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Pistas para um aporte conceitual: a obra de Mário Praz na arte emblemática do Barroco no Brasil Dra. Yacy-Ara Froner Universidade Federal de Minas Gerais Cada potência possui um rei entre seus atos e um outro entre seus objetos; para a mente, reina o conceito, triunfa a agudeza... Entendimento sem agu- deza nem conceitos, é sol sem luz, sem raios. [...] O que é para os olhos a beleza e para os ouvidos a consonância, equivale o mesmo para o entendi- mento, o conceito. (Benedetto Croce) Introdução Na primeira metade do século XX, estudiosos herdeiros de uma tradição wargbur- guiana procuraram interpretar as variadas configurações simbólicas presentes nas artes visuais, considerando suas relações narrativas, alterações de significado e variações iconográficas na busca de um método de análise fundamentado em bases históricas. O contraponto dos estudos pautados na gênese das imagens – a iconologia – foi a formulação de uma metodologia sociológica ancorada em um estruturalismo que importou o modelo lingüística de Pierce para a abordagem antropológica da cultura. Merleau-Ponty afirma: a tarefa, pois consiste em ampliar a nossa razão a fim de torná-la capaz de compreender o que em nós e nos outros precede e excede a razão – ou seja, a estrutura. A busca de uma legitimidade das ciências humanas na construção do saber e, no caso específico, das diversas formas de interpretação das artes produz uma série de ques- tionamentos: os nomes das coisas nascem de uma postura arbitrária ou da colagem da natureza? O arbitrário do signo, encontrado na língua, repete-se no esquema visual? Desde o fim dos anos sessenta, o esforço dos mais importantes teóricos da arte era o de procurar romper tanto com a crítica de cunho literário quanto com uma filosofia da arte ancorada na fenomenologia e na iconologia, que buscavam o sen-

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Pistas para um aporte conceitual: a obra de Mário Praz na arte

emblemática do Barroco no Brasil

Dra. Yacy-Ara Froner Universidade Federal de Minas Gerais

Cada potência possui um rei entre seus atos e um outro entre seus objetos; para a mente, reina o conceito, triunfa a agudeza... Entendimento sem agu-deza nem conceitos, é sol sem luz, sem raios. [...] O que é para os olhos a beleza e para os ouvidos a consonância, equivale o mesmo para o entendi-mento, o conceito. (Benedetto Croce)

Introdução

Na primeira metade do século XX, estudiosos herdeiros de uma tradição wargbur-guiana procuraram interpretar as variadas configurações simbólicas presentes nas artes visuais, considerando suas relações narrativas, alterações de significado e variações iconográficas na busca de um método de análise fundamentado em bases históricas.

O contraponto dos estudos pautados na gênese das imagens – a iconologia – foi a formulação de uma metodologia sociológica ancorada em um estruturalismo que importou o modelo lingüística de Pierce para a abordagem antropológica da cultura. Merleau-Ponty afirma: a tarefa, pois consiste em ampliar a nossa razão a fim de torná-la capaz de compreender o que em nós e nos outros precede e excede a razão – ou seja, a estrutura.

A busca de uma legitimidade das ciências humanas na construção do saber e, no caso específico, das diversas formas de interpretação das artes produz uma série de ques-tionamentos: os nomes das coisas nascem de uma postura arbitrária ou da colagem da natureza? O arbitrário do signo, encontrado na língua, repete-se no esquema visual?

Desde o fim dos anos sessenta, o esforço dos mais importantes teóricos da arte era o de procurar romper tanto com a crítica de cunho literário quanto com uma filosofia da arte ancorada na fenomenologia e na iconologia, que buscavam o sen-

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tido ontológico das produções visuais. A historiografia da arte, nesse momento, manifestou uma preocupação sistemática na busca de um método que procurasse dar validade às interpretações da “realidade figurativa”. Pierre Francastel, formado por uma prática sociológica, trouxe uma exigência metodológica que abriu as por-tas às operações de formalização dessa epistemologia.

No entanto, para o estabelecimento dos parâmetros e dos paradigmas que deram suporte teórico à essa formalização, muitos estudiosos passaram a desconsi-derar e invalidar o método iconológico/iconográfico de abordagem. Literalmente, jogaram a criança junto com a água da bacia para a construção de um panorama crítico de oposição.

Porém, com o esvaziamento de princípios lógicos operacionais pautados por um racionalidade normativa estrutural, ocorre a possibilidade de, por meio de um distanciamento histórico, reencontrar nos estudos iconológicos as bases indispen-sáveis à percepção de questões que são caras aos estudos posteriores ao estrutura-lismo: para além do confronto entre Platão e Aristóteles; Kant e Hegel; a essência e a existência, as imagens visuais são na mesma medida herdeiras de uma tradição e vulneráveis ao tempo; produtos de um sistema articulado e de dissidências margi-nais a este sistema; arranjos programados para a interpretação narrativa e reinven-ções das práticas normativas.

