Pluralismo Brasileiro Na Berlinda

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antropologia, métodos, brasil, psicologia, historia, arqueologia, política, qualitativos

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  • SRIE ANTROPOLOGIA

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    O PLURALISMO BRASILEIRO NA BERLINDA

    Alcida Rita Ramos

    Trabalho solicitado para publicao na revista Etnogrficado Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE),Lisboa.

    Braslia2004

  • 2O PLURALISMO BRASILEIRO NA BERLINDA

    Alcida Rita Ramos

    Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal ...Chico Buarque

    A nao brasileira vem-se construindo sobre duas premissas principais: uma aunidade territorial e lingstica; a outra a suposta homogeneidade cultural que resultou dacombinao de trs "raas": indgena, negra e europia. A primeira premissa, no queconcerne territorialidade, sustenta-se empiricamente, ainda que tenha sido um grandefoco de contestao em sculos passados. No que tange a unidade lingstica, seexcluirmos as cerca de 170 lnguas indgenas, o alemo, italiano, japons, entre outrosidiomas falados oficiosamente pelo pas afora, mais a mirade de dialetos que recobre anao, o portugus , de fato, o que distingue imediatamente o Brasil do resto dasAmricas. Porm, a segunda premissa, da homogeneidade cultural, no passa demistificadora ideologia. Quero chamar a ateno para o carter fictcio dessahomogeneidade e tomar como foco o indigenismo para analisar as razes pelas quais opluralismo, enquanto realidade social, continua a ser oficialmente negado no Brasil, apesarde um certo esforo retrico em contrrio. Por indigenismo quero dizer mais do quepolticas indigenistas, oficiais ou no. Incluo nesse conceito o vasto campo de imagenspopulares e eruditas construdas pela populao nacional e pelos prprios ndios e sobre asquais se constroem as muitas faces do ndio (Ramos 1998, 2003a).

    Primeiro, vamos questo da unidade territorial. O Tratado de Tordesilhas,celebrado entre Portugal e Espanha em 1494, dividia o Novo Mundo, conhecido ou porconhecer, em duas partes iguais por meio de uma linha vertical que ia "de plo a plo"(Ribeiro e Moreira Neto 1993: 71). A parte oriental coube ao rei de Portugal e seusdescendentes "para sempre" e a parte ocidental aos reis de Espanha e seus descendentestambm "para sempre". Por esse tratado, Portugal tinha direito a menos da metade do que o Brasil atual.

    Seis anos depois, o Almirante portugus Pedro lvares Cabral e no CristvoColombo, como em geral se pensa no mundo no lusfono "descobria" o Brasil. O queele descobriu estava dentro dos limites de Tordesilhas, mas pelos sculos afora a colniaportuguesa expandiu-se imensamente para oeste, primeiro pela ganncia da populaocrioula engajada na escravizao dos ndios e na minerao, e mais tarde pela astcia dadiplomacia brasileira que conseguiu incorporar grandes pores de terra que, por tratadosseculares, pertenceriam aos pases vizinhos. Ainda no sculo XVI, a chegada de outrospoderes europeus, especialmente a Frana e a Holanda com seus projetos coloniais noBrasil, reduziram a chiste histrico a fantasia ibrica de manter o tratado de Tordesilhas"para sempre".

    gritante o contraste do destino nacional dos pases hispano-falantes com o doBrasil. Enquanto o mundo colonial espanhol nas Amricas se fragmentou em mais de uma

  • 3dzia de Estados independentes, Portugal reteve o domnio sobre uma nica, gigantesca eindivisa colnia. Alguns autores (Buarque de Holanda 1989, Carvalho 1996) tm atribudoesse contraste ao modo como Portugal e Espanha conduziram suas polticas de educaocolonial. No mundo hispnico, criaram-se universidades desde o incio do sculo XVI,enquanto no Brasil, os filhos da elite crioula iam educar-se na velha universidade deCoimbra. A primeira universidade brasileira s foi criada no sculo XIX. Assim, aconscincia nacionalista foi moldada de modos diferentes no mundo crioulo espanhol eportugus (Bernard e Gruzinski 1999). Nos pases hispnicos, as universidades locaiscontriburam imensamente para formar a conscincia nacionalista que levou as colnias independncia. Cada uma daquelas universidades coloniais corresponde capital dosatuais Estados hispano-falantes.

    O efeito diferenciado da educao nacional no caso das colnias espanholas, emcontraste com a educao uniforme metropolitana restrita a uma pequena elite, no caso doBrasil, tambm ajuda a explicar os diferentes modos como se deu o processo deindependncia. Enquanto os pases hispnicos obtiveram sua independncia depois deprolongadas guerras alimentadas por fortes ideais nacionalistas, no Brasil ela resultou deuma negociao, ainda que difcil, entre a coroa portuguesa e a elite brasileira. Aindependncia de 1822 foi proclamada de maneira sbita e no violenta com o apoioindireto do povo, mas sem a participao direta (Fausto 1994: 127-34). Como se nobastasse, foi o prprio prncipe regente de Portugal que entrou na histria ptria brasileiracomo o heri da independncia e o primeiro imperador da nova nao com o ttulo de D.Pedro I. Nove anos depois, aquela mesma elite forou-o a abdicar do trono brasileiro. D.Pedro I regressou a Portugal onde se tornou D. Pedro IV. Seu filho de cinco anos, nascidono Brasil, foi o segundo e ltimo imperador com o ttulo de D. Pedro II, destronado pelogolpe militar que instaurou o regime republicano em 1889. Houve inmeras rebelies euns poucos movimentos separatistas em vrias partes do pas tanto na era colonial quantodepois da independncia, mas quase todos tiveram repercusses apenas regionais e nuncachegaram a ameaar a integridade poltico-territorial do Brasil (Fausto 1994). Mas nocampo das relaes internacionais que se percebe mais claramente o ethos estatalbrasileiro.

