Pierre Sorlin

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  Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 81-95. 1 INDISPENSÁVEIS E ENGANOSAS, AS IMAGENS, TESTEMUNHAS DA HISTÓRIA  Pierre Sorlin Obrigado por terem vindo ouvir-me. Sempre se aprende muito num encontro desta natureza, e acho que até o presente momento todos os  papers, todos os workshops foram interessantes. Mas o que mais me interessou foi a própria forma como o CPDOC foi concebido. René Rémond, outro dia, comparava o CPDOC ao nosso Institut d'Histoire du Temps Présent. Concordo com ele, estabelecendo, todavia, uma ressalva: o CPDOC consegue fazer com que coexistam pacificamente arquivos tradicionais e um setor audiovisual. Não tenho atualmente conhecimento de nenhum instituto na Europa que tenha conseguido fazer o mesmo. Vou voltar para casa com um modelo que tentarei aplicar nas instituições onde posso ter alguma influência. Começarei hoje com uma pequena história. Ela é minúscula mas me ajudará a situar minha fala desta manhã. Existe, na França, um jornal chamado  La Croix. Ele é hoje um jornal completamente desprovido de importância, mas durante mais de meio século foi bastante representativo de uma corrente do catolicismo francês. Foi tão importante que um grupo de historiadores lhe consagrou um livro realmente notável, onde todos os aspectos desse jornal são abordados. Todos, menos um. Esse diário tem uma particularidade: desde sua origem, em 1883, ele contém ilustrações. Ora, naquele livro, sob muitos aspectos excelente, não existe uma única palavra sobre a imagem. Acho que esse fato é, por duas razões, lamentável. Como é possível analisar a ideologia de um meio que f ala ao mesmo tempo com imagens e palavras, deixando de lado a metade dos seus instrumentos de comunicação? Mas ainda há mais: esse  jornal pertencia exatamente àquilo que Re né Rémond chamou de tradição anti-revoluc ionária. É um jornal retrógrado, completamente reacionário, e o livro mostra bem isso. Mesmo assim, do ponto de vista técnico, ele estava cinqüenta anos à frente da sua época. Foi capaz de entender, já em 1883, que o futuro da imprensa estava na utilização da imagem. E é isso que me parece apaixonante nesse jornal. Ora, lamentavelmente, o livro não menciona esse fato em momento algum. Essa me parece ser uma atitude típica de grande parte dos historiadores com relação à imagem. Acho que hoje em dia nenhum historiador teria a coragem de negar que a imagem é essencial em nosso mundo e que as fontes audiovisuais são fundamentais. Mas o que fazer com elas? É por isso que gostaria de falar hoje desta questão. Já que terei duas ocasiões de falar, hoje de manhã gostaria de me perguntar o que é a imagem no nosso mundo, e à tarde, no worhshop, gostaria de ser um pouco mais concreto e me perguntar como nós, historiadores, utilizamos a imagem e, principalmente, como podemos contar, ou mostrar, a história com imagens. Falarem imagens é vago, e eu deveria ser um pouco mais preciso: A imagem é uma  prática humana extremamente antiga. A imagem precedeu a escrita. É até possível imaginar que, em alguns casos, a imagem e a palavra tenham se desenvolvido simultaneamente. As  primeiras escritas - vocês sabem disso tanto quanto eu - foram escritas pictogrâmicas, feitas de desenhos. Há pelo menos 22 mil anos que a humanidade utiliza imagens, e durante quase todo esse tempo ela utilizou aquilo que eu chamaria de imagem alegórica. A imagem alegórica é feita pela mão e pelo espírito do homem. Ela é, no fundo, uma invenção. Parte, sem dúvida, da observação. Mas pensem na representação de um bisonte numa caverna.

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INDISPENSÁVEIS E ENGANOSAS, AS IMAGENS,TESTEMUNHAS DA HISTÓRIA

 Pierre Sorlin

Obrigado por terem vindo ouvir-me. Sempre se aprende muito num encontro destanatureza, e acho que até o presente momento todos os  papers, todos os workshops foraminteressantes. Mas o que mais me interessou foi a própria forma como o CPDOC foiconcebido. René Rémond, outro dia, comparava o CPDOC ao nosso Institut d'Histoire duTemps Présent. Concordo com ele, estabelecendo, todavia, uma ressalva: o CPDOC conseguefazer com que coexistam pacificamente arquivos tradicionais e um setor audiovisual. Nãotenho atualmente conhecimento de nenhum instituto na Europa que tenha conseguido fazer o

mesmo. Vou voltar para casa com um modelo que tentarei aplicar nas instituições onde possoter alguma influência.Começarei hoje com uma pequena história. Ela é minúscula mas me ajudará a situar 

minha fala desta manhã. Existe, na França, um jornal chamado La Croix. Ele é hoje um jornalcompletamente desprovido de importância, mas durante mais de meio século foi bastanterepresentativo de uma corrente do catolicismo francês. Foi tão importante que um grupo dehistoriadores lhe consagrou um livro realmente notável, onde todos os aspectos desse jornalsão abordados. Todos, menos um. Esse diário tem uma particularidade: desde sua origem, em1883, ele contém ilustrações. Ora, naquele livro, sob muitos aspectos excelente, não existeuma única palavra sobre a imagem. Acho que esse fato é, por duas razões, lamentável. Comoé possível analisar a ideologia de um meio que fala ao mesmo tempo com imagens e palavras,

deixando de lado a metade dos seus instrumentos de comunicação? Mas ainda há mais: esse jornal pertencia exatamente àquilo que René Rémond chamou de tradição anti-revolucionária.É um jornal retrógrado, completamente reacionário, e o livro mostra bem isso. Mesmo assim,do ponto de vista técnico, ele estava cinqüenta anos à frente da sua época. Foi capaz deentender, já em 1883, que o futuro da imprensa estava na utilização da imagem. E é isso queme parece apaixonante nesse jornal. Ora, lamentavelmente, o livro não menciona esse fato emmomento algum. Essa me parece ser uma atitude típica de grande parte dos historiadores comrelação à imagem. Acho que hoje em dia nenhum historiador teria a coragem de negar que aimagem é essencial em nosso mundo e que as fontes audiovisuais são fundamentais. Mas oque fazer com elas? É por isso que gostaria de falar hoje desta questão. Já que terei duasocasiões de falar, hoje de manhã gostaria de me perguntar o que é a imagem no nosso mundo,e à tarde, no worhshop, gostaria de ser um pouco mais concreto e me perguntar como nós,historiadores, utilizamos a imagem e, principalmente, como podemos contar, ou mostrar, ahistória com imagens.

