PINTO, L. - A Escrita Não é o Nada
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LUCIANO CSAR GARCIA PINTO
A ESCRITURA NO O NADA: COMENTRIOS
BBLICOS DE JERNIMO E AGOSTINHO AO GNESIS E
O EFEITO-TEXTO
CAMPINAS,
2013
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
LUCIANO CSAR GARCIA PINTO
A ESCRITURA NO O NADA: COMENTRIOS BBLICOS DE
JERNIMO E AGOSTINHO AO GNESIS E O EFEITO-TEXTO
Orientadora: Profa.Dra. Patricia Prata
Tese de doutorado apresentada ao Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual
de Campinas para obteno do ttulo de Doutor
em Lingustica.
CAMPINAS,
2013
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA POR TERESINHA DE JESUS JACINTHO CRB8/6879 - BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE
ESTUDOS DA LINGUAGEM - UNICAMP
P658e
Pinto, Luciano C. G., 1979-
A escritura no o nada : comentrios bblicos de Jernimo e Agostinho ao Gnesis e o efeito-texto / Luciano Csar Garcia Pinto. -- Campinas, SP : [s.n.], 2013.
Orientador : Patrcia Prata. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. 2.
Jernimo, Santo, 419 ou 20. 3. Bblia - Hermenutica. 4. Bblia - A.T. - Crtica e interpretao. 5. Antiguidade tardia. I. Prata, Patrcia, 1974-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.
Informaes para Biblioteca Digital Ttulo em ingls: Scripture is not the nothingness: biblical commentaries on Genesis by Jerome and Augustine and the text effect. Palavras-chave em ingls: Augustine of Hippo Jerome of Stridon Bible - Hermeneutics Bible A. T. Critical and interpretation History Antiquity rea de concentrao: Lingustica. Titulao: Doutor em Lingustica. Banca examinadora: Patrcia Prata [Orientador]
Elaine Cristine Sartorelli Paulo Augusto de Souza Nogueira Pedro Paulo Abreu Funari
Sirio Possenti Data da defesa: 15-02-2013. Programa de Ps-Graduao: Lingustica.
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...vai para a baixinha
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AGRADECIMENTOS
Durante o longo perodo de um doutorado, muitas so as pessoas que, com
diferentes intensidades e em momentos diversos do desenvolvimento do trabalho,
contribuem para objetivo final de uma tese. s armadilhas inexorveis da memria convm
escapar por meio da recusa em tentar citar e relembrar todas as contribuies. Ademais, o
momento em que se lembra tambm influi no que se lembra; afinal, se me fosse pedido
escrever os agradecimentos no primeiro ano do doutorado, no necessariamente seriam
lembradas as mesmas pessoas que, agora, findo o trabalho, mencionarei. nus do recordar.
Gostaria de comear com um agradecimento s agncias que, em diferentes
momentos, fomentaram minha pesquisa de doutorado: ao CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico), que proporcionou uma bolsa de doutorado;
CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), pela bolsa de
estgio de doutoramento no exterior; ao DAAD (Deutscher Akademischer
Austauschdienst), pela bolsa de estudos para aprendizagem do idioma alemo e por todo o
apoio institucional durante o perodo na Alemanha.
Um agradecimento especial a todos os membros tanto da banca de qualificao,
quanto da de defesa da tese: Profa. Dra. Elaine Sartorelli (Universidade de So Paulo), Prof.
Dr. Paulo Nogueira (Universidade Metodista de So Paulo), Prof. Dr. Pedro Paulo A.
Funari (Universidade Estadual de Campinas), Prof. Dr. Srio Possenti (Universidade
Estadual de Campinas). Sem as crticas, os apontamentos e os comentrios feitos por ambas
as bancas, esta tesa no teria atingido os mesmos resultados. preciso lembrar, no entanto,
que todos os equvocos presentes neste trabalho so de inteira e absoluta responsabilidade
do autor.
Profa. Dra. Patricia Prata, orientadora deste doutorado, gostaria muito de
agradecer a total liberdade que me proporcionou para trabalhar e desenvolver meus
caminhos intelectuais, mas tambm um agradecimento pela pacincia e pelos conselhos nos
momentos em que turbilhes de ideias ameaavam o foco do trabalho.
Por minha estadia acadmica na Alemanha, gostaria de agradecer s seguintes
pessoas: Prof. Dra. Isabella Tardin Cardoso, por ter generosamente me posto em contato
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com uma srie de pesquisadores estrangeiros, pelos diversos apoios, inclusive, de ordem
prtica, durante o perodo de pesquisa em Heidelberg, e por ter discutido comigo o plano
geral deste trabalho; ao Prof. Dr. Jrgen Paul Schwindt, por ter gentilmente me aceito como
seu orientando durante o estgio de doutoramento, por todas as oportunidades dadas e pelo
riqussimo perodo de aprendizado proporcionado em seus cursos e colquios; ao
pesquisador Dr. Andreas Schwab, pelas sugestes dadas ao plano geral deste trabalho; e a
todos os colegas e funcionrios do Seminar fr Klassische Philologie da Universidade de
Heidelberg, pela acolhida que me fez sentir em casa, apesar da neve.
A todos os professores da rea de Letras Clssicas do Departamento de
Lingustica do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, meu agradecimento
pela formao e pelo incentivo ao longo dos anos. Tambm aos professores Leandro Karnal
e Paulo Miceli pelos ensinamentos nos tempos de graduao em Histria.
Um agradecimento carinhoso a Gabriella Barbosa Rodrigues por todos os anos
de companheirismo, apoio e dedicao, sem os quais este trabalho nem teria existido como
tal, um muito obrigado de corao;
Ademais, gostaria de agradecer s amigas, amigos e colegas que durante o
perodo de formulao deste trabalho, de uma forma ou de outra, s vezes, mesmo sem
saber, ajudaram a construir ideias e pensamentos sobre temas diversos: Lettcia Leite;
Renato Pinto; Fbio Fortes, Carlos Renato de Jesus, Alexandre Piccolo, Mrio Martins de
Lima; aos alemes: Desire Rupp, Paul Ronga, Livia Mercier, Simon Sucher.
Para terminar, o arns: ao meu pai Eurico (in memoriam) e minha me
Maricilda, a meus irmos Lus e Viviane, ao irmo postio Marcelo, e baixinha que virou
tudo de cabea para baixo, Lusa, o coraozinho do titio. Beijos para todos vocs.
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,
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(Orgenes, Contra Celso)
... omnis scriptura sancta quae unus liber
appellatur
(Jernimo, Comentrio a Isaas)
Commentaria dicta, quasi cum mente.
Sunt enim interpretationes... (Isidoro de
Sevilha, Etimologias)
The devil can cite Scripture for his
purpose. (Antonio, personagem de O
mercador de Veneza de William
Shakespeare)
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RESUMO
Este trabalho analisa, numa perspectiva discursiva, os efeitos produzidos pelo
ato de comentar a Bblia levado a cabo por duas figuras-chave dos primrdios do
cristianismo: Jernimo de Estrido (347-420 d.C.) e Agostinho de Hipona (354-430 d.C.).
Investiga-se o impacto dessa empresa comentarista tanto no modo como o texto bblico foi
materialmente transmitido (ortografia, lxico, fraseologia, ordem dos textos) como na
histria de sua recepo (tpicos e temas preferidos em detrimento de outros tantos
possveis). O propsito demonstrar quo poderosa a interveno dos comentrios no
apenas na formao do cnone bblico, mas tambm na constituio da prpria noo de
que o conjunto de textos reunidos sob a rubrica de Bblia ou Sagrada Escritura forma,
afinal e apesar de uma superfcie textual que apresenta disparidades e, eventualmente,
grandes contradies de carter lingustico, narrativo ou mesmo teolgico , um texto, que
expressa um nico e mesmo plano deliberativo autoral.
Palavras-chave: Antiguidade tardia; Bblia; exegese antiga; histria da recepo; Jernimo
de Estrido; Agostinho de Hipona.
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ABSTRACT
This study examines from a discourse-analytical perspective the effects arisen
from the practice of commenting the Bible that was followed by two early Christian key
figures: Jerome of Stridon (c. 370-420 AD) and Augustine of Hippo (354-430 AD). The
impact of these commentatorial works is investigated both with regarding to the way in
which the very biblical text was materially (orthography, lexicon, phraseology, chapter
order) handed down and to the history of its hermeneutical reception (the topics and themes
which have been favoured at the expense of all other possibilities). The purpose therefore is
to demonstrate how powerful such commentatorial interventions are in the forming of the
biblical canon and also in underpinning assumptions that the set of texts brought together
under the rubric of Bible or Sacred Scriptures forms ultimately in spite of a textual
surface presenting disparities and sometimes great contradictions of linguistic, narrative or
even theological character a text which expresses just one and the same authorial design.