Se por meio da busca ontológica temos a pretensão – vã – de encontrar a gê-nese que deu origem conceitual a uma esquema – a forma/símbolo primordial –, encontramos nos acidentes do percurso as pistas necessárias para perscrutar e dis-por das marcas que sinalizam o leque de opções interpretativas, no que tange à análise de significado de distintas configurações visuais, disponíveis em determina-dos tempos históricos, meios culturais e estruturas sociais.

Assim, é possível entender em que ponto e em qual medida foi possível rom-per a tradição, falar por meio do inaudito, situar-se a margem, se, antes de tudo, compreendermos qual é a tradição que dá sustentabilidade ao sistema e quais são as possibilidades de transgressão. Nesse sentido, torna-se indispensável aplicar, conforme nomeado em Foucault, uma arqueologia do saber que encontre, por meio de uma avaliação dos modelos, bem como das incoerências, dos interstícios, dos subterrâneos da memória e da história, as bases para as formulações do poder e de suas possíveis contestações.

Desse modo, o método clássico iconográfico sustentado em bases iconológi-cas pode prover os elementos necessários à compreensão de esquemas visuais fi-gurativos, principalmente em contextos que imputaram às formas significados con-ceituais subjacentes ou sentidos simbólicos imanentes: do confronto mimesis versus eikon (ícone), sucede uma agregação ao conceito de “semelhança imagética” de elementos conceituais abstratos sustentados tanto pela poética (ato de criação), quanto pelas instâncias culturais que a precedem.

Considerando esses questionamentos, o método iconológico desenvolvido por Mário Praz (1896-1982) pode dar sustentação às investigações recentes que procu-

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ram analisar as imagens figurativas da devotio moderna instaladas no contexto colonial. Para além de questões formais estilísticas que delimitam os esquemas vi-suais de representação – como barroco, rococó, neoclássico, romântico –, a arte colonial brasileira mantém por meio da perpetuação de determinados modelos narrativo/simbólicos, signos que partilham uma rede de trocas simbólicas, em um contexto de longa duração na produção de imagens vinculadas à essa devoção.

Cabe ressaltar que a produção deste teórico italiano é completamente tributária à sua estreita ligação com o Instituto Warburg, bem como aos seus vínculos com a historiografia da arte inglesa a partir de suas atividades de docência nas Universida-des de Liverpool e Manchester. Sua publicação de 1939 intitulada Studies in Seven-teenth-Century Imagery, traduzida como Estudios de Emblemática em 1964 pela Si-ruela, é pautada por uma metodologia histórica que considera um amplo levantamento documental tanto de fontes escritas quanto de fontes imagéticas para o estabelecimento das molduras de interpretação.

Se a literatura fornece a sustentação às premissas conceituais, isto é porque em ambas as linguagens – literatura e artes visuais – encontram-se presentes os indícios de uma mentalidade, uma estrutura e um modelo de composição narrativo-simbó-lica. Estes esquemas fornecem coerência ao sistema de significados e permitem a leitura destas fontes por meio do cruzamento entre as referências, as semelhanças e as disparidades geradas dentro de um mesmo meio cultural.

Em La Carne, il Diavolo e la Morte nella letteratura romantica (1930), Praz encontra nas metáforas literárias os signos visuais de uma época; mas é em Estudios de Emblemática que o autor demarca o confronto de articulações entre a literatura e as artes visuais produzidas no período moderno: por meio de uma ampla seleção de imagens fundamentalmente provenientes de tratados, percebe a extrema cum-plicidade, a aderência dos sentidos e a correspondência de significados que deter-minam a reciprocidade entre distintas formas de manifestação artística.

Ao contrário do que se imagina, os tratados não são meros esquemas de nor-matizações decorativas, mas testemunhos substanciais de esquemas filosóficos e mentais de uma época: obras fundamentais como Hieroglyphica de Horapollo, Hypnerotomachia Poliphili de Colonna o Emblemata de Alciato, constituem a cul-tura visual e filosófica de um período fundamental da História da Arte e da tradição humanista, como foi o barroco.

Ao sistematizar os códigos, registra a importância incontestável desta tipologia de fonte na formulação da cultura européia e, por conseqüência, de suas colônias: a literatura emblemática difundida a partir do século XVI encontra um volumoso repertório de tratados – mais de setecentos autores levantados por Praz – ou enci-clopédias, excedendo a quatro mil o volume de obras levantado na investigação, tanto em bibliotecas quanto em arquivos europeus.

Conforme Praz, a península ibérica constituía um campo privilegiado para a ma-nifestação desse gênero literário: eruditos, como o padre Menestrier, Silvestro Pietra-santa, Giovanni Ferro, Paolo Aresi ou Filippo Picinelli, sublinhavam já no século XVII

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o jogo conceitual disposto no meio intelectual a partir dessa tipologia literária que reu-nia imagens e texto por meio de um projeto distinto da iluminura medieval.

