Pintura Antiga em Óbidos

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Seminário O Valor Universal de Óbidos | 11 e 12 de Setembro 2009 Síntese da apresentação do Dr. Vitor Serrão Baltazar Gomes Figueira (1604-1674) e Josefa de Ayala (1630-1684) A pintura da ‘escola de Óbidos’, a resistência anti-castelhana e os ‘géneros’ emergentes: ‘bodegones’, ‘vedutas’ e ‘floreiros’. A Natureza-Morta (Bodegón) encontra em Portugal duas personalidades de contornos internacionais: Baltazar Gomes Figueira (1604-1674) e sua filha Josefa de Ayala e Cabrera (1630- 1684), nascida em Sevilha e desde moça radicada em Óbidos, onde viveu boa parte da existência. O pai, famoso pelos bodegones (tal como então se apelidavam as naturezas-mortas) e as paisagens (denominadas países), tinha tido demorada educação em Sevilha, onde o convívio com Francisco de Herrera el Viejo, Francisco Pacheco e Francisco de Zurbarán lhe permitiu gerar um estilo sedutor em géneros onde seria especialista. Citado pelo exigente crítico Félix da Costa Meesen (1696) como «o sevilhano que nos paizes foi celebrado», Baltazar teve excepcionais recursos, sendo o único pintor português com obra exposta em museus estrangeiros como o Louvre de Paris e os Uffizi de Florença. No momento em que Óbidos prepara a sua candidatura a Património da Humanidade, destacar a arte de Baltazar e de Josefa (num contexto artístico que inclui obras de outros importantes artistas nacionais dos séculos XVI e XVII, como Diogo Teixeira, Belchior de Matos, André Reinoso, Marcos da Cruz ou Bento Coelho) constitui sem dúvida um dos pontos fortes da empresa. Embora a maior parte das obras de Baltazar e Josefa se encontre em museus e colecções exteriores a Óbidos, o que ainda assim subsiste no Concelho (e nos de Peniche, Bombarral, Lourinhã e Caldas da Raínha) permite pensar-se na dinamização de uma rota turístico-cultural que, de Santa Maria, da Misericórdia e do Museu, leve o visitante a Dagorda, Columbeira, Peniche (Misericórdia, Ajuda, Sâo Pedro), às Caldas (igreja do Pópulo), à Lourinhã (Santo António), entre outros sítios relevantes. Com Baltazar se formou Josefa, como hoje se sabe. Todavia, a desatenção crítica, aliada à lenda que se forjou em torno da mulher-pintora, levou a que a obra paterna fosse confundida em boa parte com a sua. Hoje estão destrinçadas técnicas e méritos de um e outro -- o pai Baltazar e a filha Josefa -- e são reconhecíveis os seus estilos e percursos. A tradição do Romantismo revalorizou a produção de Josefa – na realidade, uma fiel seguidora dos modelos de seu pai – mas para isso teve de apagar a memória de Baltazar, tributando à filha o melhor da produção bodegonista paterna. Só com as investigações recentes em arquivos, a descoberta e cotejo estilístico de quadros assinados ou bem identificados, a sua análise laboratorial e enquadramento preciso no contexto do Barroco

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Síntese da comunicação apresentada no Seminário O Valor Universal de Óbidos realizado na igreja de São Tiago nos dias 11 e 12 de Setembro de 2009.

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Síntese da apresentação do Dr. Vitor Serrão

Baltazar Gomes Figueira (1604-1674) e Josefa de Ayala (1630-1684) A pintura da

‘escola de Óbidos’, a resistência anti-castelhana e os ‘géneros’ emergentes: ‘bodegones’,

‘vedutas’ e ‘floreiros’.

A Natureza-Morta (Bodegón) encontra em Portugal duas personalidades de contornos

internacionais: Baltazar Gomes Figueira (1604-1674) e sua filha Josefa de Ayala e Cabrera (1630-

1684), nascida em Sevilha e desde moça radicada em Óbidos, onde viveu boa parte da existência. O

pai, famoso pelos bodegones (tal como então se apelidavam as naturezas-mortas) e as paisagens

(denominadas países), tinha tido demorada educação em Sevilha, onde o convívio com Francisco de

Herrera el Viejo, Francisco Pacheco e Francisco de Zurbarán lhe permitiu gerar um estilo sedutor em

géneros onde seria especialista. Citado pelo exigente crítico Félix da Costa Meesen (1696) como «o

sevilhano que nos paizes foi celebrado», Baltazar teve excepcionais recursos, sendo o único pintor

português com obra exposta em museus estrangeiros como o Louvre de Paris e os Uffizi de Florença.