Key-words: Late Antiquity; Bible; ancient exegesis; history of reception; Jerome of
Stridon; Augustine of Hippo.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Ammon. In Int. Amnio, Comentrio ao da interpretao
Arstt. Poet. Aristteles, Potica
Arstt. Rhet Aristteles, Retrica
Aug. c. Prisc. Agostinho, Contra Prisciliano
Aug. Ciu. Agostinho, Cidade de Deus
Aug. Conf. Agostinho, Confissiones
Aug. De Bapt. Agostinho, Do batismo
Aug. De magist. Agostinho, Do mestre
Aug. Dialec. Agostinho, Dialtica
Aug. Doctr. chr. Agostinho, Da doutrina crist
Aug. Faust. Agostinho, Contra Fausto
Aug. Gn. adu. Man. Agostinho, Sobre o Genesi contra os maniqueus
Aug. Gn. litt. Agostinho, Sobre o Gnesis ao p da letra
BJ Bblia de Jerusalm
Cic. Brut. Ccero, Bruto
Cic. Rep. Ccero, Da Repblica
Clem. Al. Exc. ex Th. Clemente de Alexandria, Excertos de Teodoto
Clem. Al. Strom. Clemente de Alexandria, Estrmatos
CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum
D. Or. Demstenes, Discursos
Diog. Laert. Vit. Digenes Larcio, Vida dos Filsofos
Diom. Gramm. Diomedes, Arte gramatical
Dion. Thr. Ars gramm. Dionsio da Trcia, Arte gramatical (
)
Don. Ars maior lio Donato, Ars maior
Don. Vita Verg. lio Donato, Vida de Virglio
GL Gramticos Latinos
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Hier. Epist. Jernimo, Epstulas
Hier. Hebr. Nom. Jernimo, Livro dos nomes hebraicos
Hier. Hebr.quaest. Jernimo, Questes hebraicas
Hier. In Eccl. Jernimo, Comentrio ao Eclesiastes
Hier. In Is. Jernimo, Comentrio ao Livro de Isaas
Hier. In Math. Jernimo, Comentrio ao Evangelho segundo Mateus
Hier. Praef. in libr. Samuel et Malachim Jernimo, Prefcio aos Livros de Samuel e Malaquias
Hier. Praef. in libri Is. Jernimo, Prefcio ao Livro de Isaas
Hier. praef. in XII prophetas Jernimo, Prefcio aos Doze Profetas
Hier. Vir. ill. Jernimo, Sobre os vares ilustres
Isid. diff. Isidoro de Sevilha, Diferenas
Isid. Orig. Isidoro de Sevilha, Origens ou Etimologias
Iustin. Dial. Justino Mrtir, Dilogo com Trifo
Longin. Longino, Do sublime
LSJ Liddell; Scott; Jones, A Greek-English Lexicon
OED Simpson; Weiner, Oxford English Dictionary
OLD Glaire (ed.), Oxford Latin Dictionary
Orig. CC Orgenes, Contra Celso
Orig. Comm. in Iohan. Orgenes, Comentrio ao Evangelho segundo Joo
Orig. Hex. Orgenes, Hexapla
Orig. hom. in Gen. Orgenes, Homilia ao Gnesis
Orig. in Num. hom. XIV Orgenes, Homilia ao livro dos Nmeros
PG Patrologia Grega
Phil. Abr. Flon, Sobre Abrao
Phil. Agr. Flon, Da agricultura
Phil. Conf. Flon, Da confuso das lnguas
Phil. Fug. Flon, Da fuga e da descoberta
Phil. Leg. Flon, Comentrios alegricos
Phil. Mut Flon, Da mudana dos nomes
Phil. Opi. Flon, Da criao do mundo
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Phil. Pot. Flon, Quanto ao pior soer atacar o melhor
PL Patrologia Latina
Pl. Crat. Plato, Crtilo
Pl. Euthyd. Plato, Eutidemo
Pl. Leg. Plato, Leis
Pl. Resp. Plato, Repblica
Pl. Symp. Plato, Banquete
Quint. Inst. or. Quintiliano, Instituto oratoria
Rhet. Her. (autor desconhecido) Retrica a Hernio
Serv. A. Srvio, Comentrio a Eneida de Virglio
Ter. Nat. Tertuliano, s naes
Thuc. Tucdides, Guerra do Peloponeso
TLL Thesaurus Linguae Latinae
Var. LL. Varro, Sobre a Lngua latina
VL Vetus Latina
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SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................................... 23
Percurso e escopo do trabalho .......................................................................................... 23
Alguns posicionamentos e diretrizes tericos: Filologia, comentrio, reformulao....... 31
Entre strictus e latus sensus: uma difcil definio ...................................................... 34
Polimatia e ars critica .................................................................................................. 37
Humanidades ................................................................................................................ 41
Antiguidades e Histria ................................................................................................ 43
pro ipsa philosophia (no lugar da prpria filosofia)? ............................................... 47
Reconstruir o outro: alteridade entre e .................................................. 52
Eplogo: Anlise do Discurso e (Nova) Filologia (Radical)......................................... 58
PARTE I: BREVE DISCUSSO SOBRE O TERMO COMENTRIO: HOJE E ONTEM
.............................................................................................................................................. 69
1. Comentrio na antiguidade: principais conceitos em grego e em latim ....................... 70
1.1 Histria do termo .................................................................................................... 70
1.2. Histria de um gnero ........................................................................................ 82
2. Comentrio em duas reas dos estudos lingusticos ................................................... 117
2.1 Estudos Frsicos ................................................................................................... 118
2.2.. A emergncia do par conceitual Tema-Rema ..................................................... 125
2.3 Tema-rema nos trabalhos da Escola de Praga ...................................................... 130
2.4. A traduo de tema/rema na escola norte-americana ....................................... 143
2.5. Estudos transfrsicos e metaenunciativos............................................................ 152
2.6. Das oraes-comentrio ao discurso reportado ................................................... 158
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2.7. Discursos Relatados, Reformulao, Discurso Constituinte ............................... 168
PARTE II: a Prtica de Comentar dos cristos e a questo da unidade do texto bblico ... 191
3. Breve histria dos comentrios nas primeiras comunidades de f crists .................. 198
3.1 Qumran ................................................................................................................. 203
3.2 Flon de Alexandria .............................................................................................. 211
4. Orgenes e a Filologia: herana alexandrina? .......................................................... 241
4.1 Orgenes: sacra philologia ou nihil otiosum apud Deum (nada ocioso em Deus)
.................................................................................................................................... 250
4.2 (a escritura no o nada).............................................. 254
4.3. Verus Israel (o verdadeiro Israel) .................................................................... 268
4.4 (acontece de serem as escrituras um s livro)
.................................................................................................................................... 275
PARTE III: Jernimo e Agostinho: comentadores da Bblia ............................................. 283
5. Importncia dos comentrios de Jernimo e Agostinho e o modo de ler ocidental da
Bblia .............................................................................................................................. 283
5.1 Pressupostos tericos do Quaestiones hebraicae e do De Genesi aduersus
Manichaeos ................................................................................................................. 290
5.2 Anlise dos comentrios ao Gnesis .................................................................... 336
Concluso: O efeito-texto e a prtica de comentar ......................................................... 409
Referncias ......................................................................................................................... 413
Anexo ................................................................................................................................. 427
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INTRODUO
PERCURSO E ESCOPO DO TRABALHO
Esta tese pretende, em certa medida, dar continuidade a um aspecto importante
que foi percebido e tratado de maneira breve em nosso trabalho desenvolvido no mestrado,
do qual resultou a dissertao intitulada De que se confia s letras: a cincia gramatical
nas Etimologias de Isidoro de Sevilha (ver referncia completa na bibliografia). Nessa
etapa, traduziu-se o livro I das Etimologias de Isidoro de Sevilha e trabalhou-se com a
perspectiva da etimologia como ferramenta destinada a dar conta da interpretao lato
sensu. Verificou-se que a etimologia apresentada por Isidoro, ainda pertencendo ao quadro
maior do que se poderia chamar programa gramatical, j no partia dos mesmos
pressupostos e no tinha necessariamente os mesmos objetos encontrveis nas obras dos
escritores seculares. Seu carter hermenutico hipertrofia-se, ao mesmo tempo em que as
concepes crists de lngua orientam-na para outros caminhos explicativos acerca da
origem dos sentidos. Por outro lado, as Etimologias dedicam vrios livros questo da
leitura correta da Bblia, advogando o emprego desse saber diante do texto sagrado.
Esse uso da etimologia como ferramenta hermenutica aplicada leitura da
Bblia despertou nosso interesse para certa histria da recepo, na qual, no entanto,
pudssemos no apenas assinalar as diferentes estratgias de leituras, mas tambm, e
principalmente, investigar mais a fundo outras ferramentas vindas dos saberes seculares
(para alm da etimologia), determinar qual o locus discursivo visto como mais adequado a
essa tarefa e, por fim, analisar os possveis efeitos produzidos sobre o texto, objeto dessa
leitura, sobre os saberes empregados e sobre as polmicas poltico-teolgicas decorrentes
das diferentes interpretaes.
Isso nos levou a observar que, na lista das obras suprstites atribudas a autores
cristos, havia um grupo delas cuja frequncia de publicao e cujo volume apresentavam
um dado interessante: muito raros nos primeiros sculos das comunidades crists, os
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comentrios, obras destinadas a exatamente defender uma leitura dos textos bblicos,
crescem de forma estrondosa a partir, principalmente, do final do sculo II, com Orgenes
de Alexandria (185-254 d.C.), e conhecem uma proliferao ainda maior pelos trs sculos
subsequentes. A data evidentemente no fortuita: nesse perodo vive-se justamente a
revoluo que transformou o mundo antigo, clssico, em cristo. Nesses mesmos
tempos, de grupo perseguido, os cristos vo pouco a pouco ganhando importncia,
deixando a clandestinidade, at chegaram s instncias mais altas do poder. Foi igualmente
a poca de definio dos dogmas da Igreja, quando se realizou uma srie de conclios, com
especial destaque para o mais famoso deles, o de Niceia, em 325.
Uma anlise da bibliografia moderna mostra que o estudo desses comentrios
relativamente marginal. Se, por um lado, h poucos trabalhos que fornecem uma viso de
conjunto dessas produes comentarsticas,1 por outro lado, mesmo nos estudos mais
especializados, esses textos so geralmente vistos como de segunda categoria ou menos
importantes em relao a outros escritos mais tericos dos autores antigos.
Para ilustrar essa constatao, basta citar os prprios autores a serem analisados
nesta tese: Jernimo de Estrido e Agostinho de Hipona. O primeiro, conhecido como
tradutor da Vulgata, quase no figura em obras modernas sobre a histria da teologia ou
dos dogmas religiosos,2 justamente por ter seu trabalho ligado, quase todo, a uma, pode-se
dizer, filologia bblica, e, por conseguinte, por ter dedicado grande parte de sua vida a
escrever comentrios Bblia. Muitas vezes, chega mesmo a ser tratado como um autor
desprovido de profundidade argumentativa3
e fiado num mtodo hermenutico nada
original, 4 cujas contribuies possveis s discusses hodiernas se resumiriam ao
1 Com excees, destacam-se, nos ltimos anos, esforos importantes para apresentar vises de conjunto dos
comentrios antigos e medievais: Most (1999) e Geerlings; Schulze (2002). 2 Cf., por exemplo, o papel marginal dedicado a Jernimo na importante tetralogia sobre a histria dos
dogmas, editada sob a direo de Sesbo (2005). 3 Tratando de uma carta em que Jernimo ataca um defensor do movimento pelagianista, Moreschini e Norelli
(1996, p. 382) afirmam: Esta [sc. carta] interessante porque constitui uma das primeiras respostas dos ortodoxos ao pelagianismo, mas permanece bem distante da profundidade de pensamento e das problemticas,
que tocam no mago da f crista, discutidas por Agostinho. Jernimo limita-se quase exclusivamente a
acumular citaes escritursticas, nas quais sentia-se mais seguro, para demonstrar que os homens no podem
no pecar se tm sua disposio apenas suas foras e no contam com o auxlio de Deus. Carente do suporte
terico de Agostinho, Jernimo no era capaz de chegar ao fundo do problema (grifos nossos). 4 Cf. Moreschini; Norelli (1996, p. 394): De todo modo, at o fim da vida, Jernimo, apesar de seus protestos
em contrrio, permaneceu um exegeta origeniano. Sua inovao est em ter sabido temperar o espiritualismo
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fornecimento de dados relativos to somente filologia bblica e ao emprego do hebraico,5
sem ter relevncia para a histria dos debates teolgicos.6 No caso de Agostinho, por outro
lado, considerado a grande mente da passagem da Antiguidade tardia para a Idade Mdia,7
autor de uma vasta obra cujos temas foram os mais variados, a fortuna crtica moderna de
sua obra tambm manifesta essa mesma tendncia: consideram suas obras comentarsticas
como de segunda categoria. Uma anlise rpida da bibliografia relativa a esse autor
demonstra que o estudo da obra agostiniana se divide, na prtica, em duas direes: de um
lado, o Agostinho filsofo ou semilogo, do outro, o telogo e pregador. Dentro desse
quadro, h pouca comunicao entre as duas perspectivas, e os comentrios atribudos a
esse autor em geral ficam numa posio completamente secundria, por no serem obras de
reflexo nem sobre teologia nem sobre linguagem.