Falarem imagens é vago, e eu deveria ser um pouco mais preciso: A imagem é uma prática humana extremamente antiga. A imagem precedeu a escrita. É até possível imaginar que, em alguns casos, a imagem e a palavra tenham se desenvolvido simultaneamente. As

 primeiras escritas - vocês sabem disso tanto quanto eu - foram escritas pictogrâmicas, feitasde desenhos. Há pelo menos 22 mil anos que a humanidade utiliza imagens, e durante quasetodo esse tempo ela utilizou aquilo que eu chamaria de imagem alegórica. A imagemalegórica é feita pela mão e pelo espírito do homem. Ela é, no fundo, uma invenção. Parte,

sem dúvida, da observação. Mas pensem na representação de um bisonte numa caverna.

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Quatro traços, apenas, bastam para nos sugerir todo um mundo: a idéia de caça, a idéia deanimal, a idéia de relação entre o animal e o homem. A imagem alegórica recria, a partir daobservação, todo um mundo que é, em grande parte, fantástico. Isso faz com que ela sejamuito pouco informativa.

João Luiz Vieira dizia ainda há pouco que fiz um filme sobre a Revolução Francesa.Para fazer esse filme, examinei todas as imagens produzidas durante a Revolução. Elas sãomuitas, mas a tarefa não ultrapassa a capacidade de um indivíduo. O que observei é que éimpossível confiar nas imagens para entender qualquer fato da Revolução. Quando se temquinze imagens de um mesmo acontecimento, todas são radicalmente diferentes. Mas, aomesmo tempo, todas usam um certo número de estereótipos, de topoi que permitemreconhecer imediatamente, por exemplo, a multidão, o rei, os bons e os maus. Isto significaque elas utilizam métodos de comunicação que provocam, com bastante freqüência, aresposta, a reação daquele que as olha.

Esse mundo da alegraria está perdido para nós. Está definitivamente morto. Morreu nomomento em que apareceu a fotografia ou, mais exatamente, o que eu chamaria de "imagemanalógica". A imagem analógica não é produzida pela mão ou pelo espírito do homem, e sim

  por uma mecânica. Trata-se, por certo, de uma mecânica passível de ser regulada e queobedece a um certo número de ordens, mas que constitui um filtro entre o indivíduo que autiliza e a coisa que ele quer representar. A imagem analógica não pode ter imaginação. Todoo que ela faz é criar um reflexo do homem. Uma fotografia não passa nunca de um reflexo, damesma forma que nossa imagem no espelho é um reflexo. No fundo, nossa imagem noespelho não tem nada a ver conosco, e sabemos perfeitamente disso. É uma imagem achatada,invertida. Aliás, quem tem um cachorro ou um gato sabe perfeitamente que eles não sereconhecem no espelho. Os animais têm um senso do real muito mais forte do que o nosso. É

  preciso que haja todo um trabalho da nossa imaginação para que acreditemos ver-nos no

nosso próprio reflexo. A imagem analógica não passa de um reflexo, igual a um reflexo noespelho, mas esse reflexo nos invadiu, a passamos o tempo todo vendo nas paredes, noscartazes, nos jornais, na televisão, o reflexo da nossa própria existência. De certa forma, aimagem analógica nos coloca numa espécie de solipsismo permanente.

A fotografia, como sabem, foi inventada em 1836. Ela foi logo muito utilizada por especialistas. Vou falar só de duas áreas: a da medicina e a da arte militar. Pode-se dizer que amedicina foi totalmente transformada pelo uso da fotografia. Passou-se de uma medicinadescritiva -aprender uma doença e seus sintomas equivalia a ler uma descrição -e de umamedicina tátil pois, no fundo, a única prova real era a do corpo - a uma medicina do olhar.Reparem que hoje em dia, quando vocês têm que fazer um exame, são trancados junto comuma máquina e, longe de vocês, o médico vai examinar uma tela. A imagem cria, entre vocês

e o médico, uma distância. É verdade que desta forma ele pode examinar melhor o corpo devocês. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de um exame completamente abstrato. Da mesmaforma, a arte militar foi completamente modificada pela possibilidade de se observar e,

 principalmente, de se conservar as observações comparando-as entre si.Se no plano técnico a fotografia soube impor-se imediatamente, ela não se vulgarizou

  junto ao público. Até os anos 90 do século passado, a imagem alegórica permaneceudominante. Vocês sabem que o primeiro jornal a reproduzir fotografias foi o Daily Mirror , em1904. Até o início do século XX, a fotografia não existiu na imprensa. Foi portanto em um

  prazo de tempo extremamente curto - de 1890 a 1905 - que ocorreu essa transformação  prodigiosa, a passagem da dominação da imagem alegórica para a dominação da imagem

analógica. Aliás, se pararmos para pensar, este período é absolutamente surpreendente. É nele

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que, em poucos anos, o motor a explosão é ultimado, o automóvel e o avião são criados, otelefone se expande, a gravação sonora aparece, assim como o cinema. Foi em volta desteleque de transformações que, de repente, a fotografia se impôs.