    Ao examinar a questo das fronteiras do Brasil com os pases vizinhos fica-setentado a associar a aura de homem cordial, que to fortemente aderiu ao carter nacionalbrasileiro (Leite 1992) e foi vibrantemente criticada por Srgio Buarque de Holanda(1989 [1936]), ao estilo diplomtico do Brasil na resoluo de suas pendncias territoriais.Embora a noo de homem cordial inclua aspectos como o desrespeito puro e simples aosdireitos alheios (o famoso voc sabe com quem est falando? [Da Matta 1979: 139-193]), na sua verso diplomtica a arrogncia crassa do cotidiano da desigualdadedomstica substituda pelos finos poderes de persuaso de que foi prdigo o perodoentre o segundo Imprio e as primeiras dcadas da Repblica. Porm, a exemplo do tratoda desigualdade interna, o que para o ganhador justia, para o perdedor abuso de poder,ou seja, aos brasileiros as vitrias territoriais pareceram justas e um prmio ao talentodiplomtico, mas, para alguns vizinhos perder terras para o j imenso Brasil nada mais foido que uma prova da sua vocao imperialista.

    Fica-se tambm impressionado com a concentrao desses sucessos diplomticosnas mos de um nico homem, o Baro do Rio Branco. Dos sete pleitos mais difceis sobrelimites internacionais, seis foram conduzidos por Rio Branco, todos a favor do Brasil. Ostimo, envolvendo a Gr-Bretanha, ficou a cargo de outro grande vulto da histriabrasileira, Joaquim Nabuco. Levado a arbitramento, o caso foi favorvel Inglaterra e oBrasil perdeu uma parte do que hoje o estado de Roraima. -se mesmo levado a divagar

  • 4sobre o que seriam as dimenses e os contornos do Brasil de hoje se o Baro nuncahouvesse nascido ou tivesse vivido em outra poca. Contexto scio-poltico epersonalidade mais uma vez se unem para definir o curso da histria, neste caso, dedimenses continentais e de repercusses duradouras.

    Somar para reinarA independncia das colnias ibricas na Amrica do Sul trouxe consigo um

    emaranhado de tratados que ora se reforavam ora se contradiziam e que ocupou geraesde juristas de todos os pases do continente sul-americano na tentativa de chegar a umadefinio sobre o que pertencia a quem (Rio Branco 1947; Lins 1965; Xavier 2000; Menck2001). Portugal e Espanha deixaram os limites de suas ex-colnias em total desalinho,cabendo aos novos Estados independentes a rdua tarefa de arrumar a casa, muitas vezesempregando mtodos de agresso armada alguns dos quais chegaram at ao sculo XX,como no caso do litgio entre Peru e Equador, entre Colmbia e Venezuela e entreVenezuela e Guiana (ex-Britnica).

    Da cacofonia de tratados ao longo de dois sculos Rio Branco descartou a maioriados argumentos, em geral burocrticos e administrativos, e fixou-se no princpio do utipossidetis, o direito posse de quem ocupa um determinado territrio, princpio esseevocado pela primeira vez no Tratado de Madrid de 1750, por sinal, pelo brasileiroAlexandre de Gusmo, ligado corte portuguesa. Carro-chefe das argumentaes jurdicasde Rio Branco, tanto em negociaes com os pases vizinhos como em cortes dearbitramento, o uti possidetis foi especialmente benfico ao Brasil devido extraordinriaexpanso territorial promovida pelos chamados bandeirantes (Morse 1965) durante operodo filipino na Pennsula Ibrica. Com a anexao de Portugal Espanha, os direitosterritoriais nas colnias americanas deixaram de ser problema para as duas metrpoles,temporariamente unificadas. Foi justamente no sculo XVII que as bandeiras prosperaram,organizadas especialmente em So Paulo, para capturar ndios, inclusive da Amaznia,para o trabalho das minas de ouro, diamantes e esmeraldas, responsvel pelo avano defrentes colonizadores para oeste, ou seja, para as zonas limtrofes entre o Brasil e seusvizinhos (Monteiro 1994). Com a Restaurao, voltou o interesse pelas divises territoriaisentre Portugal e Espanha, mas j a colnia portuguesa havia alcanado terras muito almdas que ocupara em fins do sculo XVI (Lins 1965: 184). Ao se ater ao princpio do utipossidetis, Rio Branco sabia que este seria o nico argumento capaz de justificar aexpanso das fronteiras, j agora do Brasil independente. O fato consumado da presenafsica de brasileiros em terras reivindicadas pela Frana ao norte, pela Bolvia, Peru eArgentina a oeste, foi o fator decisivo para a ampliao do territrio brasileiro.

    Nos sculos XIX e XX, o ouro no norte amaznico, a borracha na Amazniaocidental e a frente agrcola no sul foram responsveis por uma srie de escaramuasenvolvendo por vezes contingentes dos exrcitos nacionais, como no caso da Argentina, doPeru e das Guianas Britnica e Francesa. A negociaes fracassadas seguiam-se longosperodos de inao at que, um a um, todos os litgios foram resolvidos pela diplomacia deRio Branco. O primeiro destes, com a Argentina, que reivindicava a regio de Palmas, hojeparte do estado do Paran, foi resolvido em 1889 por arbitragem dos Estados Unidos. Oltimo, com o Peru, que pretendia reaver uma parte do Acre j negociada com a Bolvia,foi encerrado em 1909.

    O caso da Bolvia merece ateno especial por suas conotaes geopolticasextracontinentais. Para fazer frente ocupao do Acre por brasileiros, a Bolvia, no fimdo sculo XIX, aliou-se empresa privada estadunidense e inglesa, o Bolivian Syndicate(Stokes, Jr. 1975: 308-353), cedendo-lhe a soberania de uma parte de seu territrio

  • 5limtrofe com o Brasil. Interessada na indstria da borracha, essa companhia submeteu aBolvia humilhao de lhe repassaro governo civil e a administrao do territrio ... o poder e autoridade, nicos, absolutos,exclusivos e independentes ... para arrecadar as rendas, regalias, impostos, direitos econtribuies ... e o Governo transferiria companhia, pelo tempo da concesso, todas asterras pblicas ou do Estado, edifcios, propriedades e direitos de todo gnero dentro doslimites do territrio (Lins 1965: 276).

