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PICO, KECO E O MONSTRO DO SERTÃO

-Keco, como agora estamos de férias no Nordeste junto com Milady, que tal aproveitar parafazer uma excursão numa aldeia próxima que fica a menos de quinze minutos de vôo?-Com qual finalidade, Pico?-Meu filho, lá eles tem um grande mercado ao ar livre e nós iremos aproveitar para surripiaras melhores frutas nordestinas, selecionadas, suculentas e maduras, bem alinhadas em cimadas bancas. Crá!-Mas Pico, roubar não seria pecado?-Ah, Keco, não seja tolo… Nesse País abençoado por Deus o verdadeiro pecado é não roubar.Inclusive, se Deus tivesse desejado que os corvos cultivassem a terra teria dado a eles braçosfortes e possantes, e não asas delicadas… Haja lavouras pra aqueles mamulengos lá em baixoe frutos pra nós!-Hum, tem certeza que a gente está fazendo a coisa certa?-Evidente, Watson! Afinal as frutas foram feitas para os corvos e não vice-versa! Sem falar nofato que a classe operária tem todo o direito de se apropriar das riquezas acumuladas peloscapitalistas. Crá!-Hei, desde quando os corvos são operários?-Nós somos os operários da natureza e, ainda por cima, somos proletários, portanto...-Va bene, va bene, você venceu. Vamos logo fazer de nossas barrigas depósitos de provisões.Eu diria de começar com aquela banca que vende caju. Que tal?-Calma, compadre, quem tem pressa come cru... Precisamos agir com prudência para nãodespertar a atenção desses piões. É necessário primeiro efetuar um reconhecimento na área...

Os dois amigos iniciam a sobrevoar lentamente o centro da cidadezinha.

-Irmão- preocupa-se Keco –estou tendo a desagradável impressão de estar sendo observado...-Claro, né, alguém deve ter nos visto, mas é normal ver aves no céu. Não tenha medo,ninguém vai atirar na gente: somos uma espécie protegida... hehehehe.

No entanto Keco observa uma grande ave escura vindo em direção deles.

-Hei Pico, aquele OVNI (Objeto Voador Nordestino Irascível) com cara de cão chupandomanga, por acaso é conhecido seu?-Pelas renas penudas de Papai Noel, aquele é um carcará. Vamos sair correndo daqui antesque ele nos transforme em confetes e serpentinas ensangüentadas.-Espera e raciocine Pico, voar em linha reta não vai nos ajudar, por uma vez na sua vida useos miolos.-Keco, você nem imagina quanto o medo incrementa a velocidade… Por exemplo, o poodlede Milady, quando eu dou uma ordem em voz firme, ele…-Cala aquela matraca, Pico e faça rapidinho o que digo. O carcará é mais ligeiro que nós,entretanto, sendo muito maior, não consegue fechar as curvas tanto quanto a gente, por issovoaremos em torno à matriz até ele se cansar.

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-Tá certo, tá certo… Mas vamos nos afastar daquela fera ao serviço dos latifundiáriosimperialistas.

Os dois amigos iniciam a dar voltas rasantes em torno à igreja matriz, sempre perseguidospelo carcará.

-Pico, bota brasas em suas penas, agora Jack o Estripador está a menos de dois metros dedistância.-Relaxa, Keco, mesmo que ele nos alcance, lembre-se que temos uma volta de vantagemsobre ele.-Deus, dê-me força!!! Você acha que estamos na Fórmula 1, sua Ave-sem-cabeça?

Finalmente, após quase uma hora de perseguição, o carcará desiste.

-Pico, vamos logo embora antes que o Frankenstein do ar resolva reiniciar a caça. E esqueça-se das frutas tropicais, já ganhamos o dia salvando as nossas vidas.-Tá certo, tá certo, mas reconheça quanto o nosso Nordeste é tão lindo e cheio de poesia.Repare com quanta graça e romantismo aquela aldeota está levando os produtos da sua hortaao mercado… Dá até vontade de escrever um belo poema. A propósito, a palavra aldeota separece com quê?-Se parece com você!-Aff…

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PICO, KECO E A GAROTA DE IPANEMA

-Laaa…. Lalarilalalalalalaaaaaa-Hei, Pico, você tá mais alegre que pinto em beira de cerca. Ganhou na loteria ou viu opeixinho verde?-Ah, Keco, hoje estou no céu, pois Milady prometeu que, de noite, vai me levar pro cinema eeu, que modestamente nasci nas redondezas de Hollywood, estou radiante.-Meu ilustre primo hollywoodiano, sinto muito, mas tenho que lhe dar uma notíciadecepcionante…-Qual? Que você não irá ao cinema conosco: é essa a notícia ruim? Bem, pra mim essa podeser até uma ótima notícia… Ahahahahah-Neca! Milady acabou de regressar da praia de Ipanema e foi logo se deitar com uma horríveldor de cabeça, duvido que tenha condições de sair essa noite.-Que conversa, Keco, essa ressaca passa logo, afinal faltam quase dez horas antes que oespetáculo inicie.-Oxente, colega, quem falou em ressaca? A nossa amiga foi apenas tomar banho de sol evoltou indisposta, mas não bebeu nada…-Capaz! Ela tomou banho de sol e ficou melada. Mas isso é natural, com todos aqueles raiosUVA…-Me poupe, aldeota, UVA significa raio ultravioleta, nada a ver com a doce fruta de Baco!-Bom, ultra violeta ou ultra margarida, pra mim tanto faz, desde que ela esteja boa essa noite.-Então tente se tornar de alguma utilidade, né?!-Tá certo, tá certo… Mas meu tio, que é o corvo de um pajé de muita sabença, me passou afórmula de uma poção mágica que levanta até defunto. Eis a composição: suco de baratas,cocô de jacaré, unhas de deputado, pelos de tarântula, cuspe de freira, e…-Chega, ave desnaturada, se Milady tomar uma só gota dessa porcaria, morre na hora.-Tá certo, mas, no caso, morreria melhorada. Palavra de pajé. Crá!-Homem, em vez de grasnar em vão, pega essa grana e vá logo à farmácia comprar aspirina evitamina C. Mas não perca tempo esvoaçando sem meta, ao contrário, voe apenas em linhareta, bem como na expressão idiomática britânica: “as the crow flies” -como o corvo voa-.Entendeu?-Linduuu. Adorei essa locução. Só um povo inteligente e extremamente evoluído podiaimortalar os corvos numa expressão tão nobre e pitoresca. Viva a rainha Elizabeth, viva JamesBond, viva Mr. Bean… “Rule Britannia, Britannia rule the waves. Britons never never nevershall be slaves”.-Cumpanhêro, você pirou?

Pico sai de casa cantando a todo volume o refrão do famoso hino patriótico britânico, e sóvolta duas horas mais tarde trazendo os remédios solicitados por Keco.

-Pico, o dinheiro que lhe dei foi suficiente?-E era pra pagar? Eu achei que fosse uma gratificação pra mim; gastei tudo com pipoca… Eradeliciosa e não resisti à tentação.-E os medicamentos?-Comprei no fiado, oras!-Desde quando você tem nome limpo na praça?

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-Tenho não, por isso dei o seu nome, Keco.-Credo, Pico, você é um verdadeiro gentleman, hein?! Bem, enquanto você estufava a barrigacom pipoca, conversei com Milady a respeito da sua insistência para ir ao cinema eadivinhe… enquanto ela e eu iremos mimir, ela garantiu que você poderá ir sozinho.-Obaaa! E em qual cinema irei?-No Cinema Solimões…-Fica longe daqui? Qual o logradouro?-Não se preocupe, fica bem pertinho… anote: Cinema Solimões, rua dos travesseiros, númerocolchões!-Aff…

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PICO, KECO E O CARRO DA CASA BRANCA

Enquanto Milady está dirigindo, Pico, empoleirado no banco de trás, não para um segundosequer de se queixar com Keco:

-Compadre, você me explica por qual motivo tivemos que levantar de madrugada paraenfrentar uma jornada tão inútil e enfadonha?-Meu irmão, antes de tudo acordamos que já eram nove horas da manhã, em segundo lugarMilady está nos levando para o interior de Minas para admirar as belas obras-primas doAleijadinho; ela acha que um banho de cultura vai lhe fazer muito bem…-Conversa! E precisava travessar metade do Brasil para ver esse tal do Estropiadinho?-Se chama Aleijadinho...-Tá certo, tá certo, mas será que não temos deficientes de sobra na nossa cidade?-Pico, trata-se de um dos maiores artistas do Século XVII.-Pode ser, mas, como dizia -antes de ir comer o alface pelas raízes- aquela boa alma do meupai, o verdadeiro artista é quem consegue enriquecer à custa de quem trabalha; os outros quese explodam, como esse tal do Mutiladinho!-Já falei que o nome dele é Aleijadinho, entendeu?-Ufaaa, tá bom, mas veja bem…

Enquanto Keco e Pico continuam discutindo acirradamente, Milady enxerga, em distância,um jovem parado ao lado da pista, pedindo carona:

-Pico, tá vendo aquele rapaz lá na frente? Pode ser alguém que necessita de ajuda, mastambém pode se tratar de uma tocaia. Por favor, voe até lá e tente descobrir do que se trata,OK?