A expansão da imagem analógica constitui um fato histórico, mas também, no fundo,

um fato perfeitamente aleatório. Na verdade, teria sido perfeitamente possível nãoconhecermos o cinema. As primeiras experiências radiofônicas datam de 1909, e desde entãoMarconi pensava que era possível transmitir a imagem à distância. Era evidente: se o éter 

 podia transportar sons, por que não poderia transportar sinais luminosos transformáveis emimagens? Por isso, faltou muito pouco para que a televisão fosse acessível mesmo levando-seem conta a guerra mundial- desde, digamos, 1920.7èria sido perfeitamente possível termosuma televisão com imagens de síntese, imagens alegóricas, e poderíamos muito bem não ter tido a fotografia.

  Não terei perdido meu tempo hoje de manhã se conseguir levá-los a refletir sobreesses dois pontos. O primeiro é que a fotografia é um fenômeno histórico contingente. Elahoje nos parece evidente, não podemos mais viver sem ela. Mas poderíamos estar num mundodiferente. O segundo ponto é que a fotografia condiciona nossa abordagem do mundo. Elatransformou nosso modo de ver o mundo, e não podemos mais vê-lo de outra maneira a nãoser através dos reflexos permanentes que ela nos propõe. Vocês dirão, talvez, que tudo issotem a ver com a história contemporânea. Seguramente com o século XX, talvez com o séculoXIX, mas e antes? E o século XV? Uma reflexão destas constituiria provavelmente um erro.Fazemos história, escrevemos história com os conceitos e instrumentos da nossa época. Em

 primeiro lugar, não podemos mais olhar a imagem alegórica da mesma forma como aquelesque a recebiam diretamente, como a única imagem possível. Mesmo quando estamosextremamente atentos, nós sempre a filtramos através da idéia que nos vem da imagemanalógica.

 Não sei se Hayden White se interessou pela escrita da história da arte, mas se vocês seinteressam por esta área, devem saber que a história da arte encontra-se atualmente numacrise profunda. Trata-se de uma crise da escrita. A história da arte constituiu-se, até o final doséculo XIX, através de descrições e comentários. Essas descrições - Hayden White há deconcordar com isso - eram metonímias. "Acompanhava-se" o quadro passando-se de um

  ponto ao outro por um caminho metonímico. Já os comentários eram metáforas.Comparava-se isto a aquilo. Mas com a fotografia, tanto o comentário como a descriçãotornaram-se inúteis. Pouco tempo atrás, vi na Itália um livro extremamente sofisticado sobreMantegna, feito quase que unicamente de reproduções. Eram reproduções extremamenteinteligentes: montagens de detalhes, relacionados entre si através de esquemas. Havia todoum itinerário visual. E a parte escrita era simplesmente um paratexto: datas, dimensões,

nomes de pessoas, nomes de lugares. No fundo quase notas. Aparte escrita era secundária e perfeitamente dispensável. No final, cheguei a pensar que conhecemos infinitamente melhor (ou, em todo caso, podemos refletir melhor sobre) Mantegna com um livro desses do que comuma história da arte escrita há cinqüenta anos. Talvez, no fundo, eu esteja me iludindo, mas oque faz a narração nesse livro, em primeiro lugar, é a imagem. No entanto, para oshistoriadores da arte de cinqüenta anos atrás, o texto era primordial. Gostaria de um diaconversar com Hayden White sobre a crise da retórica histórica que a instauração da imagemanalógica provocou.

Vocês me dirão, com toda razão, que tudo isso é muito bom, mas um pouco teórico.Vivemos com as imagens todos os dias e temos que conseguir fazer algo com elas. E é isto o

que eu gostaria de abordar com vocês concretamente agora. O que são esses `reflexos do

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mundo"? O que eles têm a nos dizer, a nos propor? Parto, de novo, da imagem alegórica: éuma imagem que narra. Nos desenhos sobre a queda da Bastilha, sobre a Revolução, vejosimultaneamente vários momentos do acontecimento. Vejo a multidão que chega, vejo

 pessoas que negociam com o governador da Bastilha, vejo pessoas tomando a Bastilha de

assalto (portanto, numa fase nitidamente posterior) e vejo até a Bastilha tomada. Trata-se deuma narração, pelos menos no sentido que os narradores costumam dar à palavra "narração".Já a imagem analógica não narra os acontecimentos, ela os mostra, mesmo quando nos mostraseu desenrolar seqüencialmente, do começo até o fim. Ela se limita a fazer-nos ver algo. Emque consiste este "ver"? É sobre isso que eu gostaria de me deter agora.

Vou começar do "nível zero", do fato. Um fato muito simples: no dia 5 de junho de1968, Robert Kennedy foi assassinado. Isto é um fato! Após o assassinato de John Kennedy,seu irmão, Robert sucedeu-lhe e, já que visava a eleição presidencial de 1972, decidiu fazer uma campanha ampla para senador pelo estado da Califórnia. Havia naturalmente umcameraman,   por perto. Hoje em dia, há sempre um cameraman   por perto -e precisamosrefletir sobre este fenômeno representativo de uma circularidade: é na nossa tela queesperamos pelo acontecimento, ele só será acontecimento quando o tivermos visto; oscameraman estão aí para criar o acontecimento, para filmá-lo, de forma que o vejamos.Continuamos no mesmo solipsismo ao qual me referia no início. Mas havia, pois, umcameraman que seguia o conjunto da campanha de Robert Kennedy e que a filmava - ste éoutro problema que teremos de abordar, ou seja, o transbordamento da imagem, a quantidadeinfinita, enorme, inutilizável, de imagens que nos rodeiam. Pois bem. A campanha terminavanesse dia 5 de junho. Robert Kennedy convidara todos os seus correligionários para umgrande hotel de Los Angeles, e todos estavam lá, muito alegres. Num dado momento, a vitóriade Bob é anunciada, Bob recebe aplausos, sai da sala e, ao passar pelo corredor, um malvadodá-lhe um tiro. Isto é um fato. O que eu queria lhes mostrar é o que pode ser visto na tela.*

Para começar, isolei na tela um breve momento da campanha, apenas uma introdução,a fim de lhes mostrar um pouquinho o que é este tipo de material. O que me interessa nestetrecho é ver a que ponto Bob Kennedy conforma-se à imagem que ele quer ver filmada parauma transmissão na televisão: um Bob Kennedy familiar, apertando mãos, o amigo de todos.A seguir fiz uma montagem dos poucos segundos em que se vê a aparição de Bob e é filmadoo que é filmado no momento do assassinato.

