Platão e a Tradição Pitagórica

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Platão e a Tradição Pitagórica “O sages standing in God’s holy fire As in the gold mosaic of a wall, Come from the holy fire, perne in a gyre, And be the singing-masters of my soul. Consume my heart away; sick with desire And fastened to a dying animal It knows not what it is; and gather me Into the artifice of eternity.” - W. B. Yeats O ano era 2010. Em meio a meus deveres de estado, à necessidade de ultrapassar os afazeres puramente acadêmicos e às próprias dificuldades inerentes à faculdade, decidi vasculhar um sebo em Niterói, buscando livros de filosofia. Depois de uma lenta inspeção, descubro um antigo volume jogado no chão. Passando os olhos pela lombada, encontro o nome, já familiar, do filósofo Mário Ferreira dos Santos. Não podia prever que aquele livro desprezado, como a pedra rejeitada pelos construtores, serviria de pedra angular. Os temas apresentados por Mário completariam minha aventura intelectual, orientariam meus interesses filosóficos, direcionariam meus raciocínios. Pois aquele livro era, ao mesmo tempo, fecho de abóboda e fundamento. Continha um programa de estudos inteiro, dos elementos às conclusões. Tratava- se de Pitágoras e o Tema do Número. Nos capítulos finais, Mário ilustra alguns dos perigos pelos quais um interessado na filosofia de Pitágoras poderia passar: “Sabemos que o pitagorismo foi rico em dar seiva a inúmeras seitas, que mais surgiram da deficiência dos discípulos do que da grandeza da obra do grande iniciado que foi Pitágoras. Assim, as seitas gnósticas, como a dos Ofitas, dos Essenianos, dos Cainitas, dos maniqueus, dos paulicianos, dos bogomils, albingenses, cabalistas, rosa-cruzes, as seitas maçônicas, todas, enfim, e longo seria enumerar as outras, beberam seus conhecimentos no pitagorismo e sua heterogeneidade decorre da maneira heterogênea de interpretar o pensamento do grande mestre.” Não sei, até agora, o que me atraiu e fascinou tanto numa coleção de sentenças enigmáticas, desconexas, de autoria desconhecida, que se apresenta como o pensamento de Pitágoras - ainda mais considerando que os pretensos discípulos e herdeiros desse pensamento produziram notáveis disparates metafísicos. E para piorar, havia a ameaça esotérica, maçônica, tradicionalista. Que poder mágico havia naquelas concepções milenares? O que sei é que o próprio Mário julgava positivamente aquele material; enxergava uma elevada espiritualidade naquelas palavras obscuras; chegava a derivar crenças monoteístas e cristãs dos escritos pitagóricos. Recebi um pouco de sua influência, e decidi interpretar a sua interpretação. O resultado dos meus esforços será exposto, brevemente, nesse artigo.

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Platão e a Tradição Pitagórica

“O sages standing in God’s holy fire

As in the gold mosaic of a wall,

Come from the holy fire, perne in a gyre,

And be the singing-masters of my soul.

Consume my heart away; sick with desire

And fastened to a dying animal

It knows not what it is; and gather me

Into the artifice of eternity.”

- W. B. Yeats

O ano era 2010. Em meio a meus deveres de estado, à necessidade de ultrapassar os afazeres

puramente acadêmicos e às próprias dificuldades inerentes à faculdade, decidi vasculhar um

sebo em Niterói, buscando livros de filosofia. Depois de uma lenta inspeção, descubro um

antigo volume jogado no chão. Passando os olhos pela lombada, encontro o nome, já familiar,

do filósofo Mário Ferreira dos Santos. Não podia prever que aquele livro desprezado, como a

pedra rejeitada pelos construtores, serviria de pedra angular. Os temas apresentados por

Mário completariam minha aventura intelectual, orientariam meus interesses filosóficos,

direcionariam meus raciocínios. Pois aquele livro era, ao mesmo tempo, fecho de abóboda e

fundamento. Continha um programa de estudos inteiro, dos elementos às conclusões. Tratava-

se de Pitágoras e o Tema do Número.