    Opondo-se frontalmente a essas pretenses, o governo brasileiro fechou o trnsitofluvial companhia, impedindo, assim, seu acesso s terras bolivianas. O Brasil negociou aretirada do Bolivian Syndicate, pagando-lhe 110 mil libras (Lins 1965: 292). O percursotortuoso das negociaes com a Bolvia pela posse do Acre prolongou-se at novembro de1903, quando foi assinado o Tratado de Petrpolis, dando ao Brasil o domnio de mais de190 mil quilmetros quadrados e menos de 2.300 Bolvia (Rio Branco 1947: 14-30). OBrasil comprometeu-se a pagar Bolvia uma indenizao de dois milhes de libras econstruir a estrada de ferro Madeira-Mamor, que se tornaria smbolo de obra intil emortfera (Foot Hardman 1988). Durante os seis anos de sua construo, foram registradosos bitos de mais de mil e quinhentos trabalhadores, sem contar os mortos annimos quenunca foram contabilizados e que talvez somassem milhares. Eram operrios trazidos devrias partes do mundo pela empresa construtora estadunidense (Craig 1947), vitimadospor doenas como bri-bri, malria, febre amarela e outras molstias tropicais (Carvalho1999). Terminada em 1913, especificamente para escoar a borracha do Acre, a Madeira-Mamor caiu em runas com o declnio comercial da borracha que comeou justamentenaquele ano! A sucata em que se transformaram trilhos e vages hoje exibida em museude Porto Velho, capital do estado de Rondnia, por onde passava a estrada. De qualquermodo, j em 1909, o Acre rendeu ao Brasil com a extrao da borracha mais do dobro doque foi gasto na sua aquisio (Lins 1965: 301).

    Com justificativas que nada fizeram para dissipar o mal estar dos vizinhos sobre oque viam como os desgnios imperialistas do Brasil, Rio Branco tentou convencer a todosque a Bolvia saiu do impasse to ganhadora quanto o Brasil.

    Verdadeira expanso territorial s h agora e com a feliz circunstncia de que,para a efetuar, no espoliamos uma nao vizinha e amiga, antes a libertamos deum nus, oferecendo-lhe compensaes materiais e polticas, que desde j serevelam como verdadeira equivalncia e que o futuro se encarregar de traduzirem outros tantos laos de solidariedade internacional (Rio Branco 1947: 29).

    O affair Bolivian Syndicate rendeu ao Brasil a posse do Acre e uma atitudedefensiva contra a cobia estrangeira sobre a Amaznia que continua firmementearraigada no nacionalismo ptrio.

    A insistncia de Rio Branco em evitar solues blicas e privilegiar a negociaodiplomtica tem sido atribuda em parte ao impacto que lhe causou a destruio doParaguai pela chamada Guerra da Trplice Aliana de1864 a1970 (Doratioto 2002) em queaquele pas foi arrasado pelos exrcitos do Brasil, Argentina e Uruguai.

    O povo de um milho via-se reduzido a duzentos mil, com noventa por cento demulheres; e ao terminar a guerra no existia no pas uma cabea de gado, umaave de criao, um gro de milho, de arroz ou de trigo; tudo estava extinto,esgotado. A nao ficava em runas, consumida, aniquilada (Lins 1965: 67).

  • 6A derrocada do Paraguai, cujos efeitos ainda perduram (Warren 1978; Marques 1995),ecoou pelo continente sul-americano como um alerta contra solues blicas levadas sltimas conseqncias.

    Em suma, a unidade territorial do Brasil foi, portanto, um longo processo deconstruo ou de inveno, no esprito de Edmundo OGorman (1992). Suas fronteirasterrestres foram se ampliando ao sabor de ocupaes e contestaes, de conflitos abertos,como com a Argentina, o Peru e as Guianas britnica e francesa, e de ousadasargumentaes diplomticas. Essas fronteiras perfazem hoje um arco de mais de 16 milquilmetros de extenso cujas extremidades esto separadas por cerca de oito milquilmetros de costa atlntica, do Oiapoque ao Chu, como reza a frmula do orgulhonacional. Ao longo desse arco a cadeia de disputas por territrio envolveu quase todos osvizinhos, dois deles representados por grandes potncias mundiais: a Inglaterra e a Frana.Com raras excees (Colmbia, Venezuela e Guiana holandesa), todos os vizinhosmanifestaram, de uma maneira ou de outra, seus protestos pelo gosto expansionistabrasileiro.

    A segunda metade do sculo XIX deu ao Brasil inmeros motivos para sepreocupar com a questo da unidade territorial. Foi a poca mais acirrada das revoltasinternas, dos movimentos separatistas e das disputas sobre fronteiras internacionais.Enquanto as ltimas foram resolvidas pelo poder de persuaso diplomtica, as primeirasforam sufocadas pelo irrefutvel argumento weberiano do uso legtimo da fora bruta peloEstado e substitudas por acirrados conflitos agrrios que, embora sem questionar aunidade nacional, pem a descoberto a imensa desigualdade social que continua a reinar nopas. Exemplo disso o movimento dos sem terra (Chaves 2000) que chega ao sculo XXIdesafiando, mesmo que involuntariamente, a ideologia do brasileiro como homem cordial.

    Este breve percurso pela histria de como foram construdos os limites territoriaisdo Brasil tambm revela uma faceta to contraditria quanto atual: os propalados vaziosdemogrficos da regio amaznica. Contraditria porque conviveu com afirmaes deocupao territorial distintamente brasileira, por exemplo, no Acre e no Amap; atualporque persiste ainda nos discursos militares e desenvolvimentistas sobre segurananacional e a explorao comercial da regio. De especial longevidade a desateno paracom os povos indgenas habitantes da faixa de fronteiras. Eles so em geral invisveis equando mencionados como se fossem meros componentes da paisagem, pouco ou nadainfluindo no curso dos acontecimentos, ou um assessrio til para a invaso de suas terras.Os trechos abaixo so representativos da atitude distrada (Rivire 1995) com que ospoderes nacionais lidaram com a presena indgena. Sublinho as passagens maisreveladoras. Os ndios nunca representaram ameaa: pelo contrrio, o seu conhecimentodos recursos da floresta e da navegao costeira e fluvial foi da maior utilidade para oscolonos (Cardoso 1984: 19). O caso do Acre fra a princpio de geografia e histria ...Veio, porm, a caber Bolvia em virtude de um tratado feito em poca na qual noestavam ainda povoadas as bacias do Alto Purus e do Alto Juru, embora j exploradas econhecidas como brasileiras (Lins 1965: 270). Sobre a terra cedida Bolvia, escreveuRio Branco: em Mato Grosso, inteiramente desabitadas (sic) e pela maior parte cobertade gua, pois terra firme havia apenas 78 quilmetros quadrados (Lins 1965: 298).Escrevia ainda: ... segundo a orientao da marcha do povo brasileiro na conquista demattas desertas (Rio Branco 1947: 84-85). A presena indgena conta como desertointeiramente desabitado. Na fronteira com a Guiana inglesa seria apenas umreconhecimento e uma nova consagrao dos princpios do direito internacional aplicveis,em um hinterland deserto, s esferas de influncia que resultam da ocupao de uma costamartima e do curso inferior dos rios que desembocam nessa costa (Rio Branco apud Lins

