Pode-se amar outra vez - perse.com.br · um acidente de carro. Na época, ela tinha 29 anos, e...

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1 Alexandre Novaes Pode-se amar outra vez... Primeira Edição São Paulo 2014 PerSe

Transcript of Pode-se amar outra vez - perse.com.br · um acidente de carro. Na época, ela tinha 29 anos, e...

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Alexandre Novaes

Pode-se amar outra

vez...

Primeira Edição

São Paulo 2014 PerSe

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Obra registrada no Escritório de Direitos Autorais (EDA) da Fundação Biblioteca Nacional.

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À minha família, que são meus melhores amigos.

A todos os meus amigos, que são minha família.

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Não há dor que perdure para sempre.

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Nosso coração pode amar mais que uma vez, mesmo que não

acreditemos nisto.

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Capítulo 1

05 de Junho de 2011. 10h45min da manhã.

Victor olhava fixamente para a lápide.

Estava parado na frente do túmulo há mais de duas horas.

Em absoluto silêncio.

Cabelos ao ombro, barba por fazer, mãos no bolso do

sobretudo. Usava seus tradicionais óculos escuros.

Suspirou fundo.

[...]

Talita, sua esposa, havia falecido há nove anos, vítima de

um acidente de carro. Na época, ela tinha 29 anos, e Victor, 30.

Neste dia, 05 de Junho, ele repetiu a mesma rotina dos

últimos nove anos. Acordou de madrugada, por volta das 4h.

Sentou em sua cama, e por longos minutos com os olhos fechados

pensou na sua esposa. Lágrimas escorreram pelo seu rosto. Depois

de muito chorar, olhou lentamente a foto que ficava no criado

mudo, que eles haviam tirado na lua de mel quando foram para a

Europa, em 1997. Ela, sorridente como sempre. Ele, com aquele

olhar apaixonado.

Um esboço de sorriso surgiu neste momento.

Tinha tirado a sorte grande... Eu achava, pelo menos.

Antes de se aprontar e ir tomar o seu café da manhã, fez a

mesma pergunta que lhe atormentava a mente por anos. Seus

lábios mal se movendo, um sussurro saindo de sua boca, cabeça

entre os joelhos.

- Por quê... por quê...?

Colocou a foto de volta ao lugar.

Uma última enxugada nas lágrimas.

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Respirou fundo.

- Já já estarei aí com você... vou levar lindas flores.

[...]

O percurso até o cemitério onde repousava sua esposa

durou quase três horas.

Chegou ao local pouco depois das 8h.

Foi caminhando lentamente carregando o melhor buquê de

flores que conseguiu arranjar.

Ao chegar perto do túmulo, seu coração apertou e

começou a chorar.

- Ei, minha linda...

Parecia que ele conseguia ouvi-la respondendo: “Sim Vi,

estou aqui...”

- Aqui estou... como sempre te prometi, desde o nosso

casamento, que sempre estaria ao seu lado... na vida e na morte.

Depois disso ficou em silêncio, sem falar nada. Depositou

as flores no chão, fez um carinho demorado na lápide, e ficou em

pé olhando fixamente para o chão. Silêncio total, absoluto.

Apenas o vento frio de outono dava o ar da graça.

Não havia mais ninguém, somente ele.

Respirou fundo. E, como fazia em todos os dias – melhor

dizendo, em cada minuto – repetiu novamente para si mesmo em

pensamento: “Por que Deus... por quê?”

Começou a chorar copiosamente, de soluçar.

O choro deste dia era exatamente igual em intensidade de

quando ele soube da notícia.

Um trauma que iria carregar para o resto da vida.

Talita... meu amor... você não imagina a falta que você me

faz...

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[...]

Ele poderia ficar ali o dia inteiro.

Porém, ficar ali era a pior dor possível que um ser humano

poderia sentir, pelo menos em seu entendimento. Sentimento total

de impotência. Afinal, ninguém havia inventado a máquina do

tempo ainda. Ou de ressuscitar.

Antes de ir embora, Victor se agachou novamente.

Estendeu a mão e a apoiou na lápide. Ficou assim por

mais meia hora. Repetindo sem parar “eu te amo... eu te amo...

sempre sempre...”

Fechou os olhos e imaginou aquele abraço que só ela sabia

dar, aquele amor que só ela em toda a face da Terra podia lhe

proporcionar.

Tchau... até o ano que vem... meu coração vai ser sempre

seu. Te amo, minha princesa.

Lágrimas voltaram a escorrer pelo seu rosto.

Nunca vou amar ninguém novamente...

Seria uma previsão ou uma promessa?

Ele levantou-se e voltou andando calmamente, as mãos no

bolso do sobretudo, cabeça baixa.

Vida que segue.

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Capítulo 2

Enquanto Talita era viva, Victor trabalhava como

consultor para diversas empresas multinacionais. Formado em

Administração de Empresas, conheceu Talita na faculdade.

Começaram a namorar ainda no segundo ano do curso.