Nos capítulos finais, Mário ilustra alguns dos perigos pelos quais um interessado na filosofia de

Pitágoras poderia passar:

“Sabemos que o pitagorismo foi rico em dar seiva a inúmeras seitas, que mais surgiram

da deficiência dos discípulos do que da grandeza da obra do grande iniciado que foi

Pitágoras. Assim, as seitas gnósticas, como a dos Ofitas, dos Essenianos, dos Cainitas,

dos maniqueus, dos paulicianos, dos bogomils, albingenses, cabalistas, rosa-cruzes, as

seitas maçônicas, todas, enfim, e longo seria enumerar as outras, beberam seus

conhecimentos no pitagorismo e sua heterogeneidade decorre da maneira

heterogênea de interpretar o pensamento do grande mestre.”

Não sei, até agora, o que me atraiu e fascinou tanto numa coleção de sentenças enigmáticas,

desconexas, de autoria desconhecida, que se apresenta como o pensamento de Pitágoras -

ainda mais considerando que os pretensos discípulos e herdeiros desse pensamento

produziram notáveis disparates metafísicos. E para piorar, havia a ameaça esotérica, maçônica,

tradicionalista. Que poder mágico havia naquelas concepções milenares? O que sei é que o

próprio Mário julgava positivamente aquele material; enxergava uma elevada espiritualidade

naquelas palavras obscuras; chegava a derivar crenças monoteístas e cristãs dos escritos

pitagóricos. Recebi um pouco de sua influência, e decidi interpretar a sua interpretação. O

resultado dos meus esforços será exposto, brevemente, nesse artigo.

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Minha intenção é enunciar, em forma condensada, alguns temas da metafísica pitagórica e

platônica. O leitor perceberá um forte caráter teológico nesse enunciado; é uma consequência

inevitável das minhas referências. Devo explicar que meu propósito era a conciliação do

pitagorismo “cristianizado” do Mário Ferreira com as informações das doutrinas não-escritas

de Platão, colhidas por Aristóteles. O intermediário que possibilitou essa união não foi outro

senão Plotino, por motivos que serão esclarecidos posteriormente.

Usualmente, a filosofia de Platão é apresentada em função do sentido literal mais grosseiro de

seus escritos publicados. Se levarmos em conta que esses escritos tinham um caráter de

vulgarização, de divulgação da filosofia para um público não-treinado, os limites e as falhas

dessa apresentação ficam evidentes. Quantas vezes não se lê que Platão era um “dualista”, ou

mesmo que os dois mundos postulados por ele eram o mundo das Ideias e o mundo sensível?

Alguns estudiosos têm a perspicácia de introduzir, entre os corpos e as Ideias, o mundo

intermediário das almas; mas dificilmente se evita a concepção do mundo ideal como uma

pluralidade de seres eternos que subsistem em si mesmos. Até o aluno mais ilustre de Platão

confundiu o conhecimento das Ideias com a concepção abstrata, que pode ser feita por

qualquer ser racional. Evitar as imperfeições é difícil, especialmente porque a obra publicada

sugere muitas vezes essa leitura usual. Percebi, há anos, que para entender Platão é preciso ir

além da mera erudição; é preciso passar da letra ao espírito.

As principais inconsistências da visão comum que se tem do platonismo podem ser listadas

assim:

1) As Ideias não podem ser seres independentes uns dos outros, existindo em si mesmos,

e independentes de uma inteligência que as pense. É o que aprendi com Santo Tomás

de Aquino.

2) O Demiurgo (o ser, portador de intelecto, que produz o universo) precisa ocupar um

lugar elevado na hierarquia dos seres, e dificilmente poderia ser inferior às Ideias, em

termos de eminência.

3) Além das almas humanas, até mesmo da Alma do Universo, Platão situa uma

pluralidade de seres inteligentes, inferiores ao Demiurgo.

4) Não há nenhuma prova de que a matéria (de que é feito o mundo físico) seja eterna e

incriada. Embora Platão não diga em momento algum que ela é produzida, a atribuição

de eternidade ao “receptáculo” me parece uma extrapolação indevida.

Meu estudo sobre o pitagorismo e o platonismo teria de evitar essas falhas. A sorte é que eu já

conhecia um intérprete de Platão que satisfazia muitas das condições impostas por mim: o

maior dos neoplatônicos, Plotino. Não tenho a pretensão de fornecer uma introdução a suas

concepções – para esse fim, nada melhor que a História da Filosofia, de Giovanni Reale. No

entanto, vou me remeter a ele constantemente daqui em diante, e por isso espero que o leitor

já tenha alguma familiaridade com o licopolitano. Para simplificar o trabalho, vou citar uma

passagem do próprio Mário Ferreira, com um resumo do neoplatonismo (retirada do

comentário à “Isagoge” de Porfírio).

