PINTO, L. - A Escrita Não é o Nada

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i LUCIANO CÉSAR GARCIA PINTO “A ESCRITURA NÃO É O NADA”: COMENTÁRIOS BÍBLICOS DE JERÔNIMO E AGOSTINHO AO GÊNESIS E O EFEITO-TEXTO CAMPINAS, 2013

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Agostinho; Jerônimo

Transcript of PINTO, L. - A Escrita Não é o Nada

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    LUCIANO CSAR GARCIA PINTO

    A ESCRITURA NO O NADA: COMENTRIOS

    BBLICOS DE JERNIMO E AGOSTINHO AO GNESIS E

    O EFEITO-TEXTO

    CAMPINAS,

    2013

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

    LUCIANO CSAR GARCIA PINTO

    A ESCRITURA NO O NADA: COMENTRIOS BBLICOS DE

    JERNIMO E AGOSTINHO AO GNESIS E O EFEITO-TEXTO

    Orientadora: Profa.Dra. Patricia Prata

    Tese de doutorado apresentada ao Instituto de

    Estudos da Linguagem da Universidade Estadual

    de Campinas para obteno do ttulo de Doutor

    em Lingustica.

    CAMPINAS,

    2013

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA POR TERESINHA DE JESUS JACINTHO CRB8/6879 - BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE

    ESTUDOS DA LINGUAGEM - UNICAMP

    P658e

    Pinto, Luciano C. G., 1979-

    A escritura no o nada : comentrios bblicos de Jernimo e Agostinho ao Gnesis e o efeito-texto / Luciano Csar Garcia Pinto. -- Campinas, SP : [s.n.], 2013.

    Orientador : Patrcia Prata. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de

    Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. 2.

    Jernimo, Santo, 419 ou 20. 3. Bblia - Hermenutica. 4. Bblia - A.T. - Crtica e interpretao. 5. Antiguidade tardia. I. Prata, Patrcia, 1974-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

    Informaes para Biblioteca Digital Ttulo em ingls: Scripture is not the nothingness: biblical commentaries on Genesis by Jerome and Augustine and the text effect. Palavras-chave em ingls: Augustine of Hippo Jerome of Stridon Bible - Hermeneutics Bible A. T. Critical and interpretation History Antiquity rea de concentrao: Lingustica. Titulao: Doutor em Lingustica. Banca examinadora: Patrcia Prata [Orientador]

    Elaine Cristine Sartorelli Paulo Augusto de Souza Nogueira Pedro Paulo Abreu Funari

    Sirio Possenti Data da defesa: 15-02-2013. Programa de Ps-Graduao: Lingustica.

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    ...vai para a baixinha

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    AGRADECIMENTOS

    Durante o longo perodo de um doutorado, muitas so as pessoas que, com

    diferentes intensidades e em momentos diversos do desenvolvimento do trabalho,

    contribuem para objetivo final de uma tese. s armadilhas inexorveis da memria convm

    escapar por meio da recusa em tentar citar e relembrar todas as contribuies. Ademais, o

    momento em que se lembra tambm influi no que se lembra; afinal, se me fosse pedido

    escrever os agradecimentos no primeiro ano do doutorado, no necessariamente seriam

    lembradas as mesmas pessoas que, agora, findo o trabalho, mencionarei. nus do recordar.

    Gostaria de comear com um agradecimento s agncias que, em diferentes

    momentos, fomentaram minha pesquisa de doutorado: ao CNPq (Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico), que proporcionou uma bolsa de doutorado;

    CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), pela bolsa de

    estgio de doutoramento no exterior; ao DAAD (Deutscher Akademischer

    Austauschdienst), pela bolsa de estudos para aprendizagem do idioma alemo e por todo o

    apoio institucional durante o perodo na Alemanha.

    Um agradecimento especial a todos os membros tanto da banca de qualificao,

    quanto da de defesa da tese: Profa. Dra. Elaine Sartorelli (Universidade de So Paulo), Prof.

    Dr. Paulo Nogueira (Universidade Metodista de So Paulo), Prof. Dr. Pedro Paulo A.

    Funari (Universidade Estadual de Campinas), Prof. Dr. Srio Possenti (Universidade

    Estadual de Campinas). Sem as crticas, os apontamentos e os comentrios feitos por ambas

    as bancas, esta tesa no teria atingido os mesmos resultados. preciso lembrar, no entanto,

    que todos os equvocos presentes neste trabalho so de inteira e absoluta responsabilidade

    do autor.

    Profa. Dra. Patricia Prata, orientadora deste doutorado, gostaria muito de

    agradecer a total liberdade que me proporcionou para trabalhar e desenvolver meus

    caminhos intelectuais, mas tambm um agradecimento pela pacincia e pelos conselhos nos

    momentos em que turbilhes de ideias ameaavam o foco do trabalho.

    Por minha estadia acadmica na Alemanha, gostaria de agradecer s seguintes

    pessoas: Prof. Dra. Isabella Tardin Cardoso, por ter generosamente me posto em contato

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    com uma srie de pesquisadores estrangeiros, pelos diversos apoios, inclusive, de ordem

    prtica, durante o perodo de pesquisa em Heidelberg, e por ter discutido comigo o plano

    geral deste trabalho; ao Prof. Dr. Jrgen Paul Schwindt, por ter gentilmente me aceito como

    seu orientando durante o estgio de doutoramento, por todas as oportunidades dadas e pelo

    riqussimo perodo de aprendizado proporcionado em seus cursos e colquios; ao

    pesquisador Dr. Andreas Schwab, pelas sugestes dadas ao plano geral deste trabalho; e a

    todos os colegas e funcionrios do Seminar fr Klassische Philologie da Universidade de

    Heidelberg, pela acolhida que me fez sentir em casa, apesar da neve.

    A todos os professores da rea de Letras Clssicas do Departamento de

    Lingustica do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, meu agradecimento

    pela formao e pelo incentivo ao longo dos anos. Tambm aos professores Leandro Karnal

    e Paulo Miceli pelos ensinamentos nos tempos de graduao em Histria.

    Um agradecimento carinhoso a Gabriella Barbosa Rodrigues por todos os anos

    de companheirismo, apoio e dedicao, sem os quais este trabalho nem teria existido como

    tal, um muito obrigado de corao;

    Ademais, gostaria de agradecer s amigas, amigos e colegas que durante o

    perodo de formulao deste trabalho, de uma forma ou de outra, s vezes, mesmo sem

    saber, ajudaram a construir ideias e pensamentos sobre temas diversos: Lettcia Leite;

    Renato Pinto; Fbio Fortes, Carlos Renato de Jesus, Alexandre Piccolo, Mrio Martins de

    Lima; aos alemes: Desire Rupp, Paul Ronga, Livia Mercier, Simon Sucher.

    Para terminar, o arns: ao meu pai Eurico (in memoriam) e minha me

    Maricilda, a meus irmos Lus e Viviane, ao irmo postio Marcelo, e baixinha que virou

    tudo de cabea para baixo, Lusa, o coraozinho do titio. Beijos para todos vocs.

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    ,

    ,

    (Orgenes, Contra Celso)

    ... omnis scriptura sancta quae unus liber

    appellatur

    (Jernimo, Comentrio a Isaas)

    Commentaria dicta, quasi cum mente.

    Sunt enim interpretationes... (Isidoro de

    Sevilha, Etimologias)

    The devil can cite Scripture for his

    purpose. (Antonio, personagem de O

    mercador de Veneza de William

    Shakespeare)

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    RESUMO

    Este trabalho analisa, numa perspectiva discursiva, os efeitos produzidos pelo

    ato de comentar a Bblia levado a cabo por duas figuras-chave dos primrdios do

    cristianismo: Jernimo de Estrido (347-420 d.C.) e Agostinho de Hipona (354-430 d.C.).

    Investiga-se o impacto dessa empresa comentarista tanto no modo como o texto bblico foi

    materialmente transmitido (ortografia, lxico, fraseologia, ordem dos textos) como na

    histria de sua recepo (tpicos e temas preferidos em detrimento de outros tantos

    possveis). O propsito demonstrar quo poderosa a interveno dos comentrios no

    apenas na formao do cnone bblico, mas tambm na constituio da prpria noo de

    que o conjunto de textos reunidos sob a rubrica de Bblia ou Sagrada Escritura forma,

    afinal e apesar de uma superfcie textual que apresenta disparidades e, eventualmente,

    grandes contradies de carter lingustico, narrativo ou mesmo teolgico , um texto, que

    expressa um nico e mesmo plano deliberativo autoral.

    Palavras-chave: Antiguidade tardia; Bblia; exegese antiga; histria da recepo; Jernimo

    de Estrido; Agostinho de Hipona.

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    ABSTRACT

    This study examines from a discourse-analytical perspective the effects arisen

    from the practice of commenting the Bible that was followed by two early Christian key

    figures: Jerome of Stridon (c. 370-420 AD) and Augustine of Hippo (354-430 AD). The

    impact of these commentatorial works is investigated both with regarding to the way in

    which the very biblical text was materially (orthography, lexicon, phraseology, chapter

    order) handed down and to the history of its hermeneutical reception (the topics and themes

    which have been favoured at the expense of all other possibilities). The purpose therefore is

    to demonstrate how powerful such commentatorial interventions are in the forming of the

    biblical canon and also in underpinning assumptions that the set of texts brought together

    under the rubric of Bible or Sacred Scriptures forms ultimately in spite of a textual

    surface presenting disparities and sometimes great contradictions of linguistic, narrative or

    even theological character a text which expresses just one and the same authorial design.

    Key-words: Late Antiquity; Bible; ancient exegesis; history of reception; Jerome of

    Stridon; Augustine of Hippo.