Pico sai pela janela e rapidamente alcança o rapaz que parece ser um hippy; fala alguma coisacom ele e logo retorna pro carro.

-E então? –pergunta Milady.-Acredito tratar-se de um assaltante disfarçado, melhor acelerar e ir embora!

O carro passa em alta velocidade diante do hippy e, imediatamente, Keco observa:

-Eu não acho que o rapaz seja um assaltante, ninguém pratica assaltos armado de violão. Sejasincero, Pico, o que vocês conversaram?-Bem, pra falar a verdade, objetivamente o rapaz é um hippy americano, mas todos sabem queos Americanos são uma raça de imperialistas, não é?-Ainda bem que outro carro já deu carona –comenta Milady enquanto olha no retrovisor.-Mas afinal, o que você tem contra os Americanos? Não disse que nasceu pertinho deHollywood?! Ou era mentira?-Hei, Keco, nasci sim, juro! Mas poucas semanas depois fui deportado junto com meusirmãos por… imigração clandestina. Já pensou que artista os Americanos perderam? Ô, povosem noção…

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-Aquele pobre moço nada tem a ver com essa sua história, ele não tem culpa alguma de serAmericano –acrescenta Milady um pouco irritada.-Bem, o que foi feito foi feito. Assim, pelo menos, não teremos que agüentar o mau cheirodaquele yankee sem futuro, descalço e fedorento. Eheheheh.-Mas exatamente, o que você respondeu quando ele pediu carona? –pergunta Milady comcuriosidade.-Ah, aconselhei o rapaz ter fé e esperar, pois daí a pouco ia passar o carro da Casa Branca.Vocês precisavam ter visto quanto os olhos do cara ficaram acanhados… KKKKKKK!

Enquanto Pico solta a sua gargalhada debochada, Milady olha pro Keco piscando o olho.Poucos instantes depois e motor do carro começa a falhar.

-Eta, dever ser um problema com a bomba –exclama a Milady.-Bombaaa? Meu Jesus, quero sair logo daqui antes que exploda, ainda sou novo, sou umapromessa do cinema, inclusive nem tenho plano de saúde… me deixem sair, socorrooo!-Oh, ave medrosa… –atalha Keco- A nossa amiga estava se referindo à bomba de gasolina.Fica frio, agora vamos resolver o problema.

O carro para; Milady tenta ligar o motor novamente e fala:

-Pico, como você está inda se mijando de medo, antes de sujar o estofado, por gentileza saia eveja se enquanto ligo o motor de arranque sai fumaça escura do escapamento, tá?

Não apenas Pico sai do automóvel, o motor pega e, imediatamente, Milady fecha os vidros.

-Hei, hei, estou aqui, abram logo essa maldita janela –implora Pico.

Milady abre uma brechinha no vidro e diz:

-Pico, não se preocupe. Sendo você uma ilustre promessa hollywoodiana, tenha fé e espere sóum pouquinho, decerto a limusine da 20th Century-Fox ou a da Paramount vai te apanhar jájá. Au revoir!-Poxa vida! Keco, me ajude, são mais de 80 quilômetros!-Muito mais longe é o céu, mas nós bebemos água de lá... A gente se encontra mais tarde, tá?E avia-te, bicho ronceiro, temos muitos museus a visitar ainda hoje. Bye-bye!-Aff…

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PICO, KECO E AS PÍLULAS CHINESAS

-Pico, o que é essa sua cara de quem comeu e não gostou?-Keco, entenda… enquanto vocês dois desfrutavam do ar condicionado e da músicaestereofônica do carro de Milady, eu tive que me arrastar por quase 80 quilômetros debaixode um sol escaldante. E ainda acha que deveria dar pulinhos de alegria? Crá!-Deveria sim, pois chegou pontual e recebeu o seu banho de cultura; deveria estar orgulhosode ter ampliado o seu horizonte intelectual, não é?-Besteira! Nunca mais na vida quero saber daquele tal de Atrofiadinho, nunca mais!-Repito, o nome correto é Aleijadinho, mas deixa pra lá e para de reclamar feito jegue nachuva… Olha, aqui temos umas faturas e o dinheiro. Milady pediu pra gente ir numa casalotérica para pagá-las e, com o troco, dar um pulo no mercado e comprar uma camiseta deseda pra ela.-Tá certo, tá certo, mais um espeto pra nos tirar o sossego, né, compadre?-Oh, seu Pico mal-agradecido, foi seu pai que lhe ensinou a grasnar à toa, reclamando da vidaa toda hora?-Não, mas foi ele que me ensinou a desconfiar das maluquices das mulheres. Também, ele merevelou que entre as mulheres e o ferro de engomar não há diferença alguma!-Como assim?!-Ambos esquentam por baixo, oras! KKKKKKKK-Respeito, Pico, respeito! E agora vamos cumprir a nossa missão.

Pouco depois os dois amigos chegam à casa lotérica e, enquanto Keco paga no caixa, aatenção de Pico é atraída por um aviso:

MEGA-SENA ACUMULADA R$ 23.750.000,00

-Minha nossa, mas isso é uma fortuna. Kecooo!-O que foi Pico? Apareceu o fantasma do Bin Laden?-Quanto sobrou do dinheiro que Milady nos deu?-Exatamente 150 contos, por qual motivo?-E ainda pergunta? Vamos logo apostar tudo o que temos: a gente vai ficar podre de ricos.Crá!-Tudo bem, Pico, eu posso até lhe emprestar esse dinheiro que não nos pertence, mas você jásabe quais números serão sorteados?-Bem, para ser sincero, a resposta é não…-Então esqueça, e vamos logo em busca da tal da camiseta.

Logo em seguida os dois corvos estão sobrevoando o imenso mercado da cidade.

-Keco, como ela nos pediu pra comprar uma camiseta de seda, que tal ir onde os Chinesesmontam suas bancas? Afinal a seda vem da China e esses caras praticam preços bemcamaradas.-Parabéns pela dica, Pico, a sua inteligência começa a mostrar sinais de avanço.

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Enquanto Keco vai logo na direção das bancas que vendem roupas femininas, o olhar de Picocai em cima de um Chinês que está arrumando uma mesinha quadrada coberta por uma toalhade seda vermelha. O comerciante alinha em cima dela filas de esferas brancas do tamanho deuma ervilha, todas perfeitamente ordenadas.Em seguida expõe uma faixa onde está escrito:

PÍLULAS PARA ADIVINHAR – R$ 20,00 cada – 3 pílulas por R$ 50,00

-Corra, Keco, corra! –exclama o Pico.-O que é toda essa pândega?-Não tá lendo o aviso? Se a gente comprar essas pílulas podemos adivinhar os números damega-sena e ficar os corvos mais ricos do planeta. Me dê logo a grana de Milady!-Calma, amigo, eu não boto fé nesse sujeito. Também quando morei em Nápoles havia umChinês que vendia peixinhos vermelhos “importados” diretamente da China, mas todossabiam que ele mesmo os pescava de noite no chafariz municipal…-Ah, Keco, para de ser rabugento. Eu confio no homem e, para maior segurança, pretendoengolir três pílulas de uma só vez.-Seja feita a sua vontade, mas lembre-se que a grana não é sua…

Pico achega o comerciante e pergunta:

-Camarada, essas suas pílulas funcionam de verdade?-Absolutamente sim, Senhor, garanto que vai adivinhar…-Então quero logo três.

Pico engole de uma vez os comprimidos mágicos. A casca é de açúcar, o sabor é gostoso mas,poucos instantes depois, ele percebe algo de muito esquisito. Seus olhos esbugalham e o arcomeça a faltar. Pico cospe tudo gritando:

-Putz, que nojo, que horror! Minha Nossa Senhora das aves penadas, decerto isso aqui sópode ser... aliás é… BOSTAAAAAA!-Exatooo! –responde o Chinês com um largo sorriso no rosto. -O Senhor adivinhouuu!-Ah, seu pilantra maoista! Ah, seu filho duma jumenta amarela! Me devolva o meu dinheiroou juro que eu…-Jura o quê? –pergunta o homem enquanto arregaça suas mangas mostrando músculos de aço.-Pico, melhor ficar no primeiro prejuízo e sair daqui bem rapidinho– sussurra Keco.-Droga, eu não sou um corvo covarde. Crá!-Ninguém duvida, mas lembre-se que: “Quem corre do pior, não foge; se arretira”.-Quem falou isso, foi o presidente Obama?-Não foi Lampião...-Tá certo, tá certo, mas pelo menos me empreste uns trocados que preciso desinfetar a goelacom um trago de cachaça…

Enquanto o amigo volta pra casa, Pico dirige-se para um botequim próximo. Enfim elemesmo chega e se depara com Milady que o está esperando. A cara da mulher está maisescura que um furacão oceânico.