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“a) Com Plotino, e também com Proclo, o neoplatonismo empreende uma grande

especulação final religiosa. Tudo vem de Deus por graus e tudo volve, por graus, a ele.

A unidade universal se estabelece na continuidade do círculo, que une o término com

o princípio.

b) O primeiro princípio é Deus. Acentua Plotino sua transcendência. Deus é

incognoscível e inefável para os homens, e coloca-o acima de todas as determinações

que possamos conceber do ser, da essência, do pensamento, da vontade, etc.

Podemos de Deus dizer o que não é, nunca o que é. Para falarmos de Deus, temos que

usar nossos termos inferiores e compará-lo ao inferior, chamando-o o Um, Bem, Acto

Puro, etc. Com isso não expressamos a Deus, mas a necessidade e a aspiração das

coisas inferiores, que só podem subsistir pelo apoio da Unidade, do Bem, do Acto

Puro. Deus coloca-se, assim, além de qualquer determinação.

c) É Deus a fonte de todos os seres. Embora não tenha necessidade de movimento e

câmbio, dele emana uma série de outros seres numa procissão descendente. A

emanação deriva desde a essência de Deus, enquanto ele permanece, em si, no acto

de sua essência.

Assim, do fogo que permanece, em si, fogo, emana o calor, ou o sol que,

permanecendo sol, em si, espalha sua luz em todas as direções. Todas as coisas

procedem de Deus, e sem ele não se manteriam, mas Deus transcende a todas as

coisas. É progressiva a descida dos seres. Assim como a luz vai debilitando-se e

obscurecendo-se, quanto mais se afasta de sua fonte, assim, afastando-se da fonte da

Unidade e da Perfeição, os seres vão aumentando em multiplicidade.

Três graus tem esse descer do Um: 1) Intelecto; 2) Alma universal; 3) Mundo corpóreo.

d) O Intelecto é filho e Verbo do Um (Pai). O filho é imagem do pai, porque este é

inteligível puro, e o filho é ao mesmo tempo inteligível e intelecto, ser e pensamento,

objecto e sujeito. Todos os inteligíveis estão reduzidos à unidade e compenetrados

nela.

Como unidade, o Intelecto é imagem do Pai; como totalidade, é exemplar da terceira

hipóstase divina, Alma do Mundo, no qual a totalidade, embora sem dividir-se em si,

se distribui na multiplicidade.

e) O mundo corpóreo, último degrau da descida do ser, está possuído pela alma que

não a possui como coisa sua. Todas as coisas de que se compõe o mundo, derivam da

unidade da Alma, unidade vivente.

Da matéria provém a divisão, a discórdia, porque a matéria é o absoluto mal e não-ser,

degrau último de todas as coisas, limite final da descida. Mas é, na matéria, que se

inicia o retorno, porque o mundo corpóreo é vivente, e o verdadeiro ser do vivente é a

alma.”

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Embora a filosofia de Plotino inclua noções criadas por ele, e que não se devem propriamente

a Platão (como a noção de emanação), o seu esquema básico de entidades primordiais tem

repercussões profundas na obra platônica, e encontra, nela, plena justificação. Para confirmar

essa afirmação, vou enumerar algumas teses presentes no Timeu e na República.

1) O vértice de tudo o que existe é o Bem, que é simultaneamente o melhor dos seres e a

causa de todas as coisas, inclusive das Ideias.

2) O universo em que vivemos é semelhante a uma obra de arte, e foi produzido por um

ser inteligente, que contempla o mundo inteligível e o imita em sua arte. É esse ser

que Platão chama de “Artífice” (Demiurgo).

3) Entre os seres submetidos ao tempo e ao movimento, o mais elevado é a Alma do

Universo, que possui racionalidade e dá vida a todos os corpos, dirigindo os processos

naturais.