Por isso, um dos objetivos deste trabalho reabilitar os comentrios como obra no de
segunda categoria,8 mas sim como uma ferramenta poderosa na constituio no apenas de
com um interesse, cada vez mais acentuado ao longo dos anos, pela interpretao literal e pela exegese
hebraica. Esta novidade nos permite levar em menor conta um delito seu: ter se aproveitado das exegeses de
que se servia (sem reelabor-las pessoalmente) e ter dado a entender frequentemente que elas eram suas. 5 Cf. Graves (2007, pp. 2-3): Por longo tempo, a obra de Jernimo foi vista primeiramente como uma fonte
de informao acerca de assuntos hebraicos, ao invs de ser um objeto de estudo a ser desenvolvido em si.
Tudo isso mudou, conforme os estudiosos comearam a adotar uma abordagem mais crtica em relao aos
escritos da antiguidade crist, e, nesse aspecto, Jernimo recebeu sua parcela justa de crtica negativa. O
ataque mais comum contra Jernimo o de que ele, com frequncia, faz que aprendeu ou leu coisas que, de
fato, no aprendeu nem leu; e esse ataque tem sido feito, em particular, contra sua competncia em hebraico (For a long time, Jeromes work was regarded primarily as a source of information on Hebrew matters, rather than as an object of study itself to be evaluated. All of that changed as scholars began to take a more
critical approach to the writings of Christian antiquity, and in this regard Jerome has received his fair share
of negative criticism. The most common charge against Jerome is that he frequently pretended to have
learned or read things that he had not, in fact, learned or read; and this charge has been made in particular
against his competence in Hebrew; as traduces, se no houver indicao alguma do contrrio, so nossas). 6 Principalmente por causa de a falta de mtodo hermenutico, a inconsistncia e a pouca nitidez de seus
princpios de interpretao escriturria (le manque de mthode hermneutique, linconsistance et le peu de nettet de ses principes dinterprtation scripturaire; Bardenhewer, 1899, p. 378 apud Jay, 1985, p. 13). Cf. tambm Frst (2011, p. 39): Essas faltas teolgicas, ao lado das caractersticas fraquezas, ulteriormente contriburam no pouco para prejudicar a imagem de Jernimo e retirar-lhe, inclusive, o atributo de telogo (Diese theologischen Mngel haben neben den charakterlichen Schwchen in der Folgezeit nicht wenig dazu beigetragen, d s I d s H y us zu b s d u d s d s A bu l abzusprechen). 7 O maior pensador cristo (e no apenas cristo) do Ocidente [...] (Moreschini; Norelli, 2000b, p. 13).
8 Seguindo, em certo sentido, as pistas da avaliao de Frst (2011, p. 325) sobre os trabalhos de uma
conferncia que reuniu diversos especialistas em Jernino: [...], negligenciou-se, sobretudo, a grande parte da obra jernimiana, os seus comentrios bblicos. Evidentemente, h tambm grandes e importantes trabalhos a
esse respeito, no entanto, em vista da massa de texto, haveria aqui ainda muito para fazer. Faz parte das
caractersticas da pesquisa sobre Jernimo que ela d pouqussima ateno aos escritos em que Jernimo
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certas leituras autorizadas da Bblia, mas tambm como locus privilegiado onde se
entrecruzavam saberes, poderes e polmicas. Ademais, ferramenta que ajudou, por meios
dos efeitos produzidos, a dar uma forma especfica aos textos bblicos, na medida em que
essas intervenes alteraram a prpria constituio do corpus cannico (quais escritos
pertencem a ele e quais no), sua materialidade (por exemplo, mudanas lxicas e sintticas,
constituio das percopes), alm de re-partilhar, re-ordenar, e, portanto, re-sequenciar
(por meio de citaes intratextuais, de leituras no sequenciadas dos versculos) o
conjunto dos textos considerados cannicos, com o intuito de estabelecer determinadas
relaes dentro do corpus, para que os diferentes textos formassem um novo e nico texto.
Criou-se, assim, para alm das mudanas materiais na forma final desse novo texto, uma
rede semntica sem a qual no se poderia mais ler esse texto. No s se encontram
mudanas na materialidade textual, como tambm a rede de relaes dentro desse novo
texto faz vir tona uma espcie de texto subjacente, aquele que os comentadores querem
ler. Dito de outro modo: trata-se, no fundo, de uma traduo, mas cujo texto de partida est
em constante mutao. Portanto, longe de serem obras ancilares, tiveram o poder de
autorizar o que, de fato, seria o dito nesse conjunto de textos chamados Bblia, pois,
imbudos de auctoritas, esses comentrios controlavam o entendimento do texto, ao
apresentarem a leitura que deveria ser a religiosamente correta. Atuavam, assim, como
vigias e guardies de potenciais leituras desviantes que fossem capazes de ameaar o
quadro semntico de suas respectivas formaes discursivas. Atestavam, com isso, a
hiptese foucaultiana de que os comentrios existem, sobretudo, para conjurar o perigo da
livre circulao de discursos.
Recapitulando, nossos objetivos so, portanto: i) investigar em que medida os
comentrios eram considerados um genus dicendi na Antiguidade tardia; para isso, so
analisadas certas caractersticas formais desses textos, a fim de delinear, pois, sua natureza
diante dos outros gneros antigos, ou seja, verificar o que os antigos definiam como
investiu mais tempo e energia e que devem ter sido considerados seu desempenho cientificamente original ([...] wird der grte Teil der hieronymianischen Werke, seine Bibelkommentare, eher vernachlssigt.
Natrlich gibt es auch dazu groe und wichtige Arbeiten, doch angesichts der Masse an Text gbe es hier
noch viel zu tun. Es gehrt zu den Eigenheiten der Hieronymusforschung, dass sie die Schriften, in die
Hieronymus die meiste Zeit und Energie investiert hat und die als seine wissenschaftlich originellen
Leistungen gelten drfen, am wenigsten beachtet)
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comentrio e, ao mesmo tempo, apresentar determinados eixos comuns a toda obra que
se coloque sob essa rubrica; ii) examinar como, em alguns casos, mtodos e conceitos dos
saberes seculares (tais como a ars grammatica) so ressignificados nos comentrios
bblicos; iii) perscrutar os efeitos do emprego desses comentrios na construo e afirmao
da unidade, da infalibilidade e da verdade das Escrituras (donde, pode-se perguntar: que
textos outros ficaram de fora e por qu? O que une os de dentro?); iv) por fim,
esmiuar algumas das diversas polmicas que atravessam e afetam esses textos, na medida
em que, a despeito de possurem interlocutores declarados, so construdos sobre um
simulacro de seus outros.
Seguindo uma forma de apresentao empreendida em nossa dissertao de
mestrado, acreditamos ser pertinente trazer baila aspectos das diferentes formas de
conceituar comentrio nas cincias hodiernas da linguagem que ajudem na anlise do
corpus antigo. Portanto, como fizemos com as etimologias moderna e antiga, colocaremos
de certa forma em contraste aquilo que determinadas reas dos estudos lingusticos
conceituam a esse respeito e as formas encontradas na Antiguidade tardia.
Assim, dividimos esta tese em trs partes. Na primeira, pretendemos tratar do
status quaestionis do conceito comentrio em alguns estudos lingusticos atuais e tambm
nos trabalhos dedicados exclusivamente ao fenmeno na Antiguidade. Em primeiro lugar,
apresentaremos os diversos sentidos que o termo adquire tanto no discurso moderno quanto
no antigo para, em seguida, discutir se, quando se trata de textos que recebem esse nome,
haveria um gnero especfico ou se o comentrio seria uma atividade especfica praticvel
por diversos gneros e suportes.
A segunda parte trar discusso as particularidades que assume o comentrio
como atividade hermenutica na prtica de explicar a Bblia entre os cristos. Se, na
primeira parte, foram apresentados os principais conceitos e nomenclaturas antigos que
descreviam e definiam a prtica, na segunda, iremos mais alm e verificaremos como essa
herana foi sendo ressignificada no contexto das discusses crists. Esboaremos um breve
panorama a respeito dessa atividade, ainda incipiente entre as primeiras comunidades
crists de f, dando um pouco mais de ateno aos trabalhos e propostas de Flon de
Alexandria, primeiro autor conhecido a aplicar mtodos analticos helensticos explicao
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bblica, e Orgenes, considerado o fundador da exegese bblica crist helenfila. com
esses dois autores que os saberes seculares so ressignificados de forma sistemtica para
atender s exigncias de explicao da Bblia em termos filolgico e filosfico, com um
intuito concomitante de poder responder aos ataques dos que no se identificavam com os
textos bblicos. No entanto, a Bblia no passava inclume ao exame da filologia e filosofia
antigas. Os saberes antigos tampouco. Em uma e outra direo, ao se encontrarem, ambos
sofrem inflexes. O comentrio um lugar privilegiado desse encontro.9
O tema da terceira parte ser Jernimo e Agostinho como comentadores da
Bblia e a importncia de ambos na vindoura forma de se ler as Sagradas Escrituras. Com
estratgias diferentes, embora fundadas nos mesmos pressupostos analticos provenientes
da gramtica e da retrica antigas, os dois autores fundaro uma tradio dupla de leitura e,
por isso, dois textos bblicos diferentes. Um, mais filolgico, exaltando e explorando a
riqueza vocabular e, ao mesmo tempo, misteriosa do texto bblico, por se originar de uma
lngua estranha; o outro, advogando uma filosofia profunda a ser escrutinada por detrs
da superfcie aparentemente banal e contraditria. Ambos, no entanto, cada um a seu modo,
reforam a ideia de que h certas chaves de ativao da leitura, sem as quais o
reconhecimento da textualidade da Bblia e o entendimento correto dela arriscam
soobrar. Essa parte encerra-se com anlises mais detalhadas da obra de cada um dos
autores, dedicadas a comentar o livro do Gnesis. So elas o Livro das Questes Hebraicas,
de Jernimo, o Do Gnesis contra os maniqueus, de Agostinho.