Se autores contemporâneos como Santiago Sebástian (1986) dão sustentabili-dade à esta tese, considerando o levantamento da tratadística em suas pesquisas, poucos historiadores da arte portugueses ou brasileiros detêm um levantamento substancial das bases literárias que deram suporte aos programas visuais dipostos tanto nas artes gráficas, quanto nas artes decorativas das igrejas, conventos ou es-paços seculares. É incontestável a percepção de que estampas, gravuras e impres-sões – avulsas, em séries ou inclusa em livros (missais, breviários, manuais ...) – ter sido um dos veículos mais importantes para a divulgação do imaginário desse pe-ríodo.

No Brasil, levantamentos pontuais confirmam a presença dessa tratadística: Hanna Levy, em Modelos europeus na pintura colonial (1978); Carlos Ott, em Es-cola Baiana de Pintura (1982) e Valadares (1969) dão sustentação aos seus estudos por meio do encontro com textos clássicos de tratadísticas.

Fontes importantes referentes à construção do pensamento religioso do século XVIII são encontradas em arquivos e bibliotecas brasileiras: O Theatro moral de la vida humana y de toda la philosophia de los antigos y modernos, escrito em 1648 e localizado no Convento Franciscano de Salvador; El museo pictórico y escala óptica (1715) de Antônio Palomino Castro y Velasco e de outros manuais exausti-vamente utilizados pelos pintores setecentistas na área ibérica, como instrumento de aprendizagem e prática perspectiva. Iconologia de Césare Ripa, com uma edi-ção de 1764, pode ser encontrada em seus cinco volumes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Alguns poucos manuais práticos e filosóficos sobrevivem nas bibliotecas e arquivos eclesiásticos, no entanto, a prova mais contundente da influ-ência de modelos europeus encontra-se registrada nas próprias obras dos artistas coloniais.

Partindo dos estudos de Mário Praz, torna-se imprescindível resgatar a influên-cia dos estudos emblemáticos e dos tratados iconológicos para a sustentação de teses interpretativas das fontes visuais relacionadas à devotio moderna. Conside-rando esta proposição, proporemos a aplicação do método disposto nos estudos de emblemática para a apreciação de onze estampas dispostas em Exposição Fúnebre e Symbólica por ocasião das Exéquias de D.Maria Francisca Dorotéia (1771).

1. Vanitas: uma empresa de fundo moral

O reconhecimento dos modelos ou padrões utilizados nos processos de cons-truções figurativas deve procurar apoio nas várias formas de expressão cultural, a fim de que seja possível identificar as influências e a ideologia dissimulada por trás das imagens e das mensagem produzidas ao redor de um determinado tema. A arte figurativa emblemática se desenvolveu desde a Idade Média, sob a forma de hieró-

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glifos, símbolos e alegorias, através de iluminuras de ars moriendi, livros de horas e missais variados. No século XVI adquiriu corpo conceitual, atingindo seu apogeu nos séculos XVII e XVIII sob o domínio da cultura barroca, a qual intensificou o uso do re-curso figurativo como uma composição voltada para a reflexão e a piedade religiosa.

Os emblemas são representações que ilustram um conceito ou uma idéia, adi-cionadas de epigramas ou epitáfios, construções escritas, que reforçam as estruturas construtivas dos sistemas figurativos. Geralmente reproduzem conceitos de fundo moral, os quais são apresentados através de sistemas alegóricos reconhecidos apenas pelo caráter cognitivo dos símbolos presentes; desta forma a mensagem é apreendida através de um esforço intelectual, indispensável para se atingir sua compreensão. O discurso alegórico empregado nos emblemas, empresas e epigramas demonstra a interdependência entre a linguagem (plástica e discursiva) e a função didática (moral, religiosa, política) destas formas de expressão1.

Normalmente, conceituamos por emblemas, desenhos alegóricos - introduzidos ou não em textos sob forma de gravuras -, acompanhados de um lema explicativo, destinado a ensinar de forma intuitiva uma verdade moral. Assim, estas formas de expressão constituem uma transição da alegoria poética. Uma vez que para a alego-ria poética as coisas geralmente se convertem em conceitos através de metáforas - com o objetivo de se alcançar a compreensão através da imagem -, do mesmo modo é possível que uma figura pintada seja acompanhada de uma expressão, atribuindo à pintura, não apenas um valor estético, mas o caráter de criação poética2.

Assim, as formas plásticas se tornam carregadas de preceitos morais e filosófi-cos, elaboradas a partir de estudos aprofundados. Aparecem de um método siste-mático de construção intelectual, tornando-se mais importantes pelos seus concei-tos intrínsecos e significados inerentes do que pela sua condição estética.