No momento em que Óbidos prepara a sua candidatura a Património da Humanidade, destacar a

arte de Baltazar e de Josefa (num contexto artístico que inclui obras de outros importantes artistas

nacionais dos séculos XVI e XVII, como Diogo Teixeira, Belchior de Matos, André Reinoso, Marcos da

Cruz ou Bento Coelho) constitui sem dúvida um dos pontos fortes da empresa. Embora a maior

parte das obras de Baltazar e Josefa se encontre em museus e colecções exteriores a Óbidos, o que

ainda assim subsiste no Concelho (e nos de Peniche, Bombarral, Lourinhã e Caldas da Raínha)

permite pensar-se na dinamização de uma rota turístico-cultural que, de Santa Maria, da

Misericórdia e do Museu, leve o visitante a Dagorda, Columbeira, Peniche (Misericórdia, Ajuda, Sâo

Pedro), às Caldas (igreja do Pópulo), à Lourinhã (Santo António), entre outros sítios relevantes.

Com Baltazar se formou Josefa, como hoje se sabe. Todavia, a desatenção crítica, aliada à lenda

que se forjou em torno da mulher-pintora, levou a que a obra paterna fosse confundida em boa

parte com a sua. Hoje estão destrinçadas técnicas e méritos de um e outro -- o pai Baltazar e a filha

Josefa -- e são reconhecíveis os seus estilos e percursos. A tradição do Romantismo revalorizou a

produção de Josefa – na realidade, uma fiel seguidora dos modelos de seu pai – mas para isso teve

de apagar a memória de Baltazar, tributando à filha o melhor da produção bodegonista paterna. Só

com as investigações recentes em arquivos, a descoberta e cotejo estilístico de quadros assinados

ou bem identificados, a sua análise laboratorial e enquadramento preciso no contexto do Barroco

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peninsular, tornou o reconhecimento possível. Com a exposição de Óbidos em 2005 (e já em 1991

com a exp. Josefa de Óbidos e o tempo barroco, Palácio da Ajuda) fixou-se de vez o conhecimento

sobre Baltazar e Josefa, apurando-se que, ao invés de uma existência confinada à região de Óbidos,

como se pensava, o pai foi zeloso funcionário da Casa de Bragança instalado na corte de D. João IV,

aí prestando serviço de avaliador e pintando países, meses, naturezas-mortas etc. Josefa nasceu em

Sevilha quando o pai, casado com D. Catarina de Ayala Cabrera Romero, aí aprendia a Pintura, e foi

apadrinhada na paróquia de San Vicente pelo famoso Francisco de Herrera el Viejo. Regressada a

Portugal com os pais em 1634, Josefa viverá em Peniche, Coimbra e Óbidos, sem nunca se deslocar

fora deste eixo regional. Ela aprendeu por via do pai as receitas do bodegonismo na fórmula

andaluza de Miguel March e Thomas Yepes, seguindo um percurso pessoal com forte tónica da

ingenuidade. O mérito da pintora reside em ter sabido transmitir com encantatória fidelidade a

concepção barroca de um misticismo regional sublime na sua inocência.

Josefa de Ayala Figueira Cabrera Romero, popularizada como Josefa de Óbidos, foi elogiada pelo

exigente Félix da Costa Meesen (1696) pela «limpeza e propriedade» ao imitar «as couzas pelo

natural», o escritor Damião de Froes Perym exalta-lhe (1736) o «engenho, formosura, honestidade e

simpatia», e o Beneficiado José Silvestre Seabra biografa a pintora com encómio. Ao contrário da

lenda tecida quanto a estadias na corte ou a viagens a Itália e à Flandres, a sua vida decorre no

estrito espaço da região entre Óbidos, a Capeleira, Caldas, Peniche, Nazaré, Alcobaça e as viagens

com o pai até Coimbra -- vida tranquila, sintomática de certa beatitude regional. Instalada no