Por fim, na concluso, proporemos, como contribuio principal deste trabalho,
a tese de que comentrios produzem um efeito-texto. Portanto, a tese central deste trabalho
demonstrar como a atividade comentadora dos autores analisados produz um efeito de
textualidade quilo que eles tomam por texto bblico. A esse efeito daremos o nome de
efeito-texto. A Bblia uma biblioteca10 de escritos de vrias pocas, lnguas, regies e
autores diferentes. O prprio termo Bblia no e nunca foi inequvoco. Ainda hoje,
aquilo que se entende sob essa etiqueta pode definir conjuntos de escritos diferentes,
conforme o pertencimento a determinadas comunidades de f. Essa instabilidade da
9 Mais sobre esse encontro: cf. Grypeou; Spurling (2009).
10 Expresso sugerida pelo Prof. Dr. Paulo Nogueira durante a arguio desta tese.
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condio da Bblia como um texto (Qual texto? Onde comea? Onde termina?), como dito,
atravessou sua histria. Uma das respostas possveis para afirmar sua textualidade, seus
limites, sua lgica, foi justamente torn-la objeto de comentrios. Ao longo deste trabalho,
haver tentativas de abstrair as especificidades dos comentrios bblicos para uma prtica
geral de comentar, assim como se ver o caminho contrrio. Nessa linha, trataremos de
certa maneira da questo da relao necessria e intrnseca entre discursos constituintes,
canonizao e comentrios, e a conseguinte funo restritora, controladora da
interpretao e do fluxo dos discursos, dos comentrios.
No caso dos comentrios bblicos estudados, sero apresentados alguns dos
mltiplos debates e polmicas que motivam a necessidade de afirmar a textualidade bblica.
Em suma, podem resumir-se os trs principais adversrios contra os quais era preciso
defender que tipo de texto e qual era o texto da Bblia: efeito-texto (i) contra os judeus, que
no aceitam nada alm da chamada Tanakh (renomeada pelos cristos por Antigo
Testamento); (ii) contra alguns partidos (hereges) que definem para si outros cnones,
entre os mais extremados, os que no aceitam o AT como religiosamente edificante, ou os
que consideram a Bblia um eterno work in progress, aberta a novos acrscimos; (iii) os
pagos, que no aceitam a Bblia como um texto possuidor de uma lgica, por estar
cheias de incoerncias, erros gramaticais e de estilo.
Contra esses trs grupos que os comentrios tentam defender positivamente
uma textualidade para a Bblia. Para o efeito-texto funcionar, os comentrios precisam
impor um limite, uma lgica, e uma sequncia significante.
Por fim, pretende-se mostrar como os comentrios manifestam, igualmente, o
empreendimento de traduzir um outro (a cultura hebraica) no mesmo (cultura grego-
romana), na medida em que tratam a Bblia como um texto analisvel segundo as mesmas
categorias da cultura literria greco-romana. Em relao a esse ltimo aspecto, pode-se
dizer que esse processo , mutatis mutandis, semelhante ao que Auroux (1992) descreveu,
em relao ao estudo de lnguas, como gramatizao, ou seja, uma tecnologia,
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historicamente determinada, usada para explicar, a partir dos parmetros da gramtica das
lnguas grega e romana, todas as lnguas com que a cultura europeia se deparou.11
Mas todo efeito-texto, ao ser produzido, cunha uma textualidade especfica.
Assim, no limite, cada comentrio produz seu prprio texto, que pressupe um determinado
tipo de leitor. Eles o fazem, ao acrescentar materialidade significante que comentam, uma
outra, de modo que o choque entre ambas, para usar uma metfora da Fsica, produz um
terceiro ou mais elementos.
No caso especfico dos comentrios bblicos do perodo estudado, h, ademais,
um outro aspecto importante. Como ainda no havia uma edio definitiva da Bblia, em
virtude da diversidade de conjuntos de manuscritos, crestomatia etc., mesmo a tal
materialidade era algo pantanoso. Donde, nesse caso especfico, o comentrio no apenas
produz, a partir da diversidade de escritos bblicos, como efeito, um (novo ou outro) texto,
mas tambm ele intervm, de fato, at mesmo na materialidade do texto fonte, uma vez que
apresenta uma verso desse entre outras circulantes poca. Aqui, os comentrios
inflectem diretamente na forma do texto, como se ver. Determinadas palavras, locues e,
mesmo, perodos e percopes so estabelecidos e defendidos como soluo por meio dos
comentrios.
Assim, pretendemos demonstrar que, a despeito de poderem ser tambm
considerados apenas como exerccios mentais (gestige bungen; Hadot, 2002, p. 195) ou
como uma atividade cujo sentido central seria somente [...] a elucidao de um texto por
algum outro autor12 (Most G. W., 1999, p. viii), deve-se v-los, seguindo Foucault (2005),
11
Cf. Auroux (1992, p. 35): Vamos nos dar o longo prazo da histria e considerarmos globalmente o desenvolvimento das concepes lingsticas europias em um perodo que vai da poca tardo-antiga (sculo
V de nossa era) at o fim do sculo XIX. No curso desses treze sculos de histria vemos o desenrolar de um
processo nico em seu gnero: a gramatizao massiva, a partir de uma s tradio lingstica inicial (a
tradio greco-latina), das lnguas do mundo. Esta gramatizao constitui depois do advento da escrita no terceiro milnio antes da nossa era a segunda revoluo tcnico-lingstica. Suas conseqncias prticas para a organizao das sociedades humanas so considerveis. Essa revoluo que s terminar no sculo XX vai criar uma rede homognea de comunicao centrada inicialmente na Europa. Cada nova lngua integrada rede dos conhecimentos lingsticos, a mesmo ttulo que cada regio representada pelos
cartgrafos europeus, vai aumentar a eficcia dessa rede e de seu desequilbrio em proveito de uma s regio
do mundo. s cincias da linguagem que devemos a primeira revoluo cientfica do mundo moderno. 12
If we consider the aims and dynamics of commentary, it seems clear that one of its central goals - even if
not its only one, and perhaps not even an indispensable one is the elucidation of a text by some other author. It is worth asking (1) whose text is elucidated, (2) for whom, (3) by whom, (4) where, and (5) why.
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como uma atividade de conjurao dos medos da livre circulao dos discursos. O efeito-
texto produzido pelos comentrios aponta justamente para essa direo de inspirao
foucaultiana. um ato de controle, de interveno no regime discursivo.
ALGUNS POSICIONAMENTOS E DIRETRIZES TERICOS: FILOLOGIA, COMENTRIO,
REFORMULAO
O presente trabalho debruar-se- sobre textos de um passado longnquo, os
primeiros sculos da era crist. A perspectiva analtica adotada ser fundada, em parte,
em teorias modernas sobre o funcionamento dos discursos que comearam a ser
desenvolvidas nos anos 70 do sculo passado, a partir do surgimento da chamada Escola
Francesa de Anlise do Discurso. Com isso, estabelece-se, a nosso ver, um problema com o
qual todo trabalho que tem ou atravessado por alguma dimenso do passado se defronta: o
perigo de anacronismo.
Neste trabalho, por exemplo, trataremos dos comentrios bblicos antigos do
ponto de vista da reformulao discursiva, e, por vrias vezes, afirmaremos ser uma
estratgia do comentador apagar de seu discurso o fato de que ele, ao comentar um texto,
est reformulando-o e, portanto, de certo modo, traduzindo-o de uma forma para outra. A
questo talvez possa ser, contudo, mais complexa. possvel que, por se tratar de regimes
de historicidade13
diferentes, no esteja necessariamente em causa um apagamento
13
Cf. [...] difere da [sc. noo] de poca. poca significa, no meu entender, apenas um corte no tempo linear (de que freqentemente se ganha conscincia aps o fato e bem depois ela pode ser usada como um recurso de
periodizao). Por regime, quero significar algo mais ativo. Entendidos como uma expresso da experincia
temporal, regimes no marcam meramente o tempo de forma neutra, mas antes organizam o passado como
uma seqncia de estruturas. Trata-se de um enquadramento acadmico da experincia (Erfahrung) do tempo,
que, em contrapartida, conforma nossos modos de discorrer acerca de e de vivenciar nosso prprio tempo.
Abre a possibilidade de e tambm circunscreve um espao para obrar e pensar. Dota de um ritmo a marca do
tempo, e representa, como se o fosse, uma ordem do tempo, qual pode-se subscrever ou, ao contrrio, e o que ocorre na maioria das vezes, tentar evadir-se, buscando elaborar alguma alternativa (Hartog, 2003, pp. 11-12). Cf. tambm Hartog (1996, p. 129): Entendo essa noo como uma formulao erudita da experincia do tempo que, em troca, modela nossa forma de dizer e viver nosso prprio tempo. Um regime de
historicidade abre e circunscreve um espao de trabalho e de pensamento. Ele d ritmo escrita do tempo,
representa uma ordem qual podemos aderir ou, ao contrrio (e mais freqentemente), da qual queremos escapar, procurando elaborar outra.
