PINTURA NA FACHADA - TROCAS E VIVÊNCIAS ENTRE MORADORES E ALUNOS DO JARDIM SÃO MARCOS - CAMPINAS,...
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PINTURA NA FACHADA: TROCAS E VIVNCIAS ENTRE MORADORES EALUNOS DO JARDIM SO MARCOS - CAMPINAS, ATRAVS DA
INTERVENO URBANA
Marina Mayumi Bartalini- Unicamp
RESUMO
O presente trabalho referente minha experincia como arte-educadora do ProjetoPintura na Fachada, com alunos da EMEF Padre Jos Narciso Vieira Ehrenberg, situada nobairro Jardim So Marcos em Campinas. O projeto consiste em colocar os alunos emcontato com os moradores do bairro, para investigar os mltiplos olhares dos moradoresantigos acerca do bairro onde vivem. A partir dessa investigao e de conversas informais eentrevistas, os alunos identificaram os elementos imagticos presentes no discurso dosmoradores, para reproduzi-los na pintura mural que feita na fachada das casas dosmoradores entrevistados. A pintura mural nas fachadas das casas baseia-se na linguagemdas intervenes urbanas como instrumento crtico e investigativo das relaes sociais dacomunidade local.
Palavras chave: Arte-educao, Interveno Urbana, Cidade.
Abstract
The present work is related to my experience as an art educator in Painting on FacadeProject, with students from EMEF Padre Jos Narciso Vieira Ehrenberg school, located at
Jardim So Marcos in Campinas. The project is to put students in contact with the residents,to investigate the multiple perspectives of the old residents about the neighborhood wherethey live. From this research and informal conversations and interviews, students identifiedthe imagistic elements present in the discourse of the inhabitants, to reproduce the mural ismade on the facade of the houses of the residents interviewed. The mural paintings on thefacades of the houses based on the language of urban interventions as critical andinvestigative tool of social relations of the local community.
Key words: Art Education, Urban Intervention, City.
De que maneira possvel construir conhecimento, a partir das trocas mtuas quevivenciamos enquanto pesquisadores-educadores? Como resistir barbrie por
meio da Educao? Como a Arte pode ajudar na valorizao das sensibilidades? De
que maneira, a Arte pode proporcionar experincias num mbito coletivo em meio ao
caos da cidade?
As relaes entre Arte, Cidade e Educao me instigam na medida em que as
vivencio diariamente, como educadora, como artista visual e como moradora de uma
cidade grande, repleta de desigualdades, incongruncias, e dinmicas prprias,como a cidade de Campinas. Embora existam os rtulos, que tendem a nos
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enquadrar, acredito somos tudo o que fazemos e pensamos e, que trabalho artstico,
pesquisa e prtica devam fazer parte de uma grande rede interligada pela
afetividade e vontade de transformao do que pr-estabelecido, por meio da
criao artstica, investigao terica, e postura poltica.
Os processos educativos em Arte-educao que procuro desenvolver como arte
educadora, pretendem sempre que possvel, transcender os muros das escolas e
instituies, a fim de buscar um meio que possibilite a criao de espaos libertrios
atravs do questionamento das normas sociais, que vivenciadas na cidade, so
interpretadas como verdades nicas.
Ao integrar os processos educativos em artes com a linguagem da Interveno
Urbana, percebi de maneira prtica, que ao buscar no espao urbano, em seus
cdigos, e em sua dinmica peculiar, os elementos para a discusso em aula,
acerca dos problemas sociais e polticos que perpassam por todas nossas relaes
no ambiente em que vivemos, possvel encontrar algumas respostas quanto s
maneiras poticas e polticas de nos expressarmos e nos posicionarmos atravs da
arte. E no qualquer arte, mas sim, aquela que interaja com as pessoas, provocando
uma reao imediata entre a obra e o meio (espao e pblico), em determinadotempo e lugar.
