOS GERAIS1. A Revista I MPULSO  publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e

resenhas nas áreas de ciências sociaise humanas, e cultura em geral, dedicando parte doespaço de cada edição a um tema principal, a part ir das seguintes seções: “ Temática” , apre-sentando os artigos temáticos; “ C onexões G erais”, para ensaios não temáticos; “C omunica-ções & D ebates” , para textos curtos e fora dos padrões acadêmicos mais tradicionais; e“ Resenhas & Impressões”, para críticas, resenhas e coment ários em geral.

2. O s artigospodem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de trabalho:

• E NSAIO  (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfi ca ou de campo sobre de-terminado tema;

• C OMUNICAÇÃO  (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;• R EVISÃO  DE  LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bi-

bliografia disponível;• C OMENTÁRIO  (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;• R ESENH A (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou trabalhos acadêmicos.

Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras.3. O s artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.4. Na análise para a aceitação  de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o(s)

autor(es) informado(s) do andamento do processo de seleção:• adequação ao escopo da revista;• qualidade científi ca, atestada pela C omissão Editorial e por processo anônimo de avaliação por

pares (bli nd peer revi ew ), com consultores não remunerados, especialmente convidados, cujosnomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento;

• cumprimento das presentes Normas para Publicação.5. ETAPAS de encaminhamento dos artigos: (a)  apresentação de três cópias impressasdo artigo,

devidamente padronizado conforme estas Normas, para submissão à Comissão Editorial daRevista e aos seus consultores, constando de umadelas os dados completos do(s) autor(es) e, dasoutras duas, apenas o título da obra (sem identificação); fornecer também brevíssimo currículodo(s) autor(es); (b) um dos membros da Comissão e dois nomes externos a ela são designadoscomo pareceristas, estes dois últimos por processo blind  peer review ; (c) recebidos de volta taispareceres, eles são analisados em outro encont ro da C omissão, chegando-se a uma avaliação final:“indicado para publicação”, “indicado com ressalvas” ou “recusado”; (d) em carta ao(s) autor(es),são fundamentadas tais decisões e devolvidos os originais com anotações dos pareceristas; (e) seindicado para publicação “ com ressalvas” , o art igo deve ser novamente submetido à Editora: os t re-chos alterados devem ser realçadospor cor ou sublinhados; essa nova versão será entregue empapel (uma cópia) e em arquivo eletrônico, acompanhada do texto original apreciado pelos parece-ristas; (f) eventuais ilustrações devem ser encaminhadas separadamente, em seus respectivos arqui-vos eletrônicos em suas extensões originais; (g) antes da impressão, o(s) autor(es) recebe(m)versão final do texto para análise.

6. O s artigos devem ser encaminhados ao editor da I MPULSO , em três cópias, constando de uma os

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dados do(s) autor(es) e das outras duas apenas o título do artigo (portanto, sem identificação deautoria), acompanhadas de ofício com:• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;• concordância com as presentes normatizações;

• informações sobre o(s) autor(es): titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua,endereço para correspondência, telefone fax e e-mail.7. U ma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.8. O s artigos podem sofrer alterações editoriaisnão substanciais (reparagrafações, correções grama-

ticais, adequações estilísticas e editoriais).9. Não há remuneração pelos trabalhos. O (s) autor(es) recebe(m) 1 (um) exemplar da revista e 10

(dez) separatasdo seu artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista com descontode 30% sobre o preço de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, a preço decusto equivalente ao número de páginas e de cópias delas.

ESTRUTURA10. Elementos do artigo (em folhas separadas):

a)IDENTIFICAÇÃO

• TÍTU LO  (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente oconteúdo do texto;

• nome do(s) AUTOR(ES), titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;• SUBVENÇÃO : menção de apoio e fi nanciamento eventualmente recebidos;• AGRADECIMENTO , se absolutamente indispensável.

b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE

• Resumo indicativo e informativo, em português(intitulado RESUMO ) e inglês(denominadoABSTRAC T), com cerca de 150 palavras cada um;

• para fins de indexação, o(s) autor(es) deve(m) indicar os termos-chave(mínimo de três e má-ximo de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).

c)TEXTO

• deve ter INTRODUÇÃO , DESENVOLVIMENTO  e CONCLUSÃO . Cabe ao(s) autor(es) criar osentretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados;

• no caso de RESENH AS , o texto deve conter todas as informações para a identificação do livrocomentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano;total de páginas; e, se houver, título original e ISBN). N o caso de trabalhos acadêmicos a seremresenhados, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobrea instituição na qual foi produzida.

d)ANEXOS

• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).e)DOCUMENTAÇÃO

NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritosno cor-po do texto.1 

C ITAÇÃO  com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico),após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENO MEdo autor, ano da publicação e página em que se encontra a citação.2

1 Essa numeração será disposta após a pontuação, q uando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da not a. C omo oempregado nas Referências Bibliográfi cas, nas notas de rodapé o SO BRENO ME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiús-cula, seguido do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: C ASTRO, 1989.2 FARACO ; G IL, 1997, p. 74-75.