  • 71965: 220). Tanta insistncia nos vazios demogrficos, onde habitavam povos indgenas bem

    mais numerosos do que seus atuais descendentes e isto no exclusividade brasileira,como mostra Smith 1983 sobre a Amaznia peruana , revela a vontade de se construiruma nao uniforme, livre de diversidades potencialmente perturbadoras da unidade ptria.

    Passemos, pois, segunda premissa, a da homogeneidade social do Brasil.

    Subtrair para conquistarUm dos recursos mentais que alimentam a imaginao nacional sobre as minorias

    internas o mito de criao do pas segundo o qual a nacionalidade surge como o resultadofeliz da mistura de trs raas: indgena, negra e europia, ou seja, portuguesa. Porm, averso brasileira do mito das trs raas a exemplo de outras manifestaes latino-americanas, como o das trs potncias na Colmbia (Taussig 1987: 171-187) no foicriada para acomodar as legtimas diferenas raciais e tnicas do tipo multiculturalismo. Oque os bricoleurs desses mitos queriam era instilar o vigor gentico dos brancossobrepujando, assim, as outras duas "raas" num processo de mestiagem que todosconhecemos como branqueamento. As trs raas eram apenas ingredientes de uma novareceita de homogeneidade nacional que, se no era exatamente racial, era, no mnimo,cultural e ideolgica. Ao contrrio do modelo do multiculturalismo, o povo brasileiro seriaento um amlgama de raas branqueadas com um sabor nacional nico e uniforme. Aoinvs do padro de diferenas separadas, mas iguais, teramos aqui um desenho nacionalpara misturados desiguais.

    Em 1995, Darcy Ribeiro, o celebrado antroplogo e poltico brasileiro, declarou:"os brasileiros se integram em uma nica etnia nacional, constituindo assim um s povoincorporado em uma nao unificada, num Estado uni tnico". E continuou: "A nicaexceo so as mltiplas micro-etnias tribais, to imponderveis que sua existncia noafeta o destino nacional" (Ribeiro 1995: 22). Ribeiro, que havia profetizado a total extinodos ndios brasileiros antes do sculo XXI, admitiu seu erro no incio dos anos 1980, faceao rpido crescimento dos movimentos indgenas e revitalizao tnica de vrios povos,mas nunca acreditou realmente na capacidade poltica dos ndios brasileiros fora do mbitode suas prprias sociedades. Ribeiro acertou ao dizer que o impacto da populao indgenanos assuntos nacionais insignificante, mas errou ao no reconhecer o poder simblico daindianidade na mentalidade nacional. Consideraes factuais como tamanho demogrficoou prosperidade econmica, por mais importantes que sejam no campo do poderintertnico, no esgotam as possibilidades de influncia dessas minorias tnicas. H maisna nacionalidade do que mera racionalidade. Voltarei a isto mais adiante.

    Nos ltimos 20 anos, o Canad e 16 pases latino-americanos, incluindo o Brasil,fizeram reformas constitucionais que incorporaram garantias dos direitos fundamentais dasminorias tnicas. Vrias dessas constituies declaram explicitamente que o pas emquesto uma nao pluritnica. Mas no o Brasil. Embora a Constituio de 1988 garantaaos indgenas o direito de permanecerem ndios em termos culturais, sociais e territoriais,em nenhum momento ela explicitamente declara ser o pas uma nao pluritnica. Alis,esta parece ser uma questo espinhosa para a elite jurdica brasileira. Durante umseminrio em 2001 sobre Minorias e o Direito ao qual compareceram juristas eantroplogos, em meio a muita pompa e circunstncia numa das altas cortes de justia emBraslia, uma advogada extremamente dedicada defesa dos direitos das minoriasdiscordou publicamente do meu comentrio de que a constituio brasileira no reconhecesua plurietnicidade (Almeida e Pereira 2003: 257). Em sua apresentao, ela quis mostrarque, embora isto no seja afirmado explicitamente, as muitas clusulas da constituio em

  • 8prol das minorias fazem do Brasil, de fato, uma nao pluritnica. No intervalo doseminrio, longe do microfone, voltei ao tema do silncio da constituio sobre essaquesto e, com uma expresso de ansiedade, a advogada aconselhou-me a no dizer issoem pblico, principalmente, na presena dos juristas conservadores ali presentes. Como eususpeitava, h mesmo um tabu em torno da plurietnicidade como poltica oficial. Nosbastidores daquele solene seminrio, minha impresso no poderia ter sido maisclaramente confirmada.

    Como nesta oportunidade focalizo a questo indgena, no tocarei no assunto danegritude no Brasil, que igualmente complexo (ODwyer 2002; Almeida e Pereira 2003).Para mostrar como a nao brasileira resolve, ou deixa de resolver suas ambigidades paracom seus outros significativos concentro-me na questo indgena porque me maisfamiliar. No embate entre ideologia e prtica decorrente da crena e da prxis do mito dastrs raas, a questo : como dissolver o ndio e conserv-lo ao mesmo tempo.

