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RADIOMENSAGEM NA SOLENIDADE DE PENTECOSTES50 ANIVERSRIO DA CARTA ENCCLICA"RERUM NOVARUM"DE LEO XIII1 de junho de 1941

Ao mundo todoIntroduo1. A solenidade de Pentecostes, glorioso natal da Igreja de Cristo, apresenta-se ao nosso esprito, amados filhos do mundo inteiro, como um suave e propcio convite, que nos est incitando a dirigir-vos, entre as dificuldades e contrastes do tempo presente, uma mensagem de amor, de exortao, e de conforto. Falamo-vos num momento em que todas as energias e foras fsicas e intelectuais de uma poro cada vez maior da humanidade, com um ardor e em medida nunca dantes conhecidos, atuam sob a frrea e inexorvel lei da guerra; e do alto de outras antenas so emitidos acentos repassados de exasperao e de acrimnia, de diviso e de luta.

2. Mas as antenas da colina Vaticana, da terra consagrada pelo martrio e pelo sepulcro do primeiro Pedro, como centro intemerato da Boa Nova e da sua benfica difuso no mundo, no podem transmitir seno palavras inspiradas e animadas do esprito consolador daquela pregao com que no primeiro Pentecostes a voz de Pedro ressoou e se comoveu Jerusalm: esprito de ardente amor apostlico, esprito que no sente desejo mais vivo, nem alegria mais santa do que a de conduzir a todos, os amigos e inimigos, aos ps do crucificado do Glgota, ao sepulcro glorioso do Filho de Deus e Redentor do gnero humana para persuadir a todos que s nele, na verdade por ele ensinada, no amor demonstrado e vivido por ele, que passou fazendo o bem e sarando a todos at sacrificar a si mesmo pela vida do mundo, pode-se encontrar salvao verdadeira e duradoura felicidade para os indivduos e para as naes.

Vantagens do Rdio3. Nesta hora prenhe de acontecimentos; dominados pelo divino conselho, que rege a histria das naes e vela sobre a Igreja, ao fazer-vos ouvir, amados filhos, a voz do Pai comum para ns alegria e satisfao ntima, chamar-vos como que a uma universal assemblia catlica para que saboreeis praticamente, no vnculo da paz, a doura docor unum et anima una(cf. At 4,32), que cimentava sob o impulso do Esprito divino, a comunidade de Jerusalm no dia de Pentecostes. Quanto mais difcil tornam, em muitos casos, as condies originadas pela guerra, um contato direto e vivo do Sumo Pastor com a sua grei, com tanto maior gratido utilizamos a rapidssima ponte de unio que o gnio inventivo da nossa poca lana instantaneamente atravs do ter, pondo em comunicao por sobre montes, mares e continentes todos os recantos da terra. E o que para muitos arma de combate, para ns transforma-se em instrumento providencial de apostolado ativo e pacfico, que realiza e eleva a um novo significado a palavra da Escritura: "Pela terra inteira correu sua voz; at os confins do mundo suas palavras" (Sl 18,5; Rm 10,18). Parece que se renova assim o grande milagre de Pentecostes; quando as diversas gentes vindas de regies de outras lnguas a Jerusalm ouviam no prprio idioma a voz de Pedro e dos apstolos. Com prazer sincero nos servimos hoje de um meio to maravilhoso, para chamar a ateno do mundo catlico sobre uma data, digna de ser gravada com caracteres de ouro nos fastos da Igreja: o qinquagsimo aniversrio da publicao, a 15 de maio de 1891, da fundamental encclica socialRerum Novarumde Leo XIII.

A Igreja e a Ordem social4. Movido pela profunda convico de que Igreja compete no s o direito, mas o dever de pronunciar uma palavra autorizada sobre as questes sociais, Leo XIII dirigiu ao mundo a sua mensagem. No que ele pretendesse estabelecer normas sob o aspecto puramente prtico, quase diramos, tcnico, da constituio social; porque bem sabia, e era para ele evidente, que a Igreja no se arroga tal misso - como declarou, h um decnio, nosso predecessor de saudosa memria, Pio XI, na sua encclica comemorativaQuadragesimo anno.- Na esfera geral do trabalho abre-se ao desenvolvimento so e responsvel de todas as energias fsicas e espirituais dos indivduos, s suas organizaes livres, um vastssimo campo de ao multiforme, onde o pblico poder intervem com a ao integrante e ordenadora, primeiro por meio das corporaes locais e profissionais, depois por fora do prprio Estado cuja suprema e moderadora autoridade social tem o importante oficio de prevenir as perturbaes de equilbrio econmico nascidas da pluralidade e dos contrastes dos egosmos concorrentes, individuais e coletivos.