Convento de Sant‘Ana de Coimbra e em Semide, como recolhida não professa e «donzela

emancipada de seus pais» foi destinada a seguir vida monacal, mas em 1644 já estava em Coimbra,

aprendendo a arte junto do pai. A obra coimbrã de Baltazar (Graça, Sé Nova) terá peso em Josefa:

vendo-se o Nascimento da Virgem do retábulo da Graça, aí se encontram os tipos de figura dos

primeiros cobres, o mesmo tapete persa, o «arrumo» de peças acessórias e até os quentes efeitos

tonais. As primeiras obras de Josefa (buris Santa Catarina e S. José, 1646; os dois Casamentos

místicos de Santa Catarina, MNAA e MNSR; o São Francisco e Santa Clara adorando o Menino, 1647)

mostram técnica hábil no claro-escuro segundo cânones de Sevilha. Produz em 1653 a gravura

Sabedoria para os Estatutos da Universidade de Coimbra, pinta o Pentecostes da Sé Nova, cria um

receituário de rostos, mãos e tecidos repetido depois até à exaustão. Este estilo de saboroso charme

afirma-se a tal ponto que as suas obras, mesmo se não assinadas ou documentadas, são facilmente

reconhecíveis.

Não existiram contactos directos de Josefa com a pintura espanhola do Siglo de Oro, mas o facto

de Baltazar possuír na sua casa em Óbidos colecções de quadros trazidos da Andaluzia, como diz o

inventário de bens de 1675 (entre outros bodegones e floreros, lá se podiam ver Cordeiros Pascais

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zurbaranescos), explica que Josefa se deleitasse no estudo das obras disponíveis ao olhar, as de seu

pai e as que André Reinoso pintara em 1630 na Misericórdia de Óbidos e no Convento de São

Miguel das Gaeiras, novidade absoluta em termos plásticos e compositivos, com desenho 'ao

natural' e modelado luminoso ao gosto do Barroco peninsular. Tais características interessaram

Josefa: as suas Naturezas Mortas (Paris, 1668; Santarém, 1676; Alpiarça, 1676) assumem-se mais no

plano gracioso do decorativo, em visão familiar, sem artifícios simbólicos, revelando relação com

coisas simples: barros e doces regionais, frutas, peixes, peças de caça, flores, num detalhismo

apaixonado. Tais telas não traem influência directa da natureza-morta espanhola mas captam da

visão naturalista de Baltazar «arranjos» temáticos por vezes decalcados. Josefa revela uma visão

quase sem escola, sui generis., da tradição do bodegón peninsular. As peças de olaria (louça vidrada,

barros com ornamento relevado ou cobertos por escorridos) são os da produção cerâmica das

Caldas, Estremoz e Talavera. O altar de Santa Catarina em Santa Maria de Óbidos, segundo Moura

Sobral «peça importante do complexo dispositivo de propaganda em favor da Casa de Bragança,

que tendia a legitimar o seu poder real recentemente assumido», data de 1661, ainda íntegra no

espaço originário, e exalta a figura de D. Catarina de Bragança, cujo contrato de casamento com

Carlos II de Inglaterra se assinara, traduzindo a vinculação à causa brigantina, estando as guerras da

Restauração (1641-68) no auge. As telas reflectem uma inspiração, rara na obra de Josefa, em

modelos franceses de Simon Vouet (através dos gravados de Michel Dorigny).

Também no género do Retrato se atesta a dimensão da artista: é excelente o Retrato do

Beneficiado Faustino das Neves (Museu de Óbidos, c. 1670), o modo como capta a psicologia desse

notável da vila, de trajes negros, olhar e traços contra-reformistas, com o anjo que anuncia a

próxima morte. O modelo, descentrado face ao eixo da composição, afirma-se como do que de mais

singular a pintura de Seiscentos nos legou neste particular. Não é de duvidar da tradição que diz ter

a Raínha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, indo ao Hospital das Caldas, pedir para se fazer

retratar pela pintora. Já as telas maduras -- Bussaco (1664), Cós (1669), Cascais (1672-73), Vale

Benfeito, Misericórdia de Peniche (1679-80) -- traem cansaço de receita que se transmite aos muitos