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Ammon. In Int. Amnio, Comentrio ao da interpretao

    Arstt. Poet. Aristteles, Potica

    Arstt. Rhet Aristteles, Retrica

    Aug. c. Prisc. Agostinho, Contra Prisciliano

    Aug. Ciu. Agostinho, Cidade de Deus

    Aug. Conf. Agostinho, Confissiones

    Aug. De Bapt. Agostinho, Do batismo

    Aug. De magist. Agostinho, Do mestre

    Aug. Dialec. Agostinho, Dialtica

    Aug. Doctr. chr. Agostinho, Da doutrina crist

    Aug. Faust. Agostinho, Contra Fausto

    Aug. Gn. adu. Man. Agostinho, Sobre o Genesi contra os maniqueus

    Aug. Gn. litt. Agostinho, Sobre o Gnesis ao p da letra

    BJ Bblia de Jerusalm

    Cic. Brut. Ccero, Bruto

    Cic. Rep. Ccero, Da Repblica

    Clem. Al. Exc. ex Th. Clemente de Alexandria, Excertos de Teodoto

    Clem. Al. Strom. Clemente de Alexandria, Estrmatos

    CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum

    D. Or. Demstenes, Discursos

    Diog. Laert. Vit. Digenes Larcio, Vida dos Filsofos

    Diom. Gramm. Diomedes, Arte gramatical

    Dion. Thr. Ars gramm. Dionsio da Trcia, Arte gramatical (

    )

    Don. Ars maior lio Donato, Ars maior

    Don. Vita Verg. lio Donato, Vida de Virglio

    GL Gramticos Latinos

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    Hier. Epist. Jernimo, Epstulas

    Hier. Hebr. Nom. Jernimo, Livro dos nomes hebraicos

    Hier. Hebr.quaest. Jernimo, Questes hebraicas

    Hier. In Eccl. Jernimo, Comentrio ao Eclesiastes

    Hier. In Is. Jernimo, Comentrio ao Livro de Isaas

    Hier. In Math. Jernimo, Comentrio ao Evangelho segundo Mateus

    Hier. Praef. in libr. Samuel et Malachim Jernimo, Prefcio aos Livros de Samuel e Malaquias

    Hier. Praef. in libri Is. Jernimo, Prefcio ao Livro de Isaas

    Hier. praef. in XII prophetas Jernimo, Prefcio aos Doze Profetas

    Hier. Vir. ill. Jernimo, Sobre os vares ilustres

    Isid. diff. Isidoro de Sevilha, Diferenas

    Isid. Orig. Isidoro de Sevilha, Origens ou Etimologias

    Iustin. Dial. Justino Mrtir, Dilogo com Trifo

    Longin. Longino, Do sublime

    LSJ Liddell; Scott; Jones, A Greek-English Lexicon

    OED Simpson; Weiner, Oxford English Dictionary

    OLD Glaire (ed.), Oxford Latin Dictionary

    Orig. CC Orgenes, Contra Celso

    Orig. Comm. in Iohan. Orgenes, Comentrio ao Evangelho segundo Joo

    Orig. Hex. Orgenes, Hexapla

    Orig. hom. in Gen. Orgenes, Homilia ao Gnesis

    Orig. in Num. hom. XIV Orgenes, Homilia ao livro dos Nmeros

    PG Patrologia Grega

    Phil. Abr. Flon, Sobre Abrao

    Phil. Agr. Flon, Da agricultura

    Phil. Conf. Flon, Da confuso das lnguas

    Phil. Fug. Flon, Da fuga e da descoberta

    Phil. Leg. Flon, Comentrios alegricos

    Phil. Mut Flon, Da mudana dos nomes

    Phil. Opi. Flon, Da criao do mundo

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    Phil. Pot. Flon, Quanto ao pior soer atacar o melhor

    PL Patrologia Latina

    Pl. Crat. Plato, Crtilo

    Pl. Euthyd. Plato, Eutidemo

    Pl. Leg. Plato, Leis

    Pl. Resp. Plato, Repblica

    Pl. Symp. Plato, Banquete

    Quint. Inst. or. Quintiliano, Instituto oratoria

    Rhet. Her. (autor desconhecido) Retrica a Hernio

    Serv. A. Srvio, Comentrio a Eneida de Virglio

    Ter. Nat. Tertuliano, s naes

    Thuc. Tucdides, Guerra do Peloponeso

    TLL Thesaurus Linguae Latinae

    Var. LL. Varro, Sobre a Lngua latina

    VL Vetus Latina

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    SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................... 23

    Percurso e escopo do trabalho .......................................................................................... 23

    Alguns posicionamentos e diretrizes tericos: Filologia, comentrio, reformulao....... 31

    Entre strictus e latus sensus: uma difcil definio ...................................................... 34

    Polimatia e ars critica .................................................................................................. 37

    Humanidades ................................................................................................................ 41

    Antiguidades e Histria ................................................................................................ 43

    pro ipsa philosophia (no lugar da prpria filosofia)? ............................................... 47

    Reconstruir o outro: alteridade entre e .................................................. 52

    Eplogo: Anlise do Discurso e (Nova) Filologia (Radical)......................................... 58

    PARTE I: BREVE DISCUSSO SOBRE O TERMO COMENTRIO: HOJE E ONTEM

    .............................................................................................................................................. 69

    1. Comentrio na antiguidade: principais conceitos em grego e em latim ....................... 70

    1.1 Histria do termo .................................................................................................... 70

    1.2. Histria de um gnero ........................................................................................ 82

    2. Comentrio em duas reas dos estudos lingusticos ................................................... 117

    2.1 Estudos Frsicos ................................................................................................... 118

    2.2.. A emergncia do par conceitual Tema-Rema ..................................................... 125

    2.3 Tema-rema nos trabalhos da Escola de Praga ...................................................... 130

    2.4. A traduo de tema/rema na escola norte-americana ....................................... 143

    2.5. Estudos transfrsicos e metaenunciativos............................................................ 152

    2.6. Das oraes-comentrio ao discurso reportado ................................................... 158

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    2.7. Discursos Relatados, Reformulao, Discurso Constituinte ............................... 168

    PARTE II: a Prtica de Comentar dos cristos e a questo da unidade do texto bblico ... 191

    3. Breve histria dos comentrios nas primeiras comunidades de f crists .................. 198

    3.1 Qumran ................................................................................................................. 203

    3.2 Flon de Alexandria .............................................................................................. 211

    4. Orgenes e a Filologia: herana alexandrina? .......................................................... 241

    4.1 Orgenes: sacra philologia ou nihil otiosum apud Deum (nada ocioso em Deus)

    .................................................................................................................................... 250

    4.2 (a escritura no o nada).............................................. 254

    4.3. Verus Israel (o verdadeiro Israel) .................................................................... 268

    4.4 (acontece de serem as escrituras um s livro)

    .................................................................................................................................... 275

    PARTE III: Jernimo e Agostinho: comentadores da Bblia ............................................. 283

    5. Importncia dos comentrios de Jernimo e Agostinho e o modo de ler ocidental da

    Bblia .............................................................................................................................. 283

    5.1 Pressupostos tericos do Quaestiones hebraicae e do De Genesi aduersus

    Manichaeos ................................................................................................................. 290

    5.2 Anlise dos comentrios ao Gnesis .................................................................... 336

    Concluso: O efeito-texto e a prtica de comentar ......................................................... 409

    Referncias ......................................................................................................................... 413

    Anexo ................................................................................................................................. 427

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    INTRODUO

    PERCURSO E ESCOPO DO TRABALHO

    Esta tese pretende, em certa medida, dar continuidade a um aspecto importante

    que foi percebido e tratado de maneira breve em nosso trabalho desenvolvido no mestrado,

    do qual resultou a dissertao intitulada De que se confia s letras: a cincia gramatical

    nas Etimologias de Isidoro de Sevilha (ver referncia completa na bibliografia). Nessa

    etapa, traduziu-se o livro I das Etimologias de Isidoro de Sevilha e trabalhou-se com a

    perspectiva da etimologia como ferramenta destinada a dar conta da interpretao lato

    sensu. Verificou-se que a etimologia apresentada por Isidoro, ainda pertencendo ao quadro

    maior do que se poderia chamar programa gramatical, j no partia dos mesmos

    pressupostos e no tinha necessariamente os mesmos objetos encontrveis nas obras dos

    escritores seculares. Seu carter hermenutico hipertrofia-se, ao mesmo tempo em que as

    concepes crists de lngua orientam-na para outros caminhos explicativos acerca da

    origem dos sentidos. Por outro lado, as Etimologias dedicam vrios livros questo da

    leitura correta da Bblia, advogando o emprego desse saber diante do texto sagrado.

    Esse uso da etimologia como ferramenta hermenutica aplicada leitura da

    Bblia despertou nosso interesse para certa histria da recepo, na qual, no entanto,

    pudssemos no apenas assinalar as diferentes estratgias de leituras, mas tambm, e

    principalmente, investigar mais a fundo outras ferramentas vindas dos saberes seculares

    (para alm da etimologia), determinar qual o locus discursivo visto como mais adequado a

    essa tarefa e, por fim, analisar os possveis efeitos produzidos sobre o texto, objeto dessa

    leitura, sobre os saberes empregados e sobre as polmicas poltico-teolgicas decorrentes

    das diferentes interpretaes.

    Isso nos levou a observar que, na lista das obras suprstites atribudas a autores

    cristos, havia um grupo delas cuja frequncia de publicao e cujo volume apresentavam

    um dado interessante: muito raros nos primeiros sculos das comunidades crists, os

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    comentrios, obras destinadas a exatamente defender uma leitura dos textos bblicos,

    crescem de forma estrondosa a partir, principalmente, do final do sculo II, com Orgenes

    de Alexandria (185-254 d.C.), e conhecem uma proliferao ainda maior pelos trs sculos

    subsequentes. A data evidentemente no fortuita: nesse perodo vive-se justamente a

    revoluo que transformou o mundo antigo, clssico, em cristo. Nesses mesmos

    tempos, de grupo perseguido, os cristos vo pouco a pouco ganhando importncia,

    deixando a clandestinidade, at chegaram s instncias mais altas do poder. Foi igualmente

    a poca de definio dos dogmas da Igreja, quando se realizou uma srie de conclios, com

    especial destaque para o mais famoso deles, o de Niceia, em 325.

    Uma anlise da bibliografia moderna mostra que o estudo desses comentrios

    relativamente marginal. Se, por um lado, h poucos trabalhos que fornecem uma viso de

    conjunto dessas produes comentarsticas,1 por outro lado, mesmo nos estudos mais

    especializados, esses textos so geralmente vistos como de segunda categoria ou menos

    importantes em relao a outros escritos mais tericos dos autores antigos.