Poderíamos passar horas falando destas imagens, mas queria fazer apenas trêscomentários. O primeiro é que poderia tê-las apresentado de uma forma completamentediferente. No final dos anos 60 e nos anos 70 foram rodados, nos Estados Unidos, um grandenúmero daquilo que se convencionou chamar de "filmes-catástrofe". Muitas vezes, tratava-sede filmes feitos com poucos recursos financeiros e até, eventualmente, de filmes em preto e

 branco. Tratava-se da história de pessoas que viviam bem felizes nos seus pequenos nichosquando, de repente, acontecia-lhes uma catástrofe horrorosa. Eram ameaçados de morte eevidentemente eram salvos na última hora. Poderia muito bem ter dito a vocês: vamos ver umtrecho de um filme-catástrofe feito em 1968 por amadores. Não é muito bom, mas é típico dogênero. É a história de um bando de colegiais que comemoram o final do ano e alugam paraisso um barco. De repente alguém diz: os palestinos estão aí, vão nos matar a todos se nãolhes dermos dez bilhões de dólares! Funcionaria. Vocês vão me dizer: não é muito bom.Certo, mas trata-se de amadores.

 * A conferencia foi ilustrada com a apresentação de fragmentos de filmes em vídeo.

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Parece que estou brincando, mas o que quero dizer é extremamente sério. O que querodizer é que, ao contrário do que se diz freqüentemente, a imagem não fala. Sem comentários,uma imagem não significa rigorosamente nada, e podemos imaginar qualquer coisa,dependendo da nossa fantasia, quando a vemos. Hoje em dia o número de bobagens que são

ditas é impressionante, e não devemos nos surpreender quando alguém disser que estamos passando de um mundo onde a informação vem da palavra para um mundo onde ela vem daimagem. Isto é uma burrice! A imagem pode impressionar, interessar, comover, apaixonar,mas a imagem nunca informa. O que informa é a palavra. Isto significa - o que é essencial,

 por exemplo, para um arquivo audiovisual - que uma imagem sem data, sem menção de localou de autor é uma imagem inutilizável. No Imperial War Museum de Londres, existem maisde quarenta mil clichês feitos durante a Primeira Guerra Mundial. Todos os estados-maioresdo mundo beligerante filmaram a Primeira Guerra, com resultados excelentes. Virecentemente filmes realizados pelo serviço cinematográfico da Áustria. Todo mundo sabeque o exército austríaco foi uma catástrofe. Os transportes não funcionavam, os canhões nãoatiravam, mas o serviço cinematográfico era prodigioso, e temos documentos excelentes. Osingleses eram bons, embora não melhores que os demais, e fizeram fotos surpreendentes. Masum terço dessas fotos, aproximadamente, é inutilizável, pois não sabemos nem onde nemquando foram feitas. Não podemos fazer nada com elas. Estão mortas. São conservadas

  porque, quem sabe, um dia, alguém venha a descobrir, em algum lugar, um catálogo que poderá ajudar a identificá-las. Mas até o presente momento, não servem para absolutamentenada. Bom, mas vocês vão me dizer que, no nosso caso, tudo está claro: trata-se de BobKennedy. Não vou fazer o teste, mas me pergunto quantas pessoas aqui reconheceram BobKennedy. As pessoas da minha idade, certamente, mas as pessoas que têm vinte anos oumenos  provavelmente não o reconheceram. E daqui a cinqüenta anos ninguém mais saberáquem é Bob Kennedy. Então, se esta imagem não for identificada agora, estará perdida para

sempre.Segunda observação (vocês pensavam, aliás, que ela viria em primeiro lugar): o queeste filme nos traz como conhecimento? Rigorosamente nada, é óbvio. O que aconteceu?Aconteceu algo que precisamos necessariamente compreender, se quisermos entrar nainteligência da imagem. A imagem não é feita por qualquer um. Ela é feita por um homemque ganha a vida fazendo imagens e que obedece a um certo número de regras. Aliás, diga-sede passagem que essas regras são muito antigas. Datam da primeira metade do século XIX.Os primeiros repórteres cinematográficos eram fotógrafos formados por volta de 1860-1870.Os primeiros cameramen de televisão eram cameramen de cinema, formados trinta anosantes. Unho certeza de que, no Brasil como em qualquer outro lugar, quando um cameramené enviado para acompanhar um acontecimento, existe uma expressão típica. Dizem a ele:

traga um clima. Isto significa: não se limite a filmar Bob Kennedy, pois dez minutos de BobKennedy representam muito tempo. Filme o pessoal em volta, dê-nos um pouco de contexto.O que foi que aconteceu? Para este homem e para todos os que assistiam, o fato era a eleição.

 Durante cinco minutos, o fato importante era que Bob tinha sido eleito. Em conseqüência, ocameramen  pensou: aconteceu, o fato já passou, agora vou "Filmar o clima". E fracassou,

  perdeu a ocasião de fazer o filme da sua vida. Em vez de seguir o recém-eleito, filmou simplesmente a multidão. Acontece que ele tinha um coleguinha mais esperto do que ele. Umfotógrafo seguiu Bob e fotografou o momento do assassinato. Ou, mais exatamente, filmouum cadáver.