Porém, ainda que Schopenhauer destaque a qualidade expressiva e conceitual da imagem alegórica, diminuindo seu valor estético e pictórico (considerados se-cundários neste gênero de representação), a arte voltada para a construção emble-mática foi capaz de produzir obras de qualidade estética inegável, como a obra De symbolicarum quoestionum Libri V, de Aquile Bocchi (Bolonha, 1555), que rece-beu ilustrações gravadas por mestres como Giuliu Bonasone e Agostino Carracci.

A origem destas formas de expressão remonta ao período alexandrino (ut pictura poesis), tendo sido divulgada com os primeiros cristãos e mantida viva ao longo da Idade Média na reproduções dos bestiários, lapidários e reflexões sobre a morte. Além de representar objetos do mundo visível, simbolizam idéias e sistemas de pensamento,

1 PRAZ, 1989, p:24. Empresa: conjunto de emblemas de um mesmo conteúdo conceitual ou programa moral; Emblema: representação figurativa, alegórica ou simbólica, acrescida de uma tarja ou bandeira escrita (neste caso, a representação tem mais força que as palavras). Epigrama: metáfora poética acrescida de imagem para reforçar a mensagem alegórica (neste caso, a linguagem é mais forte que a imagem plástica).2 SCHOPENHAUER. Die Welt. Apud PRAZ, 1989, p:18.

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os quais encontram-se associados às concepções e atitudes frente ao universo, a sensi-bilidade e a mentalidade projetada em um determinado tempo/espaço.

Um dos poetas precursores do uso da emblemática na construção de sua obra foi Petrarca que, utilizando recursos fantásticos e simbólicos de tradição medieval, procurou registrar em seu Trionfi a visão do tempo e da eternidade através do uso de sistemas alegóricos. Ao longo do Renascimento, a poesia de Petrarca forneceu imagens aos emblemistas, os quais as utilizaram tanto na composição figurativa das alegorias, quanto na exposição dos epitáfios das ilustrações da época.

No século XVI, o manuscrito grego de Hieroglyphica de Horapolo, adquirido em 1419 pelo abade florentido Cristoforo de Buodelmonti, foi editada por Aldo Manúncio (1505) e despertou um grande interesse por parte de estudiosos italianos, como Ficino e Alberti, os quais, por sua vez, propagaram seus conceitos, delinean-do as linhas intelectuais de sua época. Rica em sistemas figurativos simbólicos provenientes de tradições antigas, esta obra despertou o apetite da inteligência e dos sentidos, abrindo caminho para um processo de erudição associada à sublima-ção dos recursos pictóricos. Em 1517 é traduzida para o latim por Filippo Fasanini, contribuindo sobremaneira para os estudos emblemáticos através de suas constru-ções fantásticas, que encantaram olhos e imaginação. Presente na Biblioteca Na-cional, em Portugal, a edição romana de 1597 provavelmente influenciou os trata-distas desse reino católico3.

Assim, o século XVI, sob a influência dessa tipologia de fontes, adquire um gosto especial pela imagem alegórica e emblemática, como fator de doutrinação moral e religiosa. A poética torna-se fascinada pela construção figurativa, encon-trando satisfação em explicar a palavra através do acréscimo de uma representação plástica. Por outro lado, a arte, principalmente aquela voltada para a doutrinação religiosa, apoiá-se nos epitáfios a fim de orientar os sentidos aguçados pela cor, pelas formas, luz e sombras.

Uma das obras mais significativas do período foi o Emblematum Liber (1531) de Alciato, um dos livros mais importantes da cultura ocidental e realmente fundamental para a compreensão da época humanista e barroca; o êxito do livro, justificado pelo número de edições consecutivas devidamente ilustradas (gravadas), demonstra a pene-tração desta literatura e sua influência nas composições seguintes.

O emblema iria comportar-se como um jogo didático calculado para ensinar de forma intuitiva uma verdade moral, unindo os sentidos e o intelecto, através de uma composição entre a linguagem plástica e a linguagem poética. Ainda no XVI, Cesáre Ripa afirma em sua Iconologia que algumas imagens tem a capacidade de persuadir pelos olhos, outras movem a vontade mediante o uso das palavras...4.

Forjados no corpo de uma cultura pautada pelos conflitos religiosos, os sécu-los que produziram os grandes místicos também fizeram os grandes emblemistas.

3 GONZÁLEZ DE ZARÁTE, 1989, p. 245-255.4 CESÁRE RIPA (1593), Apud GOMBRICH, 1986, p: 232.

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Sob a égide da devotio moderna, ambos buscaram a pureza dos sentidos em suas formas de expressão: acaso porque sua imaginação era demasiado vívida, busca-ram abrigo em um mundo vazio de percepção, no inefável5.