Interveno Urbana o termo utilizado para designar os movimentos artsticos
relacionados s intervenes visuais realizadas em espaos pblicos. A interveno
sempre inusitada, na maioria das vezes realizada a cu aberto referindo-se a
aspectos da vida nos grandes centros urbanos. Por ter um carter crtico, seja do
ponto de vista ideolgico, poltico ou social, as aes artsticas e interventivas em
espaos pblicos, visam apontar espaos degradados ou abandonados, esquecidos
depois da afirmao dos novos centros. Por meio do uso de prticas que se
confundem com as da sinalizao urbana, da publicidade popular, dos movimentos
de massa ou das tarefas cotidianas, artistas ou coletivos de artistas que trabalham
pelo vis da Interveno Urbana, pretendem abrir na paisagem pequenas trilhas que
permitam escoar e dissolver o insuportvel peso de um presente cada vez mais
opaco e complexo. As intervenes visam intensificar a percepo dos espaos,
trazer tona significados ocultos ou esquecidos, apontar para novas possibilidades
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e usos, redimensionar sua organizao estrutural, sugerir novas e inusitadas
configuraes. (PEIXOTO, 2002: p. 13)
As intervenes no so vivenciadas apenas atravs da contemplao, pois setratam de aes que acontecem atravs da participao de quem passa por ela.
Buscam provocar reaes e transformaes no comportamento, nas concepes e
percepes dos indivduos, como um componente de subverso ou questionamento
das normas sociais, ou tambm atravs do engajamento com determinadas
proposies polticas ou problemas sociais, sempre a interromper o curso normal
das coisas atravs da surpresa, do humor, da ironia, da crtica ou do estranhamento.
A escolha por trabalhar meios de interveno a partir de uma potica que aponta
sutilezas, movimentos, e que provocam o pblico quanto sua participao ativa e
crtica na cidade, visa um olhar para uma Arte-educao de carter crtico.
A valorizao de experincias coletivas no cotidiano de espaos educativos que
propiciam trocas mtuas de saberes entre educadores e alunos, especificamente em
espaos de educao no formal, certamente nos levam a acreditar que a
resistncia existe mesmo em meio ambientes em que a barbrie de uma
sociedade desigual, est colocada de maneira imperativa.
Walter Benjamin, um historiador das sensibilidades e crtico da cultura (FREIRE,
1997: P. 43), em seu texto Experincia e Pobreza de 1933, nos indica atravs de
alguns exemplos, a grande crise da experincia que surge a partir do momento em
que o desenvolvimento da tcnica se sobrepe ao homem, e o que pode acontecer
quando a experincia nos subtrada:
(...) prefervel confessar que essa pobreza de
experincia no mais privada, mas de toda a humanidade.
Surge assim uma nova barbrie. Barbrie? Sim. Respondemos
afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de
barbrie. Pois o que resulta para o brbaro dessa pobreza de
experincia? Ela o impele a partir para frente, a comear de
novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem
olhar nem para direita nem para a esquerda. (BENJAMIN,
1933: p.115-116)
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Sonia Kramer, ao argumentar em seu artigo acerca da educao contra a barbrie
diz:
Penso que no corremos o risco de chegar barbrie;vivemos nela. E devemos educar contra a barbrie, o que
significa colocar o presente numa situao crtica e
compreender que o passado ao precisaria ter sido o que foi, o
presente pode ser diferente do que , e o futuro pode mudar a
direo que parece inevitvel. (FREIRE, 1997: p. 43)
Kramer, ao afirmar que a barbrie o agora, nos d a dimenso da urgncia de
pensarmos em meios de resistncia contra a normalidade vivenciada diariamente
no s ao ligarmos a televiso e assistir s notcias mundiais de um telejornal, mas
tambm logo ao sair de casa, e estar to imerso num mundo to catico e violento, e
nem mesmo perceber a realidade perversa em que estamos inseridos. Como diz
Benjamin, impelidos a ir para frente, sem olhar para os lados, apenas cegamente
seguindo uma direo reta, apenas nos preocupando muito menos em viver, e muito
mais em sobreviver barbrie instaurada.
A apreenso do mundo a partir da valorizao de experincias coletivas e mais
completas se tornou um embate com a realidade advinda da modernidade capitalista
que impe um ritmo acelerado do tempo e das relaes. A busca por maneira de
apropriao dos espaos pblicos, mesmo aqueles que passam despercebidos ao
olhar cotidiano, vai contra uma viso individualista dos espaos, que protege o que
privado, sem se dar conta de que o espao pblico tambm lhe pertence, e que
pode ser resignificado, a partir de suas prprias percepes.