A equivalência entre o Bem e o Uno, e entre o Demiurgo e o Intelecto, é inevitável. Surge uma

dificuldade, porém, quanto ao estatuto do Intelecto. Já que ele procede do Uno, é possível

considerá-lo como uma criatura (tentando uma aproximação entre Plotino e a cosmovisão

cristã). Contudo, seu papel de criador do mundo, de artífice, aponta para a divindade. Vemos

que Mário Ferreira apela para a visão cristã ao tratar dessa dificuldade. O Intelecto seria

comparável ao Filho, ao Verbo, à Segunda Pessoa da Trindade. Haveria, portanto, um Primeiro

Deus e um Segundo Deus, sendo esse último a causa eficiente do Universo. A compreensão

dessa sugestão do Mário é fundamental, pois ela retorna, plena de consequências, em sua

interpretação do pitagorismo. Os pitagóricos também reconheceriam presença de um Primeiro

Um (Hen Prote), e de um Segundo Um (Hen Deuteron). Mário atribui ao Segundo Um o papel

de criador, conjugando o mito platônico do Demiurgo com o Gênesis bíblico.

Quanto à Alma do Universo, seu estatuto de produto do Demiurgo, ou de criatura, está fora de

controvérsia. Uma questão complexa é se Platão está falando, literalmente, de uma Alma, ou

se essa é uma expressão alegórica. Muitos platônicos católicos se esforçaram no sentido de

eliminar o conteúdo literal desse mito, e reinterpretaram a Alma como o conjunto de leis que

regem o mundo físico, ou mesmo como a ação do Espírito Santo. Decidi manter a literalidade,

devido à inconsistência das alternativas.

Há um outro problema levantado pela comparação dos escritos platônicos com a filosofia de

Plotino: a declaração de que existem muitos Intelectos, inferiores ao Demiurgo. Plotino não dá

conta dessa passagem do Timeu, e portanto é necessário alterar, levemente, seu esquema.

Após as alterações, teríamos o quadro seguinte:

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Cumpre notar que, nesse esquema alterado, eu introduzi relações de causalidade segundo as

orientações do Mário Ferreira (a geração e a criação). Por meio dessas novas relações, a noção

plotiniana de emanação é eliminada.

A conciliação de Plotino com Platão foi a parte mais simples do meu trabalho, apesar de eu só

conseguir realizá-la completamente após uma ampla pesquisa na bibliografia perenialista.

Somente depois de ter me preenchido de ideias guénonianas, percebi que elas eram

praticamente inúteis, e que o “coração” ou “centro” da tradição pitagórica já estava explícito

no próprio Mário Ferreira. Julgo que tenha exposto suficientemente as linhas mestras do

pitagorismo, e que possa passar, a partir de agora, à segunda parte do trabalho: a introdução

de temas presentes nas doutrinas não-escritas de Platão.

Se o leitor quiser formar uma noção sumária dessas doutrinas, o livro mais indicado é Para

uma nova interpretação de Platão, de Giovanni Reale. Sintetizando os depoimentos de

Aristóteles, encontramos as seguintes doutrinas fundamentais:

1) Além do mundo das Ideias, existe uma dimensão superior: o mundo dos Números

Ideais (que não devem ser confundidos com os matemáticos);

2) Os princípios das Ideias e dos Números são a Unidade e a Dualidade. O primeiro é a

fonte da determinação, a segunda é indeterminada. Os Números e Ideias constituem,

portanto, determinações de um conjunto indeterminado.

3) Os Números primordiais não derivam da Dualidade, apenas da Unidade.

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Aparentemente, Platão não deixou nenhuma pista de como solucionar as aporias implícitas

nessas doutrinas. Assumindo a interpretação baseada em Plotino e no Mário, chegamos a

resultados bem pouco satisfatórios. Por exemplo: haveria um outro Intelecto, superior ao

Intelecto que pensa as Ideias, e que pensasse os Números? Ainda que só existisse um único

Intelecto, seria ele o produto da Dualidade?

Levei aproximadamente quatro anos para chegar a respostas capazes de aplacar minha

inquietude. Nesse processo, perdi meses e meses desenvolvendo concepções maçônicas e

ocultistas, que me pareciam constituir a “filosofia secreta de Platão”. Felizmente, consegui

emergir desse pesadelo, e as soluções que passarei a relatar agora estão livres de qualquer

especulação gnóstica.

A primeira dúvida versa, obviamente, sobre os Números. Quais seriam essas “super-ideias”?

Por que Platão escolheu o simbolismo matemático para representá-las?