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-Muito bem, Pico! Gastou do meu dinheiro sem sequer pedir permissão. Agora, como castigo,terá que decorar todinho esse livro que trata da obra do Aleijadinho. E sem reclamar!-Mas Milady, tenha pena de mim…-E pra você aprender a se comportar com educação, vai ficar uma semana inteira sem comerpipoca. Falou?-Aff…

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PICO E KECO FISCAIS DO GOVERNO

-Bom dia, Pico, como procede o estudo do livro que lhe passei duas semanas atrás? –perguntaMilady.-De vento em popa, decorando um capítulo atrás do outro, tanto que agora já conheço pormiúdo: vida, lenda e milagres desse famoso pintor apelidado de Definhadinho. Crá!-Pra começar o nome certo é Aleijadinho e ele é tudo menos que pintor.-Tá certo, tá certo, mas esses são pormenores, o que realmente importa é a substância,entende? Afinal trata-se do maior artista da cidade de Ouro Escuro e…-Ouro Escuro? Acho que você queria dizer Ouro Preto, né, Pico?!-Ah, tanto faz, o conceito é o mesmo, afinal a cidade não muda, e muitas obras do Coitadinhopodem ser encontradas no Museu da Incontinência, o mesmo que a gente visitou, né isso?-Pico, visitamos um museu de arte, e não um museu sobre a história da terceira idade! Maspelo menos, você se lembra quando esse escultor faleceu?-Faleceu? Como assim? Minha Nossa Senhora das causas perdidas, juro que eu nada sabiadesse fato terrível? Que coisa triste, né? E quando aconteceu? Foi enfarte, assalto ou foivítima de atropelamento? Estou realmente pasmo, sem palavras…-Pico, a verdadeira causa perdida é eu gastar esforços na tentativa de elevar o seu ínfimo nívelcultural. Realmente você não veio ao mundo para ser rato de biblioteca, hein? Todavia, porsorte, ontem recebi uma ligação de um meu conhecido que trabalha no Governo do Estado equer lhe encontrar, junto com Keco, hoje mesmo por volta das três horas da tarde. Vá lá e vejado que se trata… só espero que não lhe ofereçam uma vaga de guia da cidade… Você seriacapaz de dizer que o sambódromo foi erguido pelos Antigos Egípcios.

Assim, bem no início da tarde, os dois corvos vão ao escritório do funcionário amigo deMilady. Ele os recebe educadamente e começa e explicar:

-Senhores, como vocês provavelmente já sabem, na nossa região há uma grande concentraçãode empresas de avicultura e cada ano elas comercializam milhões de galinhas. O problema éque, cruzando os dados, descobrimos que os criadores não pagam os devidos impostos sobre aração que serve para alimentar suas aves. Agora, como vocês não vão levantar suspeitas,acredito que seriam excelentes informadores. Se aceitarem cooperar, irão receber o status defiscais do Governo…

-Aceito, aceito! –exclama logo Pico.-A proposta parece bem interessante –sugere Keco.-Ótimo, sabia que podia contar com a sua cooperação. Portanto recebam esses crachás, masnão os mostrem antes de ter recolhido provas suficientes. Essa é uma lista de suspeitos e vaijunto com este pequeno gravador. Sejam prudentes e boa sorte!

-Keco, esconda todo esse material debaixo da sua asa, na pequena sacola que o chefe nos deu.Eu mesmo irei dirigir as investigações e garanto que serei bem mais determinado que Chuck!-Hein?-Estou falando de Chuck Norris, o implacável da série “Walker Texas Ranger”. Quem semeter comigo vai levar uma boa safra de murros e de balas; afinal EU SOU A LEI!

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-Concordo! E lembre-se da famosa frase: “Quem não está comigo, está contra mim!”. Sabequem falou isso, né?-Hummm… foi Hitler?-Não, foi Jesus Cristo… Mas agora vamos abrir a caça a esses gatunos. Que tal começar como que fica mais próximo?-Excelente! Ângulo de descida ao máximo! Dois Top Guns mergulhandooo!

Os dois amigos avistam um tranqüilo senhor sentado em frente a um grande aviário eaterrissam bem pertinho dele.Enquanto Keco finge admirar o panorama, Pico se aproxima e começa a puxar conversafalando do clima, da região e, enfim, do empreendimento do homem.

-O Senhor deve estar orgulhoso dessa sua empresa, né?-E como se estou. Demorei anos pra me erguer, mas agora, graças a Deus, crio mais dequarenta mil galinhas e tenho um bom lucro.-Mas me diga, deve gastar uma fortuna para a alimentação de tantas aves, não é?-Ah, gastaria sim, mas durante os anos aprendi a me tornar espertalhão e quase toda a raçãovem do Paraguai, de contrabando, assim não pago quase nada de impostos… Hehehehe.-Muito bem, muito bem… Então, sendo réu confesso -e o meu colega gravou a conversa- oSenhor está autuado. A multa é de quinze mil reais. Passe bem!

Enquanto o empresário entra no escritório, despeitado, os dois corvos decolam em busca deoutro infrator.

-Compadre, tenho a sensação que o multado já está ligando para avisar todos os colegas delesque moram nas redondezas. A meu ver deveríamos nos afastar dessa área e bater outra.-Keco, você lembra-se de Tom Cruise no filme “Operação Valquíria”? Pois é, a operação, queia ser um sucesso total, fracassou devido seus camaradas titubearem demais. Portanto vamosseguir caminho com determinação e, acima de tudo, sem demora. Crá!-Va bene, mas eu agiria de outra forma…

Mais uma vez Pico repete, com uma proprietária, o mesmo lengalenga mas, quando perguntaa respeito da alimentação, recebe uma resposta surpreendente:

-Quer mesmo saber o que dou de comer pras galinhas? É simples. Como tenho um irmãocriador de gado, recebo dele esterco de vaca com o qual alimento as minhas aves, semprecisar comprar ração de contrabando –responde a mulher em tom de sarcasmo.-Ahhhhhh! Pior ainda, pior ainda! Isso é um desrespeito à Lei da Saúde Pública e representaum grave risco para a segurança de toda a população. A sua multa vai ser de vinte mil reais.Passe bem, senhora, e aprenda a tratar melhor as suas galinhas!

-Parabéns pela determinação, Pico, mas agora seria realmente oportuno mudar de área, pois aatitude dessa última pessoa demonstra que, nesse bairro, todos já sabem da nossa presença enão irão mais se entregar com respostas tão tolas.-Tenha fé, penudo descrente, e lhe garanto que o próximo cafajeste vai levar uma multa depelo menos trinta mil. Quer apostar?-Tá. Vamos apostar o nosso salário todinho, que tal?

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-OK, combinado! Agora vai ver como vou jogar verde pra colher maduro. Crá!

Poucos minutos depois um terceiro criador é alcançado mas, estranhamente, começa aresponder com a maior tranqüilidade. E quando Pico pergunta a respeito da alimentação eleresponde:

-Meu Senhor, quando as minhas galinhas estão com fome, cada uma deles recebe um valerefeição, assim elas comem o que mais lhe agradar. Tá satisfeito?

Pico fica sem ação e, sem saber o que dizer, vai embora junto com Keco.

-Bem que lhe avisei da oportunidade de mudar de região. Agora de nada adianta insistir. Porhoje voltamos pra casa, mas lembre-se que perdeu a aposta!-Aff…

Quando os dois fiscais penudos já estão no centro da cidade, Keco observa um grande carroimportado estacionado em cima de uma calçada, impedindo a passagem de uma cadeirante.

-Dessa vez o meliante não me escapa! –grita Pico enfurecido.-Isso! Vamos quebrar a castanha daquele peste! –acrescenta Keco.

Em menos de um minuto uma multa bem salgada está aplicada no pára-brisa do carro. Pico eKeco voltam pra casa extremamente satisfeitos.No entanto, cerca de duas horas depois, Milady recebe uma ligação da Secretaria deSegurança.

-Pico, Keco, venham logo pra cá! Vocês têm noção de quem era o carro que acabaram demultar?-De algum chefe mafioso? –pergunta Keco-Ou de um espião do KGB? –insinua Pico-Que nada, aquele era o carro do Prefeito e, pra piorar ainda mais, enquanto vocês omultavam, a equipe de uma tevê gravou toda a cena. Assim descobriram que o Prefeito, emvez de estar despachando no gabinete dele, se encontrava na casa da amante, uma senhoracasada. Imaginem como se sentiu o marido dela e como reagiu a esposa do Prefeito.-Agora ele terá que oferecer suas demissões –observa Keco.-Por enquanto quem está demitido são vocês dois!-Aff –lamenta Pico -a nossa intenção foi das melhores. –Vai nos castigar pelo que fizemos?-De jeito algum! –responde Milady –Saibam que admiro ao extremo esse seu comportamentoético que deveria ser de exemplo para toda a sociedade. E, para lhes mostrar a minha simpatiae consideração, preparei pra vocês essa enorme panela de pipoca. Comam até se saciarem.

Uma hora mais tarde, Pico e Keco estão deitados no chão, de barriga pra cima, e quase semrespirar.

-Pico, acho que vou falecer de tanto que estufei a barriga.-Keco, eu também acredito que vou morrer logo, mas afirmo que essa é a morte maisdeliciosa que se possa imaginar. Crá.