Um trabalho de interveno urbana que questiona as relaes entre a cidade e seus
habitantes a partir das escalas arquitetnicas urbanas, o trabalho do cineasta
Tadeu Knudsen, intitulado Quanto pesa vale, realizado em 1994, feito para o
evento Arte/Cidade 2 - A cidade e seus fluxos, em que 20 artistas, dentre eles,
fotgrafos, artistas visuais, cineastas, arquitetos, foram convidados a realizar
trabalhos de interveno nos espaos urbanos do centro da cidade de So Paulo. O
trabalho de Knudsen consistia em uma interveno no Vale do Anhangaba, entreos viadutos do Ch e Santa Ifignia. Treze faixas de tecido branco com 1,50m de
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largura por 20m de comprimento, dispostas lado a lado, formando uma tela de 20m x
20m foram presas pela base de ferro tubular de 3m de altura e 25m de comprimento,
como uma passarela. Na outra extremidade das telas foram atados 13 bales de ar,
ou seja, as faixas brancas ficaram flutuantes como uma imensa tela de cinema em
meio paisagem da cidade. Ao invs de filmes, o que eram projetadas nessa tela,
eram as sombras gigantes dos transeuntes que passavam na frente de potentes
canhes de luz. As sombras eram do tamanho dos altos edifcios do centro de So
Paulo.
Por se tratar de um trabalho de carter urbano e pblico, estava sujeito ao
vandalismo que partia principalmente de crianas em situao de rua do centro de
So Paulo. Em depoimento sobre sua interveno na publicao impressa do evento
Arte/Cidade, Knudsen conta o quo impressionante foi observar que ao mesmo
tempo em que sua obra sofria com a depredao, tambm funcionava ludicamente,
pois as crianas que viviam na rua, e se utilizavam dela para criarem suas
brincadeiras, brincavam com as prprias sombras e achavam graa, ao verem suas
silhuetas gigantes, projetadas no tamanho dos altos prdios da cidade que os na
maioria das vezes os exclui e finge que no os v.
A experimentao e a experincia so uma constante para trabalhos de Interveno
Urbana que so modelados pela noo de fluxo, movimento, ruptura e provocao,
que so caractersticas que se encontram na organizao do evento Arte/Cidade,
como afirma o coordenador Nelson Brissac:Ao contrrio dos dispositivos expositivos
convencionais, Arte/Cidade assume um alto grau de experimentao, lidando com
fatores e variveis que escapam previso e ao controle; componentes que dizem
respeito ao jogo dos atores no espao urbano, uma indeterminao que prpria dacidade. (PEIXOTO, 2010: p.88)
As experincias que tenho vivenciado, desde maro de 2011, como educadora em
um espao de Educao No Formal, com o nome de Pintura na Fachada, em
parceria com a escola EMEF Padre Jos Narciso Vieira Ehrenberg no bairro Jardim
So Marcos em Campinas, So Paulo, trouxeram diversas reflexes acerca das
possveis construes de conhecimento que acontecem atravs da interao entre
aluno,escola, bairro e cidade.
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O objetivo reunir os alunos de 10 a 15 anos, em oficinas artsticas que acontecem
fora da escola, em espaos da comunidade local, para que atravs da apropriao
da linguagem artstica da pintura mural, possam expressar suas questes em
relao ao bairro Jardim So Marcos, sempre partindo dos dilogos e relaes de
convvio estabelecidas com os moradores.
O convvio existe fora do projeto, principalmente em espaos tradicionais, j
consagrados no bairro, como igrejas e festas em pocas pontuais do ano. No projeto
este convvio acontece atravs de momentos de discusses acerca das
caractersticas do bairro, de suas carncias e de suas virtudes.
Os dias de pintura nos muros so sempre especiais, pois o processo anterior a eles
acontecem numa aproximao que favorece o contato dos alunos das escolas com
os moradores mais velhos. Os alunos saem pelas ruas para entrevistarem as
pessoas, batendo de porta em porta, para perguntarem o que acham do bairro onde
moram e o que gostariam de ver pintado nos muros. Essas perguntas deram
margem a uma srie de conversas, entre contaes de histrias antigas, desabafos
quanto dificuldade de morar num lugar em que o trfico de drogas inerente, ou
causos e histrias sobre acontecimentos cotidianos.
Ao falarmos do passado, das histrias de como era o bairro antes e como agora,
acessamos uma memria que parecia hibernar, e que veio tona, a partir dos
questionamentos dos jovens, que por serem tambm moradores estavam naquele
momento em contato com sua prpria histria.