5. Ao contrrio indiscutvel competncia da Igreja, da qual a ordem social se aproxima e atinge o campo moral, ao julgar se as bases de uma determinada organizao social esto em acordo com a ordem imutvel, que Deus Criador e Redentor manifestou por meio do direito natural e da revelao: dupla manifestao a que se refere Leo XIII na sua encclica. E muito bem: porque os ditames do direito natural e as verdades da revelao promanam por diversos trmites da mesma fonte divina como duas correntes de gua no contrrias, mas concordes; e porque a Igreja, guarda da ordem sobrenatural crist em que concorrem a natureza e a graa, deve formar as conscincias, inclusive as daqueles que so chamados a encontrar as solues dos problemas e deveres impostos pela vida social. Da forma dada sociedade, conforme ou no s leis divinas, depende e infiltra-se o bem ou o mal nas almas; isto , se os homens, chamados todos a serem vivificados com a graa de Cristo, nas contingncias terrenas do curso da vida respiram o so e vivificante hlito da verdade e da virtude moral ou o bacilo morboso e muitas vezes mortfero do erro e da depravao. Perante tal considerao e previso, como poderia ser lcito Igreja, Me to amorosa e solcita do bem de seus filhos, ficar espectadora indiferente dos seus perigos, calar ou fazer que no v nem pondera condies sociais que, voluntria ou involuntariamente, tornam rduo e praticamente impossvel um modo de vida cristo conforme aos preceitos do Supremo Legislador?

Benefcios da encclica "Rerum Novarum"6. Cnscio desta gravssima responsabilidade, Leo XIII, dirigindo a sua encclica ao mundo, apontava conscincia crist os erros e perigos resultantes da concepo de um socialismo materialista, as fatais conseqncias dum liberalismo econmico, muita vez ignaro ou esquecido ou desprezador dos deveres sociais, expunha com magistral clareza e admirvel preciso, os princpios necessrios e conducentes a melhorar gradual e pacificamente as condies materiais e espirituais do operrio.

7. E se hoje, decorridos cinqenta anos desde a publicao da encclica, nos perguntais, amados filhos, at que ponto e em que medida correspondem os resultados s nobres intenes, ao pensamento rico de verdade, a benfica orientao desejada e sugerida pelo seu sbio autor, julgamos dever responder-vos: precisamente para dar a Deus Onipotente, do fundo da nossa alma, humildes graas pelo dom h cinqenta anos concedido sua Igreja com aquela encclica do seu Vigrio na terra, e para o louvar pelo sopro de Esprito renovador, que desde ento e de modo cada vez maior, por meio dela se difundiu sobre a humanidade inteira, que ns, nesta solenidade do Pentecostes nos propusemos dirigir-vos a nossa palavra.

8. J nosso predecessor Pio XI na primeira parte da sua encclica comemorativa exaltou a esplndida messe que tinha produzido aRerum Novarum, germe fecundo donde se desenvolveu uma doutrina social catlica, que ofereceu aos filhos da Igreja, sacerdotes e leigos, regulamentos e meios para uma reconstruo social, exuberante de frutos; de modo que por ela surgiram no campo catlico numerosas e variadas instituies benficas, e florescentes centros de socorros mtuos. Quanta prosperidade material e natural, quantos frutos espirituais e sobrenaturais, no advieram aos operrios e s suas famlias das associaes catlicas! Quo eficaz e oportuna no se demonstrou a ao dos Sindicatos e das Associaes em prol da classe agrcola e mdia, para a aliviar nas suas necessidades, para lhes assegurar defesa e justia, e por tal modo, mitigando as paixes, preservar de perturbaes a paz social!