Os emblemistas, munidos de fontes clássicas e medievais – conteúdos filosófi-cos, poéticos e pictóricos de tradições antigas – recorreram a toda sorte de material disponível para a elaboração de seus tratados. Estes, impressos por editores espe-cializados, foram divulgados pelo mundo moderno, influenciando outros gêneros de pinturas e ilustrações, colaborando no processo de doutrinação nos quatro can-tos da terra, inclusive nos países coloniais.

Além da ampla divulgação, a composição emblemática, organizando formas e palavras no jogo das ilustrações místicas, adquire uma certa abrangência e totalidade no sistema de educação moral e religiosa da Igreja: se por um lado atinge o espírito através da representação plástica, por outro desperta a consciência e aguça o processo de asso-ciação cognitiva através da mensagem exposta nas frases demarcadas (epitáfios).

No final do século XVI o jogo intelectual se intensifica, orientando cada vez mais a construção dos emblemas: quanto mais complexa e repleta de significados for sua execução, mais conceituado será o seu construtor: Emblemas, Hieróglifos, Apó-logos e Empresas são como pedras preciosas no ouro de um elegante discurso6.

No entanto, a complexidade das formas emblemáticas ao invés de contribuir à sua disseminação promoveu, na verdade, o impedimento de sua leitura: somente alguns poucos privilegiados eram capazes de traduzir e decifrar as ilustrações que cada vez mais se tornaram jogos intelectuais.

Neste sentido, já no século XVII, Plunche propõe a claridade como perfeição alegórica no discurso emblemático de fundo religioso, pois, apenas sua compreensão poderia justificar sua existência: pois uma obra está apenas destinada a me induzir à meditação, é, portanto ridículo que eu me esforce por entendê-la7. A procura de uma maior clareza na transmissão das mensagens morais e religiosas viriam de encontro às propostas da Reforma Tridentina, que reforçando o processo de conversão pelos sentidos, incentivou todos os mecanismos que levassem à submissão pela fé.

Desse modo, a questão doutrinal do XVII determina uma certa mudança no caráter discursivo do jogo emblemático: se num primeiro momento as palavras ti-nham por objetivo intensificar o enigma proposto na teia das figurações, em um outro momento elas procuraram integrar e afirmar o significado da construção pic-tórica, a fim de transmitir uma mensagem mais clara, inteligível e acessível aos fi-éis. Assim, a construção emblemática também se modificaria para atender às novas exigências da Igreja.

5 PRAZ, 1989, p: 18. 6 GRACIÁN (1649), Apud PRÁZ, 1989, p: 20.7 PLUNCHE (1748), Apud GOMBRICH, 1986, p: 213.

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A necessidade de alimentar o olhar tanto quanto os outros sentidos, de como-ver a imaginação ao nutrir o coração, o intelecto e a fantasia, produziu toda uma classe de espetáculos, sagrados e profanos, tão freqüentes nos países ibéricos. Pro-cissões, catafalcos, iluminações, arcos, estátuas de cartão, montagens efêmeras, empresas e emblemas, todos os recursos eram empregados para expressar a fé8.

Um dos primeiros estudos emblemáticos direcionados à aplicação religiosa foi Emblème au divise chrestiennes de Georgette de Monterey (Lyon, l571). Nesta obra, as empresas de pobreza, castidade, obediência e humildade desfilam marcadas pela ri-queza e pela exuberância das volutas, guirlandas de flores e frutos que, por contraste, sugerem a opulência da vida. O princípio de contradição utilizado nesta obra propõe o reforço da idéia principal, onde antagonismo e oposição atuam como espelho da ima-gem refletida - o inverso da imagem real. Este recurso, amplamente utilizado por An-tônio Vieira em seus Sermões � demonstra uma mudança de sensibilidade nas formas de exposição e expressão religiosa, pautada durante o Renascimento pelo uso da metá-fora10, que agora prefere a oposição e o antagonismo.

Neste contexto, o Concílio de Trento ao reafirmar o papel da imagem como instrumento de doutrinação e manifestação de devoção, irá enfatizar as imagens associadas à reflexão da morte: o crânio torna-se figura indispensável nas represen-tações dos santos e nas construções emblemáticas de fundo religioso. A inspiração destas formas pavorosas, distantes do sentimento italiano, parece proveniente de um dos santos promotores do espírito da Reforma Católica: São Inácio de Loyola, autor de uma obra capital sobre a disciplina da piedade – Exercícios Espirituais – apresenta de forma esquemática um modo de oração sistemático, com uma parte dedicada à composição de lugar11.