Articular historicamente o passado no significa conhec-lo
como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma
reminiscncia, tal como ela relampeja no momento de um
perigo. (...) O perigo ameaa tanto a existncia da tradio
como os que a recebem. Para ambos, o perigo o mesmo:
entregar-se s classes dominantes como seu instrumento. Em
cada poca, preciso arrancar a tradio ao conformismo, que
quer apoderar-se dela. (...) (BENJAMIN, 1940. P.224)
Benjamin, no texto Sobre o conceito de histria, de 1940, ao analisar o historicismo
e seus problemas ao vangloriar fatos histricos isolados e fragmentados, defende
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uma maneira em que o historiador capta a configurao em que sua prpria poca
entrou em contato com uma poca anterior, perfeitamente determinada. Com isso,
ele funda um conceito no presente como um agora no qual se infiltraram estilhaos
do messinico. (BENJAMIN, 1940: p.232)
As histrias contadas pelos moradores permitiram o acesso a uma histria que no
est nos livros, nem nos jornais (em que o Jardim So Marcos aparece apenas
como antro de traficantes). E, se algumas dessas histrias esto em teses
acadmicas nas bibliotecas da Universidade, j que o Jardim So Marcos um
bairro que j foi objeto de estudo para muitos estudantes da Unicamp, no so
facilmente acessadas pelos moradores. A biblioteca pblica, mas a barreira ao seu
acesso invisvel, j que a universidade pblica, ainda um espao com problemas
de abrangncia quanto extenso para as comunidades, e por tratar-se de um
espao historicamente elitizado.
As trocas foram intensas durante as entrevistas, pois l estavam os moradores, os
alunos da escola e os arte-educadores. Sou uma das arte-educadoras do projeto e
no sendo moradora do bairro, pude a partir das entrevistas feitas juntamente com
os alunos, conhecer o bairro onde trabalho, para alm das pesquisas acadmicasque li a respeito dele.
Alguns fragmentos das histrias contadas nos do pistas para entender as questes
sociais e polticas implcitas no dia a dia dos moradores. Nas entrevistas, nos
contaram: como morar num bairro em que o trfico de drogas os faz se sentirem
de alguma maneira, protegidos, pois segundo eles, no existe o costume de assaltos
s casas; como intenso o medo da polcia e seu abuso de poder e a guerra entre
traficantes e policiais; como o alto ndice de jovens que acabam por se envolver com
o trfico de drogas ocasionando mortes; como demorado o atendimento nos
postos de sade da regio. Estes fragmentos nos do uma perspectiva de um bairro
carente quanto garantia de direitos de crianas e adolescentes, quanto aos de
espaos de lazer, quanto aos de meios de subsistncia disponveis e quanto ao
acesso de um servio de qualidade de sade.
Outros fragmentos podem nos mostrar alguns comportamentos de resistncia aosproblemas acima citados: a mudana do nome das ruas, que antes eram chamadas
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pelos nmeros e hoje tem nomes prprios, mas que os moradores insistem em
cham-las pelos nmeros, pois os chamam assim, desde que eram crianas; a
solidariedade entre alguns moradores que afirmam que tm o costume de ajudar um
vizinho que necessita de alguma ajuda; um morador que cultiva uma pequena horta
e faz questo de distribuir gratuitamente tudo o que planta, alm de fazer xaropes
com ervas medicinais plantadas por ele e tambm distribudas por quem precisar.
Outro aspecto explorado nas entrevistas foi a pesquisa quanto ao campo imagtico
dos moradores e seu imaginrio acerca do Jardim So Marcos. Uma das perguntas
feitas pelos alunos era a seguinte: - que imagem representa o bairro para voc?
Dentre as respostas que mais apareceram, foi a imagem da pomba branca da paz,
representando a atmosfera violenta do bairro em relao ao trfico de drogas e o
desejo dos moradores para que o bairro seja um lugar mais tranqilo para viver.
Outras respostas: crianas brincando, flores, rvores, animais, natureza.
As respostas dos moradores quanto imagem que os remetia ao bairro, foram
analisadas pelos alunos e reinterpretadas por desenhos que eles fizeram a partir das
falas dos moradores. Foi um rico processo criativo, pois os prprios alunos tambm
so moradores do bairro, portanto, criaram desenhos que misturavam as imagensditas pelos moradores s suas prprias maneiras de ver o bairro. Surgiram
desenhos de bicicletas, pipas, bola, rvores, folhas, mos, tijolos, porcos, cavalos,
cachorros, meninas, meninos, amarelinha, nuvens e estrelas.