9. Nem foi esta a nica vantagem. A encclicaRerum Novarum, acercando-se do povo, e abraando-o com estima e amor, penetrou nos coraes e nas inteligncias da classe operria, infundiu-lhes sentimentos cristos e dignidade cvica; por isso a fora do seu ativo influxo, com o decorrer dos anos, foi-se expandindo e difundindo to eficazmente, que as suas normas quase se tornaram patrimnio comum de todos os homens. E ao passo que o Estado no sculo XIX, por uma excessiva exaltao da liberdade, considerava como seu fim exclusivo tutelar a liberdade com o direito, Leo XIII advertiu-o de que era tambm seu dever aplicar-se providncia social, cuidando do bem-estar do povo inteiro e de todos os seus membros, particularmente dos fracos e deserdados, com uma larga poltica social e com a criao de um direito do trabalho. A sua voz ecoou profundamente; e rigoroso dever de justia reconhecer que a solicitude das autoridades civis de muitas naes tem melhorado notavelmente a condio dos trabalhadores. Por isso disse bem quem chamou aRerum Novaruma "Magna Carta" da atividade social crist.

A encclica "Quadragsimo Anno"10. Entretanto passava um meio sculo, deixando sulcos profundos, tristes fermentos no terreno das naes e das sociedades. As questes que as mudanas e revolues sociais e sobretudo econmicas ofereciam a um exame moral depois daRerum Novarum, foram tratadas com penetrante agudeza pelo nosso imediato predecessor na encclicaQuadragesimo anno. O decnio subseqente no foi menos rico do que os anos anteriores de surpresas na vida social e econmica, foi desaguar as suas correntes irrequietas e escuras no plago de uma guerra que pode dar origem a ondas imprevistas, capazes de abalar a economia e a sociedade.

11. difcil designar e prever na hora presente quais os problemas e assuntos particulares, talvez totalmente novos, que a vida social vir a apresentar solicitude da Igreja depois do conflito que pe frente a frente tantos povos. Todavia como o futuro tem suas razes no passado, e a experincia dos ltimos anos nos pode ser mestra do porvir, ns pensamos aproveitar a hodierna comemorao para dar ulteriores diretrizes morais sobre trs valores fundamentais da vida social e econmica; e f-lo-emos animados do mesmo esprito de Leo XIII, desenvolvendo as suas vistas verdadeiramente mais que profticas, pressagas do nascente processo social dos tempos. Estes trs valores fundamentais que se entrelaam, soldam-se e se apoiam reciprocamente so: o uso dos bens materiais, o trabalho, a famlia.

Uso dos bens materiais12. A encclicaRerum Novarumexpe sobre a propriedade e sobre o sustento do homem princpios que com o tempo nada perderam do seu valor congnito e hoje, distncia de cinqenta anos, conservam ainda e jorram vivificante a sua ntima fecundidade. Ns prprio, na encclicaSertum laetitiae, endereada aos Bispos dos Estados Unidos da Amrica do Norte, chamamos a ateno de todos sobre o seu ponto fundamental, que afirma, como dissemos, a exigncia incontestvel de que os bens criados por Deus para todos os homens, afluam a todos eqitativamente, segundo os princpios da justia e da caridade.

13. Com efeito, todo homem, como vivente dotado de razo, recebeu da natureza o direito fundamental de usar dos bens materiais da terra, embora se deixe vontade humana, s formas jurdicas dos povos o regular mais particularmente a sua prtica atuao. Este direito individual no pode de modo nenhum ser suprimido, nem sequer por outros direitos certos e pacficos sobre bens materiais. Sem dvida a ordem natural, que tem em Deus a sua origem, requer tambm a propriedade particular e a liberdade das transaes comerciais como tambm a funo reguladora do poder pblico sobre estas duas instituies. Tudo isto contudo fica subordinado ao fim natural dos bens materiais, nem pode prescindir do primeiro e fundamental direito, que a todos concede o seu uso; mas antes deve servir a tornar possvel a sua atuao em conformidade com o seu fim. S assim se poder e dever conseguir que a propriedade e o uso dos bens materiais dem sociedade paz fecunda e consistncia vital, e no constituam circunstncias precrias, causadoras de lutas e invejas, quando abandonadas ao jogo desapiedado da fora e da fraqueza.

14. O direito natural ao uso dos bens materiais, por estar intimamente conexo com a dignidade e com os outros direitos da pessoa humana, oferece a ela, com as formas acima indicadas, uma base material segura, de suma importncia para se elevar ao cumprimento dos seus deveres morais. A tutela deste direito assegurar a dignidade pessoal do homem e tornar-lhe- fcil atender e satisfazer em justa liberdade quela soma de obrigaes estveis e de decises, de que diretamente responsvel perante o Criador. De fato tem o homem o dever absolutamente pessoal de conservar e de aperfeioar a sua vida material e espiritual, para conseguir o fim moral e religioso, que Deus assinalou a todos os homens dando-lhe como norma suprema, obrigatria sempre e em todos os casos, antes de todos os outros deveres.