Meninos Jesus, «pintados como bolinhos» (Manuel Rio Carvalho) com rendas e tules ou ataviados de

adereços profanos com coroas de flores. O melhor será o da matriz de Cascais (1673), vindo dos

carmelitas. Após a morte de Baltazar, a pintora recorre a encomendas beatas para garantir a

subsistência de D. Catarina e das sobrinhas órfãs com quem morava na Rua Nova. Acentua

colaborações com epígonos fracos (Luís de Almeida, os Pinheiros do Lago). Dificuldades de dinheiro,

rapidez, e colaborações, explicam a dureza de obras onde a assinatura deve ser vista como modo

rotineiro de creditar a empreitada... Mas a verdade é que datam da fase tardia algumas obras-

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primas: a Sagrada Família de Évora (1674), as Naturezas Mortas com doces e barros de Santarém

(1676), o Cordeiro Pascal de Évora (modelo de Baltazar), e a Santa Face de Peniche.

A melhor virtude de Josefa revela-se na ausência de aprendizado académico e na frescura do

estilo pessoal que se abre à modernidade disponível. Charles Sterling (1985) destacou a sua

«charmante gaucherie provinciale», o que valoriza genuínas aptidões. O cotejo destes bodegones

deve ser feito olhando não Van der Hamen, Sánchez Cotán, Zurbarán ou La Tour e sim os

valencianos Miguel March e Thomas Yepes e a parisiense Louise Moillon. É essencial compreender

este ambiente de formação e vida. Como disse o poeta João Miguel Fernandes Jorge, «ela conheceu

o seu século quase não saindo das muralhas de Óbidos». Tudo se passa em Óbidos, corte de aldeia

de tertúlias literárias e musicais onde o Barroco se filtra na dimensão possível. Em era de

isolamento, a menoridade de muitas obras de Josefa explica-se nesse contexto sem projecção. Ela

será grande pintora do Seiscentismo peninsular precisamente por razões opostas às que sempre se

lhe apontaram: soube assumir por via não-erudita (com inocência) uma veia provincial entendida

até às últimas consequências. As suas Naturezas Mortas, Cordeiros Pascais e Meninos Jesus

engrinaldados de flores, têm qualidades que superam o mero nível etnográfico ou pitoresco, pois

descodificam o frio carácter simbólico-moralizador de muita pintura barroca espanhola e

portuguesa, aduzindo-lhe uma dimensão pessoal e, por vezes, erótica. Essa intuição poética isenta

de academismos, com um imaginário sensualista e uma liberdade de fazer, é surpreendente.

Ao contrário de Baltazar, excelente pintor profissional, na filha existe tão-só esse gosto de pintar

por curiosidade de que fala Félix da Costa -- entendido à luz de um mercado restrito. Pintora

provincial de assinalável merecimento ao nível da natureza-morta, género em que a sua fama

melhor perdurou, e ao nível das cenas religiosas, do retrato, da gravura a buril, da modelação

barrista, do desenho de ornato e da miniatura cúprica, a artista constitui caso singular de

representante das correntes plásticas naturalistas-tenebristas desse Barroco então triunfante pela

Europa».

Vitor Serrão – Setembro de 2009

CURRICULUM VITAE: Vítor Serrão (n. Toulouse–França em 1952). Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa.

Dirige o Instituto de História da Arte e a revista Artis. Autor, entre outros, dos livros A Pintura Maneirista em Portugal

(ICALP, 1982), O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses (IN/CM, 1983), Estudos de Pintura Maneirista e

Barroca (Caminho, 1989), Josefa de Óbidos e o tempo barroco (IPPC, 1991), A Pintura Maneirista em Portugal. Arte no

tempo de Camões (CNCDP, 1995), A Pintura Proto-Barroca em Portugal, 1612-1657 (Colibri, 2000), A Cripto-História da

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Arte (Livros Horizonte, 2001), Rouge et Or. Trésors d’Art du Baroque Portugais (Paris-Roma, 2001-02), O Renascimento e o

Maneirismo e O Barroco (Presença, 2002-03), A Trans-Memória das Imagens. Estudos Iconológicos de Pintura Portuguesa

(Cosmos, 2007), Palmela Histórico-Artística, com José Meco (CM Palmela, 2007), e O Fresco Maneirista no Paço de Vila

Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança (Fundação da Casa de Bragança, 2008). Pertence às Academias das Ciências de

Lisboa, de História e de Belas-Artes. Foi condecorado com a Comenda da Ordem de S. Tiago de Espada (10 de Junho de

2008).