Aqui, eu queria ser muito firme contra a metáfora que está em todos os lugares e que

 precisamos definitivamente destruir. Dizem que a câmera é um olho. Não! A câmera não é um

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olho. Há uma distância infinita entre o olho e a câmera. O olho não é senão o instrumentomediante o qual nossa inteligência percebe. A câmera é uma ferramenta. Neste momento, olho

 para todos vocês e o que me interessa é a reação geral. Se fosse uma câmera, filmaria rostos, poderia segui-los, mas, ao mesmo tempo, nenhuma impressão surgiria deles. O extraordinário,

no caso, é que o fotógrafo ouviu o tiro, viu Bob cair, olhou na direção de onde o tiro saiu eainda viu o assassino retirar o braço. Trata-se de uma testemunha ocular. Mas não pôdefotografar porque sua máquina respondeu demasiado lentamente. Ou seja, só lhe foi possívelfotografar o resultado: o corpo morto. Sempre haverá, portanto, uma distância enorme,incomensurável, entre o fato tal como pode ser filmado, desajeitadamente, incompletamente,e o fato tal como é visto por uma testemunha. Aliás, o que acontece com a testemunha é queela não se contenta em ver, ela fala. Quem assistiu ao assassinato de Bob Kennedy podecontar não somente o que viu, mas também o que outros, a sua volta, viram. Isto representa,no fundo, uma síntese imediata de um conjunto de testemunhas. Ora, a câmera é incapaz defazer isto. Então, vocês vão me dizer: o que estamos fazendo aqui nesta manhã? Tudo é inútil.

Mas existe, na verdade, um terceiro aspecto, que é o aspecto emocional. E devo dizer o que, para mim, constitui a qualidade emocional dessas imagens. E a histeria. Vocês podemcriticá-las, podem dizer que é estarrecedor ter reações desse tipo, podem experimentar a mais

 profunda rejeição, pouco importa. O fato é que são imagens dotadas de um valor emocionalextremamente forte. Nossa relação com a imagem analógica é, fundamentalmente, umarelação sentimental. E é isto que eu gostaria agora de tentar compreender com vocês. Gostariade tentar ver os possíveis sentidos desse tipo de reação emocional, como ela se organiza equais são os diferentes ensinamentos que tentaremos extrair disso.

Essa emoção tem uma valência tripla, uma direção tríplice. Há, em primeiro lugar, aemoção que experimentamos, ou não, ao ver uma imagem. A imagem é uma provocação,algumas vezes sem originalidade (95% das imagens televisivas são precisamente feitas de

forma que não reajamos a elas, para que tenhamos tempo de viver, ao mesmo tempo em que atela está ligada), mas existem imagens que, aleatoriamente, em condições variáveis, nosimpressionam. Há, a seguir, a emoção que manifesta, que não pode deixar de manifestar,aquele que faz a imagem. Ele está diante de um espetáculo que aborda com algumas idéias

 prévias, muitas delas de origem profissional devo abstrair-me do que está ocorrendo, estoudiante de um cadáver, mas preciso de uma foto. Mas isto também é uma reação emocional. Arecusa em se emocionar é, ainda, um aspecto da emoção. Temos, finalmente, a reaçãoemocional daquele que é objeto da imagem. Esta é uma questão da qual deveremos falar muito demoradamente hoje à tarde, durante o workshop. É uma das questões mais importantessobre aquilo que se costuma chamar (na minha opinião de uma forma completamente falsa)de história oral. A história oral é uma violência. Pedir a alguém que não está, de forma

alguma, acostumado a falar diante das câmeras, que se expresse é uma violência. Talvez sejanecessário fazê-lo, não sei. Mas, em todo caso, é preciso ter consciência de que aquele queestá sendo entrevistado é colocado num estado de inferioridade emocional. Estas são as trêsdimensões que gostaria agora de tentar analisar rapidamente diante de vocês a partir de umcerto número de exemplos.

Só vemos numa foto aquilo que desejamos ver. A foto, em si, não passa de uma  provocação, de um chamado. E, conforme a disposição em que nos encontramos, vamosexperimentar reações completamente diferentes. Poderia lhes dar uma infinidade de exemplosantes daquele que vou ilustrar daqui a pouco, mas vou falar de dois casos que me parecem

 bastante reveladores. Durante a Primeira Guerra Mundial, em abril de 1916, o estado maior 

 britânico lançou uma grande ofensiva no rio Somme. Era a ofensiva que deveria pôr fim à

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guerra. Foi preparada de forma notável: barragens de artilharia durante três dias, evoluçãodas unidades numa frente extremamente extensa, em ondas sucessivas Era evidente que osalemães não resistiriam. No entanto, foi um fracasso total, uma catástrofe militar: trezentosmil ingleses foram mortos, feridos, feitos prisioneiros ou colocados fora de combate. O

exército inglês levou dois anos para se refazer. Vou abrir aqui um parêntese que não tem nadaa ver, mas que acho interessante: o mesmo erro foi cometido no ano seguinte pelo exércitofrancês e, em 1918, pelo exército alemão, com exatamente os mesmos resultadoscatastróficos. Conto isso porque mostra muito bem, a meu ver, que, contrariamente ao que sediz muitas vezes, não existe experiência histórica. A história não serve absolutamente paranada, e sobretudo, não serve de lição. Voltando ao nosso caso, vocês imaginem o enorme

  barulho que a derrota provocou na Inglaterra. O país já tinha entrado em guerra comreticências, mas a seguir seu engajamento tinha se tornado profundo, e eis que recebia umrevés monumental. Acho que durante a Primeira Guerra Mundial, em nenhum país a emoçãosuscitada por uma derrota foi tão profunda. Mas o governo teve uma reação inteligente edisse: vamos fazer um filme para mostrar o que foi essa batalha. O filme foi um sucessoincrível. Há estimativas segundo as quais mais de três milhões de pessoas foram vê-lo. A

 população inglesa estava tão chocada e desejosa de participar do sacrifício dos soldados, queas pessoas se precipitaram para ter, de certa forma, o sentimento de ter estado lá.Evidentemente, o filme deixava de lado todos os erros estratégicos, mas foi feito de formainteligentemente emocional. Os primeiros planos mostravam soldados atacando, saindo dastrincheiras, vários deles eram mostrados caindo. Enfim, havia um lado humano extremamente

  profundo, e esse lado humano, que não teria emocionado ninguém um ano antes, teve umimpacto grande.