    Para ilustrar essa constatao, basta citar os prprios autores a serem analisados

    nesta tese: Jernimo de Estrido e Agostinho de Hipona. O primeiro, conhecido como

    tradutor da Vulgata, quase no figura em obras modernas sobre a histria da teologia ou

    dos dogmas religiosos,2 justamente por ter seu trabalho ligado, quase todo, a uma, pode-se

    dizer, filologia bblica, e, por conseguinte, por ter dedicado grande parte de sua vida a

    escrever comentrios Bblia. Muitas vezes, chega mesmo a ser tratado como um autor

    desprovido de profundidade argumentativa3

    e fiado num mtodo hermenutico nada

    original, 4 cujas contribuies possveis s discusses hodiernas se resumiriam ao

    1 Com excees, destacam-se, nos ltimos anos, esforos importantes para apresentar vises de conjunto dos

    comentrios antigos e medievais: Most (1999) e Geerlings; Schulze (2002). 2 Cf., por exemplo, o papel marginal dedicado a Jernimo na importante tetralogia sobre a histria dos

    dogmas, editada sob a direo de Sesbo (2005). 3 Tratando de uma carta em que Jernimo ataca um defensor do movimento pelagianista, Moreschini e Norelli

    (1996, p. 382) afirmam: Esta [sc. carta] interessante porque constitui uma das primeiras respostas dos ortodoxos ao pelagianismo, mas permanece bem distante da profundidade de pensamento e das problemticas,

    que tocam no mago da f crista, discutidas por Agostinho. Jernimo limita-se quase exclusivamente a

    acumular citaes escritursticas, nas quais sentia-se mais seguro, para demonstrar que os homens no podem

    no pecar se tm sua disposio apenas suas foras e no contam com o auxlio de Deus. Carente do suporte

    terico de Agostinho, Jernimo no era capaz de chegar ao fundo do problema (grifos nossos). 4 Cf. Moreschini; Norelli (1996, p. 394): De todo modo, at o fim da vida, Jernimo, apesar de seus protestos

    em contrrio, permaneceu um exegeta origeniano. Sua inovao est em ter sabido temperar o espiritualismo

  • 25

    fornecimento de dados relativos to somente filologia bblica e ao emprego do hebraico,5

    sem ter relevncia para a histria dos debates teolgicos.6 No caso de Agostinho, por outro

    lado, considerado a grande mente da passagem da Antiguidade tardia para a Idade Mdia,7

    autor de uma vasta obra cujos temas foram os mais variados, a fortuna crtica moderna de

    sua obra tambm manifesta essa mesma tendncia: consideram suas obras comentarsticas

    como de segunda categoria. Uma anlise rpida da bibliografia relativa a esse autor

    demonstra que o estudo da obra agostiniana se divide, na prtica, em duas direes: de um

    lado, o Agostinho filsofo ou semilogo, do outro, o telogo e pregador. Dentro desse

    quadro, h pouca comunicao entre as duas perspectivas, e os comentrios atribudos a

    esse autor em geral ficam numa posio completamente secundria, por no serem obras de

    reflexo nem sobre teologia nem sobre linguagem.

    Por isso, um dos objetivos deste trabalho reabilitar os comentrios como obra no de

    segunda categoria,8 mas sim como uma ferramenta poderosa na constituio no apenas de

    com um interesse, cada vez mais acentuado ao longo dos anos, pela interpretao literal e pela exegese

    hebraica. Esta novidade nos permite levar em menor conta um delito seu: ter se aproveitado das exegeses de

    que se servia (sem reelabor-las pessoalmente) e ter dado a entender frequentemente que elas eram suas. 5 Cf. Graves (2007, pp. 2-3): Por longo tempo, a obra de Jernimo foi vista primeiramente como uma fonte

    de informao acerca de assuntos hebraicos, ao invs de ser um objeto de estudo a ser desenvolvido em si.

    Tudo isso mudou, conforme os estudiosos comearam a adotar uma abordagem mais crtica em relao aos

    escritos da antiguidade crist, e, nesse aspecto, Jernimo recebeu sua parcela justa de crtica negativa. O

    ataque mais comum contra Jernimo o de que ele, com frequncia, faz que aprendeu ou leu coisas que, de

    fato, no aprendeu nem leu; e esse ataque tem sido feito, em particular, contra sua competncia em hebraico (For a long time, Jeromes work was regarded primarily as a source of information on Hebrew matters, rather than as an object of study itself to be evaluated. All of that changed as scholars began to take a more

    critical approach to the writings of Christian antiquity, and in this regard Jerome has received his fair share

    of negative criticism. The most common charge against Jerome is that he frequently pretended to have

    learned or read things that he had not, in fact, learned or read; and this charge has been made in particular

    against his competence in Hebrew; as traduces, se no houver indicao alguma do contrrio, so nossas). 6 Principalmente por causa de a falta de mtodo hermenutico, a inconsistncia e a pouca nitidez de seus

    princpios de interpretao escriturria (le manque de mthode hermneutique, linconsistance et le peu de nettet de ses principes dinterprtation scripturaire; Bardenhewer, 1899, p. 378 apud Jay, 1985, p. 13). Cf. tambm Frst (2011, p. 39): Essas faltas teolgicas, ao lado das caractersticas fraquezas, ulteriormente contriburam no pouco para prejudicar a imagem de Jernimo e retirar-lhe, inclusive, o atributo de telogo (Diese theologischen Mngel haben neben den charakterlichen Schwchen in der Folgezeit nicht wenig dazu beigetragen, d s I d s H y us zu b s d u d s d s A bu l abzusprechen). 7 O maior pensador cristo (e no apenas cristo) do Ocidente [...] (Moreschini; Norelli, 2000b, p. 13).

    8 Seguindo, em certo sentido, as pistas da avaliao de Frst (2011, p. 325) sobre os trabalhos de uma

    conferncia que reuniu diversos especialistas em Jernino: [...], negligenciou-se, sobretudo, a grande parte da obra jernimiana, os seus comentrios bblicos. Evidentemente, h tambm grandes e importantes trabalhos a

    esse respeito, no entanto, em vista da massa de texto, haveria aqui ainda muito para fazer. Faz parte das

    caractersticas da pesquisa sobre Jernimo que ela d pouqussima ateno aos escritos em que Jernimo

  • 26

    certas leituras autorizadas da Bblia, mas tambm como locus privilegiado onde se

    entrecruzavam saberes, poderes e polmicas. Ademais, ferramenta que ajudou, por meios

    dos efeitos produzidos, a dar uma forma especfica aos textos bblicos, na medida em que

    essas intervenes alteraram a prpria constituio do corpus cannico (quais escritos

    pertencem a ele e quais no), sua materialidade (por exemplo, mudanas lxicas e sintticas,

    constituio das percopes), alm de re-partilhar, re-ordenar, e, portanto, re-sequenciar

    (por meio de citaes intratextuais, de leituras no sequenciadas dos versculos) o

    conjunto dos textos considerados cannicos, com o intuito de estabelecer determinadas

    relaes dentro do corpus, para que os diferentes textos formassem um novo e nico texto.

    Criou-se, assim, para alm das mudanas materiais na forma final desse novo texto, uma

    rede semntica sem a qual no se poderia mais ler esse texto. No s se encontram

    mudanas na materialidade textual, como tambm a rede de relaes dentro desse novo

    texto faz vir tona uma espcie de texto subjacente, aquele que os comentadores querem

    ler. Dito de outro modo: trata-se, no fundo, de uma traduo, mas cujo texto de partida est

    em constante mutao. Portanto, longe de serem obras ancilares, tiveram o poder de

    autorizar o que, de fato, seria o dito nesse conjunto de textos chamados Bblia, pois,

    imbudos de auctoritas, esses comentrios controlavam o entendimento do texto, ao

    apresentarem a leitura que deveria ser a religiosamente correta. Atuavam, assim, como

    vigias e guardies de potenciais leituras desviantes que fossem capazes de ameaar o

    quadro semntico de suas respectivas formaes discursivas. Atestavam, com isso, a

    hiptese foucaultiana de que os comentrios existem, sobretudo, para conjurar o perigo da

    livre circulao de discursos.

    Recapitulando, nossos objetivos so, portanto: i) investigar em que medida os

    comentrios eram considerados um genus dicendi na Antiguidade tardia; para isso, so

    analisadas certas caractersticas formais desses textos, a fim de delinear, pois, sua natureza

    diante dos outros gneros antigos, ou seja, verificar o que os antigos definiam como

    investiu mais tempo e energia e que devem ter sido considerados seu desempenho cientificamente original ([...] wird der grte Teil der hieronymianischen Werke, seine Bibelkommentare, eher vernachlssigt.

    Natrlich gibt es auch dazu groe und wichtige Arbeiten, doch angesichts der Masse an Text gbe es hier

    noch viel zu tun. Es gehrt zu den Eigenheiten der Hieronymusforschung, dass sie die Schriften, in die

    Hieronymus die meiste Zeit und Energie investiert hat und die als seine wissenschaftlich originellen

    Leistungen gelten drfen, am wenigsten beachtet)

  • 27

    comentrio e, ao mesmo tempo, apresentar determinados eixos comuns a toda obra que

    se coloque sob essa rubrica; ii) examinar como, em alguns casos, mtodos e conceitos dos

    saberes seculares (tais como a ars grammatica) so ressignificados nos comentrios

    bblicos; iii) perscrutar os efeitos do emprego desses comentrios na construo e afirmao

    da unidade, da infalibilidade e da verdade das Escrituras (donde, pode-se perguntar: que

    textos outros ficaram de fora e por qu? O que une os de dentro?); iv) por fim,

    esmiuar algumas das diversas polmicas que atravessam e afetam esses textos, na medida

    em que, a despeito de possurem interlocutores declarados, so construdos sobre um

    simulacro de seus outros.

    Seguindo uma forma de apresentao empreendida em nossa dissertao de

    mestrado, acreditamos ser pertinente trazer baila aspectos das diferentes formas de

    conceituar comentrio nas cincias hodiernas da linguagem que ajudem na anlise do

    corpus antigo. Portanto, como fizemos com as etimologias moderna e antiga, colocaremos

    de certa forma em contraste aquilo que determinadas reas dos estudos lingusticos

    conceituam a esse respeito e as formas encontradas na Antiguidade tardia.

    Assim, dividimos esta tese em trs partes. Na primeira, pretendemos tratar do

    status quaestionis do conceito comentrio em alguns estudos lingusticos atuais e tambm

    nos trabalhos dedicados exclusivamente ao fenmeno na Antiguidade. Em primeiro lugar,

    apresentaremos os diversos sentidos que o termo adquire tanto no discurso moderno quanto

    no antigo para, em seguida, discutir se, quando se trata de textos que recebem esse nome,

    haveria um gnero especfico ou se o comentrio seria uma atividade especfica praticvel

    por diversos gneros e suportes.