Depois de muitas idas e vindas, decidi me ater ao próprio Mário Ferreira, e tentar extrair de

sua visão da Década a solução do problema platônico. No livro Pitágoras e o Tema do Número,

Mário interpreta os Números como Leis Eternas, que governariam todos os seres finitos. Cada

Lei estaria associada simbolicamente a um número aritmético. Assim, a lei que governa as

oposições estria relacionada ao Dois; a Lei da Reciprocidade, ao Quatro, e assim até o Dez.

Ao tentar situar as Leis do Mário na posição suprema que Platão atribui aos Números, eu

constatei uma grave impossibilidade. A Lei do Sete, por exemplo, governaria as mudanças.

Ora, é evidente que essa lei depende, ontologicamente, da Ideia de Mudança. Foi então que se

tornou claro, para mim, o sentido dos Números: eram as próprias Ideias supremas, que Platão

apresenta no Sofista. Entre essas Ideias, estão a Ideia de Identidade, de Alteridade, de

Mudança, e de Totalidade. Mário Ferreira captou algo da verdade, sem ter acertado

completamente. Suas Leis também dependem das Ideias supremas.

E por que Platão chama os gêneros supremos de Números? Será que cada gênero pode ser

simbolizado por um número aritmético?

Minha conclusão é que não é possível fazer essa associação. O símbolo “número” é empregado

devido à relação dos números aritméticos com as figuras geométricas. Assim como uma figura

expressa ou manifesta um número (por exemplo, o quadrado expressa o 4), as Ideias não-

supremas expressam as Ideias supremas (a Ideia de Cavalo, por exemplo, manifesta a Ideia de

Mudança).

Quanto à segunda das doutrinas listadas acima, surgiram os questionamentos mais complexos

e desanimadores. Partindo da premissa de que o mundo das Ideias (e também o mundo dos

Números) constituem noções ou pensamentos do Intelecto divino, como seria possível que

elas dependessem de um princípio indeterminado? O Segundo Deus, como filho, nasce apenas

do Primeiro Deus, que é claramente a Unidade de que Platão está falando. Então o que seria a

Dualidade? Seria um princípio real, complementar ao Primeiro Deus?

Para resolver essa questão, o melhor caminho é meditar sobre a semelhança entre os números

matemáticos e os conceitos humanos, e depois “transladar ao divino” as relações observadas

no ser humano. Notamos que os números agrupam uma multiplicidade. Será que nossas

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outras noções também cumprem esse papel? Tomemos, por exemplo, a noção de cavalo. É

evidente que essa noção resume, e agrupa num conjunto, todos os cavalos possíveis. Esses

possíveis já estavam dados antes do conceito, e nossa concepção mental sintetiza e reúne um

conjunto de cavalos cujas variações são indeterminadas. Os cavalos pequenos, grandes,

malhados, negros, de inúmeras idades ou condições, estão agrupados por uma simples

determinação. Nossa noção, portanto, é uma determinação de um conjunto indeterminado de

possíveis. Ora, é evidente que o mesmo se dá no Intelecto divino. Os possíveis já estão dados

no Ser, no Uno. A multiplicidade indeterminada de seres decorre do Ser. O Intelecto, porém,

pensa as Ideias que resumem, condensam, agrupam a multiplicidade de seres possíveis. Note-

se que os possíveis não são um princípio real, ou um princípio do próprio Intelecto. A

Dualidade (o conjunto de possibilidades) é um princípio das Ideias num sentido atenuado,

quase impróprio. O único princípio real do Intelecto é o Uno.

Finalmente, vou tratar da última doutrina não-escrita: “os Números principais, ou primordiais,

não decorrem da Dualidade”. Na minha opinião, esses Números primordiais consistem nas

Ideias supremas que não agrupam infinitos seres possíveis, mas apontam para um ser único –

o próprio Uno. Seriam, portanto, as Ideias de Uno, de Ser, de Bem, e também de Idêntico. Um

detalhe curioso é que existem quatro Números primordiais. E a Década pitagórica, o Dez

Sagrado, resultava da soma dos quatro primeiros números. 10 = 1 + 2 + 3 +4

***

Penso ter dado uma notícia suficientemente clara das minhas conclusões sobre o pitagorismo

e o platonismo. São o fruto de anos de insistência, e foram construídas segundo o projeto

traçado no livro Pitágoras e o Tema do Número. Mário Forneceu os fundamentos, e me guiou

ao longo de toda a obra. Espero ter chegado à compreensão de suas teses principais; essa

compreensão seria a culminação de um longo trabalho, um verdadeiro fecho de abóboda.