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PICO, KECO E A FUGA IMPOSSÍVEL

-Uiiiiiiii... uiiiiiiii! Socorro, to mal.- queixa-se Pico.-Compadre, o que tá acontecendo, tá com dor de barriga?-Isso mesmo, Keco, quero ir logo pro melhor médico da cidade...-No seu caso seria mais oportuno buscar um veterinário, não acha?-Veterinário é coisa de pobres, eu quero um gastroenterologista de nomeada. Crá!-Va bene, mas você não afirma sempre que é proletário?-Sim, mas há proletário besta e proletário sabido, oras! Hoje pretendo ir à mesma clínica queMilady costuma freqüentar.-Gostei da sua consciência de classe, Pico!

Os dois amigos chegam à clínica e logo se dirigem ao atendimento onde uma graciosarecepcionista pergunta a Pico:

-O senhor tem plano?-Claro que tenho, moça.-Então, por gentileza, posso saber qual é o seu plano?-De ficar logo bom, oras!-Hummmm... Isso significa que a consulta é particular. O valor é duzentos reais. Paga à vistaou com cartão?-Com cartão. Amanhã lhe trago todo o papelão que desejar, é só especificar o tipo e o peso:conheço um lixão onde se encontra qualquer variedade de cartão. Crá!-Irmão, ela queria dizer cartão do banco- atalha Keco e, dirigindo-se à moça, acrescenta –somos dependentes de Milady, ela quem vai pagar a conta.

Enquanto ficam na sala de espera, lotada de pacientes, Pico se dirige ao amigo em voz bemalta:

-Ainda bem que Milady tem dinheiro de sobra...-Cala o bico, seu bobo!- exclama Keco enquanto fulmina o amigo com uma olhada severa.-Estava apenas dizendo que Milady teve sorte, e o que herdou permite que a gente se submetaa consultas particulares- insiste Pico.-Pois é, mas não é toda aquela abundância que se possa imaginar. Afinal, aquela herança queela recebeu do tio emigrado no Canadá deu apenas para comprar um carro zero e guardar umdinheirinho para o futuro...- tenta minimizar Keco.-Um dinheirinho? Eu diria um dinheirão. A nossa amiga agora tá bem rica!-Fala baixo, Pico, há muitas pessoas indiscretas escutando –sussurra Keco.

Felizmente, a secretária chama Pico. A consulta é rápida e ele sai em menos de cinco minutos.

-Afinal era o quê?- pergunta o amigo meio desconfiado.-Ah, uma coisa terrível!-Jura?! Tá me deixando preocupado... falou o que o gastro?-Ele disse que preciso ficar uma semana sem comer pipoca. Minha Nossa Senhora dos corvosesfomeados, como irei sobreviver sem o meu alimento preferido?

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-Tinha certeza que era isso. Quem tem besta não compra cavalo, não é amigo?!

Finalmente a dupla vai embora do consultório, mas alguém nada honesto gravou na memóriaa breve conversa que eles tiveram...Cerca de uma semana depois, enquanto os dois estão passeando bem perto de casa, uma motose aproxima e o passageiro, cujo rosto está escondido pelo capacete, pega as duas aves e asjoga dentro de um saco. Meia hora depois Pico e Keco se encontram num quarto bastantedesarrumado e desprovido de janelas. Um malandro os ameaça e, antes que eles possam fazeralguma pergunta, grita:

-Sujeitos, ouçam! Se vocês tentarem fugir dessa casa lhes dou a minha palavra que vou lheassar dentro do forno. Falou?-O senhor sabe que a carne dos corvos é coriácea e imprópria para o consumo humano?-responde Pico empinando o bico.-Não se preocupe, seu pretume voante, eu adoro mastigar carne bem dura! Ahahahahah.

O indivíduo grosseiro sai do quarto e tranca a porta a chave.

-O que será que esse malcriado está querendo de nós?- pergunta Pico ao amigo.-Da gente ele não quer nada...-Ainda bem- responde Pico aliviado.-Mas decerto ele vai pedir um resgate a Milady.-Então o problema é dela...-Se engana.- observa Keco –Antes de tudo não podemos permitir que a nossa amiga fique emapuros por sua causa...-Hei, que culpa tenho eu?-Por acaso não lhe disse de ficar calado naquela sala de espera lotada de pacientes? Emsegundo lugar ninguém garante que, mesmo com o pagamento do resgate, os bandidos nossoltem.-Bem, desde que a comida seja de qualidade, podemos até aceitar a hospitalidade dessepessoal.-Não seja tolo! Eles podem realmente nos assar dentro de um forno. Isso lhe agrada?-Necas! Esse é um programa hitleriano! E, como eu sou pela democracia, quero sair logodesse cativeiro.

Os dois amigos logo se dão conta que, devido à ausência de barulho externo, a casa deve estarsituada na periferia da cidade. Também deduzem que deve haver pelo menos doisseqüestradores.

-Pico, você reparou a forma estranha desse quarto? É muito estreito e comprido para ser umquarto normal- observa Keco.-Caramba, compadre, você tem razão. Aposto que esse ambiente sem janelas foi obtido deoutro maior levantando uma parede divisória em gesso.-Com toda certeza! E repare nas formigas entrando nesses buracos: tudo indica que essaparede é bem fina- afirma Keco.

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-Irmão, agora que identificamos o ponto fraco do sistema, tá na hora de agir igual ClintEastwood no filme “Alcatraz – A fuga impossível”. Vamos dar bicadas nesse ponto atéampliar o buraco e abrir caminho para a nossa evasão.-Mas e os entulhos? Se aquele ordinário voltar os verá! –raciocina Keco.-Aqui tem uma caixa de OMO vazia, nela iremos colocar os escombros e também servirá paraesconder o buraco na parede.

Tentando fazer o menor alarde possível, depois de duas horas de intenso trabalho os doiscorvos abrem uma fenda suficiente para passar. Keco entra primeiro.

-Aff, aqui tá tudo escuro, estou mais perdido do que cego em tiroteio, mas vejo um pinguinhode luz. Venha logo me ajudar.

Também Pico entra e, em breve, eles realizam que estão dentro de um armário de cozinha.Com esforço conseguem abrir um dos batentes e finalmente podem explorar o local.Infelizmente descobrem que só há uma pequena fresta e, ainda por cima, fechada com redemetálica.

-Pico, parecia ser fácil demais, não é?-Não desanime, compadre, fugir de Alcatraz nunca foi moleza, mas vamos analisar... Essecorredor ter a forma de um “L”. De um lado ele contorna o nosso quarto e não temos comoproceder devido haver outra porta trancada. Aqui estamos numa espécie de cozinha e, maispra frente, há um pequeno banheiro.-Pelo mau-cheiro parece que foi usado recentemente. Tenho a impressão que aqui elespreparam seus lanches.-Olha, Keco, aparentemente não temos saída, mas vamos inventar alguma coisa...-Esse cabo solto aqui no chão é fio de telefone, mas cadê o aparelho?-Deve estar em outra sala, fora do nosso alcance, né?!-Mesmo assim, pode ser a nossa salvação, mas precisamos de mais tempo e, acima de tudo,trabalhar em paz sem que os delinqüentes entrem nesse local.-Já sei, -exclama Pico –vamos sabotar tudo o que estiver aqui, assim eles não voltarão a essadependência.-Isso mesmo, compadre. Bicos à obra.

Sem demora, os dois amigos jogam uma grande quantidade de papel higiênico dentro dosanitário e dão descarga. O resultado é óbvio.Logo em seguida substituem o adoçante com água sanitária e, para completar, colocam umasbaratas mortas no saquinho do pão de forma e dentro da vasilha do café em pó.

-Irmão, agora só nos resta retornar ao nosso cativeiro e esperar. –diz Pico –mas antes deixatomar um pouco de água mineral, to morrendo de sede...

Ele toma um gole, cospe e logo exclama:

-Vixemaria, essa água com gás tem sabor de podre!-Decerto deve ser gás de cozinha –ironiza Keco –mas não vamos mais demorar, tó ouvindopassos no corredor.

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Pouco depois, já de volta no quarto, eles escutam a voz de uma mulher dando espetosenquanto tenta, inutilmente, utilizar a privada:

-Algum idiota acabou entupindo tudo, agora terei que usar o banheiro do outro lado da casa.Droga!

Não passam nem dez minutos que um dos meliantes entra de novo, mas sai rapidamenteresmungando:

-Aquela megera pensa que fui eu a entupir o banheiro e por isso vingou-se estragando a minhamerenda.

Os dois corvos escutam as vozes de três pessoas discutindo animadamente, falando alto e seculpando um ao outro.Enquanto se preparam para entrar em ação, ouvem, mais uma vez, passos se aproximando nocorredor e, logo em seguida, a voz de um dos marginais gritando:

-Hei, seu imbecil!-Pico, acho que o larápio está lhe chamando –graceja Keco.-Ai, meu Deus,esse cabra está mais brabo do que só siri na lata. Pressinto que chegou a minhahora, mas estou pronto para o martírio!-Não se aflija compadre, se ele lhe comer, vai logo falecer.-Acha que o cara morreria pelo remorso?-Não, pelo desgosto! Crá.