Queria falar-lhes também de um segundo caso: uma das fotografias provavelmentemais famosas da história é a foto tirada pelo fotógrafo húngaro Robert Capa durante a Guerra

Civil Espanhola. Vocês já viram esta fotografia mil vezes, é um miliciano que corre e tombana batalha de Teruel. Está caindo para trás, o fuzil de lado, vai cair, vai morrer. É precisosalientar que entre todas as guerras que ocorreram desde que a fotografia existe, a única,absolutamente, em que não houve nenhuma censura foi a Guerra Civil Espanhola.Curiosamente, os republicanos pensavam que, mostrando o que era a guerra, iam servir à sua

 própria causa. E os nacionalistas achavam que o cinema não tinha a menor importância. Nãoque fossem burros. Tinham compreendido perfeitamente a importância do rádio, utilizaram orádio de uma forma extremamente inteligente. Mas, para eles, o cinema não contavaverdadeiramente. E curioso - e digo isso de passagem -, mas por razões que têm umaexplicação histórica, o franquismo detestava a fotografia, detestava o cinema. Os franquistasdesejavam aniquilar o cinema espanhol. Graças a Deus ele resistiu! Pois bem, as fotografias

circulavam livremente, e Capa não teve qualquer dificuldade para enviar esta foto. Ela foi publicada imediatamente pela Life e logro tornou-se o símbolo da Guerra Civil Espanhola. Não sei por quê, mas teve um impacto emocional absolutamente extraordinário e ainda hoje,quando alguém quer mostrar a falta de sentido da guerra, interrogar-se sobre a guerra, o

 porquê da guerra, é uma das fotos que são mostradas com mais freqüência.Aliás, vou lhes fazer uma confidência: esta foto é falsa. Capa fotografou, por acaso,

um soldado que escorregou e caiu. Gostaria de voltar, rapidamente, a algumas reflexões deCharles Dollar ontem. Ele dizia que hoje é possível reinventar a história. Mas veja bem,Charles, há 150 anos que isto se faz! Desde o início a fotografia é falsa, e por uma razãosimples: é sempre muito mais fácil fazer uma fotografia falsa do que uma verdadeira. O

 primeiro exemplo de fotografia falsa que conheço data de 1861. Trata-se do cerco de Gaeta,

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 pelo exército italiano. Ou seja, 25 anos após a invenção da fotografia, mal esta foi posta emuso, já se fez uma fotografia falsa. Aliás, temos escritos sobre este cerco: foi muito duro masnão fez nenhuma vítima. Os Bourbons se renderam após 35 dias e não houve um único morto.Ora, temos fotografias que mostram soldados do lado Bourbon mortos ao lado de seus

canhões. A falsificação é por demais visível para não ser identificada, mas se fosse bem feita,estaríamos enfrentando uma investigação histórica difícil. Quem diz a verdade, a foto queconstitui uma evidência, ou o texto? Pois bem, a mesma coisa aconteceu com a foto de Capa.Esta foto, que era uma falsificação, que não correspondia a nada, pelo fato de a Guerra CivilEspanhola constituir uma das maiores preocupações do mundo ocidental, inclusive dosEstados Unidos, tornou-se um símbolo profundamente carregado de sentido.

Vou passar agora ao estudo mais preciso, mais concreto, de dois aspectos diferentes dareação sentimental que provocou esta fotografia. E quando falo de sentimentos, de emoção,não quero dizer sentimentalismo. Quero dizer investimento. Entendo desta forma que ser sensível a uma foto significa estar atento, mas não necessariamente tornar-se vítima daquiloque se vê. Não significa, necessariamente, aderir. Tenho certeza de que, se hoje fossemostrado a vocês o filme sobre a batalha do rio Somme, vocês veriam muito bem, porqueaprendemos a ver, que o célebre plano que mostra soldados saindo da trincheira foi feito naretaguarda, durante um período de descanso. Para nós, hoje em dia, fica claro o que em 1916não podia ser visto. Uma coisa me impressionou: tanto nos acontecimentos da Romêniaquanto durante a Guerra do Golfo, os telespectadores perceberam muito rapidamente quaisimagens eram falsas. Viram logo que as imagens da execução de Ceaucescu eram falsas,viram muito bem que as imagens sobre o petróleo derramado no Golfo eram falsas. Istosignifica que nossa sensibilidade é, também, uma sensibilidade inteligente. Somos capazes deanalisar, de criticar e, ao mesmo tempo, de receber a imagem. Esta imagem é feita para nós e,em 80% dos casos, trata-se de uma imagem feita por especialistas.

Vou mostrar-lhes, agora, dois documentos relativos à insurreição húngara de 1956.Escolhi-os porque têm duas origens diferentes. Um deles é um documento francês, e o outroum documento alemão. A primeira coisa que notarão, que é evidente, é que essas imagens sãoexatamente as mesmas. Por quê? Porque há muito tempo que todas as nossas imagens sãoimagens americanas. Em 1956, quando a população de Budapeste se levantou, os únicoscapazes de equipar um avião e de mandá-lo fazer filmes eram os americanos. Por conseguinte,o mundo só conheceu este evento através de filmes vendidos por  cameramen americanos.Como vocês irão ouvir, o comentário francês diz: "Nossos cameramen puderam penetrar nazona ocupada pelos rebeldes." Trata-se de uma mentira deslavada. Não foram os cameramenfranceses, e sim os americanos que puderam penetrar nessa zona.

Houve três fases na revolução húngara de 1956. Uma primeira fase, durante a qual

Budapeste se levantou, o exército se solidarizou com o movimento, o partido e a políciaficaram paralisados e o exército abriu as fronteiras. Uma segunda fase, durante a qual umgoverno, digamos, comunista moderado, reformador, foi constituído. E uma terceira fase,durante a qual os soviéticos esmagaram a insurreição. Os dois filmes que vou apresentar foram os primeiros a chegar ao Ocidente e foram feitos nos primeiros dias da insurreição,quando se podia ainda pensar que ela talvez pudesse triunfar. O que me interessa são asformas de reagir, extremamente diferentes, da redação do jornal francês e da redação alemã.