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estratgico, mas sim algo ligado a outra economia simblica, outra relao com as noes
de tempo, sentido e verdade, diferentes de todas as que so hoje conhecidas. A diferena da
noo de tempo das diversas sociedades implica tambm determinadas relaes com os
prprios conceitos que essas sociedades formulam. Chau, por exemplo, ao analisar as trs
concepes diferentes (grega, latina, hebraica) de verdade, a partir das quais se constri a
viso predominante no Ocidente, afirma:
Aletheia se refere ao que as coisas so; veritas se refere aos fatos que foram;
emunah se refere s aes e s coisas que sero. A nossa concepo da verdade
uma sntese dessas trs fontes e por isso se refere s coisas presentes (como na
aletheia), aos fatos passados (como na veritas) e s coisas futuras (como na
emunah). Tambm se refere prpria realidade (como na aletheia), linguagem
(como na veritas) e confiana-esperana (como na emunah). (Chau, 2000, p.
124)14
Assim, apesar de se conceber, por um lado, a existncia de diferentes formaes
discursivas ou posicionamentos em qualquer perodo histrico dado, lcito imaginar, por
outro, que alguns aspectos de outros regimes de historicidade no encontrem qualquer eco
em nenhum posicionamento moderno, e, por isso, pode ser que se esteja diante de algum
hiato semntico, algum abismo simblico intransponvel entre o regime de historicidade
dos enunciadores dos textos do passado e do analista hodierno.15
Nesses momentos, a
14
Cf. tambm: intil multiplicar, fora de nossa historiografia, os exemplos que atestam uma outra relao com o tempo, ou, o que vem a ser o mesmo, uma outra relao com a morte. No ocidente, o grupo (ou
indivduo) se robustece com aquilo que exclui ( a criao de um lugar prprio) e encontra sua segurana na
confisso que extrai de um dominado (assim se constitui o saber de/sobre o outro, ou cincia humana). que
ela sabe efmera toda vitria sobre a morte; fatalmente a desgraada retorna e ceifa. A morte assombra o
Ocidente. Por este motivo o discurso das cincias humanas patolgico: discurso do pathos infelicidade e ao apaixonada numa confrontao com esta morte que a nossa sociedade deixa de poder pensar como um modo de participao na vida. Por sua conta a historiografia supe que se tornou impossvel acreditar nesta
presena dos mortos que organizou (organiza) a experincia de civilizaes inteiras e, portanto, que
impossvel remeter-se a ela, aceitar a perda de uma solidariedade viva com os desaparecidos, ratificar um limite irredutvel. O perecvel seu dado; o progresso, sua afirmao. Um a experincia que o outro
condena e combate. A historiografia tende a provar que o lugar onde ela se produz capaz de compreender o
passado: estranho procedimento, que apresenta a morte, corte sempre repetido no discurso, e que nega a perda,
fingindo no presente o privilgio de recapitular o passado num saber. Trabalho da morte e trabalho contra a
morte. (de Certeau, 2006, pp. 16-17) 15
Cf., por exemplo, Hartog (1999, pp. 15-16): Uma cultura (a nossa em todo caso) feita de tal modo que no cessa de retornar aos textos que a constituram, de rumin-los, como se sua leitura fosse sempre uma releitura. Seja felicitando-se por isso ou lamentando-se, seja embalsamando-os ou recusando-os, ela parece
tecida por seus fios e como que j lida por eles. A tarefa de um historiador da cultura pode, a partir da, consistir em dar a ler esses textos, recontruindo para falar como a hermenutica a questo que eles respondem, redesenhando os horizontes de expectativa em que, desde seu primeiro dia at os nossos (ainda
que no modo de ausncia), eles vieram inscrever-se, recalculando as apostas que fizeram e significaram,
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33
despeito de isso no invalidar a anlise em si, certa prudncia em deixar aberto um espao
de incompreenso parece-nos mais que bem vinda, no s por uma questo, talvez, tica
em relao ao passado, mas tambm, e principalmente, por uma questo de epistemologia:
como evitar transformar os textos antigos em tbula rasa, transpondo-lhes categorias e
perguntas que no lhe fariam sentido algum?
A questo de fundo tentar estabelecer uma relao dialtica entre o analista e
o objeto, em que nenhum dos dois plos que, como tais, no existem fora dessa relao
construda se apague no outro. admitir, no contato com esse outro, que em certos
pontos deve-se recorrer quilo que os antigos filsofos cticos chamavam de
[ , suspenso].16
Ao mesmo tempo, este trabalho, embora faa uso de teorias e reflexes da
Anlise do Discurso, pretende manter-se inscrito numa tradio de estudos filolgicos.
Contudo, para isso, acreditamos ser necessrio demonstrar como se justificaria tal
emprstimo de conceitos vindos de outra rea, sem que o trabalho deixe der ser considerado,
afinal, filolgico. Em primeiro lugar, cabe perguntar que subsdios analticos a Filologia
historicamente oferece, para que tais emprstimos no se mostrem completamente
estranhos a ela. Melhor dizendo: que definio de Filologia permite esses dilogos? E por
fim: em que medida o cruzamento das reas no s pode oferecer resultados importantes,
como tambm garantir aquela alteridade ao objeto estudado?
A princpio, preocupaes como essas podem soar sem nexo. Entretanto, vale
lembrar que durante muito tempo, por influncia de certa verso do que seria uma filologia
pura, reflexes, teorias e conceitos produzidos na Modernidade no pareciam ser bem-
vindos para a anlise de textos antigos, uma vez que, para essa linha, ao fillogo caberia to
somente o contato direto com o texto, sem que nenhuma ideia hodierna viesse a intermediar
esse contato, ao no ser aquelas vindas de outros textos coevos ou anteriores ao objeto do
trabalho filolgico.
apontando os quiproqus que sucessivamente provocaram. Essa historizao no significa moderniz-los ou
atualiz-los, mas sobretudo fazer ver sua inatual atualidade: suas respostas a questes que ns no mais
levantamos, no sabemos mais levantar ou simplesmente esquecemos [grifo nosso]. 16
Cf. Sexto Emprico (c. 160-210 d.C.): um posicionamento intelectual por meio do qual nem nos
convencemos de algo nem propomos algo (
; Pyrr. 1,10,5).
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34
Para concluir, veremos que mesmo o objeto deste trabalho, os comentrios,
esteve, e continua a estar, no centro do ofcio do fillogo: a explicao de textos de outras
pocas. Ora, os comentrios, como mostraremos, desde sempre foram prticas que
flertaram com uma srie de aspectos que, em geral, so considerados abrangidos pela
pesquisa filolgica: conhecimento de lnguas (estrangeiras), polimatia, saber histrico
(sobre os antigos), edio, crtica, e tudo isso visando ao desejo de explicao e
reconstruo total do objeto. Nesta introduo, a exposio de algumas das definies de
Filologia espalhadas ao longo dos sculos servir para mostrar como as disputas relativas a
seus limites tendem a girar em torno desses mesmos pontos.
Ademais, e em certo sentido, investigar essa prtica de explicar textos
praticamente estudar a prpria natureza da Filologia, j que todos os seus objetivos, sejam
os de edio, traduo ou os comentrios propriamente ditos, convergem, no limite, para o
mesmo objetivo: tornar transparente uma opacidade, ou seja, traduzir uma unidade qualquer
de um estado de lngua x para outro y, s vezes, transportando-os tambm de um
determinado suporte para outro. Nesse sentido, portanto, nosso trabalho tambm pode ser
visto como uma contribuio histria da prpria prtica de explicao de textos.
Entre strictus e latus sensus: uma difcil definio
Quando se trata da questo sobre o que seria a Filologia, possvel responder,
parafraseando um famoso adgio: tot philologiae quot philologi (cada fillogo, uma
filologia). A despeito disso, reuniu-se sob o nome de Filologia uma srie de atributos
conceituais e prticos que, de certa maneira, ajudou a definir os limites dessa rea de saber,
tanto em relao a seus objetos, quanto a seus pontos de partida tericos. Entre eles, estava
a escrita de comentrios. Em que medida, no entanto, a noo de Filologia em especial,
aps o Renascimento dialoga com a prtica antiga de comentar e vice-versa, seria algo a
ser explorado em detalhes num estudo parte. Aqui, no entanto, pretendemos esboar
aspectos bem gerais dessa noo e mencionar alguns pontos de inflexo importantes que
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35
ajudem a entender qual pode ser a contribuio de um estudo de comentrios antigos para a
prpria prtica de comentar, em geral, e para a em Filologia, em particular.
Na segunda metade do sculo XX, por um bom tempo, teve-se a sensao de
que a Filologia, como rea de saber, ameaava, se no desaparecer, ao menos virar uma
espcie de persistncia moribunda no quadro das disciplinas acadmicas hodiernas (cf.
Duval F., 2007). Empurrada de seu antigo status pela apario de novas reas de saber e de
territrios de conhecimentos, parecia que a Filologia era tema apenas entre os estudantes
das lnguas clssicas, quase que restrita ideia de edio de texto.17 A perda do prestgio,
cujo auge foi sem dvida o sculo XIX, em decorrncia, em parte, das crticas s
concepes que vinculou durante geraes de praticantes, o trabalho filolgico se apegou
ltima cidadela que o protegia: a produo de edies crticas. Esse movimento de retrao,
motivado pelas diversas polmicas em que a rea se encontrou, foi levado a cabo por
grande parte dos prprios fillogos, meio que incrdulos diante da avalanche produzida,
especialmente, pelo linguist turn dos anos de 1970. Alis, mesmo antes disso para ser
mais preciso, desde Saussure , a Filologia j havia sido posta num degrau abaixo do
processo evolutivo que o linguista descreveu como preparatrio para o advento da
Lingustica. Para ele, tudo se iniciou com o estudo desprovido de qualquer viso cientfica
e desinteressada da lngua, a gramtica dos gregos e romanos antigos, e desbocou na
gramtica comparada do sculo XIX, cujo defeito, dessa vez, era no ter se preocupado
em determinar a natureza de seu objeto de estudo, operao sem a qual uma cincia
incapaz de estabelecer um mtodo para si prpria. Entre essas duas pontas (a gramtica
antiga e a gramatica comparada oitocentista), encontrava-se a Filologia, cuja nica falha era
apega[r]-se muito servilmente lngua escrita e esquece[r] da lngua falada.
Na cidadela que o fillogo criou para si em resposta s crticas, um tcito pacto
dizia que sua funo era nica e exclusivamente editar, traduzir, comentar. E tudo isso, de
preferncia, com o mnimo de interveno, para que, desse processo, se produzisse um
texto o mais fiel possvel, que, agora, pblico, pudesse ser objeto de estudos de outras reas
17
Cf. Duval (2007, p. 22): As acepes mais restritivas triunfaram [...] e a filologia, na Frana, refere-se, sobretudo, crtica textual e, mais precisamente ainda, edio crtica de textos (Les acceptions plus restrictives ont [] triomph et la philologie, en France, rfre surtout la critique textuelle et, plus prcisment encore, ldition critique de textes).