    Desde o sculo XVI, quando os jesutas eram a maior fora em promoverpolticas indigenistas, a histria do indigenismo brasileiro tem sido um longo exerccio emtentar combinar o que virtualmente impossvel: polticas assimilacionistas e aessegregadoras. Os jesutas almejavam transformar os ndios em cristos, incorporando-os ordem do mundo europeu, mas, ao mesmo tempo, confinavam-nos em verdadeiros camposde concentrao sob a rgida disciplina das misses. Quando, no sculo XVIII, o Marqusde Pombal expulsou os jesutas das colnias portuguesas, instaurou o Diretrio dos ndios,ele um sistema de controle especial destinado a integrar a populao indgena corrente daproduo colonial (Almeida 1997). Mas os gestores dessa poltica mantiveram os ndiossob constante vigilncia, pouco diferindo das misses jesuticas. E, j no sculo XX,quando a primeira Repblica criou o Servio de Proteo aos ndios (1910), o objetivoltimo era assimilar os povos indgenas sociedade nacional. Mas, enquanto os nativosno estivessem preparados para isso, era preciso "proteg-los" no confinamento dereservas contra a rapacidade da sociedade nacional. Na ideologia positivista explicitamentecomteana que inspirou os fundadores do Servio de Proteo aos ndios, esperava-se, comamor e dedicao, retirar os ndios de seu "estado fetichista" (Lima 1985) e projet-losdiretamente ao nvel cientfico da civilizao, saltando, assim, o estgio metafsicoobscurantista representado pelos missionrios. Sob o manto de progressista, essa postura,de fato, declarava a velha separao oficial de Igreja e Estado como poltica da jovemRepblica. Como em outros momentos nervosos na histria do Brasil, na viradarepublicana, a questo indgena encapsulou os anseios e as contradies dos dirigentes danao.

    "Vocs so parte de ns, mas devem manter-se distncia". Como uma maldio,uma esfinge moderna, essa sentena de um verdadeiro superego nacional condena osndios devorao cultural, j que impossvel desvendar o seu enigma. O homemcomum pode repetir muitas vezes que a sua av ndia foi apanhada a lao, querendo comisso dizer que um autntico brasileiro ligado metonimicamente aos proverbiais selvagens,"primeiros habitantes do pas", mas note-se que ele mantm seu mito pessoal das trs raasa uma confortvel distncia genealgica e de gnero: nunca a me nem o pai nem o av.J uma av ndia, mulher e antiga, confortvel como um ornamento que se usa um dia ese guarda no dia seguinte. Ao contrrio, a coetaneidade muito mais difcil de tolerar. Noimaginrio nacional, o ndio bom o ndio remoto, seja no tempo, seja no espao. O ndiobom o primeiro habitante do pas metamorfoseado em cone ancestral que deu suor esangue para fertilizar o que viria a ser o nascimento da nao brasileira.

    interessante examinar alguns dados sobre categorias raciais numa amostrapopulacional de 1998 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

  • 9(Schwartzman 1999). A amostra cobriu 90 mil pessoas acima de 10 anos provenientes deseis reas metropolitanas. Todos se declararam "brasileiros" com origens especficas.Foram listadas as 10 principais categorias de origem que incluem a africana, espanhola,indgena, judia, negra, rabe, alem, italiana, portuguesa e japonesa, alm de "outros" noespecificados. Embora os dados no revelem como as perguntas foram feitas erespondidas, eles indicam que, em vez de privilegiar a mistura de raas no estilo meltingpot, a ateno dos entrevistados concentrou-se em origens especficas. Numa verso umtanto diluda do mito das trs raas, as maiores percentagens foram: negra, indgena eportuguesa. Isto pode dar a falsa impresso de que os indgenas so uma forte presena nacomposio demogrfica nacional. Mas, a meu ver, o que esses dados sinalizam o desejode realizar a expectativa de que "as populaes mais antigas no pas" (Schwartzman 1999:8), ou seja, as trs raas do mito fundador, so mais importantes para a identidadebrasileira do que os imigrantes tardios. No caso da declarada origem indgena, esse desejo,enquanto expectativa e no realidade, parece evidente face ao reduzido nmero de ndiosno pas e sua relativa segregao da sociedade nacional.

    Diferentemente de pases sul-americanos como Equador, Peru e Bolvia cujapopulao indgena muito grande, se no a maioria, no Brasil registra-se a menorpopulao indgena das Amricas. At mesmo a Argentina, depois das brutais guerras anti-indgenas conhecidas como La conquista del desierto, parece haver mais ndios do que noBrasil em termos absolutos e, certamente, em proporo populao nacional. Enquantono Brasil os ndios representam no mximo 0,5%, na Argentina estima-se que sejam 1%do pas (Hernndez 1992; Hernndez 1995: 267, nota 4). Apesar do constante crescimentodemogrfico desde a dcada de 1950, quando o nmero de indgenas no passava de 100mil (caberiam todos com folga no estdio de futebol do Maracan, segundo Melatti 1980:26), a populao indgena brasileira no representa qualquer ameaa poltica ou geopolticapara o Estado nacional. Existem mais de 200 grupos tnicos falando mais de 170 lnguasdiferentes e vivendo em comunidades muito dispersas, ocupando cerca de 12% doterritrio nacional. Sua educao formal ainda extremamente deficiente e poucoscompletam cursos superiores (Terena 2000). Por todas essas razes, os povos indgenas noBrasil, que j foram maioria em tempos coloniais, atualmente no tm impactosignificativo nem demogrfico nem intelectual nem poltico sobre os assuntos da nao.

    Porm, por menor que seja essa minoria indgena, sua presena simblica tempovoado com grande potncia as mentes e, como revela a amostra de 1998, as veiasimaginadas da sociedade brasileira. Curiosamente, parece que essas veias no so toimaginadas assim, se considerarmos um estudo recente sobre o perfil genmico dapopulao nacional: 60% do DNA brasileiro, especificamente o DNA mitocondrial, ouseja, pela linha materna, de origem indgena (Pena et alii 2000), o que afinal vem darcredibilidade cientfica ao folclore da av ndia que foi apanhada a lao.

    Neste aspecto de minoria visvel, o Brasil no est sozinho. A exemplo do estdiodo Maracan, diz Michael Taussig: "Num pas como a Colmbia, onde toda a genteclassificada pelos censos do governo como ndios caberia em poucas quadras urbanas, aenormidade da magia atribuda a esses ndios surpreendente" (Taussig 1987: 171).Ficamos mesmo tentados a arriscar uma vasta generalizao e dizer que quanto menor apopulao indgena, maior ateno se d a ela. Mas existem fortes contra exemplos, comoa Argentina e os Estados Unidos, s para mencionar dois pases onde os ndios no soapenas minoria demogrfica, mas socialmente invisveis (na Argentina, ver Carrasco eBriones 1996), ou folclorizados at irrelevncia (nos Estados Unidos, ver Stedman1982).