No entanto o bandido não entra no cativeiro e continua berrando dirigindo suas palavras a umde seus comparsas:

-Se não parar de pôr baratas mortas no meu café, juro que lhe dou um tiro!

O homem sai da cozinha, enfurecido. Finalmente para os dois amigos chega a hora daverdade.

-Existe um grande caos debaixo do céu, a situação é excelente!- exclama Keco.-Acho que já ouvi essa frase anteriormente- responde Pico –foi o soldado Ryan que apronunciou?-Que nada! Foi o presidente Mao Tsé Tung. E agora vamos.

Devagarzinho as duas aves começam a afastar a caixa de OMO e retornam à cozinha.

-Keco, você deve estar mais maluco do que Russel Crowe no filme “Uma mente brilhante”!Me explica como vamos fazer para avisar a polícia sem dispor de um telefone?!-Amigo, lembra que antigamente os aparelhos tinham um disco no lugar do teclado?-Ah, sim, os famosos “telefones brancos” do cinema dos anos ’30 e ’40.

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-Pois é, e existiam até pequenos cadeados para bloquear o disco. Só que quando morei emNápoles aprendi que era possível compor qualquer número e falar normalmente mesmo semter a chave do cadeado. Basta pisar aqueles botões que se encontram debaixo do microfone...-Minha Nossa Senhora dos corvos eletrônicos, explica melhor- interessa-se Pico.-Por exemplo, o número da polícia é 190, portanto se deve apertar uma vez, depois novevezes e enfim dez vezes, tudo bem rapidinho.-Entendi, mas o fato é que estamos sem aparelho.-Mas nem precisa disso. Vamos primeiro descascar os fios; em seguida iremos fazer com queeles se toquem na seqüência que acabei de lhe explicar.-No entanto, mesmo que a gente consiga entrar em contato com o 190 não teremos como falarcom o plantão.-Eu sei, mas a gente vai insistir até que eles nos localizem e mandem uma viatura paracontrolar o que está acontecendo. Sacou?-Tá certo, tá certo... –responde Pico meio desconfiado.

Em breve os dois amigos descascam um pouco os fios e os apóiam em cima de uma facafazendo com que apenas um dos fios a toque.

-Bem, irmão, lembra do filme “Independence Day”, quando os terráqueos reuniram suasforças armadas supérstites usando o alfabeto Morse? –pergunta Keco.-E como se lembro. Permita-me iniciar primeiro...

Pico começa a dar rápidas bicadinhas a um dos fios e continua durante cinco minutos. Depoisé a vez do Keco. Eles se revezam durante um bom tempo, certos de que a polícia, mais cedoou mais tarde, irá desconfiar daquelas chamadas mudas e mandará uma patrulha para ver doque se trata.E realmente o estratagema funciona.Quando enfim chega uma viatura policial, os meliantes, pensando terem sido descobertos,tentam uma fuga desesperada, mas são arrestados e levados à delegacia.

-Parece que estamos a salvo- observa Keco –esses seqüestradores de meia tigela nem sequerconseguiram dominar duas aves desarmadas.-Né isso, amigo? Afinal, quem nasce pra cangalha, se levar sela, rola. Inclusive não há quempossa contra quem nasceu em Hollywood. Ahahahahaha!-E muito menos contra quem morou em Nápoles. Ahahahahaha!

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PICO, KECO E A DANÇA DO VENTRE

-Pico, Keco -chama Milady- hoje de manhã tive a oportunidade de conversar com um colegado Departamento de Ciências Ambientais. Contei de seu trabalho como fiscais e ele louvou asua boa vontade perguntando se estariam a fim de encontrá-lo mais tarde.-O que diabo pode querer de nós esse seu colega cientista? –observa Keco meio encucado.-Oras, que pergunta mais tola –responde Pico- é evidente que ele bem conhece as superioresqualidades intelectuais dos corvos, principalmente as minhas! Com toda certeza ele nos querenvolver em alguma atividade científica complexa. Com ou sem você, eu vou, pode tercerteza. Crá!-Va bene, va bene, iremos juntos. Somente espero que tudo não acabe em vexame como nocaso do Prefeito multado. Confesso que tenho um pressentimento negativo…

Na hora combinada os dois corvídeos estão na sala do ilustre professor.

-Sejam muito bem vindos, amigos. Milady deu boas referências e, portanto, passo semdemora a lhes expor a essência do nosso projeto de pesquisa. Por gentileza, observem essemapa e reparem como o lado oeste da nossa cidade expandiu-se abrupta e caoticamentedurante esses últimos anos. De um ponto de vista econômico isso foi bastante positivo, noentanto as conseqüências sobre o Meio Ambiente estão sendo devastadoras. O problemaprincipal é a poluição decorrente tanto de atividades industriais, como do despejo clandestinode material orgânico. Precisamos da cooperação de voluntários que nos ajudem a identificaressas fontes poluentes.-E por qual motivo não usar cães farejadores, cujo olfato é o mais aguço que exista? -atalha oKeco.-Ótima pergunta, meu amigo, mas o fato é que as fontes de poluição se encontram todas emáreas cercadas e os proprietários não permitem a entrada de estranhos. Mas vocês têm agrande vantagem de poder sobrevoar esses locais sem pedir permissão alguma. Todavia, antesde iniciar o experimento, preciso testar a finura de seu faro.

O professor abre uma gaveta e saca vários frascos lacrados. Mal acaba de abrir o primeiro quePico logo afirma:

-Ah, esse é cheiro de amônia. Crá!

O ambientalista abre um segundo frasco e novamente Pico grita:

-Esse só pode ser ácido nítrico!-Excelente, Pico, mas agora vamos ver se acerta o mais difícil, o mais diluído…

O professor começa a destampar um terceiro vidrinho quando Pico, ainda antes que atampinha seja retirada exclama:

-Essa é pipocaaa!-Parabéns, Pico, o seu faro supera até o dos cachorros da polícia. Infelizmente, porém, pareceque o seu amigo Keco não tenha as suas mesmas qualidades…

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-Lógico, Professor! Esse pé-rapado é apenas um meu primo italiano, filho de um corvo queesmolava por um tocador de bandolim ambulante, e nunca poderá competir com quem nasceunas redondezas de Hollywood, entende? É evidente que ele não vai participar da pesquisa, néProfessor?-Se engana, embora em posição subordinada, ela vai participar sim, pois tenho aqui umapequena prótese com a qual ele irá reconhecer as várias substâncias com boa aproximação.

Aí, o professor prende no pescoço do Keco um minúsculo amplificador de odores (de suainvenção) do qual partem dois tubinhos que entram nas narinas do animal. Em seguidaentrega a Pico um saquinho contendo ovinhos plásticos de cores diferentes.

-Você deverá soltar um ovinho amarelo toda vez que identificar uma fonte importante depoluição química. Caso, porém, que a fonte seja de tipo orgânico, por exemplo uma ligaçãoclandestina de esgoto, soltará um ovinho marrom. Todos eles contêm um microchip que seativa automaticamente assinalando a posição exata da fonte poluidora aos agentes doIBAMA.-E esses ovinhos vermelhos? –pergunta curioso o Keco.-Bem, sendo que esse trabalho foi também custeado pela PF, os ovinhos vermelhos serãoutilizados no caso em que seja detectada uma boca de fumo ou o uso ilegal de entorpecentes.Ficou tudo bem esclarecido?-Claríssimo, Professor –responde prontamente Pico- Quando vamos começar?-Amanhã mesmo. Peguem esse dinheiro, pois terão que almoçar fora de casa e oDepartamento não acha justo que vocês gastem do seu para se alimentar. Bom trabalho e boasorte!

No dia seguinte os dois amigos rumam em direção da zona oeste da cidade.

-Keco, quando essa pesquisa terminar, no mínimo vou receber um Ph.D. “honoris causa” eme tornar um acadêmico de nomeada.-Eu também serei laureado?-Tadinho… você sonha alto demais! Quando muito posso lhe aceitar como meu assistente,mas nunca se esqueça das palavras do professor: a sua posição é su-bor-di-na-da. Portanto,cada macaco em seu galho; voe sempre atrás de mim, falou?-Va bene, va bene, mas não vamos perder tempo.

Poucos minutos depois as narinas de Pico já detectam algo de suspeito…

-Olha aqueles dois na casa lá em baixo. Parecem inocentes, mas eu estou sentindo um fortecheiro de cromo: tenho certeza que se trata de um curtume clandestino. Vou já soltar oprimeiro ovinho amarelo.-Pois é, o fedor é realmente muito intenso -confirma o Keco.

A menos de uma quadra, os dois detetives localizam a presença de vapores de enxofre no ar.Mais um ovinho é solto. E, em pouco mais de duas horas, todos os ovos amarelos e osmarrons se acabam. Sobram apenas os vermelhos, pois nenhuma boca de fumo foiidentificada na área.