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mais analticas. Nos ltimos anos, no entanto, parece que est surgindo um movimento
contrrio, disposto a romper com esse ponto de vista que tem perpetuado a Filologia como
uma eterna disciplina auxiliar. Vrias reflexes, de fillogos e no fillogos, tm buscado
entender, para alm de uma teoriometria que venha a reger algumas definies de
cientificidade, quais as especificidades que, ao longo da histria bimilenar e de sua
difuso por diversos lugares, esse saber tem produzido, a despeito das definies dspares e,
at mesmo, contraditrias de seu ofcio e alcance prtico.
No se pretende nem o objetivo desta introduo propor uma histria da
filologia, tampouco apresentar uma detalhada reflexo epistemolgica. No entanto, como
trabalho de Filologia, convm, a nosso ver, expor (i) os posicionamentos atinentes a essa
rea de saber a partir dos quais se fala aqui, (ii) como este trabalho pode contribuir para a
histria da reflexo filolgica, uma vez que, mutatis mutandis, versa sobre um dos seus
pilares: o ato de comentar.
Num texto recente em que trata da relao entre Filologia e Anlise do Discurso,
Maingueneau (2010), ao falar da primeira, j alerta que se trata de uma impossvel
definio, porque, [...] mesmo limitando-se ao sculo XIX, no fcil dizer em que
consiste exatamente a filologia. uma disciplina que sempre procurou sua definio (p.
46). De fato, e, em certo sentido, muitos fillogos o reconhecem. Em contrapartida,
publicou-se, em 2009, na Alemanha, uma coletnea de estudos cujo foco no perguntar
quae est philologia (que tipo de filologia), mas sim quid est philologia (o que
filologia). O ttulo Was ist eine philologische Frage? (O que uma pergunta filolgica?)
aponta claramente para uma investigao epistemolgica sobre o prprio modus quaerendi
do fillogo (Schwindt, 2009).18
Esse debate epistemolgico mais detalhado, como j dito,
18
Cf.: A pergunta sobre a pergunta filolgica suspende o perguntar filolgico para tomar conscincia daquilo que prprio desse perguntar. Ela faz isso ao se colocar por um momento no lugar da(s) pergunta(s)
filolgica(s) e ao interromper a continuidade sem rudos de um perguntar filolgico que no coloca a si
prprio em questo. A pergunta sobre a pergunta filolgica inaugura, com isso, um espao livre, um lugar de
percepo e observao que e isso o distingue das topografias familiares do perguntar filolgico antecede a todas as respostas possveis e, portanto, diretamente tambm aos objetos do debate filolgico. (Die Frage nach der Philologischen Frage setzt das philologische Fragen aus, um dessen innezuwerden, was das
Eigentmliche dieses Fragens ist. Sie tut dies, indem sie sich fr einen Augenblick an die Stelle der
philologischen Frage(n) setzt und die geruschlose Kontinuitt eines sich nicht selbst in Frage stellenden
philologischen Fragens unterbricht. Die Frage nach der Philologischen Frage erffnet mithin einen
Freiraum, einen Ort der Wahrnehmung und Beobachtung, der - und das unterscheidet ihn von den vertrauten
-
37
extrapolaria os limites desta introduo. Mas no se poderia deixar de mencionar que a
pergunta sobre o saber filolgico voltou ordem do dia, sobretudo, entre os prprios
fillogos.
Restrinjamo-nos aqui, contudo, ao velho problema da definio da Filologia.
Para tanto, vamos seguir o conselho de um importante fillogo oitocentista, que j
recomendava, em 1862, que: o que filologia no pode ser melhor demonstrado seno
pela exposio de como ela veio a ser (Curtius, 1862, p. 6).19 A justificativa para isso
dada pelo fato de que a histria da Filologia indissocivel, no Ocidente pelo menos, da
histria da prtica de comentar textos. Assim, tratar da histria de uma delas , em parte,
tratar tambm da histria da outra.
Desde o primeiro abono de (phillogos) em Plato, o sentido desse
termo tem oscilado dos graus mais estritos aos mais amplos possveis. Mesmo entre os
antigos, filologia nunca disps de uma definio clara comparvel, por exemplo, a sua rea
irm, a gramtica (cf. Bassetto, 2005). Talvez seja justamente a interpretao que se deu,
ao longo dos sculos, palavra grega lgos que explique, em parte, as dificuldades em
definir, afinal, o que seria o amigo desse lgos (). No que outros rtulos de
certas reas no deixassem tambm margem para ampliaes, deslocamentos,
metaforizaes e afins. Em relao prpria gramtica de que falamos, se se comparam
seus mltiplos sentidos (antigos e modernos), ver-se- que, em alguns casos, os objetos
investigados quase nada tm que ver com a noo de letra, etimologia vinculada pelo grego
gramma. Em outros casos, porm, parece que a amplitude mais propcia, como em
filologia. Tanto assim que filologia muitas vezes era sinnimo de filosofia, como se os
interesses e as prticas dos amantes da sabedoria e do lgos no se diferenciassem tanto.
Polimatia e ars critica
Topographien philologischen Fragens allen mglichen Antworten und mithin gerade auch den Gegenstnden der philologischen Verhandlung vorausliegt; Schwindt, 2009, p. 11) 19
Was Philologie ist, wird man aber nicht besser zeigen, als wenn man darauf hinweist, wie sie geworden ist.
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38
Entre os antigos, uma das primeiras tentativas de distinguir claramente o que
era prprio do filsofo, do fillogo e do gramtico se deu com o jovem Sneca, no incio do
primeiro sculo da era crist. Para ele, quando cada um deles se depara com um texto como
o De republica de Ccero, ressaltar um aspecto dessa obra, pois:
[...] o gramtico se preocupa com problemas especficos de lngua e de literatura,
como expresses tpicas, arcasmos, influncias literrias. O fillogo apresenta
anlises, dedues, inter-relacionamento de fatos, conhecimento dos livros de
histria, de arspices e dos escritos pontificais - ndices de uma cultura ampla,
prpria do sbio, do Fillogo [...]. (Sen. Ep. LV, 18, trad. Bassetto, 2005, p. 22)
Quanto ao filsofo, limita-se a dizer que se admira de se tivesse podido
afirmar tantas coisas contra a justia. (Sen. Ep. LV, 18, Bassetto, 2005, p. 22)20
O esforo de Sneca no parece ter encontrado muito eco entre seus
contemporneos e, depois, entre as geraes posteriores de estudiosos. Pelo contrrio, se a
pesquisa avana pela Antiguidade tardia e Idade Mdia, v-se um movimento de hipertrofia
da Gramtica que de uma antiga posio modesta de apenas ser um saber propedutico
compreenso de textos e, em seguida, Retrica chega no s, em muitos aspectos, a
assumir aqueles sentidos da atividade filolgica como aquela prpria do erudito crtico de
textos, como tambm se aproxima, j no perodo do renascimento carolngio (sc. VIII
d.C.), de investigaes lingustico-filosficas que contriburam tanto para os debates dos
modistae,21
quanto, no limite, para as reflexes dos gramticos de Port-Royal. Para essa
hipertrofia, a fortuna crtica das Institutiones grammaticae de Prisciano de Cesareia (viveu
em torno do ano 500 d.C.) teve papel importante.22
Ademais, no deixa de chamar a
20
[] admiratur contra iustitiam dici tam multa potuisse. Traduo de Basseto (21-22). 21
Cf. Robins (1967, p. 74): De longe, o desenvolvimento mais interessante e significativo na lingustica durante a Idade Mdia o surgimento das gramticas especulativas ou tratados De modis significandi (dos modos de significar) [...]. Gramtica especulativa que ia bem alm dos requisitos do ensino de latim [...] A gramtica especulativa um estgio distinto e definitivo na teoria lingustica, e os diferentes autores, ou
modistae [...] representam essencialmente o mesmo ponte de vista terico e compartilham a mesma concepo
de cincia lingustica, seus objetivos, e seu lugar entre os outros estudos intelectuais. [....] (By far the most interesting and significant development in linguistics during the Middle Ages is the output of speculative grammars' or treatises De modis significandi (on the modes of signifying) []. Speculative grammar is a definite and distinct stage in linguistic theory, and the different authors, or Modistae, as they are sometimes
called, represent substantially the same theoretical point of view, and share the same conception of linguistic
science, its objectives, and its place among other intellectual studies []) 22
A gramtica especulativa foi o produto da integrao da descrio gramatical do latim como formulada por Prisciano e Donato no interior do sistema filosfico escolstico (Speculative grammar was the product of the
-
39
ateno o fato de que Isidoro de Sevilha, em sua enciclopdia Etimologias, tenha
ignorado o termo filologia e correlatos. Isso talvez seja um dos indcios do ostracismo em
que caiu essa noo a partir do fim da Antiguidade.
Do Renascimento em diante, no entanto, h, por assim dizer, uma redescoberta
da Filologia. Qui fosse mais adequado falar de uma reinveno, j que o termo
readquire um novo papel nos regimes de saber da poca, na medida em que associado,
sobretudo, ao trabalho de crtica documental.
O que d a impresso de estar em processo, a partir do Renascimento,
principalmente um rearranjo das reas de atuao do gramtico e do fillogo, ainda que no
de forma absoluta e ausente de contradies. De qualquer maneira, muito provavelmente,
esse processo de abandono gradual da gramtica como saber interpretativo j vinha se
desenvolvendo desde a transio da Antiguidade Idade Mdia, quando esse estudo parece
ter se voltado com mais vigor reflexo lingustica mais propriamente dita, ou seja,
anlise das unidades formais (sons, flexo, sintaxe) da lngua.