Por tratar-se de um bairro, em que crianas e adolescentes circulam livremente
pelas ruas, o lugar da maioria das brincadeiras e do convvio entre eles tambm se
relacionam com a geografia local. Existem lugares mais apropriados e elegidos por
eles mesmos, para soltar pipa, para brincar de amarelinha, para jogar bola, para
andar de carrinho de rolim. intensa a correria dos meninos pelas ruas, em busca
de uma pipa cortada que ir cair em algum lugar em que eles no fazem idia onde
ser, e para isso, preciso ter um conhecimento prvio das ruas que lhe daro
acesso para os atalhos que podem levar pipa que veio de graa dos cus, depois
de ser cortado pela habilidade de quem aprendeu muito na rua, a partir do convvio
com os colegas, a gambiarra de uma boa estratgia para cortar uma pipa alheia.
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Durante a oficina, os desenhos traziam informalmente, nos dilogos que travamos
as experincias vivenciadas nas ruas do bairro. Muitas vezes, as conversas sobre as
brincadeiras, faziam com que as arte-educadoras tambm se lembrassem de sua
infncia, e eram nesses momentos que as geraes, o passado e presente se
cruzavam pois todas as experincias convergiam para uma infncia, tanto por quem
estava passando por ela, quanto por quem j havia passado.
Durante as oficinas, nos questionamos sobre o uso de referncias externas para a
composio das oficinas. Poderamos ter trazido vdeos, fotos de intervenes
urbanas de artistas em todo o mundo, livros entre outras referncias para que os
alunos visualizassem maneiras de pintar, de intervir nos espaos. As oficinas eram
planejadas semanalmente e nos encontros entre os educadores, refletimos o quo
interessante seria experimentarmos no utilizarmos as referncias de imagens com
as quais estvamos acostumadas a trabalhar. Elaboramos assim, uma maneira em
que auto-referncia seria o caminho para que cada descoberta sobre cores, sobre
espao pblico e privado, sobre como intervir nestes espaos, viriam de nossas
caminhadas pelo bairro. Nos dias de caminhadas, levvamos cmeras fotogrficas,
que ficavam com os alunos que registraram as variadas fachadas de casas do
bairro, a gama de cores existente por l e o que mais pudessem achar interessante.
A partir do olhar para as fachadas do bairro e as cores com as quais foram pintadas
pelos donos das casas, trabalhamos as misturas de cores, e as testamos nos
desenhos que fizemos das fachadas, para podermos primeiramente, imaginar como
seria um bairro totalmente colorido.
Os desenhos refeitos, na tcnica do stncil, em que atravs da estilizao, da
sntese, dos desenhos se faz uma mscara que permite a reproduo de
determinado desenho em srie, por meio da pintura com tinta ltex e rolos de
espuma. Esta foi a tcnica escolhida, por ns, arte-educadoras, para adaptar os
desenhos s fachadas na rua. A tcnica do stncil mantm uma qualidade de
trabalho, que o pincel tambm proporciona, porm de maneira rpida e prtica. O
uso do stncilcom rolos de espuma e tinta ltex remetem s tcnicas utilizadas por
grafiteiros e pichadores, o que acabou por gerar discusses sobre as diversas
maneiras de intervir no espao pblico para expressar-se. Anteriormente entrada
no projeto, alguns dos alunos afirmaram j ter utilizado materiais como aqueles, para
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moradores do bairro so depois colocados numa espcie de mostrurio, que depois
apresentada para o dono da casa onde a fachada ser pintada para que ele
escolha, dentre uma gama de desenhos, aquele que ele quer pintado em seu muro.
O fato de os alunos estarem presentes, contando aos moradores que os desenhos
que esto pintando na fachada de seus muros, surgiram das impresses dos
prprios moradores, criaram uma relao que em alguns moradores, permitiu o
acesso a memrias de infncia. Um dos moradores, ao ver a pintura de uma criana
brincando de dar estrelas, enquanto pintvamos seu muro, nos contou que esta
era uma brincadeira que ele sempre fez quando criana, e que achava engraado
como uma brincadeira apenas com a finalidade de movimentar o corpo, poderia ter
perpassando os tempos, e estar agora no muro de sua casa.