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  C ITAÇÃO  igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de qua-tro centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e pos-terior por uma linha a mais. Ao fi m da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, in-dicando o SO BRENO ME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3

  O s demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano depublicação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o pa-drão abaixo.

  A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográfi cas deve aparecerno fim do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o se-guinte padrão:

LIVROS

SOBRENOME, N.A. (pré-nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; até três autores: separar por“;”, mais de três: registrar o primeiro deles seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo . Número da edi-

ção. Cidade: Editora, ano completo, volume.Ex.:ROMANO, G. “Imagens da juventude”. In: LEVI, K. (org.).História dos Jovens . São Paulo: Atlas, 1996.

EHRLICH, E. [1913].Grundlegung der Soziologie des Rechts . 4. ed. Berlim: Duncker &Humblot , 1989.

GARCIA, E.E.C. et al.Embalagens Plásticas: propriedades de barreira . Campinas: CETES/ITAL, 1984.

RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B. (orgs.) Teoria Crítica, Estética e Educação . Piracicaba/Campinas:Editora Unimep/Editora Autores Associados, 2001.

• SOBRENOMES  CUJA  FORMA  COMPOSTA  É  A  MAIS  C ONHEC IDA  e SOBRENOMES  ESPA-

N H Ó I S. Ex.: MACHADO  D E ASSIS, J.M.; EÇ A D E QUEIROZ, J.M.; GARCÍA MÁRQUEZ, G .; RO -

DRÍGUEZ LARA, J.• MAIS D E U MA CITAÇÃO  D E U M mesmo autor: após a primeira citação completa, introduzir

a nova obra da seguinte forma:______. Empregabi lidade e Educação . São Paulo: Educ, 1997.• O BRAS sem autor definido:

Manual Geral de Redação . Folha de S.Paulo , 2. ed. São Paulo, 1987.

PERIÓDICOSNO ME D O PERI Ó D IC O. C idade: Ó rgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data. Ex.:REFLEXÃO. Campinas: Instituto de Filosofi a e Teologia. PU C , 1975.

• ARTIGOS DE revista:AUTOR DO ARTIGO.4 “Título do art igo”.

Título da revista  (abreviado ou não), local de publicação, número do

volume, número do fascículo, páginas inicial-final, mês5* e ano.

ESPOSITO, I. et al. “Repercussões da fadiga psíquica no trabalho e na empresa”.Revista Brasileira de Saúde , SãoPaulo, v. 8, n. 32, p. 37-45, out.-dez./1979.

• ARTIGOS DE  jornal:AUTOR DO ARTIGO.* “Título do artigo”.Título do jornal , local de publicação, dia, mês** e ano. Número ou título do

caderno, seção ou suplemento e página inicial e final do artigo.

3 FARIA, 1996, p. 102.4 Em caso de autoria desconhecida, a entrada é feita pelo título do art igo, colocando-se a primeira palavra toda em caixa maiúsculo.5 * O s meses devem ser abreviados de acordo com o idioma da publicação. Q uando não houver seção, caderno ou parte, a paginação do artigo pre-cede a data.

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OLIVEIRA, W.P. de. “Judô: educação física e moral”.O Estado de Minas , Belo Horizonte, 17/mar./1981. Caderno deesporte, p. 7.

• D ISSERTAÇÕES E TESES

AUTOR. Título: subtítulo. Ano de apresentação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Grau e área de

concentração). Instituição, local.RODRIGUES, M. V. “Qualidade de vida no traba lho”. 1989. 180f. Dissertação (Mestrado em Administração). Facul-

dade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FONTES ELETRÔNICASA documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis:• sobrenome e nome do autor;

• título completo do documento (entre aspas);

• título do trabalho no qual está inserido (em itálico);

• data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização;

• endereço eletrônico (U RL) completo (entre parênteses angulares: < > );• data de acesso.

Exemplos:Site genérico 

LANCASHIRE, I. Home page. 13/set./1998. <http://www.chass.utoronto.ca:8080/~ ian/index.html>. Acesso em:10/dez./1998.

Artigo de origem impressa COSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5.O Globo , 6.12.98. <http://www.oglobo.com.br>. Acesso em:

6/dez./1998.

Dados/ textos retirados de CD -rom ENCICLOPÉDIA ENCARTA 99. São Paulo: Microsoft, 1999. Verbete “Abolicionistas”. CD-rom.

Artigo de origem eletrônica CRUZ, U.B. “The Cranberries: discography”. The Cranberries: images. Fev./1997. <http://www.ufpel.tche.br/~ bira/

cranber/cranb_04.html>. Acesso em: 12/jul./1997.