Pode-se dizer que a Filologia moderna nasceu com o gesto fundador de
Lorenzo Valla, no sculo XIV, que [...] em razo de indcios lingusticos [provou] a
inautenticidade da doao de Constantino e da correspondncia entre Paulo [apstolo] e
Sneca (Jager, 1990, p. 20).23 As competncias necessrias subentendidas, os objetivos e
efeitos desse gesto no eram certamente desconhecidos dos antigos, em especial, dos
gramticos. Mas o momento em que ocorre tal gesto tem motivos e efeitos muito
especficos que, em certa medida, pretendem justamente reorganizar aspectos da tradio
dita clssica. Como lembra Thouard (2010):
O incio dos tempos modernos destaca-se por ter delineado dois modelos de saber
de natureza diversa, um filolgico e um matemtico. A inveno da Filologia
como tratamento crtico de textos permitiu desde mais ou menos Valla ou Poliziano submeter os testemunhos do passado a uma investigao sistemtica. O manuscrito tornou-se objeto de um saber minucioso, que se produzia mediante
integration of the grammatical description of Latin as formulated by Priscian and Donatus into the system of
scholastic philosophy; (Robins, 1967, p. 74). 23
[Er bewies] aufgrund sprachlicher Indizien die Unechtheit der Konstantinischen Schenkung und der
Korrespondenz zwischen Paulus und Seneca. (Jager, 1990, p.20)
-
40
o juzo, o iudicium do crtico. A transmisso textual era posta diante do tribunal do crtico. (p. 2)
24
Essa crtica textual pressupunha certa constelao de saberes e informaes que
talvez no diferissem muito dos pressupostos da crtica textual praticada na Antiguidade:
conhecimento da lngua dos textos, da histria a que se refere e em que foi escrita, dos
demais saberes vinculados pelo texto. Mas, nesse gesto fundador, a erudio deve ser
crtica, porque precisa romper com a tradio. Se, por um lado, a busca da autenticidade
manifesta um conceito possivelmente puro de texto, por outro, queria ser crtica
justamente por apresentar-se como o crivo pelo qual as tradies deveriam perder o que tm
de passivo, ou seja, de a-crtico.
Numa definio, publicada em 1643, numa obra intitulada Dissertatio de
Philologia, Teophilus Colerus (1618-1685) assim se expressa:
Grego de solo natal o vocbulo philologia. [...] prpria palavra philologia
subsistem diversos significados. Uma possibilidade: com efeito, representa
igualmente acepes instrumentais como so chamadas e assim se contradistingue da prpria filosofia. A partir desse mesmo princpio, aqui se diz
[significar] ensaio de professores, ou antes investigao (se se retira rganon) filosfica. Aquele ltimo, na verdade, e foi dito assim investigao, costuma receber o atributo de filosfico. Outra possibilidade: mais grosseiramente, para uns tantos, somente quer dizer a investigao exata em
relao gramtica de algum escrito. Outra possibilidade: para alguns, envolve
to somente o conhecimento de diversas lnguas. Outra possibilidade: alguns
consideram que a filologia deveria ser colocada at mesmo no lugar da prpria
filosofia. Talvez ela exista tambm num outro sentido ainda. Mas o ltimo uso
dessa palavra no o que vigora aqui, hoje, com o qual se designa o hbito de
interpretar aparelhado pelo conhecimento notrio tanto das lnguas, quanto da
antiguidade, e no apenas de tudo que digno. Desse prprio fato, certamente
chamamos de fillogo aquele homem a quem certamente no atribumos um
lugar de punio entre os eruditos. E nesse significado no presente que se d
nossa considerao. (Colerus, 1643)25
24
Die Frhe Neuzeit zeichnet sich dadurch aus, dass sie zwei Wissensmodelle unterschiedlicher Natur
entworfen hat, ein philologisches und ein mathematisches. Die Erfindung der Philologie als kritischer
Umgang mit Texten erlaubte es etwa seit Valla oder Poliziano , die Zeugnisse der Vergangenheit einer systematischen Untersuchung zu unterziehen. Die Handschrift wurde zum Gegenstand einer sorgfltigen
Erkenntnis, die mittels der Urteilskraft, des Iudicium des Kritikers, zustande kam. Die Textberlieferung wurde vor das Gericht des Kritikers gestellt. 25
graecum est natali solo, philologiae uocabulum []. ipsum philologiae uerbum diuersis substat significatis. Alias enim, instrumentales, ut uocantur, simul sumtas repraesentat, et sic contradistinguitur a philosophia
ipsa. Quo eodem ex capite, magistrorum hic loci tentamen siue, examen prius, (si organon excipias,)
philosophicum: posterius uero, et ita dictum examen, philosophicum nuncupari solet. Alias, et rudius, uel
solum ad grammaticam exactum alicuius scripti examen quibusdam dicit. Alias diuersarum linguaraum
cognitionem tantum inuoluit nonnullis. Alias pro ipsa etiam philosophia, philologiam positam uidere fuerit.
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41
Nesse trecho, entre a constelao de sentidos apresentados, chamam a ateno
alguns que, como dito, parecem vir acompanhando esse saber de difcil definio: (i) um
brao pedaggico, que liga o termo filologia ao mbito dos professores (magistrorum); (ii)
o aspecto de sua anlise precisa (exactum examen), no caso, referida gramtica; (iii) o
poliglotismo (diuersarum linguaraum cognitio), que nada mais seria seno uma verso
lingustica da polimatia; (iv) equiparao filosofia, talvez por aquilo que se define na
sequncia e o sentido encampado pelo autor do texto, ou seja, (v) um hbito de
interpretar (habitus interpretandi). No entanto, no concordando com a associao
absoluta ao filsofo, Colerus especifica esse hbito, ao dizer que ele deve ser aparelhado
pelo conhecimento tanto das lnguas quanto da antiguidade (et linguarum, et antiquitatis
[...] cognitione, comparatus).
Assim, na reinveno da filologia, tentou-se justamente ativar o lado da
interpretao, ou seja, aquilo que, na terminologia gramatical antiga, chamava-se krsis
( ) ou iudicium poetarum (julgamento dos poetas). No
toa, um dos eptetos prediletos dados filologia nesse perodo renascentista era o de ars
critica. Tratava-se, pois, do habitus interpretandi de que a passagem acima fala. Desse
modo, se a gramtica, na Antiguidade, era uma cincia bipartida entre a lngua e os textos
(cf. Desbordes, 1995), do renascimento em diante, parece que se consuma uma diviso, ou
melhor, estabelece-se gradativa e momentaneamente uma nova relao hierrquica, j que a
Filologia engloba a anlise gramatical, mas no se restringe a ela, conforme se v na
afirmao de Colerus, segundo a qual dizer isso seria defini-la mais grosseiramente
(rudius).
Humanidades
Forte alio etiam in sensu. At nec hic postremus huius uerbi usus uiget hodie, quo et linguarum, et antiquitatis,
et tantum non omnium scitu dignorum cognitione, comparatum interpretandi habitum designat.Quo ex ipso
quippe philologum quem appellamus uirum, illi non poenitendum sane in eruditis locum adsignamus. Et in
hoc significatu nostrae in praesenti quod est considerationis.
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Seguindo outras definies de pocas posteriores, v-se que alguns aspectos da
tentativa de definio se mantm. Por exemplo, na famosa Enciclopdia organizada por
Diderot e DAlembert, e publicada entre 1751 e 1772, assim aparece o verbete relativo
rea:
FILOLOGIA : espcie de cincia composta de gramtica, de potica, de
antiguidades, de histria, de filosofia, por vezes mesmo de matemticas, de
medicina, de jurisprudncia, sem tratar alguma dessas matrias a fundo nem
separadamente, mas as tange todas ou em parte. [...] A filologia uma espcie de
literatura universal que trata de todas as cincias, de sua origem, seu progresso,
dos autores que as cultivaram etc. Vede Polimatia. A filologia no outra coisa
seno aquilo que chamamos na Frana as belas letras, e quilo que nas
universidades se d o nome de humanidades, humaniores litterae. Ele constitua
outrora a parte principal e mais bela da Gramtica.26
Nesse verbete, comea por chamar nossa ateno a definio quase indefinida
de filologia como uma espcie de cincia. Como dito, possivelmente a amplitude dos
conhecimentos com os quais a filologia dialoga para tratar desse seu objeto, os textos,
sobretudo, antigos, que motiva qualific-la como uma espcie de cincia. Ademais, ela
no se aprofunda neles, mas sim os tanges todas ou em parte (effleurant toutes ou en
partie), sem tratar alguma dessas matrias a fundo nem separadamente (sans traiter
aucune de ces matieres fond, ni sparment). Ao mesmo tempo, porm, o fato de ser
elencada entre as cincias aponta para o movimento de no ser mais considerada como uma
arte ou um hbito de interpretar, mas sim como algo submetido a certos procedimentos
que seriam qui supraindividuais, para alm de talentos artsticos pessoais. possvel
tambm que no houvesse nada de especial nessa nova definio no mais arte, mas
espcie de cincia , sendo essa mudana apenas pro forma. De qualquer maneira, o fato
que ela, em parte, reconhecida pelos enciclopedistas como uma rea que compartilha
algo de cientfico. Para entrar no rol das cincias, talvez tenha contribudo sua tradio
crtica, herdada da renovao renascentista. Ademais, no verbete, associa-se a filologia
26
PHILOLOGIE, s. f. (Littrat.) espece de science compose de grammaire, de potique, dantiquits, dhistoire, de philosophie, quelquefois mme de mathmatiques, de mdecine, de jurisprudence, sans traiter aucune de ces matieres fond, ni sparment, mais les effleurant toutes ou en partie. / [] La philologie est une espece de littrature universelle, qui traite de toutes les sciences, de leur origine, de leur progrs, des
auteurs qui les ont cultives,&c. Voyez Polymathie. / La philologie nest autre chose que ce que nous appellons en France les Belles-lettres, & ce quon nomme dans les universits les humanits, humaniores litter. Elle faisoit autrefois la principale & la plus belle partie de la Grammaire [...]. Citado conforme o
original.
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moderna, ou seja, ps-renascentista, com a parte da gramtica antiga dedicada crtica dos
autores, conforme expusemos mais acima.
Antiguidades e Histria
Se na Enciclopdia iluminista ainda se falava em espcie de cincia, no
sculo XIX, o sculo da criao das cincias e disciplinas acadmicas, um movimento
levado a cabo, especialmente, na Alemanha, no s defende a Filologia como uma cincia,
mas igualmente a coloca como a cincia-piloto de todas as humanidades, em especial, de
todo o saber ligado Antiguidade.
Uma das figuras mais proeminentes no incio desse processo foi Friedrich
August Wolf (1759-1824), considerado o fundador da Filologia moderna.27
Para Wolf, a
ligao com a Histria (antiga) era to clara, que at a etimologia do termo Filologia
vinculava essa dimenso:
O nome fillogo parece ser o melhor [para esse estudioso]. so, entre os
antigos, os conhecimentos histricos, e aquele que os cria a partir dos escritos dos tempos antigos. Este o sentido grego [do termo]. (Wolf, 1831, p.