A redação francesa mostra-se infinitamente mais sentimental. Desde o início,valendo-se de imagens de arquivo, insiste na eternidade da Hungria. Quem está se sublevandoé a Hungria eterna, a Hungria histórica, a Hungria à qual, implicitamente, a França sempre

deu ajuda. As imagens são montadas de forma a pôr em evidência o mais possível a pessoa, a

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individualidade dos sublevados ou, mais simplesmente, das pessoas que foram filmadas. Aimagem afoga-se num comentário totalmente verboso, meloso, que a liquidifica e, numa certamedida, a torna insossa. A reação alemã é infinitamente mais política. Toma como ponto de

  partida, brevemente, os eventos poloneses contemporâneos (o líder reformador moderado

Gomulka fora autorizado a voltar à Polônia) e, portanto, dá uma imagem outra, não umaimagem referente à Hungria eterna, e sim ao conjunto do mundo comunista. A seguir, ocomentário percorre uma espécie de trajeto através da Hungria para chegar à fronteira e àidéia de que, agora, a Hungria também se abria para o Ocidente. A montagem tem assim por objetivo muito menos produzir um choque ou mostrar indivíduos do que revelar um trajeto,um percurso. E ao mesmo tempo, é feita de tal forma que as imagens importantes sãoenfatizadas alternativamente através da palavra ou da música. Enquanto no comentáriofrancês há uma mistura confusa de música com palavras, na trilha sonora alemã há umaalternância, extremamente sutil, de momentos em que é a música que assinala a imagem e demomentos em que a palavra, muito rapidamente, identifica a imagem ou ajuda na passagemde uma imagem para outra.

  Não pretendo, naturalmente, que isto nos revele alguma coisa sobre a reação dosalemães ou dos franceses aos acontecimentos. O que isto nos revela é algo sobre a reação dosredatores do noticiário francês e do noticiário alemão. Nada mais. Mas o que me pareceinteressante observar é que a reação emocional e intelectual de duas redações diferentes,colocadas em duas situações históricas diferentes, é também completamente diferente. Ofilme francês termina com o sacrifício - as pessoas morreram, mas certamente não morreramem vão. A montagem alemã é infinitamente mais rápida e termina com duas notascompletamente diferentes - de um lado, a ajuda internacional, simbolizada pela chegada doscaminhões da Cruz Vermelha, e, de outro, a abertura. Isto significa que se trata de um filmeinfinitamente mais aberto, menos fechado em uma meditação nacional, como o filme francês.

 Não tenho a intenção de criticar um e elogiar o outro, mas simplesmente de mostrar que o quese traduz não é uma informação, já que não há nenhuma informação a extrair em particular destes dois filmes. O que se traduz nos dois filmes é um certo modo de reagir, e de reagir muito rápida e diretamente a tudo o que a imagem sugere.

Meu segundo ponto se refere à presença e à reação emocional daquele que faz asimagens, já que fazer uma imagem é sempre entrar em relação com alguém ou algo, é, nofundo, em uma certa medida, apoderar-se da presença daquele ou daqueles com os quais seestá lidando. Necessariamente, sempre se estabelece uma certa relação, nem que seja dehostilidade, entre o fotógrafo e o fotografado. Vinte por cento de todas as fotografias feitas nomundo são fotografias privadas, e é evidente que todas elas comportam um enormeinvestimento sentimental. Mais ainda, se todos nós somos um pouco fotógrafos ou

videomakers, é evidente que temos períodos de fotografia. Quando se trabalha com osarquivos fotográficos de uma família ou de uma pessoa, percebe-se que há momentos nafotografia. Há momentos em que a emoção familiar ou individual passa pela imagem. Hámomentos, ao contrário, em que a imagem fica completamente de lado. Quando façoentrevistas, ao prepará-las, pergunto sempre àqueles que vou entrevistar se aceitam trazer-mefotos e falar sobre elas. Muitas vezes, ganha-se muito mais no comentário feito a propósito deuma foto, nas observações feitas sobre a forma como as pessoas estão colocadas no quadro,nas relações que se estabelecem simplesmente através das diferentes posições das pessoas.Todo um emaranhado de relações se esboça diante dos nossos olhos. Vê-se, também toda umafilosofia de vida, muitas vezes até uma filosofia política ser esboçada através dos comentários

sobre a fotografia de um grupo. Fazer uma foto é, em certa medida, engajar-se. Fazer uma

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foto pode até constituir um ato. Por isso, escolhi de propósito apresentar-lhes agora um filmefeito por um grupo de imigrantes portugueses em 1967.

Vocês sabem que a França sustentou uma longa guerra na Argélia, de 1954 a 1962.Todos os jovens de 18 a 21 anos foram mobilizados, o que gerou um problema muito grave.

Faltou mão de obra em plena expansão econômica. A França, então, fez contratos comPortugal para mandar vir trabalhadores que de maneira geral foram bastante bem recebidos. Aguerra acabou em 62, os soldados voltaram, mas os portugueses tinham criado laços e aimigração prosseguiu, agora sem contratos. Foi assim que dezenas de famílias chegaram e seamontoaram naquilo que chamamos de bidonvilles. Eu lhes confesso, aliás, que ao chegar aqui, acreditava que um bidonville fosse a mesma coisa que uma favela. Mas percebi que écompletamente diferente, nem sequer tem muito a ver. O bidonville cujas imagens voumostrar agora situava-se bem pertinho da Universidade de Nanterre. Na época eu eraassistente de René Rémond. Unho certeza de que deve ter acontecido com ele a mesma coisaque aconteceu comigo. Freqüentemente, quando ia dar aula às oito da manhã, em vez detomar o caminho direto, passava pelo bidonville. Era um espetáculo absolutamente sinistro,no inverno, ver aquelas pessoas viverem na lama, sob tetos feitos muitas vezes de tela ou delata, indo buscar água na única fonte disponível. Houve, entre os jovens portugueses quechegavam aos 12 ou 13 anos vivendo nestas condições, um movimento de revoltaextremamente violento, extremamente forte e, por outro lado, útil esses bidonvillesdesapareceram rapidamente depois disso. Trata-se de um efeito oculto de 1968, mas nem por isso menos importante. Após 1968, lutou-se contra esses bidonvilles, e eles foram substituídos