    A inegvel ambivalncia do Estado e sociedade brasileiros para com seus povos

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    indgenas mostra como grande o espao que eles ocupam no imaginrio nacional. Desdeos tempos coloniais at ao presente tem sempre havido duas principais vises sobre o papeldos ndios na vida nacional. De um lado, h a idia de que eles representam tudo de que opas se deve orgulhar: natureza exuberante, ausncia de malcia, vivacidade, afabilidade.Do outro lado, h a postura de que a nao no chegar ao pleno desenvolvimento social,econmico e poltico, precisamente porque existem ndios em seu territrio. Para dar umexemplo dessa ambivalncia subjacente, cito um autor. Afonso Arinos de Melo Franco,proeminente intelectual que, em 1937, escreveu um delicioso livro cantando as virtudesdos ndios brasileiros e sua forte influncia nas ideologias da Revoluo Francesa (Franco1976 [1937]), apenas um ano antes lamentava a imaturidade da vida poltica do pas eatribua o desprezo nacional pela legalidade aos "impulsos dos resduos culturais afro-indgenas" que foram transmitidos aos brasileiros "no 'estgio embrionrio' dos ndios edos negros que fundavam seu mundo na fora e no na razo" (Franco apud Leite 1992:245-247). Esta oscilao entre elogio e condenao a receita tpica para o que GregoryBateson (1972) chamou de double bind. A duplicidade de amor e dio construda naimaginao do pas sobre os ndios, fatalmente passa para os prprios ndios. Portanto, no de surpreender que, h poucos anos atrs, um ndio mestio do sul do pas divagassefilosoficamente: "Meu lado branco vai morrer sem entender meu lado ndio" (Ramos 1998:284).

    O Estado brasileiro tem feito vrias tentativas para acabar com a ambivalnciatnica ao propor mudanas no status especial dos indgenas. Desde a fase colonial, quandoforam ultrapassados demograficamente pelos colonos, os ndios tm sido tratados, tanto nalegislao quanto na prtica, como crianas que precisam de orientao paterna paraalcanar sua maturidade, quer dizer, tornar-se simplesmente brasileiros. O Cdigo Civil de1916, que s em 2002 foi modernizado, juntava os ndios ou silvcolas, os menores deidade e outros cidados legalmente limitados, como as mulheres casadas, na categoria de"relativamente incapazes" para certos atos da vida civil. O novo Cdigo Civil reduz osndios a um pargrafo singularmente brusco: "a capacidade dos silvcolas ser regulada porlegislao especial". Alm do anacronismo da expresso "silvcolas", o que chama aateno que os ndios de carne e osso foram expulsos do Cdigo Civil, mais uma vezrelegados a um canto das preocupaes do Estado. Como sempre, eles nunca foramconsultados sobre essas decises que afetam diretamente suas vidas.

    Na prtica, o status especial de relativamente incapazes significa submeter osndios a um tutor, que o prprio Estado, freqentemente chamado de infiel devido aosconstantes abusos de poder e, em alguns casos, flagrante desrespeito aos direitos humanosdos povos indgenas. Como esse tutor infiel tentou pr um fim tutela? Simplesmente"emancipando" os ndios. Os agentes do governo contavam com o apelo desse subterfgiosemntico: quem poderia ser contra a emancipao, um conceito tradicionalmente usadopara designar a libertao de uma condio opressora? Contavam talvez com uma reaopositiva por parte dos ndios e seus aliados. Mas quando, em 1978, o ministro do Interiorao qual a Fundao Nacional do ndio (FUNAI) estava subordinada, anunciou seu decretode emancipao, encontrou uma tremenda resistncia de ndios, antroplogos, advogados,jornalistas, clrigos e todos aqueles que estavam diretamente engajados ou eram apenassolidrios causa indgena. Por que os ndios rejeitaram a emancipao? Porqueemancipar-se representava deixar de ser ndio. Porque transformados em meros brasileiros,eles passariam a viver em terras que seriam objeto de propriedade privada e, portanto,alienveis, pois no entender dos legisladores, os ndios s teriam direito ao uso exclusivo epermanente de suas terras na condio de se manterem como menores tutelados peloEstado. Em primeiro lugar, no passou pela cabea dos ndios abdicar da sua identidade

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    tnica, no como ndios genricos, mas como membros de etnias especficas, comoTerena, Xavante ou Kayap. Alguns de seus lderes ficaram assombrados com esseprospecto. Em segundo lugar, como cidados comuns, eles no teriam mais a proteoterritorial que lhes fora outorgada quando foram declarados relativamente incapazes. Sobfortes protestos, o decreto de emancipao foi abortado.

    Ao contrrio das levas de imigrantes que povoaram uma parte considervel dopas, especialmente no sul, o projeto indgena no , pelo menos no tem sido at agora,diluir-se na massa indiferenciada da populao nacional pela via da assimilao, comovem ocorrendo com alemes, italianos ou japoneses, leve-se quantas geraes foremnecessrias para tal. Confinar alemes e japoneses em campos vigiados no Brasil durante aSegunda Guerra Mundial mostrou que o Estado esperava deles uma clara inteno de seabrasileirarem. O isolamento fsico foi uma mensagem contundente para que aquelesrecalcitrantes europeus cortassem as lealdades originais ou sofressem as conseqncias.Naquela conjuntura de alta tenso geopoltica, o Brasil mostrou, como que em negativo,que o imigrante aquele distante que se quer prximo.