O Estado e a pessoa humana15. Tutelar o campo intangvel dos direitos da pessoa humana e tornar-lhe fcil o cumprimento dos seus deveres eis o ofcio essencial de todo o poder pblico. No porventura este o significado genuno do "bem comum", que o Estado deve promover? Daqui decorre que o cuidado de tal bem comum no importa um poder to extenso sobre os membros da comunidade que em virtude dele seja permitido autoridade pblica cercear o desenvolvimento da ao individual acima descrita, decidir sobre o princpio ou sobre o termo da vida humana, determinar a seu talante a maneira do seu movimento fsico, espiritual, religioso e moral em oposio com os direitos e deveres pessoais do homem, e, para isso, abolir ou tornar ineficaz o direito natural aos bens materiais. Deduzir to grande extenso de poderes do cuidado do bem comum seria o mesmo que inverter o prprio sentido do "bem comum" e cometer o erro de afirmar que o fim prprio do homem sobre a terra a sociedade, que a sociedade fim a si mesma, que o homem no tem outra vida que o espera fora da que termina neste mundo.

16. A prpria economia nacional, sendo fruto da atividade dos homens que trabalham unidos na comunidade do Estado, no visa a outro fim seno a assegurar sem interrupo as condies materiais em que possa desenvolver-se plenamente a vida individual dos cidados. Onde quer que isto se obtenha de modo duradouro, ser o povo na realidade economicamente rico, porque o bem-estar geral e, por conseguinte, o direito pessoal de todos ao uso dos bens terrenos assim atuado conforme as intenes do Criador.

Justa distribuio dos bens17. Donde podereis facilmente ver, amados filhos, que a riqueza econmica de um povo no consiste propriamente na abundncia dos bens, medida segundo um cmputo puramente material do seu valor, mas sim no fato de que essa abundncia represente, oferea real e eficazmente a base material que baste ao devido desenvolvimento pessoal dos seus membros. Se esta justa distribuio dos bens no fosse atuada ou o fosse s imperfeitamente, no se atingiria o verdadeiro fim da economia nacional; pois que, embora circulasse uma afortunada abundncia de bens disponveis, o povo, no participando deles, no seria economicamente rico, mas pobre. Ao contrrio, fazei que esta justa distribuio seja realmente efetuada de modo estvel e vereis um povo, ainda que disponha de menores bens, tornar-se e ser economicamente so.

18. Julgamos particularmente oportuno apresentar vossa considerao estes conceitos fundamentais, relativos riqueza e pobreza dos povos, hoje que se propende a medir e julgar da riqueza e pobreza com balanas, critrios puramente quantitativos, tanto do espao como da cpia dos bens. Se, porm, pondera-se retamente o fim da economia nacional, ento este tornar-se- luz aos esforos dos homens de Estado e dos povos, e os iluminar para que espontaneamente se orientem para um caminho, que no exigir contnuos gravames de bens e de sangue, mas dar frutos de paz e de bem-estar geral.

O trabalho19. Com o uso dos bens materiais vs mesmos, amados filhos, compreendeis que est relacionado o trabalho. ARerum Novarumensina que duas so as propriedades do trabalho humano: "pessoal" e "necessrio". pessoal, porque se efetua com o exerccio das foras particulares do homem; necessrio, porque sem ele no se pode granjear o indispensvel vida, cuja manuteno dever natural, grave, individual. Ao dever pessoal do trabalho, imposto pela natureza, corresponde e segue-se o direito natural a cada indivduo de fazer do trabalho o meio para prover vida prpria e dos filhos: to altamente ordenado conservao do homem o imprio da natureza.

20. Mas notai que esse dever e o relativo direito ao trabalho imposto, concedido ao indivduo em primeira instncia pela natureza e no pela sociedade, como se o homem no fosse outra coisa seno um simples servo ou funcionrio da comunidade. Donde se segue que o dever e o direito de organizar o trabalho do povo pertence primeiro que tudo aos imediatamente interessados: dadores de trabalho e operrios. E se eles no cumprem a sua obrigao ou no a podem fazer por contingncias especiais e extraordinrias, ento entra no ofcio do Estado intervir no campo, na diviso e distribuio do trabalho, pela forma e medida exigidas pelo bem comum retamente entendido.