Mesmo com a existncia do relato acima, a realizao deste tipo de trabalho vai de
encontro com algumas lgicas que so ainda muito difceis de serem quebradas. A
primeira tentativa de formar um grupo no projeto consistia na juno entre pais,
alunos, alunos do EJA (Educao de Jovens e Adultos) da escola, e demais
moradores. No primeiro dia, ao realizarmos uma atividade conjunta, percebemos
que todos se sentiram incomodados por estarem entre pessoas de idadesdiferentes. Os adultos no apareceram mais nos encontros, o que nos fez avaliar
que seria interessante abrirmos um dia de encontro s para adultos. Essa
incompatibilidade inerente realidade atual, em que crianas, jovens e adultos
esto to distanciadas por suas geraes, num convvio to hierarquizado pelos
adultos e to sem interesse dos mais jovens pelo acmulo de experincias dos mais
velhos, que se tornou invivel no projeto, coloc-los em grupos de trabalho comuns.
A dificuldade est em aproximar pessoas de diversas idades, numa situao em que
juntos possam criar, conversar e entender as dinmicas dos lugares por onde
transitam, no caso o bairro, a cidade. Segundo Jean-Marie Gagnebin, grande
estudiosa das obras de Walter Benjamin, na Introduo ao livro Walter Benjamin:
Obras escolhidas Magia e tcnica, arte e poltica, ao analisar o texto do autor, O
Narradoremque trata da crise da experincia na modernidade capitalista a partir do
enfraquecimento da arte de contar, uma das condies para que a transmisso de
experincias no sentido pleno tenham se enfraquecido, se d, principalmente devido
falta de algumas condies, dentre elas, a proximidade entre as geraes, que
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atualmente se transformaram hoje em abismo porque as condies de vida mudam
em ritmo demasiado rpido para a capacidade humana de assimilao (
GAGNEBIN, 1994, p. 10)
Portanto, estabelecer relaes pessoas de diferentes idades, que tenham laos
fortes que se do atravs da troca e transmisso de conhecimento no hierrquica,
hoje, um desafio. As diferenas entre as geraes, que hoje parecem bem mais
discrepantes que antigamente, potencializada pelo lugar de desvalorizao dos
mais velhos numa sociedade que valoriza sempre o que novo, o que novidade.
Se antigamente, os velhos eram os guardies da memria, hoje, seu conhecimento
acumulado pelos anos, atropelado pela efemeridade do tempo, no tempo de ritmo
acelerado, que necessita de novos mecanismos de assimilao. Se Benjamin coloca
que se trata de um tempo rpido demais para a capacidade humana de assimilao,
talvez, os pertencentes s geraes atuais, j tenham desenvolvido novos
mecanismos de assimilao do tempo acelerado, o que faz com que o abismo entre
geraes seja ainda mais profundo.
Outra condio de realizao da narrao, colocada por GAGNEBIN, luz dos
textos benjaminianos, baseada especialmente na atividade artesanal, nos temposde organizao pr-capitalista do trabalho. O trabalho artesanal permite a
compreenso de totalidade da produo. A organizao de trabalho capitalista,
pautada na tcnica, fragmentada, e impe um ritmo de tempo tambm
fragmentado. Portanto, o ritmo do trabalho artesanal, inscreve um tempo mais
global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar (GAGNEBIN,
1994, p. 11).
No trabalho artesanal existe uma estreita relao com a matria com a qual se vai
trabalhar, diferentemente das esteiras das fbricas, em que o operrio participa
apenas de um processo especfico da produo, sem ter a dimenso de todo o
processo de produo. O contato com a matria, que nas mos do arteso
transformada, o faz participarda ligao secular entre a mo e a voz, entre o gesto e
a palavra. (GAGNEBIN, 1994, p. 11)
A pintura na fachada, desenvolvida no projeto, se assemelha muito ao ritmo de umtrabalho artesanal. Durante a pintura, o trabalho feito conjuntamente por todos os
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alunos, que conhecem todas as etapas do processo, desde fazer os stncils, a
misturar tintas e a compor as cores para o muro. Diferentemente das tcnicas
utilizadas para a pintura profissional de casas, ao pintarem a fachada, existe todo
um entendimento de grupo de que aquele sim um trabalho de todos, e que mesmo
os que faltaram, mesmo que ausentes, tambm possuem participao naquela
realizao que coletiva. No dia posterior ao dia da pintura, normalmente fazemos
reflexes conjuntas, para avaliarmos as tcnicas que utilizamos, e o entendimento
quanto a composio que criamos na fachada. Durante essas conversas, sempre
surgem as lembranas das conversas que tivemos com o morador que teve seu
muro pintado. Alguns dos moradores se envolvem com os alunos no momento da
pintura, contando histrias, oferecendo gua ou ajudando na composio dosdesenhos em seu muro, conversando sobre o que lhes sugerem quelas imagens
que esto sendo pintadas.