Eles viviam em um apartamento confortável em um bairro

da Zona Sul de São Paulo. Eles não tiveram filhos. Havia sido

uma escolha deles.

E assim foi até o fatídico 05 de Junho de 2002.

Depois do acontecido, Victor entrou em uma depressão

profunda.

Com a ajuda da família e amigos, começou a fazer

tratamento psicológico intenso. Até buscou conforto em algumas

religiões. Isto fez com que pelo menos ele se mantivesse vivo.

Porque, na verdade, a única expectativa que ele tinha na vida era

que Deus se condoesse dele e o levasse também.

Porém, por benção divina, ele foi extremamente ajudado

por todos os que o amavam. Ele, de alguma forma, havia superado

a fase mais crítica, e depois de muito tempo sentia a resignação de

continuar vivendo “normalmente”, mesmo com a imensa saudade

dilacerante.

[...]

Depois da morte de Talita, nunca mais conseguiu levar

uma vida normal. Pelo menos interiormente, em sua alma.

Nunca mais se envolveu com ninguém. Simplesmente seu

coração havia se fechado para qualquer possibilidade.

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Ficou um tempo de licença do serviço. Não tinha a menor

condição de trabalhar, por mais que as outras pessoas o

incentivassem a se distrair e espairecer.

Só depois de meses voltou ao trabalho.

Mas era outro Victor.

Mais reservado, mais sério, mais introspectivo. Olhar

distante. Não era mal humorado, nem carrancudo. Tratava a todos

bem. Simplesmente agia no piloto automático.

Vivia por viver.

[...]

Em 2006, decidiu mudar de ares.

Com suas economias, comprou uma chácara a cerca de

200 km da cidade, na região de Pirassununga, interior de São

Paulo. A natureza seria uma boa companhia. E, além de tudo,

queria descontaminar sua mente de qualquer coisa que lembrasse a

vida que tinha com Talita.

Ali, teria uma vida reclusa. Poderia trabalhar à distância,

ou mesmo abrir um pequeno negócio na cidade.

E foi o que fez: abriu uma pequena rotisserie que ficava

no centro da cidade.

O que ele queria era apenas viver sozinho.

Esta dor insuportável perdurava até os dias de hoje. Hoje,

aos 39, ele apenas conseguia – sem saber como – continuar

vivendo, apenas isto. Algo que ele não desejaria para o pior dos

inimigos, caso tivesse algum.

Como ele mesmo dizia, o sofrimento que ele sentia era

como uma dor de dente. Constante, permanente. A questão era se

doía mais ou menos, dependendo do dia. Uma dor de dente

incurável, eterna.

E que estaria sempre ali.

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Capítulo 3

Victor saiu do cemitério.

Um dia típico de outono. Um sol gelado, com vento frio.

Com seus óculos escuros, ainda olhou para trás no portão

de entrada.

- Adeus... linda. Fique em paz...

Entrou no carro. Abriu um pouco as janelas, e por alguns

minutos ficou ali sentado, olhando para o nada.

Ao acordar desta auto-hipnose, ele ligou o carro e seguiu

para a estrada. Colocou um CD de rock e foi ouvindo durante o

trajeto.

[...]

Victor não teve pressa durante o percurso de volta. Pegou

a estrada na pista do meio e foi a “apenas” 90 km/h.

Sem trânsito ou qualquer anormalidade, estaria em casa

em pouco mais de duas horas. E, se desse tempo, iria para a

rotisserie.

De fato, por volta das 13h30min ele chegou ao portão de

casa.

Foi alegremente recepcionado pela sua cadela golden

Peralta. Não era adjetivo. Era o nome dela mesmo.

Uma leve chama de alegria, em um dia tão sofrido. Victor

amava os animais, especialmente os cães. Provavelmente, mais do

que a si mesmo.

Depois de alguns minutos de atenção à Peralta, foi

preparar um almoço rápido. Pelos seus cálculos, ainda daria para

ficar umas duas horas na loja.

Procurou concentrar-se em sua rotina.

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Foi até a rotisserie e ficou até às 17h. Saiu de lá e foi

direto para casa.

Apesar de ter trabalhado somente duas horas neste dia, ele

estava várias vezes mais cansado. Estava moído. Emocionalmente

devastado.

Chegando em casa, deixou as coisas na sala e foi tomar

um banho demorado. Bem quente e demorado.

Esta data ficaria sempre marcada em sua vida.

[...]

Victor havia dado a sorte de não ter vizinhos por perto.

Era um lugar bem retirado, bem afastado. Ficava em uma região

montanhosa, com muito verde.

Ao anoitecer, ele sempre fazia uma caminhada pela

“floresta”, como ele chamava os arredores.

Havia um lugar onde ele tinha uma vista panorâmica da

região, onde ninguém poderia perturbá-lo. Onde ele poderia

conversar com - ou melhor, questionar - a Vida em paz.

Nesta noite ele foi andando novamente até lá. Depois de

trinta minutos caminhando devagar com a ajuda de sua lanterna,

ele chegou ao seu ponto de observação favorito.