21. Em todo caso qualquer interveno legtima e benfica do Estado no campo do trabalha deve ser tal, que salve e respeite o seu carter pessoal, tanto em teoria como, nos limites do possvel, tambm na prtica. E isto suceder, se as normas do Estado no abolirem nem tornarem impossvel o exerccio de outros direitos e deveres igualmente pessoais: quais so os direitos ao verdadeiro culto de Deus; ao matrimnio; o direito dos cnjuges, do pai e da me, a viverem vida conjugal e domstica; o direito a uma razovel liberdade na escolha do estado e em seguir uma verdadeira vocao; direito, este ltimo, pessoal mais que nenhum outro, da alma humana, direito excelso quando se lhe juntam os direitos superiores e imprescindveis de Deus e da Igreja, como na escolha e no exerccio das vocaes sacerdotais e religiosas.

A famlia e seu espao vital22. Segundo a doutrina daRerum Novarum, a prpria natureza vinculou intimamente a propriedade particular com a existncia da sociedade humana e com a sua verdadeira civilizao, e, em grau eminente, com a existncia e o desenvolvimento da famlia. Esse vnculo mais que evidente. No deve porventura a propriedade particolar assegurar ao pai de famlia a s liberdade de que precisa para poder cumprir os deveres prescritos pelo Criador, concernentes ao bem-estar fsico, espiritual e religioso da famlia?

23. Na famlia encontra a nao a raz natural da sua grandeza e potncia. Se a propriedade particular deve concorrer para o bem da famlia, todas as normas pblicas, antes, todas as leis do Estado que regulam a sua posse, devem no s tornar possvel e conservar essa funo - que na ordem natural sob certos respeitos superior a qualquer outra - mas ainda aperfeio-la cada vez mais. Com efeito, seria antinatural um decantado progresso civil, que - ou por excesso de impostos ou por demasiadas ingerncias imediatas - tornasse sem sentido a propriedade particular, tirando praticamente famlia e ao seu chefe a liberdade de procurar o fim assinalado por Deus ao aperfeioamento da vida familiar.

24. Entre todos os bens que podem ser objeto da propriedade particular nenhum mais conforme natureza, segundo a doutrina daRerum Novarum, do que o terreno, ou a casa onde habita a famlia e de cujos frutos tira total ou parcialmente com que viver. E segundo o esprito daRerum Novarumafirmar que, de regra, s a estabilidade enraizada num terreno prprio faz da famlia a clula vital mais perfeita e fecunda da sociedade, unindo esplendidamente com a sua progressiva coeso as geraes presentes e as futuras. Se hoje o conceito e a criao de espaos vitais est no centro das finalidades sociais e polticas, no se deveria, antes de tudo o mais, pensar no espao vital da famlia e libert-la de condies que no lhe permitem sequer a formao da idia de um lar prprio ?

25. O nosso planeta com to vastos oceanos, mares e lagos, com montes, planaltos cobertos de neves e gelos eternos, com grandes desertos, terras inspitas e estreis, no carece de regies e terras vitais, abandonadas ao capricho vegetativo da natureza, aptas para a cultura da mo do homem e acomodadas s suas necessidades e s suas operaes civis; muitas vezes inevitvel que algumas famlias, emigrando daqui ou dali, procurem algures uma nova ptria. Ento, segundo a doutrina daRerum Novarum, deve respeitar-se o direito da famlia a um espao vital. Onde isso suceder, conseguir a emigrao o seu fim natural, confirmado freqentemente pela experincia, queremos dizer, a distribuio mais conveniente dos homens sobre a superfcie terrestre, favorvel a colnias de agricultores; superfcie que Deus criou e preparou para o uso de todos. Se as duas partes, a que permite deixar a terra natal e a que recebe os recm-chegados, mantiverem-se lealmente solcitas em eliminar quanto possa impedir a formao e desenvolvimento de uma verdadeira confiana entre o pas de emigrao e o pas de imigrao, todos auferiro vantagem dessa mudana de lugares e de pessoas: as famlias recebero um terreno que ser para elas terra ptria no verdadeiro sentido da palavra; as terras de grande densidade de populao ficaro descongestionadas, e os seus povos ganharo novos amigos em territrios estrangeiros; e os Estados que acolherem os emigrados ganharo cidados laboriosos. Assim as naes que do, os Estados que recebem, contribuiro igualmente ao incremento do bem-estar humano e ao progresso da civilizao.