    Por contraste, as reservas indgenas, para alm da razo bvia e historicamentejustificada de garantir aos povos autctones do pas um mnimo de base vital, tm autilidade adicional de mant-los separados e alheios aos assuntos nacionais. umadistncia cultivada como se fosse uma reserva de ambigidades com as quais a nao podejogar o jogo duplo do ndio como inspirao e do ndio como estorvo, dependendo dascircunstncias e conjunturas especficas. Cumpre-se, assim, a charada do prximo que sequer distante. Em sua grande maioria meros lembretes diminutos do que foram osterritrios tnicos antes da conquista, as reservas so, em si mesmas, uma fonte perene deintolerncia, no porque sem o confinamento controlado os ndios seriam enclavesperigosos, como no caso dos imigrantes oriundos do antigo eixo nazi-fascista, mas porquemuitos brasileiros consideram que h muita terra para pouco ndio. Em suma, onde querque estejam, como quer que sejam, os ndios de carne e osso so como que uma neuroseno resolvida ou uma altercao no apaziguada que o pas tem consigo mesmo. Os ndios-crianas, tutelados do Estado, despertam uma considervel gama de emoes que vaidesde o dio secular de certos segmentos regionais at emulao ecolgico-mstica dequem culpa o ocidente pelos males do planeta (Ramos 2003a).

    O humilhante "status especial" dos ndios como tutelados comeou a mudar coma constituio de 1988 (Ramos 2003b). Pela primeira vez desde 1500, o Brasil tinha umapoltica no assimilacionista para seus povos indgenas. De acordo com a novaconstituio, os ndios tm o direito de manter suas culturas e tradies, a possepermanente de suas terras (mas a propriedade continua sendo da Unio), e a capacidade deiniciar processos judiciais com a assistncia do Ministrio Pblico, sem a interferncia dotutor, a FUNAI. Em outras palavras, a nova constituio decretou a sentena de morte dosistema de tutela. A vida civil indgena pode agora ser dividida em A.C. e D.C Antes eDepois da Constituio. Antes de 1988, ainda no regime militar (1962-1985), certasautoridades estatais, evocando a tutela, declararam ilegal a Unio das Naes Indgenascriada em 1980 (Hohlfeldt e Hoffmann 1982). Depois de 1988, viu-se uma proliferao deorganizaes indgenas, principalmente na Amaznia (Albert 2000). Da em diante,algumas vitrias espetaculares foram ganhas na justia, como o caso dos Panar que estoaptos a receber do Estado uma grande soma de dinheiro como indenizao pelos danos quesofreram durante a "pacificao" na dcada de 1970 (Arnt e alli 1998; Cabral 2001).Houve tambm a deciso de demarcar a terra Yanomami depois de 23 anos de renhidacampanha (Ramos 1995: 286-309).

    As conquistas alcanadas na constituio de 1988 foram fruto de muito trabalho

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    poltico na dcada anterior. Grupos pr-indgenas, incluindo o Conselho IndigenistaMissionrio ligado Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil, foram instrumentais paraprojetar a causa indgena brasileira no circuito internacional dos direitos humanos. Numapoca em que as organizaes supranacionais, como a ONU, a OEA, a OIT, o TribunalRussell, tornaram-se foros regulares que acatavam as demandas de povos indgenas detodo mundo, os ndios brasileiros, ainda novatos nos jogos polticos do Ocidente, tiveramextraordinrio sucesso ao pressionar o Estado brasileiro a rever suas polticas indigenistas.Durante a Assemblia Constituinte de 1987-88, o Congresso Nacional em Braslia assistiuaos esforos do lobby indigenista, talvez o mais forte naquele momento. medida que acausa indgena ganhava maior visibilidade internacional, a ponto de alguns pases seremcensurados por desrespeito aos direitos humanos, os ndios brasileiros iam-se beneficiandodesse clima favorvel. Estavam fortalecidos o bastante para influenciar os congressistas aaprovar leis que reconhecessem a legitimidade das sociedades indgenas com culturas etradies legtimas, terminando, assim, a longa era de assimilao oficial.

    Um dos aspectos que mais favoreceram os povos indgenas foi a grandesensibilidade do Estado brasileiro com relao sua prpria imagem externa. Ameaas dedenncias a agncias internacionais converteram-se em poder de barganha para os ndios.Na dcada de 1980, o Banco Mundial, entre outros, no esforo de mostrar uma carahumana, abriu as portas s reivindicaes indgenas e demandou dos Estados clientes umasrie de condies que incluam medidas de proteo aos povos indgenas afetados porprojetos de desenvolvimento (World Bank 1981) gestos no passassem de fachada, elestiveram algumas conseqncias importantes. Temendo cortes nos emprstimos dos bancosmultilaterais devido ao desleixo para com os povos indgenas, o Brasil foi forado ademarcar uma quantidade de terras indgenas e fornecer um mnimo de assistncia desade (Albert 1989). Em outras ocasies, os financiamentos foram simplesmente cortados,como no caso da cadeia de hidreltricas no rio Xingu, depois do bem sucedido bloqueioorquestrado pelos Kayap que, em 1989, organizaram uma gigantesca demonstrao deprotesto vastamente divulgada pelos meios de comunicao nacionais e internacionais(CEDI 1991: 333; Ramos 2003a).

    De fato, os meios de comunicao, propositalmente ou no, tm sido maiseficientes na defesa dos direitos indgenas do que os instrumentos convencionais. Talvez anovidade do sculo XX tenha sido, no uma diferena qualitativa no tratamento dos povosindgenas pelos Estados nacionais, mas novos modos de defesa pelos prprios ndios. Comalgumas notveis excees (como Chiapas, por exemplo), as batalhas intertnicas vm-setransferindo para os meios de comunicao, tribunais e parlamentos. Ironicamente, foi aviolncia da Segunda Guerra Mundial que trouxe tona essas armas pacficas agora disposio dos povos indgenas.

    No campo contemporneo de confronto entre etnias e Estados, no podemosignorar o papel crucial de um novo ator: as organizaes no governamentais, as ONGs.As primeiras, ainda no chamadas de ONGs, a defender os direitos indgenas foramcriadas em meados da dcada de 1960. Suas aes tiveram efeito imediato, principalmentena Europa, na forma de protestos pblicos, moes, declaraes e outras estratgias. AsONGs tm sido fundamentais para se abrir canais que facultem aos povos indgenasapresentar suas denncias e demandas tanto a nvel nacional como internacional. Suautilidade est justamente no papel que desempenham como comutadores polticos entre olocal e o global. Desse modo, elas conferem aos ndios o poder, pequeno, mas necessrio,que lhes permite ultrapassar a resistncia estatal e lanar sua causa no campo internacional.Os foros supranacionais acolheram inmeras reivindicaes indgenas contra abusos deEstados e censuraram muitos pases por quebra de direitos humanos contra povos

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    indgenas. A histria conta-nos uma longa saga do Estado contra os ndios, mas agoravemos uma luta mais equilibrada em que os ndios so capazes de revidar os golpes contrao Estado.