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-Muito bem, compadre –diz Pico- chegou a hora de abastecer a pança. Já vi que aqui pertotem um bom restaurante mexicano e não vejo a hora de me deliciar com um prato deguacamole bem apimentado.-Cuidado que o chile irrita bastante o intestino… Eu vou comer algo de mais frio.

Terminada a refeição, os dois corvos estão agora sobrevoando uma elegante zona residencial.De repente Keco exclama:

-Minha Nossa Senhora dos corvos asfixiados, que podridão é essa, parece que destamparamuma fossa?!-Eu não estou sentindo nada –afirma categórico Pico- deve ser algum defeito no seuamplificador de odores...

Keco retira os tubinhos das narinas, mas a situação piora ainda mais.

-Pico, garanto que nunca senti tanta fedentina em toda minha vida! Deve ter carniçaapodrecendo em algum lugar bem próximo!-Volto a afirmar que eu não detectei nada, mas, como você está voando atrás de mim, derepente pode até se tratar de uma pequena flatulência de minha produção… Sabe, afinal vocêtinha razão quando disse que o chile irrita o intestino: irritou mesmo!-Ahhhhhhh, sua canalha nojenta! Ahhhhhhh, seu infame poluidor das nuvens! Dispara emmim gás de combate e ainda pretende que fique atrás dele?! Deixa chegar perto que vai ver oque é bom pra tosse!

Começa uma batalha no ar, com Keco tentando dar bicadas no Pico e esse fazendo manobrasacrobáticas para esquivá-las. Nessa confusão o saquinho contendo meia dúzia de ovinhosvermelhos se rasga e eles acabam caindo bem em cima de uma procissão. Um vai se alojar namitra do bispo que lidera a função, outros nos paramentos dos sacerdotes, na estátua da santae até nas roupas das freiras.

-Cristo amado, olha o que você fez –brada Pico em tom desesperado.-A culpa foi toda sua, sua arma de destruição de massa disfarçada de cientista –responde Kecoindigando- mas vamos logo embora daqui antes que chegue a PF… nem quero imaginar o quevai acontecer agora.

Os dois se afastam o mais rapidamente possível enquanto, em distância, já se ouvem assirenas das viaturas policiais.De tardinha Pico e Keco chegam em casa cabisbaixos, bem no momento em que Milady estáassistindo às breaking news na TV da cidade.

-Meninos, estão de parabéns! Imagino que foram vocês os responsáveis disso, hein?-Bem, Milady –gagueja Keco- são os ossos do ofício... A verdade é que o saquinho estavadescosturado e foi assim que…-Foi assim que a Polícia Federal descobriu e prendeu um bando de larápios que usavam umafalsa paróquia como cobertura para suas ações criminosas.-Isso mesmo –responde prontamente Pico- logo desconfiei daquele falso bispo quando sentisair de lá um forte cheiro de bandidagem.

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-Tenho muito orgulho de vocês e, como prêmio, essa noite irão assistir um filme mudo muitorenomado: o “Encouraçado Potemkin” do famoso diretor russo Einsenstein.-Aquele cientista meio maluco que vivia mostrando a língua? –pergunta Pico.-Ela disse Einsenstein e não Einstein, seu ignorante! –atalha o Keco- Duvido que quando seupai morou em Hollywood tenha se aproximado de alguma sala de cinema!-Tá certo, tá certo: irei conhecer com prazer esse tal de Einstein do cinema. Crá.-Meninos, hoje não tive tempo de sacar dinheiro, portanto levem esse meu cheque especial embranco: já está assinado. Mas prometam que voltarão antes das 23 horas, combinado?

Pico se apossa imediatamente do cheque e sai de casa junto com Keco.

-Ei, servente, eu não estou a fim de assistir um filme mudo dos tempos da onça, mas conheçoum local libanês cuja atração principal é a dança do ventre. Que tal? –pergunta Pico piscandoum olho.-Tudo bem. Eu já assisti duas vezes essa lamúria de filme. O dia de hoje foi pesado, portantoacho melhor ver algo que alegre as nossas almas.

Os dois chegam ao famoso local e Pico reserva uma mesinha bem perto do palco. Logo eespetáculo inicia.

-Keco, olha as pernas dessas dançarinas, olha que coxas bem torneadas: esses sim que sãocanhões de grande calibre e não os do encouraçado russo… Ah, a propósito, estou com sede,vamos ordenar Champanhe?-Boa idéia, colega, mas não vai ficar muito caro?-Ah, não se preocupe, o cheque de Milady vai cobrir todas as despesas.

Pouco antes das 23 horas, Keco resolve voltar pra casa enquanto o amigo fica se deliciandocom a visão das moças, e chega a oferecer outro Champanhe à dançarina mais bonita,recebendo beijinhos em troca. Finalmente, bem depois da meia-noite, ele também volta pracasa.Milady está de pé esperando-o bastante ressentida. Logo pergunta:

-Eu não pedi pra você voltar bem mais cedo?-Ah, ainda tá muito cedo, nem são dez horas da noite…

Naquele exato momento o sino da torre municipal bate um toque.

-Tá ouvindo, seu malandro, já é uma hora da madrugada.-Se engana, querida, são dez horas em ponto.-Tá me zoando, né?! Essa é uma hora!-Ah, Milady, seja objetiva, essas são dez horas… Seriamente, você acha que um sino possabater o zero?!-Pico… melhor você correr logo pra sua cama antes que eu lacre o seu bico com fita adesiva!!-Aff… Às ordens, meu general. Crá!

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PICO, KECO E A DEUSA DE ATLÂNTIDA

Uma semana após terem participado da pesquisa sobre a poluição urbana, Pico e Kecorecebem um envelope contendo os agradecimentos do Departamento de Ciências Ambientais.Anexo há uma carta-convite do Departamento de Física explicando que as duas aves poderãoser protagonistas de um importantíssimo experimento, nunca tentado anteriormente.

-Estou farto dessas maluquices! –bufa o Keco- Por acaso alguém acha que sou umavulgaríssima cobaia penuda?-Ah, compadre, sempre pessimista você, hein? Eles nos oferecem a oportunidade de entrarpela porta da frente no mundo da Ciência e ainda assim reclama?!-É você que não entende, irmão. Eu não tenho nada contra essas pesquisas, mas detesto ficarpagando mico por causa das trapalhadas de um certo sujeito que sonha ter nascido emHollywood…-Eu nasci de verdade na capital do cinema, a sua é só a inveja de um pobre italiota comedorde macarrão. Crá!-Pobre era seu pai, que não tinha nem onde cair morto e foi enterrado na vertical pra nãoroubar muito espaço!-Juro que você me paga por esse seu atrevimento! –responde Pico despeitado.

Os dois começam a brigar, mas imediatamente ouvem a chamada de Milady:

-Chega de discussões: iremos todos juntos ao laboratório para ver do que se trata. Ponto final!

Assim, diante da firmeza da mulher, eles se acalmam. Na manhã do dia seguinte os três sedirigem ao Departamento de Física onde são recebidos por um cientista tido como meiomaluco pelos outros professores. Ele abre um largo sorriso e fala:

-Queridos amigos, obrigado por estarem aqui. Embora os meus eminentes colegas não levemmuito a sério a minha descoberta, posso garantir que, pela primeira vez na história dahumanidade, consegui realizar a famosa máquina do tempo.-Isso é maravilhoso! –comenta Milady- Mas alguém já testou a sua invenção?-Ainda não, pois, infelizmente, a cápsula do tempo é muito pequena. Nela não caberia umapessoa, mas os seus corvos podem se alojar comodamente dentro dela. Gostaria de lançá-losna Antiga Roma, mais ou menos na época do imperador Augusto.-Hei, eu não quero passar o resto da minha vida numa cidade onde nem sequer existe umcinema e desconhecem até a pipoca –grasna Pico.-Não se preocupem com isso. Eu vou prender em suas perninhas essas pulseiras que parecemrelógios. Dando apenas uma bicada no pequeno botão vermelho, voltarão instantaneamentenesse mesmo laboratório. Tudo o que deverão fazer será coletar informações sobre a cidade eos hábitos dos Romanos. Também gostaria muito que se apresentassem ao Imperador e oentrevistassem. Essa será a prova que o meu invento funciona perfeitamente.-Mas professor, o Senhor acha que o homem mais poderoso do planeta vai nos receber se nemsequer podemos provar que a gente vem de outra época futura?–observa o Keco.

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-Eles tem razão, professor –comenta Milady –vou ver o que eu tenho aqui pra eles mostraremaos Romanos, algo de representativo da nossa civilização; e o senhor veja se em suas gavetasaparece algo de interessante.

Enquanto Milady encontra uma chave, uma caneta e uma foto dela, o cientista oferece umpequeno lança-perfume, lânguida lembrança de sua juventude buliçosa. Os objetos sãoacondicionados numa sacolinha, pendurada no pescoço de Pico.