A ltima condio mencionada por Gagnebin para a crise da narrao a existncia
de uma experincia dada na coletividade, que o cerne da transmisso de
conhecimentos que se do no mbito da troca entre os grupos humanos. As
experincias vividas individualmente, dentro do espao privado, conduzem
alienao. Esta alienao advinda da vida privada, dentro de casas burguesas,
explica o sucesso dos romances, em que o leitor passa a buscar, na projeo em
personagens hericos dos romances, o sentido de vida, que se perdeu na sociedade
moderna. O depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declnio de uma
tradio e de uma memria comuns, que garantiam a existncia de uma experincia
coletiva, ligada a um trabalho e a um tempo partilhados, em um mesmo universo de
prtica de e de linguagem. (GAGNEBIN, 1994, p.11)
As consideraes sobre o declnio da arte de contar, e a crise da experincia, marca
fundamental do princpio da modernidade capitalista, que hoje no mundo
contemporneo ainda to atual, me provoca a refletir e questionar, de que maneira
possvel, nadar contra a mar dentro de um sistema de educao autoritrio,
ainda nos moldes militares, criado para recrutar crianas e jovens, para o mundo do
mercado de trabalho. De que maneira, nos entremeios do sistema, nas brechas
deixadas por sua latente imperfeio, possvel pensar numa educao queacontea fora dos muros das instituies escolares, que vazem pelos muros, para
atingir relaes menos restritas e mais prximas realidade local, e que valorize as
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experincias de vida que acontecem nos detalhes e que reverberam para uma
concepo de totalidade e de compreenso poltica da realidade, para que possam
apropriar-se de ferramentas anti-passividade, anti-manipulao para que assim, se
possa resistir s desigualdades e injustias que nos so impostas.
Estar na rea da Educao, pesquisando maneiras de compreender de que maneira
possvel agir como educador, nos interstcios desta sociedade que valoriza as
relaes efmeras e fragmentadas, em detrimento de relaes duradouras e
profundas, um exerccio de resistncia, pois se trata de uma postura que procura
caminhos que levem emancipao, para que se possam construir conhecimentos
de maneira coletiva, para que determinado grupo de pessoas, se fortalea contra as
lgicas das classes dominantes.
Referncias:
BENJAMIN, Walter. Experincia e Pobreza. In: Walter Benjamin, Obras Escolhidas:
magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
__________, WalterO Narrador. In: Walter Benjamin, Obras Escolhidas: magia e
tcnica, arte e poltica. So Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
__________, Walter. Sobre o conceito da Histria: In: Walter Benjamin, Obras
Escolhidas: magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
FREIRE, Cristina. Alm dos mapas: monumentos no imaginrio urbano e
contemporneo. So Paulo: SESC:Editora Annablume, 1997.
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__________, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a histria aberta (prefcio). In:
Walter Benjamin, Obras Escolhidas: magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo:
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7/29/2019 PINTURA NA FACHADA - TROCAS E VIVNCIAS ENTRE MORADORES E ALUNOS DO JARDIM SO MARCOS - CAMPINA
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PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenes urbanas: arte cidade. So Paulo. Ed.
Senac. 2002.
________, Nelson Brissac. Arte/cidade um balano. Texto publicado na revistaeletrnica ARS #3. http://www.cap.eca.usp.br/ars.htm. acesso em 29/05/2009.
Marina Mayumi Bartalini
Graduada em Licenciatura e Bacharel em Educao Artstica na UNICAMP e Mestranda daFaculdade de Educao da UNICAMP no GEPEDISC - Grupo de Estudos e Pesquisa emEducao e Diferenciao Scio-Cultural. Arte educadora do Projeto Pintura na Fachada naEscola Municipal de Ensino Fundamental Padre Jos Narciso Vieira Ehremberg, financiado
pelo Programa Federal Mais Educao. Artista visual integrante do Coletivo Moleo de ArtesVisuais.