Na verdade, como já era noite, não havia muito o que

observar. Ao longe, via algumas luzes da cidade, distante alguns

quilômetros.

Só o fato de estar ali sozinho, ele consigo mesmo, lhe dava

um pouco de paz. Se é que um dia ele voltaria a sentir paz.

Ali era a oportunidade para ele chorar e afogar suas

mágoas, sem ninguém por perto.

Ficaria ali por horas.

As estrelas estariam convidadas a participar do seu

momento. Aliás, era algo que ele apreciava desde pequeno: poder

enxergar as estrelas no céu. Algo tão óbvio e simples, mas que era

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quase impossível na cidade grande. Nesta noite, com o céu limpo e

sem nuvens, elas estavam ainda mais nítidas e brilhantes.

Deitou na pedra e ficou olhando para o céu. Para este

Universo imenso. E ficou imaginando qual estrela seria Talita.

Sempre dizem que tempo é uma questão relativa.

Dependendo do seu foco e atenção, o tempo passa mais ou menos

rápido. Naquele momento, ele não sabia dizer. Já estava preparado

até para acordar com o amanhecer no dia seguinte, se caísse no

sono.

Porém, por volta das 23h, Victor olhou para o relógio.

- Mais um dia...

Ele estava muito deprimido e profundamente melancólico.

Respirou fundo. Queria chorar, mas todo o estoque de água que

ele tinha para as lágrimas parecia que havia secado. Nem força

para isto ele tinha. Pelo menos não naquela hora.

Estava caminhando de volta para casa, quando de repente

escutou um barulho de carro vindo na estrada de terra. Só havia a

iluminação da lua. De repente o carro parou abruptamente. Victor

se escondeu entre as árvores, se abaixou e ficou a alguns metros

do carro. Os faróis iluminavam parcialmente a estrada. Ele até

prendeu a respiração. Algo lhe dizia que não era uma situação

normal.

Nisto, três rapazes vestidos de terno preto saem do carro, e

rapidamente vão para o porta-malas e o abrem. Estava bastante

escuro, e Victor não conseguiu ter uma visão nítida deles. Com

brutalidade, tiram um senhor de lá de dentro e o jogam no chão.

Victor ficou estupefato, paralisado. Estava com medo que

as batidas do seu coração chamassem a atenção deles.

Sem falar nada, largaram o corpo do senhor todo ferido no

chão e saíram cantando pneu.

Estou sonhando?

Victor demorou para se mexer.

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Apesar de ver que o tal senhor estava visivelmente muito

ferido, quis esperar pelo menos uns dois minutos antes de dar as

caras, porque não queria topar de frente com aqueles... ele nem

sabia como os chamar.

Olhou nos arredores. Ninguém. Sentindo-se mais seguro,

pegou a lanterna e foi correndo até o homem.

Minha nossa...

Victor ficou em pé olhando para a cena: o senhor

agonizando no chão, bastante machucado e com bastante sangue

no rosto e no corpo. Respirava com muita dificuldade.

Victor agachou, iluminando o homem com a lanterna. O

senhor ainda estava vivo, mas muito mal. Quase inconsciente.

Obviamente havia apanhado. E muito.

- Meu Deus... senhor... você consegue me ouvir? Qual o

seu nome??

O homem respirava muito ofegante, com muita

dificuldade. Não respondeu.

Depois de um minuto, com extrema dificuldade, quase que

em um sussurro de olhos fechados, o homem conseguiu balbuciar.

- Douglas...

Victor fez um esforço para conseguir ouvir.

- Não entendi... qual o seu nome??

Desta vez ele falou um pouco mais alto.

- Douglas...

- Ok... Douglas... por favor não fale mais nada, vou

chamar o socorro.

Victor pegou seu celular. Por sorte ali pegava sinal,

mesmo em uma região montanhosa. Pediu o serviço de resgate,

urgente. Passou as coordenadas. Mesmo sendo um lugar afastado,

eles estavam em uma estradinha paralela que não era tão difícil de

se achar.

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[...]

Até o socorro chegar, durante todo o tempo, Douglas ficou

lutando pela vida, respirando com muita dificuldade, o sangue

correndo pelo rosto, pelo nariz. A roupa dele estava toda

empapada de sangue.

Apesar do ímpeto de querer fazer alguma coisa, Victor

sabia que não podia mexer na pessoa ferida. Ainda mais porque

Douglas estava sangrando muito. Manteve uma distância segura,

sem tocar nele.

As sirenes do resgate podiam ser vistas ao longe. Victor

acenou com a lanterna, fez uma espécie de código morse

improvisado, sem ser morse. Na verdade, apenas ficou ligando e

desligando a lanterna.

Antes dos carros chegarem, Douglas fez um último

esforço sobre-humano e olhou para Victor, apesar de suas

condições críticas. Mesmo muito ferido, quase sem consciência,

conseguiu falar baixinho:

- Ana Luíza... a proteja... por favor...

- Ana? Quem é Ana??

- A proteja... e pegue o anel...

E fechou os olhos.