    A segunda parte trar discusso as particularidades que assume o comentrio

    como atividade hermenutica na prtica de explicar a Bblia entre os cristos. Se, na

    primeira parte, foram apresentados os principais conceitos e nomenclaturas antigos que

    descreviam e definiam a prtica, na segunda, iremos mais alm e verificaremos como essa

    herana foi sendo ressignificada no contexto das discusses crists. Esboaremos um breve

    panorama a respeito dessa atividade, ainda incipiente entre as primeiras comunidades

    crists de f, dando um pouco mais de ateno aos trabalhos e propostas de Flon de

    Alexandria, primeiro autor conhecido a aplicar mtodos analticos helensticos explicao

  • 28

    bblica, e Orgenes, considerado o fundador da exegese bblica crist helenfila. com

    esses dois autores que os saberes seculares so ressignificados de forma sistemtica para

    atender s exigncias de explicao da Bblia em termos filolgico e filosfico, com um

    intuito concomitante de poder responder aos ataques dos que no se identificavam com os

    textos bblicos. No entanto, a Bblia no passava inclume ao exame da filologia e filosofia

    antigas. Os saberes antigos tampouco. Em uma e outra direo, ao se encontrarem, ambos

    sofrem inflexes. O comentrio um lugar privilegiado desse encontro.9

    O tema da terceira parte ser Jernimo e Agostinho como comentadores da

    Bblia e a importncia de ambos na vindoura forma de se ler as Sagradas Escrituras. Com

    estratgias diferentes, embora fundadas nos mesmos pressupostos analticos provenientes

    da gramtica e da retrica antigas, os dois autores fundaro uma tradio dupla de leitura e,

    por isso, dois textos bblicos diferentes. Um, mais filolgico, exaltando e explorando a

    riqueza vocabular e, ao mesmo tempo, misteriosa do texto bblico, por se originar de uma

    lngua estranha; o outro, advogando uma filosofia profunda a ser escrutinada por detrs

    da superfcie aparentemente banal e contraditria. Ambos, no entanto, cada um a seu modo,

    reforam a ideia de que h certas chaves de ativao da leitura, sem as quais o

    reconhecimento da textualidade da Bblia e o entendimento correto dela arriscam

    soobrar. Essa parte encerra-se com anlises mais detalhadas da obra de cada um dos

    autores, dedicadas a comentar o livro do Gnesis. So elas o Livro das Questes Hebraicas,

    de Jernimo, o Do Gnesis contra os maniqueus, de Agostinho.

    Por fim, na concluso, proporemos, como contribuio principal deste trabalho,

    a tese de que comentrios produzem um efeito-texto. Portanto, a tese central deste trabalho

    demonstrar como a atividade comentadora dos autores analisados produz um efeito de

    textualidade quilo que eles tomam por texto bblico. A esse efeito daremos o nome de

    efeito-texto. A Bblia uma biblioteca10 de escritos de vrias pocas, lnguas, regies e

    autores diferentes. O prprio termo Bblia no e nunca foi inequvoco. Ainda hoje,

    aquilo que se entende sob essa etiqueta pode definir conjuntos de escritos diferentes,

    conforme o pertencimento a determinadas comunidades de f. Essa instabilidade da

    9 Mais sobre esse encontro: cf. Grypeou; Spurling (2009).

    10 Expresso sugerida pelo Prof. Dr. Paulo Nogueira durante a arguio desta tese.

  • 29

    condio da Bblia como um texto (Qual texto? Onde comea? Onde termina?), como dito,

    atravessou sua histria. Uma das respostas possveis para afirmar sua textualidade, seus

    limites, sua lgica, foi justamente torn-la objeto de comentrios. Ao longo deste trabalho,

    haver tentativas de abstrair as especificidades dos comentrios bblicos para uma prtica

    geral de comentar, assim como se ver o caminho contrrio. Nessa linha, trataremos de

    certa maneira da questo da relao necessria e intrnseca entre discursos constituintes,

    canonizao e comentrios, e a conseguinte funo restritora, controladora da

    interpretao e do fluxo dos discursos, dos comentrios.

    No caso dos comentrios bblicos estudados, sero apresentados alguns dos

    mltiplos debates e polmicas que motivam a necessidade de afirmar a textualidade bblica.

    Em suma, podem resumir-se os trs principais adversrios contra os quais era preciso

    defender que tipo de texto e qual era o texto da Bblia: efeito-texto (i) contra os judeus, que

    no aceitam nada alm da chamada Tanakh (renomeada pelos cristos por Antigo

    Testamento); (ii) contra alguns partidos (hereges) que definem para si outros cnones,

    entre os mais extremados, os que no aceitam o AT como religiosamente edificante, ou os

    que consideram a Bblia um eterno work in progress, aberta a novos acrscimos; (iii) os

    pagos, que no aceitam a Bblia como um texto possuidor de uma lgica, por estar

    cheias de incoerncias, erros gramaticais e de estilo.

    Contra esses trs grupos que os comentrios tentam defender positivamente

    uma textualidade para a Bblia. Para o efeito-texto funcionar, os comentrios precisam

    impor um limite, uma lgica, e uma sequncia significante.

    Por fim, pretende-se mostrar como os comentrios manifestam, igualmente, o

    empreendimento de traduzir um outro (a cultura hebraica) no mesmo (cultura grego-

    romana), na medida em que tratam a Bblia como um texto analisvel segundo as mesmas

    categorias da cultura literria greco-romana. Em relao a esse ltimo aspecto, pode-se

    dizer que esse processo , mutatis mutandis, semelhante ao que Auroux (1992) descreveu,

    em relao ao estudo de lnguas, como gramatizao, ou seja, uma tecnologia,

  • 30

    historicamente determinada, usada para explicar, a partir dos parmetros da gramtica das

    lnguas grega e romana, todas as lnguas com que a cultura europeia se deparou.11

    Mas todo efeito-texto, ao ser produzido, cunha uma textualidade especfica.

    Assim, no limite, cada comentrio produz seu prprio texto, que pressupe um determinado

    tipo de leitor. Eles o fazem, ao acrescentar materialidade significante que comentam, uma

    outra, de modo que o choque entre ambas, para usar uma metfora da Fsica, produz um

    terceiro ou mais elementos.

    No caso especfico dos comentrios bblicos do perodo estudado, h, ademais,

    um outro aspecto importante. Como ainda no havia uma edio definitiva da Bblia, em

    virtude da diversidade de conjuntos de manuscritos, crestomatia etc., mesmo a tal

    materialidade era algo pantanoso. Donde, nesse caso especfico, o comentrio no apenas

    produz, a partir da diversidade de escritos bblicos, como efeito, um (novo ou outro) texto,

    mas tambm ele intervm, de fato, at mesmo na materialidade do texto fonte, uma vez que

    apresenta uma verso desse entre outras circulantes poca. Aqui, os comentrios

    inflectem diretamente na forma do texto, como se ver. Determinadas palavras, locues e,

    mesmo, perodos e percopes so estabelecidos e defendidos como soluo por meio dos

    comentrios.

    Assim, pretendemos demonstrar que, a despeito de poderem ser tambm

    considerados apenas como exerccios mentais (gestige bungen; Hadot, 2002, p. 195) ou

    como uma atividade cujo sentido central seria somente [...] a elucidao de um texto por

    algum outro autor12 (Most G. W., 1999, p. viii), deve-se v-los, seguindo Foucault (2005),

    11

    Cf. Auroux (1992, p. 35): Vamos nos dar o longo prazo da histria e considerarmos globalmente o desenvolvimento das concepes lingsticas europias em um perodo que vai da poca tardo-antiga (sculo

    V de nossa era) at o fim do sculo XIX. No curso desses treze sculos de histria vemos o desenrolar de um

    processo nico em seu gnero: a gramatizao massiva, a partir de uma s tradio lingstica inicial (a

    tradio greco-latina), das lnguas do mundo. Esta gramatizao constitui depois do advento da escrita no terceiro milnio antes da nossa era a segunda revoluo tcnico-lingstica. Suas conseqncias prticas para a organizao das sociedades humanas so considerveis. Essa revoluo que s terminar no sculo XX vai criar uma rede homognea de comunicao centrada inicialmente na Europa. Cada nova lngua integrada rede dos conhecimentos lingsticos, a mesmo ttulo que cada regio representada pelos

    cartgrafos europeus, vai aumentar a eficcia dessa rede e de seu desequilbrio em proveito de uma s regio

    do mundo. s cincias da linguagem que devemos a primeira revoluo cientfica do mundo moderno. 12

    If we consider the aims and dynamics of commentary, it seems clear that one of its central goals - even if

    not its only one, and perhaps not even an indispensable one is the elucidation of a text by some other author. It is worth asking (1) whose text is elucidated, (2) for whom, (3) by whom, (4) where, and (5) why.

  • 31

    como uma atividade de conjurao dos medos da livre circulao dos discursos. O efeito-

    texto produzido pelos comentrios aponta justamente para essa direo de inspirao

    foucaultiana. um ato de controle, de interveno no regime discursivo.

    ALGUNS POSICIONAMENTOS E DIRETRIZES TERICOS: FILOLOGIA, COMENTRIO,

    REFORMULAO

    O presente trabalho debruar-se- sobre textos de um passado longnquo, os

    primeiros sculos da era crist. A perspectiva analtica adotada ser fundada, em parte,

    em teorias modernas sobre o funcionamento dos discursos que comearam a ser

    desenvolvidas nos anos 70 do sculo passado, a partir do surgimento da chamada Escola

    Francesa de Anlise do Discurso. Com isso, estabelece-se, a nosso ver, um problema com o

    qual todo trabalho que tem ou atravessado por alguma dimenso do passado se defronta: o

    perigo de anacronismo.

    Neste trabalho, por exemplo, trataremos dos comentrios bblicos antigos do

    ponto de vista da reformulao discursiva, e, por vrias vezes, afirmaremos ser uma

    estratgia do comentador apagar de seu discurso o fato de que ele, ao comentar um texto,

    est reformulando-o e, portanto, de certo modo, traduzindo-o de uma forma para outra. A

    questo talvez possa ser, contudo, mais complexa. possvel que, por se tratar de regimes

    de historicidade13

    diferentes, no esteja necessariamente em causa um apagamento

    13

    Cf. [...] difere da [sc. noo] de poca. poca significa, no meu entender, apenas um corte no tempo linear (de que freqentemente se ganha conscincia aps o fato e bem depois ela pode ser usada como um recurso de

    periodizao). Por regime, quero significar algo mais ativo. Entendidos como uma expresso da experincia

    temporal, regimes no marcam meramente o tempo de forma neutra, mas antes organizam o passado como

    uma seqncia de estruturas. Trata-se de um enquadramento acadmico da experincia (Erfahrung) do tempo,

    que, em contrapartida, conforma nossos modos de discorrer acerca de e de vivenciar nosso prprio tempo.

    Abre a possibilidade de e tambm circunscreve um espao para obrar e pensar. Dota de um ritmo a marca do

    tempo, e representa, como se o fosse, uma ordem do tempo, qual pode-se subscrever ou, ao contrrio, e o que ocorre na maioria das vezes, tentar evadir-se, buscando elaborar alguma alternativa (Hartog, 2003, pp. 11-12). Cf. tambm Hartog (1996, p. 129): Entendo essa noo como uma formulao erudita da experincia do tempo que, em troca, modela nossa forma de dizer e viver nosso prprio tempo. Um regime de

    historicidade abre e circunscreve um espao de trabalho e de pensamento. Ele d ritmo escrita do tempo,

    representa uma ordem qual podemos aderir ou, ao contrrio (e mais freqentemente), da qual queremos escapar, procurando elaborar outra.