OITICICA FILHO, F. “Fotojornalismo, ilustração e retórica”. <http://www.transmidia.al.org.br/retoric.htm>. Acessoem: 6/dez./1998

Livro de origem impressa LOCKE, J. A Letter Concerning Toleration. Translated by William Popple. 1689. <http://www. constitution.org/jl/

tolerati.htm>.

Livro de origem eletrônicaGUAY, T. A Brief Look at McLuhan’s Theories. Web Publishing Paradigms. <http://hoshi.cic.sfu. ca/~ guay/Para-

digm/McLuhan.html>. Acesso em: 10/dez./1998.KRISTOL, I. Keeping Up With Ourselves. 30/jun./1996. <http://www.english.upenn.edu/~ afilreis/50s/kristol-

endofi.html>. Acesso em: 7/ago./1998.

Verbete ZIEGER, H.E. “Aldehyde”. The Software Toolworks Multimedia Encyclopedia. Vers. 1.5. Software Toolworks. Boston:

Grolier, 1992.

“Fresco”. Britannica Online. Vers. 97.1.1. Mar./1997. Encyclopaedia Britannica . 29/mar./1997. http://www.eb.com:180.

E-mail BARTSCH, R. <[email protected]> “Normas técnicas ABNT- Internet”. 13/nov./1998. Comunicação pessoal.

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Comunicação sincrônica (MOOs, MUDs, IRC etc.)ARAÚJO, C.S. Participação em chat no IRC #Pelotas. <http://www.ircpel.com.br>. Acesso em: 2/set./1997.

Lista de discussão SEABROOK, R.H.C. <[email protected]> “Community and Progress”. 22/jan./1994. <cybermind@jefferson.

village.virginia.edu>. Acesso em: 22/jan./1994.FTP (File Transfer Protocol) 

BRUCKMAN, A. “Approaches to Managing Deviant Behavior in Virtual Communities”. <ftp://ftp. media.mit.edu/pub/asb/papers/deviance-chi-94>. Acesso em: 4/dez./1994.

Telnet GOMES, L. “Xerox’s On-Line Neighborhood: A Great Place to Visit”. Mercury News. 3/maio/1992. telnet

lamba.parc.xerox.com 8888, @go #50827, press 13. Acesso em: 5/dez./1994.

Newsgroup (U senet) SLADE, R. <[email protected]> “UNIX Made Easy”. 26/mar./1996. <alt.books.reviews>. Acesso em: 31/mar./

1996.

11. O s artigos devem ser escritos em português ou espanhol, podendo, contudo, a critério da C omis-são Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.O s trabalhos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papelbranco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas.

12. As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografi as) necessárias à compreensão dotexto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo agarantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúscu-las. (a) TABELAS: editadas em Word  ou Excel , com formatação necessariamente de acordo com asdimensões da revista. D evem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo dotexto; não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas; (b) FOTOGRA-

FIAS: com bom contraste e foco nítido, sendo fornecidas em arquivos em extensão “ tif ” ou “gif ” ;

(c) GRÁFICOS e DESENHOS: incluídos nos locais exatos do texto. No caso de aprovação para publi-cação, essas ilustrações precisarão ser enviadas em separado, necessariamente em arquivos deseus programas originais(p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.); (d) figuras,gráfi cos e mapas, caso sejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquimpreta. As convenções precisam aparecer em sua área interna.

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NOSSOS CONSULTORES 2003

ALCIDES H ECTOR BENOIT

AMÓ S D A SILVA N ASCIMENTO

ANA LÚ C IA SABADELL D A SILVA

ANTÔNIO  ÁLVARO  SOARES ZU IN

ANTONIO  C ARLOS SARTI

ANTONIO  FERNANDO  G O D O Y

D IMITRI D IMOULIS

D OROTHEE SUSANNE RÜDIGER

EDIVALDO  JO SÉ BORTOLETO

ELIAS BOAVENTURA

ERCÍLIO  ANTONIO  D ENNY

FERNANDA KLEIN

G ABRIELE C ORNELLI

G ESSÉ MARQUES

H U G O  ASSMANN

JORGE H AMILTON SAMPAIO

JORGE LU IS MIALHE

JO SÉ C ARLOS BARBOSA

JO SÉ LIMA JÚ NIOR

JO SÉ LU IS N OVAES

JO SÉ MARIA D E P AIVA

JOSIANE MARIA D E SOUZA

LADISLAU  D OWBOR

LEONILDO  SILVEIRA C AMPOS

LU IZ  ANTONIO  C ALMON  N ABUCO  LASTÓRIA

MÁRCIO  D ANELON

NABOR N UNES F ILHO

PEDRO  G OERGEN

PEDRO  P AULO  FUNARI

RO SA G ITANA KRO B MENEGHETTI

SÁVIO  C ARLOS D ESAN  SC OPINHO

SILVIO  D ONIZETTI D E O . G ALLO

TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO

TELMA REGINA D E P AULA SOUZA

YARA MONTEIRO

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