Nos exercícios ignacianos de 1687, recomenda-se que a primeira meditação se faça de olhos fechados diante de uma caveira. Outros textos como o de Frei Luiz de Grabada (1554) e Luiz de la Puente (1624), dedicam capítulos inteiros às medi-tações sobre a morte. Com o Discurso de la Verdad, Miguel Mañara inicia uma série de meditações sobre a vaidade (vanidad/vanitas) das coisas terrenas:

Mira una bóveda: entra en ella con la consideración, y ponte a mirar tus padres o tu mujer: mira qué silencio. No se oye ruido: sólo el roer de las carcomas y gusanos tan solamente se percibe. Y el estruendo de pajes y lacayos, ? dónde está? Acá se queda todo. Llega a un osario, que está lleno de huesos de difuntos, distingue entre ellos el rico del pobre, el sabio del necio, el chico del grande: todos son huesos, todos calaveras, todos guardan la igual figura12.

8 CROCE, 1957, p: 438. 9 VIEIRA, 1655, AEPNSP-OP (FI). “Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz...”10 TESAURO, Apud PRAZ, 1989, p: 20. 11 SEBÁSTIAN, 1986, p: 93. 12 MAÑARA, Miguel (1675). Apud SEBÁSTIAN, 1986, p: 94.

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Neste terreno, a literatura emblemática - voltada quase que exclusivamente para o jogo intelectual -, se encontra com a literatura religiosa - voltada para a doutrina-ção moral -, fazendo com que os emblemas se utilizem dos conceitos e recursos citados acima para ilustrar um dos maiores sentimentos projetados pela época bar-roca: o sentido de efemeridade da vida terrena (vanitas).

Amplamente empregados nas ilustrações de relatos e textos referentes às solemnes exéquias de grandes personagens, homens ilustres, nobres e reis, os emblemas, viriam confirmar através de alegorias, as qualidades do protagonista, além de expor a condi-ção fugaz do ser humano, destacando a fragilidade da vida e a força do tempo.

1. A princesa morreu! Viva a princesa!

Ao final do relato Exposição Fúnebre e Symbólica por ocasião das Exéquias de D.Maria Francisca Dorotéia (1771), podemos encontrar uma série de onze gravuras emblemáticas e uma representação macabra destinada à apresentação de seu mau-soléu, correspondendo aos modelos compositivos conceituados acima13.

Os emblemas expostos nesse texto de comemoração fúnebre têm por objetivo reforçar os conceitos descritos no relato, materializando por meio das ilustrações as idéias de castidade e pureza da infanta; crueldade do tempo; efemeridade da beleza, do poder e da riqueza; vanidade da existência e da vida.

A composição da ilustração se revela da seguinte maneira: as mensagens, ex-teriorizadas por meio do emblema, são codificadas por uma alegoria que aparece ao centro, sobre um epitáfio em latim; este conjunto recebe um contorno de volu-tas e rocalhas assimétricas, como se fosse um caixilho, dando à imagem a aparên-cia de um quadro ou espelho; acima, dissociado da ilustração, encontra-se a indi-cação numérica do emblema (EMBL* I). Este tipo de empresa, ou conjunto de emblemas de conteúdo comum, remete a uma outra forma de expressão temática específica – o Vanitas – um modelo de representação moral desenvolvido no inte-rior do pensamento religioso e filosófico e que aponta o fim derradeiro e a efeme-ridade da vida terrena como modelo pedagógico de conversão.

O tema do Vanitas ou desengano desenvolve-se neste período a partir de refle-xões de tradições antigas e de pensamentos filosóficos contemporâneos. A vida, percebida como algo perecível e ilusório, é contemplada por meio de uma série de símbolos místicos, sinais, mitos, emblemas, alegorias, signos e atributos, sob os

13 Exposição Fúnebre e Symbólica..”. de autoria do Reverendo João de Souza Tavares e ou-tros escritos compostos por ocasião das exéquias de D.Maria Francisca Dorothéia, Infanta de Portugal. Exposição oficiada no Arraial do Paracatú por determinação de D.José Luiz de Menezes Castelo Branco e Abranches, Conde de Valadares, Governador e Capitão general da Capitania das Minas Gerais (1771). IEB-USP (MS).

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quais o triunfo de um pensamento ocorre a partir de seu poder de expressão, de transmissão da mensagem.

Toutefois, en contepoint de témoignages apparemment si massilfs, s’impose à nous avec force le constat d’une évolution profonde de la sensibilité d’élite. C’est ce que j’appellerai, pour faire court, le passage de l’image de conversion, agressive, terrificant, à l’ image support de méditation, donc de cette conversion individualle intimisée dont la VANITÉ devient l’expression la plus typique14.

Apesar deste tipo de produção estar destinada a todas as pessoas – pois ela encontra-se instalada em locais públicos –, o programa de construção deste imagi-nário é decorrente de uma proposta da elite, cuja sensibilidade se expressa por meio de uma reflexão elaborada ao redor do espírito do tempo, pautada principal-mente por uma construção intelectual e uma agudeza de espírito, cuja leitura do pensamento acerca da fragilidade do mundo e de sua destruição eminente perpas-sa por princípios filosóficos discutidos nos meios eruditos e cristalizadas por meio de motivos alegóricos.