  por conjuntos habitacionais que sem dúvida não eram maravilhosos, mas que ao menosdispunham de água corrente e de tetos. Mas em 1967, para protestar, esses jovens só tiveramuma idéia: "Vamos filmar isto. Não é possível que exista, é tão horroroso, precisamos deixar um testemunho." Por isso, não vejam nas imagens que vou lhes mostrar um mero documento -

no fundo, podemos imaginar esta situação, o filme não ensina nada de novo -, e sim um gritode protesto: "Vejam como somos condenados a viver!"Queria fazer dois comentários sobre essas imagens duríssimas. O primeiro não vai

surpreendê-los: os jovens alugaram uma câmera Super-8 mas não sabiam utilizá-la. Fizeramuma tomada aqui, uma tomada acolá, não existe nenhum plano, não há nenhuma lógica. Seriaaté impossível fazer uma nova montagem deste filme para fazer dele um documentário. Os

  jovens fizeram, no fundo, o que tinham visto no cinema. Por exemplo, viram quefreqüentemente, nos documentários americanos, quando se queria mostrar a pobreza, semostrava crianças nuas. Elas existiam, não era difícil encontrá-las, e fizeram uma série de

 zooms com crianças nuas. Reproduziram, de certa forma, o que já tinham visto em outrolugar. Mas, ao mesmo tempo, percebe-se uma prodigiosa relação de familiaridade, de

  proximidade, de amizade com as pessoas filmadas. O que eles estão filmando são elesmesmos, seus pais. Apesar da extrema falta de habilidade, a maneira como as pessoas reagemà fotografia, aceitam participar dela, a maneira como são filmadas passa um sentimento muitoforte de comunidade. Conversei com um dos jovens que fizeram este filme, e ele me dissevinte anos depois -já não era mais tão jovem: "Guardo o filme, mas, ao mesmo tempo, não se

  pode fazer nada dele. Quem pode se interessar por um documento deste tipo?" E é bemverdade que, se o olharmos de uma forma factual, de uma forma crítica, pensaremos: nofundo, todos nós sabemos o que é um barraco. Só podemos tentar utilizar um filme deste tipose aceitarmos a força do grito que representa.

Um último ponto, ainda. Seria preciso falar dele longamente, mas já falei demais e por 

isso serei breve. O terceiro ponto se refere à emoção da própria pessoa que é filmada. Daquele

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que sabe que está emprestando sua imagem e se pergunta como irá aparecer na tela, mas quetambém, ao fim de um certo tempo, relaxa e vai muito além daquilo que poderia

 provavelmente dizer se fosse tentar produzir um testemunho escrito. Meu último exemplo é,talvez, um exemplo um pouco extremo. Ainda durante a Guerra da Argélia, a população

francesa na Argélia era muito numerosa. Havia em torno de um milhão de pessoas que nãoqueriam abandonar o país que consideravam como seu. Por isso, no momento em que ficouvisível que a França estava decidida a negociar com os argelinos, houve o esboço de ummovimento, mal organizado, entre alguns franceses da Argélia e uma parte do estado-maior.Este movimento levou, em abril de 1961, ao que foi pomposamente denominado de  Putsch,uma tentativa bastante lamentável, que foi liquidada em alguns dias, mas que representou, nofundo, o momento do corte definitivo. A partir daí tornou-se evidente que a paz seria assinadamais dia menos dia e que a   Argélia Francesa tinha chegado ao fim. Um mês depois, atelevisão francesa foi fazer um levantamento sobre as conseqüências do  Putsch. Entrevistouum habitante anônimo de Argel que aparece, como vocês verão, a contraluz.Propositadamente, seu traços não são identificáveis. O objetivo do repórter poderia, no fundo,ser verbalizado mais ou menos assim: "Conte para a gente os acontecimentos. O que pensadeles?" É muito provável, aliás, que se ele tivesse contado o que pensava, não tivesse o menor interesse. Mas, como vocês verão, não foi absolutamente o que aconteceu. **

Trata-se de um exemplo extremo, mas numa conferência é preciso pegar casos um  pouco mais expressivos. É evidente que através do estudo das reações de um grupo àfotografia, à imagem, ao vídeo, poderíamos descrever também certos aspectos da nossasensibilidade e da sensibilidade contemporânea. Mas está na hora de terminar e, para concluir,gostaria de voltar ao título que escolhi para esta palestra. O primeiro ponto é que a imagemnão é digna de crédito, ela é mentirosa e, devemos admiti-lo, "enganosa". Todavia, a imagemé fonte da história, e quando falo em fonte, quero dar a esta palavra seu sentido mais

 profundo, não de fonte para o historiador, e sim de fonte da própria história. Hoje em dia, ahistória que vivemos é condicionada pela imagem. Isto é tão evidente que só pensamos quehouve um acordo entre Israel e a OLP porque o vimos na televisão ou no jornal. A fotografiaé aprova, e gostaria de dizer a Hayden White, que nos perguntava outro dia "o que é umfato?" - um fato é o que vemos na TV e mais nada. Quanto à primeira palavra do meu título, aimagem "indispensável", não é mais possível, hoje em dia, fazer, escrever, tentar pôr em cenaa história sem passar pela imagem. E já que todos nós somos, aqui, historiadores ouaprendizes de historiador, admitamos de uma vez por todas este fato e tentemos, juntos,realizar um trabalho sobre a imagem.

 Nota: Este texto é a transcrição da conferência de Pierre Sorlin, traduzida por Anne-MarieMilon Oliveira.

 ** O entrevistado começa a falar, não se controla e chora, interrompendo a entrevista.