-E agora, meus amigos, já podem embarcar nessa cápsula confortável. A viagem vai durarapenas dois ou três segundos: logo irão se materializar no céu da Antiga Roma.-Confortável uma ova! –resmunga Pico- Agora sei como devem se sentir as sardinhas dentrode suas latas. Aff…

O físico fecha a tampa e liga uma série de raios laser. Pouco depois abre a minúscula escotilhae, junto com Milady, constata que não há mais vestígio das duas aves. Então exclama:

-Eles estão a caminho no espaço-tempo, o experimento está dando certo. O próximo Nobelpela Física vai ser meu, meuuu!-Estou um pouco preocupada, professor, eles não falam uma palavra de latim sequer… Comoirão se comunicar?-Querida, graças ao dispositivo eletrônico que prendi nas perninhas, eles falarãoautomaticamente em perfeito latim sem nem se darem conta.-Simplesmente genial –comenta Milady.

Enquanto isso, os dois amigos se materializam no céu da Antiga Roma.

-Olha que maravilha! –exclama o Keco extasiado diante de tanta beleza.-Credo! Esses Romanos estão muito atrasados ainda, não vejo nem um carro circulado. Eonde tá indo aquele grupo de pessoas que desaparece no subsolo?-Provavelmente estão ingressando numa das numerosas catacumbas, que seriam…-Ahhhhh, já entendi tudo –atalha Pico- eles estão entrando nalguma estação do metrô, por issoque não têm carros nas ruas, certo? E aquele imenso prédio cheio de janelas, seria o quê? Temum bocado de homens e mulheres todos pelados…-São as termas, né?-Ah é? Pensei que fosse algo tipo um sexy shop… E essa procissão, bem aqui em baixo…essas mulheres sozinhas? São todos caritós rogando um marido?-Nãooo. Elas são vestais, ou seja sacerdotisas da deusa Vesta. Fizeram voto de castidade e, seperderem a virgindade, serão punidas com a morte.-Basicamente um bando de freiras, né compadre? Aposto que estão até proibidas de carregarímãs…-Por qual motivo? –pergunta perplexo o Keco.-Para não se tornarem atraentes, né?! Ehehehehe.-Muito engraçadinho, Pico, muito engraçadinho. Mas agora vamos em busca do nossoimperador. Aquele prédio lá a esquerda deve ser o palácio do Pretório. A gente entra e seapresenta educadamente, tá?-Tá certo, tá certo… Crá!

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Os corvos entram num grande átrio onde há uns soldados e um centurião sentado atrás dumaescrivaninha de mármore vermelho.

-Bom dia soldado –fala Pico em voz alta.-Soldado será seu avô, eu sou oficial. Trate-me com respeito! –responde o centurião irritado.-Nos desculpe senhor oficial. A gente não é daqui, acabamos de chegar de uma longa viagemrealizada com o propósito de conhecer e admirar o glorioso imperador Augusto –intervémKeco.-Bem, então a sua jornada deve ter sido mesmo bastante comprida, pois faz exatamentecinqüenta anos que Augusto faleceu. O atual imperador é o divino Nero…-Ahhhhhh, aquele da famosa música que diz: “Nero botou fogo em Roma, você incendioumeu coração. Dizem que Nero era louco, por você mulata fiquei louco de paixão”. –interrompe Pico.-Amigo, esse seu atrevimento pode lhe custar muito caro. Quer que chame logo PôncioPlatão, o nosso crucificador de plantão? Gostou da rima? Hehehe… Mas afinal, podemossaber de onde vocês vêm?-A gente vem do futuro, oras! –responde Pico.-Larga de léria, estou começando a perder a paciência! –bufa o centurião.-Perdão, senhor oficial, foi mal-entendido. O meu amigo aumenta, mas não inventa. Elequeria apenas dizer que nós vimos de uma terra tida como o país do futuro, o qual fica alémdo oceano, entendeu?-Ah, então só pode se tratar de Atlântida. Mas, por outro lado, vocês poderiam não passar devulgares impostores. A não ser que tenham como comprovar a sua proveniência…

Prontamente Pico saca a chave e a mostra pro homem dizendo:

-Essa é uma chave moderna.-Hummm, é muito pequena, fácil de ser perdida, as nossas são mais seguras do que a sua.

Então ele oferece a caneta:

-Experimente-a e confira como escreve nítido e claro.

O oficial pega uma tábua coberta de cera, daquelas normalmente usadas na época mas,obviamente, a tinta não pega.

-Esse objeto é até bonitinho, mas não funciona melhor do que os nossos estilos.-Lógico, foi projetada para escrever em cima do papel, não de uma camada de cera –observarespeitosamente o Keco.-Papel?! –responde o centurião perplexo- desconheço esse material.-Minha Nossa Senhora dos corvos imundos, mas como faz esse povo pra limpar a bunda? –pergunta Pico horrorizado.-Eles usam esponjas úmidas presas na ponta de um curto bastão –explica Keco.-Aff, ainda bem que não nasci esponja…-Mais alguma coisa pra me mostrar? –pergunta novamente o centurião.

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Pico pega o lança-perfume e o entrega pro oficial explicando o uso, mas o homem,inexperiente, acaba engasgando a válvula meio enferrujada.

-Esse seu gerador de alegria tem uma forma interessante, mas eu não senti nada de especial.As nossas pílulas, confeccionadas a partir de papoulas importadas do Oriente, acabam comqualquer desconforto e nos proporcionam alegria e prazer. Terminou o seu repertório demaravilhas?

Já apreensivo, Pico saca a foto de Milady. Ela aparece sozinha, de fio dental e de tiaradourada, tendo, como fundo, uma belíssima praia deserta.

-Por Hércules –exclama o centurião- nenhum artista desse mundo seria capaz de fazer umretrato tão perfeito quanto esse!-Claro, né… essa é uma fotografia, tirada com uma máquina que… -intervém Pico.-Cala aquela matraca, seu bobo! –sussurra Keco- e deixa eu falar.-Essa, senhor oficial, é a nossa Deusa, a qual rege e protege a nossa nação. E o retrato foi feitopessoalmente pelo deus Apolo, que é muito amigo dela.-Ahhhhhh, finalmente uma prova concreta! –clama o militar- Agora sim que acredito emvocês. Deixe eu chamar Sarapião, o sacerdote do Pretório…

Pouco depois chega o religioso que, estonteado diante de tanta beleza, logo afirma:

-Tratando-se de uma divindade até agora desconhecida, a nossa Lei impõe que ela sejaacrescentada às outras que já se encontram no Panteão. A cerimônia será realizada com adevida pompa daqui a três dias, em correspondência com o solstício de verão. Vocês doisvenham comigo, pois terão que participar dessa solenidade.

Os dois amigos são acompanhados em um luxuoso aposento onde encontram grande farturade frutas, vinhos, doces e iguarias deliciosas.

-Esse é o céu! –exclama Pico que logo começa a devorar figos e tâmaras suculentas.-E eu vou provar dessas passas gregas –acrescenta Keco.

Os dois amigos passam assim dois dias amenos, experimentando as delícias da cozinharomana. No entanto, enquanto Pico não para um segundo de encher a barriga, Keco resolvedar uma volta no palácio para descobrir uma forma oportuna de entrevistar o imperador. Denoite ele percorre um longo corredor e, sem ser visto, chega numa sala onde três funcionáriosconversam entre eles.

-Mas você acha que eles vão ser bem saborosos? –pergunta um.-Por Baco, com toda certeza vão ser deliciosos; da forma como estão sendo alimentados seriaimpossível eles não terem aquele gostinho de quero mais. –responde um segundo- Apenas mepreocupo com a carne, acho que deve ser um tantinho dura.-Sem problemas –tranqüiliza o terceiro homem- a carne de corvo fica muito macia quandocozinhada por horas e horas em leite de cabra!

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Ao ouvir essas palavras, Keco, sem fazer o menor barulho, volta rapidamente para o seuaposento onde encontra Pico deitado no chão, bêbedo e semi-inconsciente.

-Acorda amigo, vamos escapulir logo desse local, bem antes da cerimônia iniciar!-Ah, compadre, que besteira ir embora sem participar do banquete –responde Pico entre umarroto e um pum.-Seu besta, ainda não entendeu que a gente vai ser o prato principal? Esses Romanos adoramcomidas exóticas. Anda logo, se levante!-Você sempre muito avexado, hein? E também mal consigo ficar em pé, imagina se tenhocondições de avoar…-Tá bom, eu lhe prendo pelas pernas e vou lhe levar fora daqui. Mas pelo menos você segureo lança-perfume em seu bico, ele será a nossa derradeira chance para a gente se aproximar doimperador.

Keco, com um esforço terrível, consegue levantar vôo e sair do palácio enquanto Pico, decabeça pra baixo, agarra com força os pés do amigo.

-Vamos nos embrenhar num bairro popular até a sua ressaca melhorar; enquanto isso, tentareiconsertar a válvula.

Naquele momento Pico arrota de novo e o frasco escapa do bico despencando de grandealtura. Infelizmente o lança-perfume vai cair justo num local sem teto que abriga grandesquantidades de lenha e de palha. O reservatório de éter se quebra e uma faísca, solta por causada pancada, dá início a um incêndio.Keco, pasmo, se dá conta que, no meio daquelas ruas estreitas e velhos casarões, osbombeiros pouco ou nada poderão fazer para impedir o avanço das labaredas e realiza que boaparte da cidade está fadada à destruição total.Leva Pico a um chafariz e o solta dentro da água fria. Pico mal recupera os sentidos que logocomeça a dar espetos.