No dicionário latino encontramos: Vanitas (Vanus) – 1.Aparência vã; aparência não real, mentira, falsidade; 2.Futilidade, frivolidade, vaidade 3.Inutilidade; 4.Vazio, oco, fútil, vaidoso. Vanum - 1.nada. O Vanitas, um gênero característico de pintura moral, geralmente remete a dois contextos específicos: citações bíblicas, principalmen-te aquelas retiradas do livro de Eclesiastes; e pinturas ilustrativas, muitas vezes associa-das à Natureza Morta. O tema da morte, o qual gerou representações específicas na Idade Média – como a Roda da Fortuna; Os três mortos e os três vivos; a Dança Maca-bra; Ars moriendi –, também triunfou nas obras de Petrarca e Dante, nos mausoléus de Michelangelo Buonarrotti e nos afrescos de Lorenzo Costa, do Renascimento italiano. Contudo, o retrato macabro ou a natureza morta de fundo meditativo, reuniu conceitos de tradições variadas, definindo novos significados a alegorias antigas.

O retrato macabro, comum no final do século XV e início do XVI, principal-mente nas regiões dos Países Baixos, se apresenta geralmente sob a forma de dípti-co: em uma face aparece a ilustração da vida e em outra a representação da morte; remetendo à juventude e à velhice; ao frescor e à podridão. Este tipo de pintura irá influenciar mais à frente a elaboração de naturezas mortas voltadas para a reflexão macabra. A partir destas obras, uma série de retratos macabros se desenvolveu no decorrer do século XVII por meio de um gênero que se tornou bem popular: a na-tureza morta macabra ou Vanitas. A vida silenciosa da natureza que se extingue aparece neste tipo de representação por meio da composição de coisas vivas e inanimadas, dispostas no quadro de maneira aparentemente desconexa e casual, guardando, porém, significados intrínsecos. Geralmente acrescido de epitáfios, este tipo de representação pode ser classificado como emblema, sendo que as fra-

14 VOVELLE, 1986, p: 100.

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ses mais comumente empregadas são: Vanitas, vanitatun; Sic transit glorie mundi; Memento Mori.

Os tratados de emblemática constituem um artigo sempre presente nos catálo-gos de vendedores de livros antigos, demonstrando a abrangência e o nível de circu-lação que estas fontes impressas tiveram no decorrer dos séculos XVII e XVIII. Os editores do mundo moderno, ao perceberem o interesse despertado ao redor deste tipo de obra, produziram um número elevado de publicações, sendo a maioria escri-ta em latim, principalmente quando se trata de obra de origem eclesiástica. A divul-gação deste tipo de fonte nos países coloniais contribuiu de maneira relevante no processo de transmissão do pensamento de origem européia, influenciando tanto à literatura quanto às artes plásticas. De acordo com Sylvio de Vasconcelos, o próprio Antonio Francisco Lisboa haveria de ter recebido lições de composição e princípios de heráldica com o mestre gravador e o abridor de cunhos, João Gomes Batista, con-tratado pela Casa de Fundição (Vila Rica – 1724), a partir de 1751. Por outro lado:

É fora de dúvida que grande número de pintores nacionais utilizou modelos da arte européia. Daí o caráter eclético da pintura colonial, vista em conjun-to, e daí o caráter heterogêneo que se nota freqüentemente nas obras de um mesmo artista15.

Além de Hanna Levy, vários especialistas, como Salomão de Vasconcellos e Luiz Jardim, colocam que muitos artistas brasileiros fizeram uso de gravuras euro-péias como modelos figurativos para a composição de suas obras de arte, sendo destacado o pintor mineiro Manuel da Costa Athayde pelo uso relativamente cons-tante das gravuras da edição ilustrada da Bíblia – Histoire Sacrée de la Providence et de la Conduite De Dieu Sur les Hommes Depuis le Commencement – e de gra-vuras de Rubens. Ademais dessas constatações, Germain Bazin identificou o em-prego de estruturas emblemáticas na construção de um painel de azulejaria no convento de São Francisco na Bahia (1750). O modelo de inspiração desta obra faz parte da empresa Emblemata Horatiana de Vaenius e segundo o autor é de origem holandesa ou portuguesa.

Carlos Ott também descreve um exemplar de O Theatro moral de la vida hu-mana y de toda la philosophia de los antigos y modernos (1648) na biblioteca do convento franciscano da Bahia. Esta obra, ilustrada com uma série de emblemas morais, demonstra a evidência deste tipo de fonte no contexto colonial e sua pos-sível influência nas estruturas de construção plástica, uma vez que a maioria das obras de arte produzidas no período se desenvolvia dentro dos esquemas e dos li-mites da Igreja e da religiosidade.