    Os direitos humanos universais, esta faca de dois gumes, tem sido, na prtica,mais benfica do que prejudicial aos ndios. Sendo uma criao ocidental, ao gosto douniversalismo francs, a declarao universal dos direitos humanos privilegia, acima detudo, os direitos do indivduo, o valor mximo do Ocidente (Dumont 1986). Em teoria,portanto, a nfase indgena no coletivo no seria contemplada nesse compndio deindividualismo. Alm disso, muitas prticas culturais dos ndios entram em franca colisocom os direitos universais vida, como , por exemplo, o caso da execuo sumria defeiticeiros ou do infanticdio que bastante comum em sociedades indgenas da Amaznia.Na prtica, no entanto, a ONU tem feito vista grossa a essas contradies e seguido a linhada defesa dos politicamente mais fracos, tratando-se de indivduos ou de coletividades(Ramos 1990).

    O caso brasileiro demonstra que a internacionalizao da causa indgena e, emconseqncia, o relativo sucesso com que as demandas indgenas se tm tornado visveis,mesmo que nem sempre atendidas, no depende de uma volumosa populao indgena. Oque mencionei aqui contribui para desmentir definitivamente a avaliao de Darcy Ribeirosobre o peso insignificante dos povos indgenas na vida do pas. A populao indgenabrasileira pode ser pequena, mas sua presena forte e essa fora emana de outras fontesque no a densidade demogrfica ou qualquer outra considerao de ordem material.

    A combinao de fatores locais e conjunturas nacionais e internacionais criou ascondies para o surgimento de uma estrutura de interetnicidade propriamente brasileira.Ao mesmo tempo em que compartilham uma srie de caractersticas com outrasinteretnicidades nacionais, a brasileira exibe traos que s podem ser manifestados no meiohistrico especfico da formao nacional do Brasil. Em outras palavras, os ndiosbrasileiros podem partilhar sua indianidade com todos os outros povos indgenas dasAmricas, mas parte de seu modo prprio de ser ndios est no fato de terem sidocolonizados primeiro por portugueses e depois por brasileiros. Assim como Ashis Nandy(1983) descreve em seu livro Intimate Enemy com relao s marcas psicolgicas e sociaisque a Inglaterra gravou nas mentes indianas e que persistiram depois da independncia,tambm os ndios do Brasil no podem mais extirpar de suas vidas as cicatrizes deixadaspelos conquistadores, especialmente os brasileiros, seus inimigos ntimos por excelncia.O corolrio tambm parece ser verdadeiro. O Brasil seria virtualmente ininteligvel sem osndios. O que faria a nao sem o ndio Ancestral que deu legitimidade ao movimentoliterrio do sculo XIX chamado Indianismo e que buscava autenticidade e independnciada hegemonia europia? O que seria o pas sem o ndio que lhe fornece uma montra deornamentos para exibir sua "tolerncia racial"? O que seria da nova ideologia de mercadobaseada no desenvolvimento sustentvel sem o ndio e sua proclamada, mas poucorespeitada sabedoria no trato da natureza? Remova o ndio da paisagem e imaginaobrasileiras e ter um abismo capaz de transformar a brasilidade em algo irreconhecvel.

    Assim so os caminhos cruzados da ideologia e da prtica. Enquanto o ndioAncestral ou o ndio Abstrato, aquele que existe como cone ou da pureza ou do perigo,satisfaz as necessidades do iderio nacional, o ndio concreto, aquele que tem cara, terra edemandas de direito diferena, perturba o sonho de homogeneidade ptria por suainsistncia em se manter inassimilvel. No entanto, se assim se mantm no por desejoapenas seu. O double bind a que a nao o submete contribui para isso ao emitir suasmensagens contraditrias: por um lado, insiste na retrica de transformar o ndio emcidado brasileiro, mas, por outro, no tolera quando esse mesmo ndio mostra interesse

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    em se nacionalizar. Ou seja, a homogeneidade tnica no Brasil to mistificadoraquanto a sua democracia racial.

    Agradecimentos. Sou grata a Wilson Trajano por sua perspicaz leitura deste texto.

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    RESUMO

    Trata-se aqui duas das premissas bsicas sobre a formao da nao brasileira: aunidade territorial e lingstica e a homogeneidade cultural. Uma incurso pela histriadas fronteiras do Brasil com seus vizinhos revela o modo como se foi construindo oBrasil, enquanto nao entre naes, principalmente, por meio da ocupao de facto deterritrios distantes do centro de poder, e depois por meio de argumentos de jrielaborados pela diplomacia brasileira do sculo XIX. Por sua vez, uma anlise daideologia indigenista expe a ambivalncia que a nao brasileira nutre por seus povosindgenas ora tidos como exemplos de pureza e sabedoria, ora como obstculos aodesenvolvimento do pas. nos meandros dessa ambivalncia que os indgenasbrasileiros se distinguem dos demais povos nativos das Amricas e que o Brasil se fazinteligvel como nao que reluta em admitir oficialmente a sua plurietnicidade.

    ABSTRACT

    This paper focuses on two of the main premises underlying the formation of Brazilsnationality, namely, its territorial and linguistic unity, and its cultural homogeneity. Abrief excursion through the history of border negotiations between Brazil and itsneighbors reveals the ways in which that country was progressively constructed as anation among nations, especially by means of de facto occupation of the hinterland, andlater of de juri nineteenth-century diplomatic shrewdness. On another front, an analysisof Brazilian indigenist ideology highlights the ambivalence of the nation vis--vis itsindigenous peoples regarded either as sources of wisdom and purity or as obstacles todevelopment. In the convoluted meanders of this ambivalence Brazilian Indians haveestablished their distinctiveness among other native peoples, while Brazil becomesintelligible in its reluctance to admit its ethnic pluralism.

    Alcida Rita RamosREFERNCIAS