  • 32

    estratgico, mas sim algo ligado a outra economia simblica, outra relao com as noes

    de tempo, sentido e verdade, diferentes de todas as que so hoje conhecidas. A diferena da

    noo de tempo das diversas sociedades implica tambm determinadas relaes com os

    prprios conceitos que essas sociedades formulam. Chau, por exemplo, ao analisar as trs

    concepes diferentes (grega, latina, hebraica) de verdade, a partir das quais se constri a

    viso predominante no Ocidente, afirma:

    Aletheia se refere ao que as coisas so; veritas se refere aos fatos que foram;

    emunah se refere s aes e s coisas que sero. A nossa concepo da verdade

    uma sntese dessas trs fontes e por isso se refere s coisas presentes (como na

    aletheia), aos fatos passados (como na veritas) e s coisas futuras (como na

    emunah). Tambm se refere prpria realidade (como na aletheia), linguagem

    (como na veritas) e confiana-esperana (como na emunah). (Chau, 2000, p.

    124)14

    Assim, apesar de se conceber, por um lado, a existncia de diferentes formaes

    discursivas ou posicionamentos em qualquer perodo histrico dado, lcito imaginar, por

    outro, que alguns aspectos de outros regimes de historicidade no encontrem qualquer eco

    em nenhum posicionamento moderno, e, por isso, pode ser que se esteja diante de algum

    hiato semntico, algum abismo simblico intransponvel entre o regime de historicidade

    dos enunciadores dos textos do passado e do analista hodierno.15

    Nesses momentos, a

    14

    Cf. tambm: intil multiplicar, fora de nossa historiografia, os exemplos que atestam uma outra relao com o tempo, ou, o que vem a ser o mesmo, uma outra relao com a morte. No ocidente, o grupo (ou

    indivduo) se robustece com aquilo que exclui ( a criao de um lugar prprio) e encontra sua segurana na

    confisso que extrai de um dominado (assim se constitui o saber de/sobre o outro, ou cincia humana). que

    ela sabe efmera toda vitria sobre a morte; fatalmente a desgraada retorna e ceifa. A morte assombra o

    Ocidente. Por este motivo o discurso das cincias humanas patolgico: discurso do pathos infelicidade e ao apaixonada numa confrontao com esta morte que a nossa sociedade deixa de poder pensar como um modo de participao na vida. Por sua conta a historiografia supe que se tornou impossvel acreditar nesta

    presena dos mortos que organizou (organiza) a experincia de civilizaes inteiras e, portanto, que

    impossvel remeter-se a ela, aceitar a perda de uma solidariedade viva com os desaparecidos, ratificar um limite irredutvel. O perecvel seu dado; o progresso, sua afirmao. Um a experincia que o outro

    condena e combate. A historiografia tende a provar que o lugar onde ela se produz capaz de compreender o

    passado: estranho procedimento, que apresenta a morte, corte sempre repetido no discurso, e que nega a perda,

    fingindo no presente o privilgio de recapitular o passado num saber. Trabalho da morte e trabalho contra a

    morte. (de Certeau, 2006, pp. 16-17) 15

    Cf., por exemplo, Hartog (1999, pp. 15-16): Uma cultura (a nossa em todo caso) feita de tal modo que no cessa de retornar aos textos que a constituram, de rumin-los, como se sua leitura fosse sempre uma releitura. Seja felicitando-se por isso ou lamentando-se, seja embalsamando-os ou recusando-os, ela parece

    tecida por seus fios e como que j lida por eles. A tarefa de um historiador da cultura pode, a partir da, consistir em dar a ler esses textos, recontruindo para falar como a hermenutica a questo que eles respondem, redesenhando os horizontes de expectativa em que, desde seu primeiro dia at os nossos (ainda

    que no modo de ausncia), eles vieram inscrever-se, recalculando as apostas que fizeram e significaram,

  • 33

    despeito de isso no invalidar a anlise em si, certa prudncia em deixar aberto um espao

    de incompreenso parece-nos mais que bem vinda, no s por uma questo, talvez, tica

    em relao ao passado, mas tambm, e principalmente, por uma questo de epistemologia:

    como evitar transformar os textos antigos em tbula rasa, transpondo-lhes categorias e

    perguntas que no lhe fariam sentido algum?

    A questo de fundo tentar estabelecer uma relao dialtica entre o analista e

    o objeto, em que nenhum dos dois plos que, como tais, no existem fora dessa relao

    construda se apague no outro. admitir, no contato com esse outro, que em certos

    pontos deve-se recorrer quilo que os antigos filsofos cticos chamavam de

    [ , suspenso].16

    Ao mesmo tempo, este trabalho, embora faa uso de teorias e reflexes da

    Anlise do Discurso, pretende manter-se inscrito numa tradio de estudos filolgicos.

    Contudo, para isso, acreditamos ser necessrio demonstrar como se justificaria tal

    emprstimo de conceitos vindos de outra rea, sem que o trabalho deixe der ser considerado,

    afinal, filolgico. Em primeiro lugar, cabe perguntar que subsdios analticos a Filologia

    historicamente oferece, para que tais emprstimos no se mostrem completamente

    estranhos a ela. Melhor dizendo: que definio de Filologia permite esses dilogos? E por

    fim: em que medida o cruzamento das reas no s pode oferecer resultados importantes,

    como tambm garantir aquela alteridade ao objeto estudado?

    A princpio, preocupaes como essas podem soar sem nexo. Entretanto, vale

    lembrar que durante muito tempo, por influncia de certa verso do que seria uma filologia

    pura, reflexes, teorias e conceitos produzidos na Modernidade no pareciam ser bem-

    vindos para a anlise de textos antigos, uma vez que, para essa linha, ao fillogo caberia to

    somente o contato direto com o texto, sem que nenhuma ideia hodierna viesse a intermediar

    esse contato, ao no ser aquelas vindas de outros textos coevos ou anteriores ao objeto do

    trabalho filolgico.

    apontando os quiproqus que sucessivamente provocaram. Essa historizao no significa moderniz-los ou

    atualiz-los, mas sobretudo fazer ver sua inatual atualidade: suas respostas a questes que ns no mais

    levantamos, no sabemos mais levantar ou simplesmente esquecemos [grifo nosso]. 16

    Cf. Sexto Emprico (c. 160-210 d.C.): um posicionamento intelectual por meio do qual nem nos

    convencemos de algo nem propomos algo (

    ; Pyrr. 1,10,5).

  • 34

    Para concluir, veremos que mesmo o objeto deste trabalho, os comentrios,

    esteve, e continua a estar, no centro do ofcio do fillogo: a explicao de textos de outras

    pocas. Ora, os comentrios, como mostraremos, desde sempre foram prticas que

    flertaram com uma srie de aspectos que, em geral, so considerados abrangidos pela

    pesquisa filolgica: conhecimento de lnguas (estrangeiras), polimatia, saber histrico

    (sobre os antigos), edio, crtica, e tudo isso visando ao desejo de explicao e

    reconstruo total do objeto. Nesta introduo, a exposio de algumas das definies de

    Filologia espalhadas ao longo dos sculos servir para mostrar como as disputas relativas a

    seus limites tendem a girar em torno desses mesmos pontos.

    Ademais, e em certo sentido, investigar essa prtica de explicar textos

    praticamente estudar a prpria natureza da Filologia, j que todos os seus objetivos, sejam

    os de edio, traduo ou os comentrios propriamente ditos, convergem, no limite, para o

    mesmo objetivo: tornar transparente uma opacidade, ou seja, traduzir uma unidade qualquer

    de um estado de lngua x para outro y, s vezes, transportando-os tambm de um

    determinado suporte para outro. Nesse sentido, portanto, nosso trabalho tambm pode ser

    visto como uma contribuio histria da prpria prtica de explicao de textos.

    Entre strictus e latus sensus: uma difcil definio

    Quando se trata da questo sobre o que seria a Filologia, possvel responder,

    parafraseando um famoso adgio: tot philologiae quot philologi (cada fillogo, uma

    filologia). A despeito disso, reuniu-se sob o nome de Filologia uma srie de atributos

    conceituais e prticos que, de certa maneira, ajudou a definir os limites dessa rea de saber,

    tanto em relao a seus objetos, quanto a seus pontos de partida tericos. Entre eles, estava

    a escrita de comentrios. Em que medida, no entanto, a noo de Filologia em especial,

    aps o Renascimento dialoga com a prtica antiga de comentar e vice-versa, seria algo a

    ser explorado em detalhes num estudo parte. Aqui, no entanto, pretendemos esboar

    aspectos bem gerais dessa noo e mencionar alguns pontos de inflexo importantes que

  • 35

    ajudem a entender qual pode ser a contribuio de um estudo de comentrios antigos para a

    prpria prtica de comentar, em geral, e para a em Filologia, em particular.

    Na segunda metade do sculo XX, por um bom tempo, teve-se a sensao de

    que a Filologia, como rea de saber, ameaava, se no desaparecer, ao menos virar uma

    espcie de persistncia moribunda no quadro das disciplinas acadmicas hodiernas (cf.

    Duval F., 2007). Empurrada de seu antigo status pela apario de novas reas de saber e de

    territrios de conhecimentos, parecia que a Filologia era tema apenas entre os estudantes

    das lnguas clssicas, quase que restrita ideia de edio de texto.17 A perda do prestgio,

    cujo auge foi sem dvida o sculo XIX, em decorrncia, em parte, das crticas s

    concepes que vinculou durante geraes de praticantes, o trabalho filolgico se apegou

    ltima cidadela que o protegia: a produo de edies crticas. Esse movimento de retrao,

    motivado pelas diversas polmicas em que a rea se encontrou, foi levado a cabo por

    grande parte dos prprios fillogos, meio que incrdulos diante da avalanche produzida,

    especialmente, pelo linguist turn dos anos de 1970. Alis, mesmo antes disso para ser

    mais preciso, desde Saussure , a Filologia j havia sido posta num degrau abaixo do

    processo evolutivo que o linguista descreveu como preparatrio para o advento da

    Lingustica. Para ele, tudo se iniciou com o estudo desprovido de qualquer viso cientfica

    e desinteressada da lngua, a gramtica dos gregos e romanos antigos, e desbocou na

    gramtica comparada do sculo XIX, cujo defeito, dessa vez, era no ter se preocupado

    em determinar a natureza de seu objeto de estudo, operao sem a qual uma cincia

    incapaz de estabelecer um mtodo para si prpria. Entre essas duas pontas (a gramtica

    antiga e a gramatica comparada oitocentista), encontrava-se a Filologia, cuja nica falha era

    apega[r]-se muito servilmente lngua escrita e esquece[r] da lngua falada.