A chama do esprito social26. So estes, amados filhos, os princpios, os conceitos, as normas com que ns quisramos desde j cooperar na futura organizao da ordem nova, que o mundo espera do imane fermento da presente luta, deseja que nasa e tranqilize os povos na paz e na justia. Que nos resta, seno, no esprito de Leo XIII e segundo os seus nobres conselhos e intenes, exortar-vos a continuar e promover a obra, que a precedente gerao de vossos irmos e das irms vossas to animosamente fundaram? No deixeis que em meio de vs se apague nem afrouxe a voz insistente dos dois Papas das encclicas sociais, que altamente aponta a quantos crem na regenerao sobrenatural da humanidade o dever moral de cooperarem para a organizao da sociedade, e especialmente da vida econmica, estimulando a agir no menos os que participam desta vida que o prprio Estado. No esse um sagrado dever para todo o cristo? No vos desalentem, amados filhos, as dificuldades externas, nem vos desanime o obstculo do paganismo crescente da vida pblica. No vos enganem os fabricantes de erros e de teorias derrancadas, tristes correntes, no de incremento, mas de decomposio e runa da vida religiosa; as quais pretendem que, pertencendo a redeno ordem da graa sobrenatural e sendo por isso obra exclusiva de Deus, no precisa da nossa cooperao sobre a terra. Oh, mesquinha ignorncia da obra de Deus! "Jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se estultos" (Rm 1,22). Como se a primeira eficcia da graa no fosse corroborar os nossos esforos sinceros para cumprir todos os dias os mandamentos de Deus, como indivduos e como membros da sociedade; como se h dois milnios no vivesse nem perseverasse na alma da Igreja o sentimento da responsabilidade coletiva de todos para com todos, responsabilidade que moveu os espritos at ao herosmo caritativo dos monges agricultores, dos redentores de escravos, dos ministros dos enfermos; dos arautos da f, portadores da civilizao, da cincia a todas as idades e a todos os povos; para criar condies sociais que so as nicas capazes de tornar possvel a todos a prtica de uma vida digna do homem e do cristo. Mas vs, conscientes e convencidos de tal e to sagrada responsabilidade, no vos contenteis nunca, no fundo da vossa alma, com aquela geral mediocridade pblica, na qual o comum dos homens no pode, seno fora de atos hericos de virtude, observar os divinos preceitos, sempre e em todas as circunstncias inviolveis.

27. Se por vezes apareceu evidente a desproporo entre os propsitos e a sua atuao, se houve faltas, comuns alis a toda a atividade humana, se surgiu divergncia de opinies acerca do caminho trilhado ou a trilhar, nem por isso deveis desanimar nem afrouxar o vosso passo nem multiplicar queixas ou desculpas; tudo isto no pode fazer esquecer o fato consolados que da inspirada mensagem do pontfice daRerum Novarumjorrou viva e lmpida uma nascente de esprito social, forte, sincero, desinteressado; uma nascente que se hoje pode em parte ser encoberta por uma sucesso de acontecimentos diversos e mais fortes, amanh, removidas as runas deste ciclone mundial, ao iniciar-se o trabalho de reconstruo da nova ordem social, que oxal seja digna de Deus e do homem, infundir um novo e enrgico impulso, uma nova onda de vida e de crescimento em toda a florao da cultura humana. Guardai a nobre chama do esprito social fraterno, ateado h meio sculo nos coraes de vossos pais pelo facho luminoso e iluminante da palavra de Leo XIII; no deixeis nem consintais que lhe falte o alimento e, cintilando como as vossas homenagens comemorativas, morra, apagada por uma ignara, cautelosa, esquiva indiferena para com as necessidades dos mais pobres de nossos irmos ou revolta no p e no lodo pelo turbilho do esprito anticristo ou no cristo. Alimentai esta chama, espevitai-a, erguei-a, dilatai-a; levai-a a toda a parte onde ouvis um gemido de aflio, um lamento de misria, um grito de dor; inflamai-a continuamente com o fogo do amor que ireis buscar ao Corao do Redentor divino a quem consagrado o ms que hoje comea. Ide quele Corao divino, manso e humilde, refgio de toda a consolao na fadiga e no peso do trabalho; o Corao daquele que a cada obra genuna e pura, feita em seu nome e segundo o seu esprito em favor dos que sofrem, dos aflitos, dos abandonados do mundo e dos deserdados de bens e fortuna, prometeu a eterna recompensa beatfica: Vs, benditos de meu Pai! O que fizestes ao mais pequenino de meus irmos, a mim o fizestes!

PIO PP. XII