Contudo, ainda que Luiz Jardim afirme que nesta tradição estivesse perdido o valor de ação social – contra-reformista –, devemos considerar que a arte deste

15 LEVY, 1978, p: 98.

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período se reveste de um outro tipo de valor social, em função de um outro tipo de contexto específico: o apelo aos sentidos por meio de pompas e ornamentações grandiosas. Este apelo ocorre, principalmente, com o intuito de manter coesas as formas culturais da tradição do colonizador, além de afirmar, tanto nas formas de-corativas quanto nos programas conceituais, o poder do Estado português.

A região de Minas Gerais, marcada pela proibição do estabelecimento de con-ventos e ordens primeiras, registra com mais intensidade as questões levantadas aci-ma: enquanto outras localidades coloniais puderam gozar de uma influência direta da arte erudita eclesiástica e do ecumenismo nas pinturas decorativas, as pinturas decorativas nas igrejas mineiras ficaram muitas vezes restritas aos programas e às possibilidades de cada uma das irmandades. De uma maneira ou de outra, as pintu-ras decorativas das irmandades brancas, representando santos como que reservados à adoração privada e particular, eram mais elaboradas devido à condição privilegia-da dessas irmandades, que poderiam contratar os melhores artistas, arquitetos, dou-radores. Por sua vez, as decorações nos edifícios das irmandades de cor faziam-se aos poucos, com provisões escassas para o pagamento dos ajustes, quase sempre paralisados no meio das obras. Brancas ou negras, as irmandades rivalizavam na construção de seus templos.

O ecletismo presente nas obras dessas irmandades é capaz de reunir motivos variados, como a pintura das paredes laterais na Igreja Matriz de Santa Efigênia, no Alto da Cruz de Ouro Preto, que apresenta cenas cortesãs de nobres brancos ca-çando, cantando e cortejando, numa total contradição aparente com o espírito místico de uma das irmandades de cor mais fortes de Vila Rica. Até o estabeleci-mento do primeiro bispado da Capitania das Minas Gerais em 1758, quando as bibliotecas dos bispos e de alguns padres mais bem qualificados começaram a in-fluenciar os gostos – como se pode observar nos esquemas decorativos a partir da segunda metade do século XVIII – poucas igrejas puderam contar com um modelo mais erudito para sua proposta decorativa.

Sólo recientemente hemos podido poner en evidencia que el lenguaje emble-mático, vigente en la cultura europea desde el Renacimiento, también pasó al otro lado del Atlántico y tenemos testimonios de su presencia en Iberoaméri-ca, tanto en la parte española como en la portuguesa16.

Estas áreas encontraram um espaço propício para a propagação da pintura emblemática principalmente após a edição da obra de Alciato, Emblematum Liber (1531), traduzida em 1549 para o castelhano e que recebeu uma versão mexicana publicada pelo impressor Antonio Ricardo, sendo amplamente utili-zada pelos jesuítas para uso doutrinal em seus colégios. Além deste texto, no campo da retórica, da gramática e da poética, o livro de Cipriano Soárez De arte rhetorica libri tres ex Aristote, Cicerone et Quintiliano deprompti (Coimbra, 1561),

16 SEBÁSTIAN, 1990, p: 249.

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também presente nas bibliotecas dos jesuítas, permitiu o contato com exercícios de emblemas e empresas dentro dos ensinamentos de retórica. Na obra de Santiago Sebástian, vários exemplos demonstram a aplicação de conceitos de emblemática em modelos decorativos: o programa moral da casa do fundador de Tunja (Colôm-bia); os programas místicos de Cuzco e Arequipa baseados em Affectos divinos con emblemas sagradas (Valladolid, 1638) e Pia desideria, do jesuíta Hugo Herman.

Falta-nos, ainda, aplicar a metodologia iconográfica calcada nos tratados de em-blemática estruturados em Mario Praz e Santiago Sebástian às fontes selecionadas. É preciso cruzar os referências textuais com os manuais disponíveis e, assim, apreender os sentidos dispostos nas imagens atreladas aos epitáfios. De uma maneira geral, os icogramas representativos da igreja em chamas; da mulher repleta de chagas ao lado de um esqueleto que segura uma ampulheta; do pássaro fênix; do cipreste e da rosa; do sol poente; do barco na tempestade; da própria alegoria do amor sagra-do; das rosas espelhadas; do leão caído e da torre destruída por um raio, de ime-diato nos remetem ao poder de Deus, à efemeridade da vida e à esperança da fé na redenção e na ressurreição. Considerando tais questões, as bases conceituais para este estudo já estão postas.

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Emblema VII: Nec ultraEmblema XI: Somnus bula, vitrum, gla-cies, flos, fabula, foenum, umbra, cinis, punctum, vox, founus, aura, nihil

Emblema II: Nefeis hora veniam, sem-per vigila

Emblema III: Ut vivam in aeternum