    Na cidadela que o fillogo criou para si em resposta s crticas, um tcito pacto

    dizia que sua funo era nica e exclusivamente editar, traduzir, comentar. E tudo isso, de

    preferncia, com o mnimo de interveno, para que, desse processo, se produzisse um

    texto o mais fiel possvel, que, agora, pblico, pudesse ser objeto de estudos de outras reas

    17

    Cf. Duval (2007, p. 22): As acepes mais restritivas triunfaram [...] e a filologia, na Frana, refere-se, sobretudo, crtica textual e, mais precisamente ainda, edio crtica de textos (Les acceptions plus restrictives ont [] triomph et la philologie, en France, rfre surtout la critique textuelle et, plus prcisment encore, ldition critique de textes).

  • 36

    mais analticas. Nos ltimos anos, no entanto, parece que est surgindo um movimento

    contrrio, disposto a romper com esse ponto de vista que tem perpetuado a Filologia como

    uma eterna disciplina auxiliar. Vrias reflexes, de fillogos e no fillogos, tm buscado

    entender, para alm de uma teoriometria que venha a reger algumas definies de

    cientificidade, quais as especificidades que, ao longo da histria bimilenar e de sua

    difuso por diversos lugares, esse saber tem produzido, a despeito das definies dspares e,

    at mesmo, contraditrias de seu ofcio e alcance prtico.

    No se pretende nem o objetivo desta introduo propor uma histria da

    filologia, tampouco apresentar uma detalhada reflexo epistemolgica. No entanto, como

    trabalho de Filologia, convm, a nosso ver, expor (i) os posicionamentos atinentes a essa

    rea de saber a partir dos quais se fala aqui, (ii) como este trabalho pode contribuir para a

    histria da reflexo filolgica, uma vez que, mutatis mutandis, versa sobre um dos seus

    pilares: o ato de comentar.

    Num texto recente em que trata da relao entre Filologia e Anlise do Discurso,

    Maingueneau (2010), ao falar da primeira, j alerta que se trata de uma impossvel

    definio, porque, [...] mesmo limitando-se ao sculo XIX, no fcil dizer em que

    consiste exatamente a filologia. uma disciplina que sempre procurou sua definio (p.

    46). De fato, e, em certo sentido, muitos fillogos o reconhecem. Em contrapartida,

    publicou-se, em 2009, na Alemanha, uma coletnea de estudos cujo foco no perguntar

    quae est philologia (que tipo de filologia), mas sim quid est philologia (o que

    filologia). O ttulo Was ist eine philologische Frage? (O que uma pergunta filolgica?)

    aponta claramente para uma investigao epistemolgica sobre o prprio modus quaerendi

    do fillogo (Schwindt, 2009).18

    Esse debate epistemolgico mais detalhado, como j dito,

    18

    Cf.: A pergunta sobre a pergunta filolgica suspende o perguntar filolgico para tomar conscincia daquilo que prprio desse perguntar. Ela faz isso ao se colocar por um momento no lugar da(s) pergunta(s)

    filolgica(s) e ao interromper a continuidade sem rudos de um perguntar filolgico que no coloca a si

    prprio em questo. A pergunta sobre a pergunta filolgica inaugura, com isso, um espao livre, um lugar de

    percepo e observao que e isso o distingue das topografias familiares do perguntar filolgico antecede a todas as respostas possveis e, portanto, diretamente tambm aos objetos do debate filolgico. (Die Frage nach der Philologischen Frage setzt das philologische Fragen aus, um dessen innezuwerden, was das

    Eigentmliche dieses Fragens ist. Sie tut dies, indem sie sich fr einen Augenblick an die Stelle der

    philologischen Frage(n) setzt und die geruschlose Kontinuitt eines sich nicht selbst in Frage stellenden

    philologischen Fragens unterbricht. Die Frage nach der Philologischen Frage erffnet mithin einen

    Freiraum, einen Ort der Wahrnehmung und Beobachtung, der - und das unterscheidet ihn von den vertrauten

  • 37

    extrapolaria os limites desta introduo. Mas no se poderia deixar de mencionar que a

    pergunta sobre o saber filolgico voltou ordem do dia, sobretudo, entre os prprios

    fillogos.

    Restrinjamo-nos aqui, contudo, ao velho problema da definio da Filologia.

    Para tanto, vamos seguir o conselho de um importante fillogo oitocentista, que j

    recomendava, em 1862, que: o que filologia no pode ser melhor demonstrado seno

    pela exposio de como ela veio a ser (Curtius, 1862, p. 6).19 A justificativa para isso

    dada pelo fato de que a histria da Filologia indissocivel, no Ocidente pelo menos, da

    histria da prtica de comentar textos. Assim, tratar da histria de uma delas , em parte,

    tratar tambm da histria da outra.

    Desde o primeiro abono de (phillogos) em Plato, o sentido desse

    termo tem oscilado dos graus mais estritos aos mais amplos possveis. Mesmo entre os

    antigos, filologia nunca disps de uma definio clara comparvel, por exemplo, a sua rea

    irm, a gramtica (cf. Bassetto, 2005). Talvez seja justamente a interpretao que se deu,

    ao longo dos sculos, palavra grega lgos que explique, em parte, as dificuldades em

    definir, afinal, o que seria o amigo desse lgos (). No que outros rtulos de

    certas reas no deixassem tambm margem para ampliaes, deslocamentos,

    metaforizaes e afins. Em relao prpria gramtica de que falamos, se se comparam

    seus mltiplos sentidos (antigos e modernos), ver-se- que, em alguns casos, os objetos

    investigados quase nada tm que ver com a noo de letra, etimologia vinculada pelo grego

    gramma. Em outros casos, porm, parece que a amplitude mais propcia, como em

    filologia. Tanto assim que filologia muitas vezes era sinnimo de filosofia, como se os

    interesses e as prticas dos amantes da sabedoria e do lgos no se diferenciassem tanto.

    Polimatia e ars critica

    Topographien philologischen Fragens allen mglichen Antworten und mithin gerade auch den Gegenstnden der philologischen Verhandlung vorausliegt; Schwindt, 2009, p. 11) 19

    Was Philologie ist, wird man aber nicht besser zeigen, als wenn man darauf hinweist, wie sie geworden ist.

  • 38

    Entre os antigos, uma das primeiras tentativas de distinguir claramente o que

    era prprio do filsofo, do fillogo e do gramtico se deu com o jovem Sneca, no incio do

    primeiro sculo da era crist. Para ele, quando cada um deles se depara com um texto como

    o De republica de Ccero, ressaltar um aspecto dessa obra, pois:

    [...] o gramtico se preocupa com problemas especficos de lngua e de literatura,

    como expresses tpicas, arcasmos, influncias literrias. O fillogo apresenta

    anlises, dedues, inter-relacionamento de fatos, conhecimento dos livros de

    histria, de arspices e dos escritos pontificais - ndices de uma cultura ampla,

    prpria do sbio, do Fillogo [...]. (Sen. Ep. LV, 18, trad. Bassetto, 2005, p. 22)

    Quanto ao filsofo, limita-se a dizer que se admira de se tivesse podido

    afirmar tantas coisas contra a justia. (Sen. Ep. LV, 18, Bassetto, 2005, p. 22)20

    O esforo de Sneca no parece ter encontrado muito eco entre seus

    contemporneos e, depois, entre as geraes posteriores de estudiosos. Pelo contrrio, se a

    pesquisa avana pela Antiguidade tardia e Idade Mdia, v-se um movimento de hipertrofia

    da Gramtica que de uma antiga posio modesta de apenas ser um saber propedutico

    compreenso de textos e, em seguida, Retrica chega no s, em muitos aspectos, a

    assumir aqueles sentidos da atividade filolgica como aquela prpria do erudito crtico de

    textos, como tambm se aproxima, j no perodo do renascimento carolngio (sc. VIII

    d.C.), de investigaes lingustico-filosficas que contriburam tanto para os debates dos

    modistae,21

    quanto, no limite, para as reflexes dos gramticos de Port-Royal. Para essa

    hipertrofia, a fortuna crtica das Institutiones grammaticae de Prisciano de Cesareia (viveu

    em torno do ano 500 d.C.) teve papel importante.22

    Ademais, no deixa de chamar a

    20

    [] admiratur contra iustitiam dici tam multa potuisse. Traduo de Basseto (21-22). 21

    Cf. Robins (1967, p. 74): De longe, o desenvolvimento mais interessante e significativo na lingustica durante a Idade Mdia o surgimento das gramticas especulativas ou tratados De modis significandi (dos modos de significar) [...]. Gramtica especulativa que ia bem alm dos requisitos do ensino de latim [...] A gramtica especulativa um estgio distinto e definitivo na teoria lingustica, e os diferentes autores, ou

    modistae [...] representam essencialmente o mesmo ponte de vista terico e compartilham a mesma concepo

    de cincia lingustica, seus objetivos, e seu lugar entre os outros estudos intelectuais. [....] (By far the most interesting and significant development in linguistics during the Middle Ages is the output of speculative grammars' or treatises De modis significandi (on the modes of signifying) []. Speculative grammar is a definite and distinct stage in linguistic theory, and the different authors, or Modistae, as they are sometimes

    called, represent substantially the same theoretical point of view, and share the same conception of linguistic

    science, its objectives, and its place among other intellectual studies []) 22

    A gramtica especulativa foi o produto da integrao da descrio gramatical do latim como formulada por Prisciano e Donato no interior do sistema filosfico escolstico (Speculative grammar was the product of the

  • 39

    ateno o fato de que Isidoro de Sevilha, em sua enciclopdia Etimologias, tenha

    ignorado o termo filologia e correlatos. Isso talvez seja um dos indcios do ostracismo em

    que caiu essa noo a partir do fim da Antiguidade.

    Do Renascimento em diante, no entanto, h, por assim dizer, uma redescoberta

    da Filologia. Qui fosse mais adequado falar de uma reinveno, j que o termo

    readquire um novo papel nos regimes de saber da poca, na medida em que associado,

    sobretudo, ao trabalho de crtica documental.

    O que d a impresso de estar em processo, a partir do Renascimento,

    principalmente um rearranjo das reas de atuao do gramtico e do fillogo, ainda que no

    de forma absoluta e ausente de contradies. De qualquer maneira, muito provavelmente,

    esse processo de abandono gradual da gramtica como saber interpretativo j vinha se

    desenvolvendo desde a transio da Antiguidade Idade Mdia, quando esse estudo parece

    ter se voltado com mais vigor reflexo lingustica mais propriamente dita, ou seja,

    anlise das unidades formais (sons, flexo, sintaxe) da lngua.