5)28
Alm disso, o estudioso traz para o centro da preocupao da Filologia o estudo
da Antiguidade (Altertumskunde). Esse conceito bastante amplo e teve uma fortuna crtica
e implicaes culturais e pedaggicas a partir do Renascimento que so impossveis de
detalhar aqui. O importante, como dito, que Wolf aprofundou uma tendncia que havia
sido iniciada por seu antigo professor Christian Gottlob Heyne (1729-1812), ao fundir a
Altertumskunde, j renovada por Johann Joachim Winckelmann (1717-1788), com a
Histria e com a Filologia, e criando a cincia da Antiguidade (Altertumswissenschaft),
27
Wolf, segundo um relato com feies de mito de origem, teria ousado, ao se inscrever como aluno da Universidade de Gttingen, por no ter escolhido entre uma das denominaes de estudo existentes poca
(filosofia, teologia ou direito), mas sim posto que era um studiosus philologiae. 28
Der Name Philolog scheint besser zu seyn. sind bei den Alten historische Kenntnisse und
ist der, welcher aus Schriften lterer Zeiten diese schpft. Dies ist der griechische Sinn. [ortografia original, embora tenha sido alterado o tipo da letra]
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transformando-a numa disciplina acadmica, e no mais numa prtica ligada a
colecionadores e curiosos isolados.
Essa cincia da Antiguidade, que se confunde com a prpria Filologia, um
saber com ambies totalizantes:
O estudo da Antiguidade, visto como cientfico, ser, portanto, o eptome dos
saberes histrico e filosfico, por meio dos quais ns aprendemos a conhecer, em
todos os aspectos possveis, a nao cujas obras nos so suprstites. possvel
que as fronteiras de uma cincia sejam to difusas, que ela se constitua de muitas
partes. Precisa-se sempre conhecer muito bem essas fronteiras. [...] Logo, o
estudo da antiguidade conflui para todos os saberes que nos tornam conhecidos os
estados, as vicissitudes, as condies poltica, intelectual, econmica dos dois
povos antigos mais famosos [sc. gregos e romanos], suas lnguas, artes, cincias,
costumes, religio, seu carter nacional e afins, e de tal modo que esse
conhecimento parta de suas obras suprstites, sem as quais nenhum exame
historicamente fundado possvel. Studia antiquitatis so, portanto, assim como
studia graecae latinaeque antiquitaties. (Wolf, 1831)29
Wolf estava, inclusive, convencido de que os [...] conhecimentos filolgicos
tm de ser adquiridos em primeiro lugar, porque so eles que fundam o conhecimento
histrico (Wolf, 1831). 30
Alm disso, o estudo da Antiguidade deveria partir de trs cincias bsicas: a
gramtica (das duas lnguas), a hermenutica e a crtica filolgica. No deixa de chamar a
ateno o fato de nem se mencionar a prpria Histria como uma disciplina que ajudaria no
conhecimento filolgico, como se ela j estivesse embutida na Filologia.
Embora possa parecer estranho hoje, essa condio subalterna da Histria,
enquanto rea de estudo, em relao Filologia correspondeu ao que se produziu no sculo
XIX. Como lembra o historiador Funari (1999, p. 2):
De fato, strictore sensu, nossa disciplina no foi instaurada seno com Niebuhr e
von Ranke, em particular com a inveno da noo de documento a ser analisado,
29
Altherthumskunde, als Wissenschaft betrachtet, wird also der Inbegriff der historischen und
philosophischen Kenntnisse seyn, durch welche wir die Nation, von der uns Werke brig geblieben sind, aus
diesen in aller mglichen Hinsicht kennen lernen. Es knnen die Grenzen einer Wissenschaft so ausgedehnt
seyn, dass sie mehrere Theile ausmacht. Man muss immer die Grenzen sehr genau kennen. [] Alterthumskunde geht also auf alle die Kenntnisse, die uns die Staaten, Schicksale, den politischen, gelehrten,
huslichen Zustand der beiden berhmtesten alten Vlker, ihre Sprachen, Knste, Wissenschaften, Sitten,
Religion, ihren Nationalcharakter und dergleichen bekannt machen, und zwar so, dass diese Kenntniss von
ihren briggebliebenen Werken ausgeht, ohne die keine grndliche historische Einsicht mglich ist. Studia
antiquitatis sind also so viel, als: studia graecae latinaeque antiquitatis. 30
[] Die philologische Kenntnisse mssen allerdings zuerst angeschafft werden, weil sie die historischen begrnden.
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muito a propsito, more philologico, maneira da Filologia, nascente disciplina que viria a fundar, em verdade, todas as Cincias Humanas.
A Cincia da Antiguidade proposta por Wolf explicita bem esse movimento
que ajudou a mudar e moldar os estatutos dos textos antigos em termos histricos, na
medida em que deixaram de ter apenas interesse em si, mas passaram a ser considerados
aquilo que se convencionou chamar de fontes para a reconstruo histrica e
historiogrfica das duas sociedades antigas vistas como modelo, logo, clssicas,
justamente por serem mais aptas e teis para ser objetos de imitao, ou seja, de
reatualizao. tambm no tocante a tal aspecto que Wolf, ao tratar da crtica filolgica,
afirma que: [] Ela contm as regras conforme as quais se devem julgar a autenticidade, a
idade da obra e a casticidade do texto no todo e no detalhe, e, se for possvel, reproduzi-lo.
(Wolf, 1831)31
A anlise de textos more philologico seria aquilo que permitiria separar os
textos autnticos logo, teis reconstruo histrica dos falsos. Essa tcnica de crtica
interna j havia emergido no Renascimento, com o caso da famosa soluo da polmica
concernente concesso de Constantino. S seriam fontes histricas os textos que,
passados pelo crivo da crtica filolgica, mantiveram seus status de autenticidade.32
As consequncias dessa noo de textos autnticos, fontes histricas e verdade
explicam muito da relao umbiligal entre Filologia e Histria no sculo XIX.33
No seria
31
[] Sie enthlt die Regeln, nach welchen man die chtheit, das Alter der Werke und die Richtigkeit des Textes im Ganzen und Einzelnen beurtheilen, und wenn es mglich ist, wieder herstellen muss. 32
Cf. Estudar a histria de uma sociedade antiga nos livros modernos, por mais notveis que sejam muitos desses livros pelo talento e pela erudio, sempre correr o risco de fazer uma ideia inexata da Antiguidade.
preciso ler os documentos antigos, todos eles, e, se no uma ousadia dizer, no ler seno a eles, ao menos,
no consentir seno a eles uma inteira confiana. No os ler de forma leviana, mas com uma ateno
escrupulosa, buscando, em cada palavra, o sentido que a lngua do tempo atribua a cada palavra, em cada
frase, o pensamento do autor. (tudier lhistoire dune ancienne socit dans les livres modernes, si remarquables que soient plusieurs de ces livres par le talent et par lrudition, cest toujours sexposer se faire une ide inexacte de lAntiquit. Il faut lire les documents anciens, les lire tous, et si nous nosons pas dire ne lire queux, du moins naccorder qu eux une entire confiance. Non pas les lire lgrement, mais avec une attention scrupuleuse et en cherchant, dans chaque mot, le sens que la langue du temps attribuait
chaque mot, dans chaque phrase la pense de lauteur; N.-D. Fustel de Coulanges, Questions historiques, revues et compltes, daprs les notes de lauteur, C. Jullian d., Paris, Hachette, 1893, p. 407 apud Duval F., 2007, p. 23, n. 17) 33
Sobre a questo de um nacionalismo subjacente a essa transformao em fontes, cf.: [] a pretenso de poder encontrar nos textos antigos o esprito nacional grego transforma isto , em certo sentido tambm, degrada os textos em fontes para a depreenso de um fenmeno histrico: justamente da autntica forma de pensar grega, que deve ser conhecida nelas. ([] der Anspruch, in den antiken Texten den griechischen
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de estranhar, portanto, dentro de tal quadro epistemolgico, que o historiador mais
associado ao positivismo, Leopold von Ranke, viesse a formular a famosa sentena da
pretenso do historiador: Ele quer to somente mostrar como de fato aconteceu. (von
Ranke, 1826 apud Funari, 1999, p. 2). Ora, nessa lgica, para mostrar o que de fato
aconteceu, preciso, em primeiro lugar, fiar-se naquelas fontes que so fidedignas,
afinal, s delas que o conhecimento histrico poderia e-manar.
O imbricamento entre Filologia e Histria era tal que Wolf no concebia o
entendimento razoavelmente de um texto sem o conhecimento histrico. At mesmo um
possvel sentido literal dependeria do significado histrico:
[] Este determinado pela gramtica e pela lgica. Ele d a conhecer as ideias puras sem referncia s circunstncias sob as quais o escritor escreveu. Se se
quiser adentrar mais profundamente [no texto], ento se vai s investigaes
histricas, que, de fato, fazem o expositor. Esse o sensus historicus. O primeiro
tambm chamado de sentido direto, que provm das expresses, mas
determinado pelo sensus historicus. [...] O sensus historicus, ao lado do literal,
o mais importante. Por isso nele que o comentador tem de preferencialmente
prestar ateno. Ele determinado pelo conhecimento das coisas e circunstncias
sob as quais o escritor viveu. Sem esse conhecimento impossvel entender um
autor. Ele mesmo, passado quinze anos depois que escreveu, no se entender
mais. (Wolf, 1831)34
Nem toa, portanto, que [] na realidade, nunca os fillogos deixam de ser
historiadores, e muitos dos grandes historiadores foram ao mesmo tempo excelentes
fillogos como Th. Mommsen, E. Pais, M. Rostovtzeff, J. Carcopino, Piganol, R. Syme
(Bejarano, 1975, p. 60, apud Funari, 1999, p. 3).35
N l-geist finden zu knnen, macht das heit in gewissem Sinn auch: degradiert die Texte zu Quellen fr die Erschlieung eines historischen Phnomens: eben der authentischen griechischen Denkart,
die in ihnen erkannt werden soll; Fuhrer, 2001, p. 174) 34
[] sensus literalis. Dieser bestimmt sich durch die Grammatik und Logik. Er giebt die reinen Ideen ohne Bez