    Pode-se dizer que a Filologia moderna nasceu com o gesto fundador de

    Lorenzo Valla, no sculo XIV, que [...] em razo de indcios lingusticos [provou] a

    inautenticidade da doao de Constantino e da correspondncia entre Paulo [apstolo] e

    Sneca (Jager, 1990, p. 20).23 As competncias necessrias subentendidas, os objetivos e

    efeitos desse gesto no eram certamente desconhecidos dos antigos, em especial, dos

    gramticos. Mas o momento em que ocorre tal gesto tem motivos e efeitos muito

    especficos que, em certa medida, pretendem justamente reorganizar aspectos da tradio

    dita clssica. Como lembra Thouard (2010):

    O incio dos tempos modernos destaca-se por ter delineado dois modelos de saber

    de natureza diversa, um filolgico e um matemtico. A inveno da Filologia

    como tratamento crtico de textos permitiu desde mais ou menos Valla ou Poliziano submeter os testemunhos do passado a uma investigao sistemtica. O manuscrito tornou-se objeto de um saber minucioso, que se produzia mediante

    integration of the grammatical description of Latin as formulated by Priscian and Donatus into the system of

    scholastic philosophy; (Robins, 1967, p. 74). 23

    [Er bewies] aufgrund sprachlicher Indizien die Unechtheit der Konstantinischen Schenkung und der

    Korrespondenz zwischen Paulus und Seneca. (Jager, 1990, p.20)

  • 40

    o juzo, o iudicium do crtico. A transmisso textual era posta diante do tribunal do crtico. (p. 2)

    24

    Essa crtica textual pressupunha certa constelao de saberes e informaes que

    talvez no diferissem muito dos pressupostos da crtica textual praticada na Antiguidade:

    conhecimento da lngua dos textos, da histria a que se refere e em que foi escrita, dos

    demais saberes vinculados pelo texto. Mas, nesse gesto fundador, a erudio deve ser

    crtica, porque precisa romper com a tradio. Se, por um lado, a busca da autenticidade

    manifesta um conceito possivelmente puro de texto, por outro, queria ser crtica

    justamente por apresentar-se como o crivo pelo qual as tradies deveriam perder o que tm

    de passivo, ou seja, de a-crtico.

    Numa definio, publicada em 1643, numa obra intitulada Dissertatio de

    Philologia, Teophilus Colerus (1618-1685) assim se expressa:

    Grego de solo natal o vocbulo philologia. [...] prpria palavra philologia

    subsistem diversos significados. Uma possibilidade: com efeito, representa

    igualmente acepes instrumentais como so chamadas e assim se contradistingue da prpria filosofia. A partir desse mesmo princpio, aqui se diz

    [significar] ensaio de professores, ou antes investigao (se se retira rganon) filosfica. Aquele ltimo, na verdade, e foi dito assim investigao, costuma receber o atributo de filosfico. Outra possibilidade: mais grosseiramente, para uns tantos, somente quer dizer a investigao exata em

    relao gramtica de algum escrito. Outra possibilidade: para alguns, envolve

    to somente o conhecimento de diversas lnguas. Outra possibilidade: alguns

    consideram que a filologia deveria ser colocada at mesmo no lugar da prpria

    filosofia. Talvez ela exista tambm num outro sentido ainda. Mas o ltimo uso

    dessa palavra no o que vigora aqui, hoje, com o qual se designa o hbito de

    interpretar aparelhado pelo conhecimento notrio tanto das lnguas, quanto da

    antiguidade, e no apenas de tudo que digno. Desse prprio fato, certamente

    chamamos de fillogo aquele homem a quem certamente no atribumos um

    lugar de punio entre os eruditos. E nesse significado no presente que se d

    nossa considerao. (Colerus, 1643)25

    24

    Die Frhe Neuzeit zeichnet sich dadurch aus, dass sie zwei Wissensmodelle unterschiedlicher Natur

    entworfen hat, ein philologisches und ein mathematisches. Die Erfindung der Philologie als kritischer

    Umgang mit Texten erlaubte es etwa seit Valla oder Poliziano , die Zeugnisse der Vergangenheit einer systematischen Untersuchung zu unterziehen. Die Handschrift wurde zum Gegenstand einer sorgfltigen

    Erkenntnis, die mittels der Urteilskraft, des Iudicium des Kritikers, zustande kam. Die Textberlieferung wurde vor das Gericht des Kritikers gestellt. 25

    graecum est natali solo, philologiae uocabulum []. ipsum philologiae uerbum diuersis substat significatis. Alias enim, instrumentales, ut uocantur, simul sumtas repraesentat, et sic contradistinguitur a philosophia

    ipsa. Quo eodem ex capite, magistrorum hic loci tentamen siue, examen prius, (si organon excipias,)

    philosophicum: posterius uero, et ita dictum examen, philosophicum nuncupari solet. Alias, et rudius, uel

    solum ad grammaticam exactum alicuius scripti examen quibusdam dicit. Alias diuersarum linguaraum

    cognitionem tantum inuoluit nonnullis. Alias pro ipsa etiam philosophia, philologiam positam uidere fuerit.

  • 41

    Nesse trecho, entre a constelao de sentidos apresentados, chamam a ateno

    alguns que, como dito, parecem vir acompanhando esse saber de difcil definio: (i) um

    brao pedaggico, que liga o termo filologia ao mbito dos professores (magistrorum); (ii)

    o aspecto de sua anlise precisa (exactum examen), no caso, referida gramtica; (iii) o

    poliglotismo (diuersarum linguaraum cognitio), que nada mais seria seno uma verso

    lingustica da polimatia; (iv) equiparao filosofia, talvez por aquilo que se define na

    sequncia e o sentido encampado pelo autor do texto, ou seja, (v) um hbito de

    interpretar (habitus interpretandi). No entanto, no concordando com a associao

    absoluta ao filsofo, Colerus especifica esse hbito, ao dizer que ele deve ser aparelhado

    pelo conhecimento tanto das lnguas quanto da antiguidade (et linguarum, et antiquitatis

    [...] cognitione, comparatus).

    Assim, na reinveno da filologia, tentou-se justamente ativar o lado da

    interpretao, ou seja, aquilo que, na terminologia gramatical antiga, chamava-se krsis

    ( ) ou iudicium poetarum (julgamento dos poetas). No

    toa, um dos eptetos prediletos dados filologia nesse perodo renascentista era o de ars

    critica. Tratava-se, pois, do habitus interpretandi de que a passagem acima fala. Desse

    modo, se a gramtica, na Antiguidade, era uma cincia bipartida entre a lngua e os textos

    (cf. Desbordes, 1995), do renascimento em diante, parece que se consuma uma diviso, ou

    melhor, estabelece-se gradativa e momentaneamente uma nova relao hierrquica, j que a

    Filologia engloba a anlise gramatical, mas no se restringe a ela, conforme se v na

    afirmao de Colerus, segundo a qual dizer isso seria defini-la mais grosseiramente

    (rudius).

    Humanidades

    Forte alio etiam in sensu. At nec hic postremus huius uerbi usus uiget hodie, quo et linguarum, et antiquitatis,

    et tantum non omnium scitu dignorum cognitione, comparatum interpretandi habitum designat.Quo ex ipso

    quippe philologum quem appellamus uirum, illi non poenitendum sane in eruditis locum adsignamus. Et in

    hoc significatu nostrae in praesenti quod est considerationis.

  • 42

    Seguindo outras definies de pocas posteriores, v-se que alguns aspectos da

    tentativa de definio se mantm. Por exemplo, na famosa Enciclopdia organizada por

    Diderot e DAlembert, e publicada entre 1751 e 1772, assim aparece o verbete relativo

    rea:

    FILOLOGIA : espcie de cincia composta de gramtica, de potica, de

    antiguidades, de histria, de filosofia, por vezes mesmo de matemticas, de

    medicina, de jurisprudncia, sem tratar alguma dessas matrias a fundo nem

    separadamente, mas as tange todas ou em parte. [...] A filologia uma espcie de

    literatura universal que trata de todas as cincias, de sua origem, seu progresso,

    dos autores que as cultivaram etc. Vede Polimatia. A filologia no outra coisa

    seno aquilo que chamamos na Frana as belas letras, e quilo que nas

    universidades se d o nome de humanidades, humaniores litterae. Ele constitua

    outrora a parte principal e mais bela da Gramtica.26

    Nesse verbete, comea por chamar nossa ateno a definio quase indefinida

    de filologia como uma espcie de cincia. Como dito, possivelmente a amplitude dos

    conhecimentos com os quais a filologia dialoga para tratar desse seu objeto, os textos,

    sobretudo, antigos, que motiva qualific-la como uma espcie de cincia. Ademais, ela

    no se aprofunda neles, mas sim os tanges todas ou em parte (effleurant toutes ou en

    partie), sem tratar alguma dessas matrias a fundo nem separadamente (sans traiter

    aucune de ces matieres fond, ni sparment). Ao mesmo tempo, porm, o fato de ser

    elencada entre as cincias aponta para o movimento de no ser mais considerada como uma

    arte ou um hbito de interpretar, mas sim como algo submetido a certos procedimentos

    que seriam qui supraindividuais, para alm de talentos artsticos pessoais. possvel

    tambm que no houvesse nada de especial nessa nova definio no mais arte, mas

    espcie de cincia , sendo essa mudana apenas pro forma. De qualquer maneira, o fato

    que ela, em parte, reconhecida pelos enciclopedistas como uma rea que compartilha

    algo de cientfico. Para entrar no rol das cincias, talvez tenha contribudo sua tradio

    crtica, herdada da renovao renascentista. Ademais, no verbete, associa-se a filologia

    26

    PHILOLOGIE, s. f. (Littrat.) espece de science compose de grammaire, de potique, dantiquits, dhistoire, de philosophie, quelquefois mme de mathmatiques, de mdecine, de jurisprudence, sans traiter aucune de ces matieres fond, ni sparment, mais les effleurant toutes ou en partie. / [] La philologie est une espece de littrature universelle, qui traite de toutes les sciences, de leur origine, de leur progrs, des

    auteurs qui les ont cultives,&c. Voyez Polymathie. / La philologie nest autre chose que ce que nous appellons en France les Belles-lettres, & ce quon nomme dans les universits les humanits, humaniores litter. Elle faisoit autrefois la principale & la plus belle partie de la Grammaire [...]. Citado conforme o

    original.

  • 43

    moderna, ou seja, ps-renascentista, com a parte da gramtica antiga dedicada crtica dos

    autores, conforme expusemos mais acima.

    Antiguidades e Histria

    Se na Enciclopdia iluminista ainda se falava em espcie de cincia, no

    sculo XIX, o sculo da criao das cincias e disciplinas acadmicas, um movimento

    levado a cabo, especialmente, na Alemanha, no s defende a Filologia como uma cincia,

    mas igualmente a coloca como a cincia-piloto de todas as humanidades, em especial, de

    todo o saber ligado Antiguidade.

    Uma das figuras mais proeminentes no incio desse processo foi Friedrich

    August Wolf (1759-1824), considerado o fundador da Filologia moderna.27

    Para Wolf, a

    ligao com a Histria (antiga) era to clara, que at a etimologia do termo Filologia

    vinculava essa dimenso:

    O nome fillogo parece ser o melhor [para esse estudioso]. so, entre os

    antigos, os conhecimentos histricos, e aquele que os cria a partir dos escritos dos tempos antigos. Este o sentido grego [do termo]. (Wolf, 1831, p.

    5)28

    Alm disso, o estudioso traz para o centro da preocupao da Filologia o estudo

    da Antiguidade (Altertumskunde). Esse conceito bastante amplo e teve uma fortuna crtica

    e implicaes culturais e pedaggicas a partir do Renascimento que so impossveis de

    detalhar aqui. O importante, como dito, que Wolf aprofundou uma tendncia que havia

    sido iniciada por seu antigo professor Christian Gottlob Heyne (1729-1812), ao fundir a

    Altertumskunde, j renovada por Johann Joachim Winckelmann (1717-1788), com a

    Histria e com a Filologia, e criando a cincia da Antiguidade (Altertumswissenschaft),

    27

    Wolf, segundo um relato com feies de mito de origem, teria ousado, ao se inscrever como aluno da Universidade de Gttingen, por no ter escolhido entre uma das denominaes de estudo existentes poca

    (filosofia, teologia ou direito), mas sim posto que era um studiosus philologiae. 28

    Der Name Philolog scheint besser zu seyn. sind bei den Alten historische Kenntnisse und

    ist der, welcher aus Schriften lterer Zeiten diese schpft. Dies ist der griechische Sinn. [ortografia original, embora tenha sido alterado o tipo da letra]

  • 44

    transformando-a numa disciplina acadmica, e no mais numa prtica ligada a

    colecionadores e curiosos isolados.

    Essa cincia da Antiguidade, que se confunde com a prpria Filologia, um

    saber com ambies totalizantes:

    O estudo da Antiguidade, visto como cientfico, ser, portanto, o eptome dos

    saberes histrico e filosfico, por meio dos quais ns aprendemos a conhecer, em

    todos os aspectos possveis, a nao cujas obras nos so suprstites. possvel

    que as fronteiras de uma cincia sejam to difusas, que ela se constitua de muitas

    partes. Precisa-se sempre conhecer muito bem essas fronteiras. [...] Logo, o

    estudo da antiguidade conflui para todos os saberes que nos tornam conhecidos os

    estados, as vicissitudes, as condies poltica, intelectual, econmica dos dois

    povos antigos mais famosos [sc. gregos e romanos], suas lnguas, artes, cincias,

    costumes, religio, seu carter nacional e afins, e de tal modo que esse

    conhecimento parta de suas obras suprstites, sem as quais nenhum exame

    historicamente fundado possvel. Studia antiquitatis so, portanto, assim como

    studia graecae latinaeque antiquitaties. (Wolf, 1831)29

    Wolf estava, inclusive, convencido de que os [...] conhecimentos filolgicos

    tm de ser adquiridos em primeiro lugar, porque so eles que fundam o conhecimento

    histrico (Wolf, 1831). 30

    Alm disso, o estudo da Antiguidade deveria partir de trs cincias bsicas: a

    gramtica (das duas lnguas), a hermenutica e a crtica filolgica. No deixa de chamar a

    ateno o fato de nem se mencionar a prpria Histria como uma disciplina que ajudaria no

    conhecimento filolgico, como se ela j estivesse embutida na Filologia.

    Embora possa parecer estranho hoje, essa condio subalterna da Histria,

    enquanto rea de estudo, em relao Filologia correspondeu ao que se produziu no sculo

    XIX. Como lembra o historiador Funari (1999, p. 2):

    De fato, strictore sensu, nossa disciplina no foi instaurada seno com Niebuhr e

    von Ranke, em particular com a inveno da noo de documento a ser analisado,

    29

    Altherthumskunde, als Wissenschaft betrachtet, wird also der Inbegriff der historischen und

    philosophischen Kenntnisse seyn, durch welche wir die Nation, von der uns Werke brig geblieben sind, aus

    diesen in aller mglichen Hinsicht kennen lernen. Es knnen die Grenzen einer Wissenschaft so ausgedehnt

    seyn, dass sie mehrere Theile ausmacht. Man muss immer die Grenzen sehr genau kennen. [] Alterthumskunde geht also auf alle die Kenntnisse, die uns die Staaten, Schicksale, den politischen, gelehrten,

    huslichen Zustand der beiden berhmtesten alten Vlker, ihre Sprachen, Knste, Wissenschaften, Sitten,

    Religion, ihren Nationalcharakter und dergleichen bekannt machen, und zwar so, dass diese Kenntniss von

    ihren briggebliebenen Werken ausgeht, ohne die keine grndliche historische Einsicht mglich ist. Studia

    antiquitatis sind also so viel, als: studia graecae latinaeque antiquitatis. 30

    [] Die philologische Kenntnisse mssen allerdings zuerst angeschafft werden, weil sie die historischen begrnden.

  • 45

    muito a propsito, more philologico, maneira da Filologia, nascente disciplina que viria a fundar, em verdade, todas as Cincias Humanas.

    A Cincia da Antiguidade proposta por Wolf explicita bem esse movimento

    que ajudou a mudar e moldar os estatutos dos textos antigos em termos histricos, na

    medida em que deixaram de ter apenas interesse em si, mas passaram a ser considerados

    aquilo que se convencionou chamar de fontes para a reconstruo histrica e

    historiogrfica das duas sociedades antigas vistas como modelo, logo, clssicas,

    justamente por serem mais aptas e teis para ser objetos de imitao, ou seja, de

    reatualizao. tambm no tocante a tal aspecto que Wolf, ao tratar da crtica filolgica,

    afirma que: [] Ela contm as regras conforme as quais se devem julgar a autenticidade, a

    idade da obra e a casticidade do texto no todo e no detalhe, e, se for possvel, reproduzi-lo.

    (Wolf, 1831)31

    A anlise de textos more philologico seria aquilo que permitiria separar os

    textos autnticos logo, teis reconstruo histrica dos falsos. Essa tcnica de crtica

    interna j havia emergido no Renascimento, com o caso da famosa soluo da polmica

    concernente concesso de Constantino. S seriam fontes histricas os textos que,

    passados pelo crivo da crtica filolgica, mantiveram seus status de autenticidade.32

    As consequncias dessa noo de textos autnticos, fontes histricas e verdade

    explicam muito da relao umbiligal entre Filologia e Histria no sculo XIX.33

    No seria

    31

    [] Sie enthlt die Regeln, nach welchen man die chtheit, das Alter der Werke und die Richtigkeit des Textes im Ganzen und Einzelnen beurtheilen, und wenn es mglich ist, wieder herstellen muss. 32

    Cf. Estudar a histria de uma sociedade antiga nos livros modernos, por mais notveis que sejam muitos desses livros pelo talento e pela erudio, sempre correr o risco de fazer uma ideia inexata da Antiguidade.

    preciso ler os documentos antigos, todos eles, e, se no uma ousadia dizer, no ler seno a eles, ao menos,

    no consentir seno a eles uma inteira confiana. No os ler de forma leviana, mas com uma ateno

    escrupulosa, buscando, em cada palavra, o sentido que a lngua do tempo atribua a cada palavra, em cada

    frase, o pensamento do autor. (tudier lhistoire dune ancienne socit dans les livres modernes, si remarquables que soient plusieurs de ces livres par le talent et par lrudition, cest toujours sexposer se faire une ide inexacte de lAntiquit. Il faut lire les documents anciens, les lire tous, et si nous nosons pas dire ne lire queux, du moins naccorder qu eux une entire confiance. Non pas les lire lgrement, mais avec une attention scrupuleuse et en cherchant, dans chaque mot, le sens que la langue du temps attribuait

    chaque mot, dans chaque phrase la pense de lauteur; N.-D. Fustel de Coulanges, Questions historiques, revues et compltes, daprs les notes de lauteur, C. Jullian d., Paris, Hachette, 1893, p. 407 apud Duval F., 2007, p. 23, n. 17) 33

    Sobre a questo de um nacionalismo subjacente a essa transformao em fontes, cf.: [] a pretenso de poder encontrar nos textos antigos o esprito nacional grego transforma isto , em certo sentido tambm, degrada os textos em fontes para a depreenso de um fenmeno histrico: justamente da autntica forma de pensar grega, que deve ser conhecida nelas. ([] der Anspruch, in den antiken Texten den griechischen

  • 46

    de estranhar, portanto, dentro de tal quadro epistemolgico, que o historiador mais

    associado ao positivismo, Leopold von Ranke, viesse a formular a famosa sentena da

    pretenso do historiador: Ele quer to somente mostrar como de fato aconteceu. (von

    Ranke, 1826 apud Funari, 1999, p. 2). Ora, nessa lgica, para mostrar o que de fato

    aconteceu, preciso, em primeiro lugar, fiar-se naquelas fontes que so fidedignas,

    afinal, s delas que o conhecimento histrico poderia e-manar.

    O imbricamento entre Filologia e Histria era tal que Wolf no concebia o

    entendimento razoavelmente de um texto sem o conhecimento histrico. At mesmo um

    possvel sentido literal dependeria do significado histrico:

    [] Este determinado pela gramtica e pela lgica. Ele d a conhecer as ideias puras sem referncia s circunstncias sob as quais o escritor escreveu. Se se

    quiser adentrar mais profundamente [no texto], ento se vai s investigaes

    histricas, que, de fato, fazem o expositor. Esse o sensus historicus. O primeiro

    tambm chamado de sentido direto, que provm das expresses, mas

    determinado pelo sensus historicus. [...] O sensus historicus, ao lado do literal,

    o mais importante. Por isso nele que o comentador tem de preferencialmente

    prestar ateno. Ele determinado pelo conhecimento das coisas e circunstncias

    sob as quais o escritor viveu. Sem esse conhecimento impossvel entender um

    autor. Ele mesmo, passado quinze anos depois que escreveu, no se entender

    mais. (Wolf, 1831)34

    Nem toa, portanto, que [] na realidade, nunca os fillogos deixam de ser

    historiadores, e muitos dos grandes historiadores foram ao mesmo tempo excelentes

    fillogos como Th. Mommsen, E. Pais, M. Rostovtzeff, J. Carcopino, Piganol, R. Syme

    (Bejarano, 1975, p. 60, apud Funari, 1999, p. 3).35

    N l-geist finden zu knnen, macht das heit in gewissem Sinn auch: degradiert die Texte zu Quellen fr die Erschlieung eines historischen Phnomens: eben der authentischen griechischen Denkart,

    die in ihnen erkannt werden soll; Fuhrer, 2001, p. 174) 34

    [] sensus literalis. Dieser bestimmt sich durch die Grammatik und Logik. Er giebt die reinen Ideen ohne Bez