-Sem perder um segundo e sem reclamar, aperte o botão vermelho, se não quiser virarchurrasco! -grita Keco.

A contragosto Pico obedece e, em menos de um segundo, os dois se encontram novamente nasala do professor. Como já não tem mais ninguém eles resolvem voltar pra casa, sozinhos.Durante o trajeto Keco fala o seguinte:

-Irmão, agora será oportuno mudar, se não os livros de história, pelo menos o refrão daquelamarchinha que você cantou lá dentro do Pretório.-Ou seja? –pergunta Pico sem entender.-A partir de hoje ela terá que ser assim: “Pico botou fogo em Romaaa, você incendiou o meucoraçãooo”. KKKKKKKKK!-Aff.

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PICO, KECO E A BATALHA DE HALLOWEEN

Uma noite, lá pelo final de Outubro, Pico sai do seu quarto todo amolado e grasna:

-Hei, que diabo é toda essa zoada lá fora?-Eu não sei, irmão– responde Keco, também acordado pelo barulho ensurdecedor -vamosperguntar a Milady.

Eles encontram a mulher, insone, debruçada numa janela do primeiro andar e perguntam oque está acontecendo.

-Queridos, na casa ao lado está havendo uma festa…-Minha Nossa Senhora dos corvos martirizados, há mais sossego ao meio-dia no centro deNápoles do que nessa sua cidade à meia-noite- observa surpreendido o Keco -Mas por que agente não chama a Polícia?-Porque a Polícia já está lá- responde desconsolada Milady.-Que ótimo! Assim aqueles destruidores de sonhos serão logo multados!- observa Pico comsatisfação. -Eu, por exemplo, estava sonhando com lagoas e cachoeiras feitas de pipoca. Crá!-Se engana meu corvinho, a Polícia está lá justamente com a função de proteger um grupo depolíticos comemorando não sei bem o quê.-Nesse caso- raciocina Keco -se alguém se atrever a reclamar pode até levar uns golpes decassetete. Mesmo assim pretendo dar uma olhada de perto. Vamos, Pico?

Os dois amigos saem da janela e, sobrevoando o breve espaço que os separa da propriedadevizinha, vão se empoleirar no topo do muro que divide os dois terrenos.Do outro lado há, no jardim, uma grande mesa em forma de meia-lua. O convidado de honra éum gordão que engole comida com a voracidade digna dum bando de hienas famintasenquanto, ao seu lado, um senhor mais novo não para um segundo de bajulá-lo, oferecendomais iguarias, enchendo em continuação o copo dele e perguntando se deseja que algumaordem seja cumprida.Imediatamente Pico os reconhece, sendo que os dois aparecem freqüentemente no espaçopolítico duma TV local: trata-se de um senador e de um deputado estadual que almeja serlançado como candidato a deputado federal nas próximas eleições.Ao redor deles, duas dúzias de bajuladores constituídos por vereadores, funcionários dopartido e várias “secretárias”, todas formosas e de minissaia.

-Pico, por enquanto nada podemos fazer, mas voltaremos amanhã para investigar melhor.-Isso mesmo, compadre… Eles têm a força bruta, mas nós temos a razão e tenho certeza que,no final, a minha inteligência irá prevalecer. Afinal, ninguém leva vantagem contra quemnasceu nos arredores de Hollywood. Crá!!!

Na manhã do dia seguinte, enquanto os moradores da mansão ainda estão dormindo, os doiscorvos entram na propriedade e, encontrada uma janela aberta, se dirigem pra cozinha onde sedeparam com um moço que está lavando as louças e preparando novos pratos.

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-Olá amigo- pergunta Pico -o que está havendo de bom nessa casa? Alguma festinha deaniversário?-Não, companheiro, essa é uma festa de partido. Eu fui contratado pra cuidar da parte dealimentação que está sendo muito trabalhosa, pois cada qual tem gostos particulares. Só pravocê ter noção, o senador está com hemorróidas e essa moqueca que estou aprontando pra elevai ser cozinhada sem levar uma só grama de pimenta. E depois terei que preparar, para osvereadores e a cúpula, um coquetel especial com whisky de marca e outros licoresimportados.-Pois é, amigo, hoje em dia não é moleza ganhar o pão- acrescenta Keco- Mas me diga umacoisa, essa noite vai haver de novo música igual a de ontem?-Igual? Tá sonhando? Ontem era apenas CDs, mas essa, sendo a noite de Halloween, vai termúsica ao vivo até o sol raiar.-Obrigado, companheiro, e bom trabalho pra você.

Enquanto um dos corvos se dirige logo pra casa, o outro pousa bem no meio do territórioinimigo.

-Compadre, está fazendo o quê?- pergunta Keco- Perdeu alguma prata por aí?-Irmão, você não viu que sobrou um pedacinho de pipoca escondida no meio da grama? Nãovou permitir que essas malditas formigas vermelhas se apossem dessa delícia. Crá!-Tenha cuidado, elas são formigas-de-fogo, bastante agressivas e podem lhe picar…

Mal Keco acaba de proferir suas palavras que as perninhas de Pico recebem as primeirasmordidas.

-Vamos sair daqui imediatamente, essas bandidas são tão covardes que adotam a tática dainvestida em massa… Elas desconhecem totalmente a nobre ética do bushido e a honra docombate individual. Decerto, nunca assistiram ao filme “Os sete samurais”, de AkiraKurosawa– grasna Pico todo enfezado.-Pois é, e repare como o jardim está repleto de pequenos amontoados cônicos de terra; issoindica que deve haver uma imensa colônia no subsolo dessa mansão.

Logo em seguida os dois amigos estão novamente em casa, e Milady logo ouve os gemidos dePico, cujas pernas estão ardendo.

-Peraí, vou buscar um lenitivo- diz Milady e, enquanto passa um creme na pele do amigo,acrescenta: -Esses insetos possuem mandíbulas muito desenvolvidas e chegam a ferir até umser humano adulto. Lembro que, uns anos atrás, nesse mesmo quarteirão um senhor tentou selivrar delas depositando, em volta de seus ninhos, pequenas bolinhas de um produto vendidoem saquinhos nos supermercados.

-E deu certo?– pergunta curioso o Keco.-Que nada, foi ainda pior! As formigas levaram as iscas dentro de seus ninhos e, depois decinco ou seis horas, saíram todinhas pra não ficarem intoxicadas pelo gás liberado peloproduto. O morador teve até que abandonar a sua casa invadida por milhares de formigasenfurecidas.-Irmão, está pensando o mesmo que eu estou pensando?– pergunta o Keco.

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-Estou sim- responde Pico bem animado e, dirigindo-se a Milady, sugere:-Querida, daria pra você dar um pulinho no supermercado e comprar uma dúzia daquelessaquinhos?-E também parar numa farmácia e trazer um frasco do laxante mais poderoso que encontrar?–acrescenta Keco.-Bem, apesar de ainda não entender qual plano vocês tenham na cabeça, irei logo providenciaresse material. Até logo…

Enquanto Milady sai, Keco convida o amigo a dar um pulinho no seu quarto onde abre umamaleta da qual saca uma caixinha misteriosa.

-O rótulo está escrito em italiano, traduza…- anima-se Pico.-Irmão, você sabe que certos médicos aconselham seus pacientes de usar pimenta pararegularizar as funções intestinais mas, como muitas pessoas não suportam o ardor dentro daboca, essa pimenta bem concentrada, que trouxe da minha terra, é confeitada para assimliberar o conteúdo diretamente na barriga. Portanto ela não tem sabor algum– responde Kecopiscando o olho.-Entendi tudo, compadre, agora só devemos sincronizar nossos relógios e calcular direitinho otempo. Crá.-Mas a gente não tem relógio, Pico…-Tanto faz, iremos contar mentalmente, igual Harrison Ford e Robert Shaw no filme “Ocomando 10 de Navarone”, ok?-Va bene, combinado.

Depois do almoço Keco se dirige ao amigo dizendo:

-Calculei que já deveria dar duas horas da tarde, certo?-Sei lá, faz tempo que deixei de contar... Parei exatamente no número 57.-Por qual motivo parou?– pergunta Keco surpreendido.-Bem, confesso que não fui muito assíduo na escola, e meu pai me ensinou a contaracompanhando o número de bandidos que batiam as botas nos filmes de bangue-bangue.Como, num deles, Clint Eastwood chegou a matar 57 pistoleiros, esse representa o meu limitemáximo: depois começo a me atrapalhar. Sacou?-Fantástico! Isso é ótimo para quem prepara um ataque militar. Mesmo assim vamos darinício à nossa operação antes que os tiranos terminem a sua sesta.

Logo que chegam no território inimigo, como primeira providência os dois corvos abrem ossaquinhos de repelente e depositam todos os grãos em volta das numerosas entradas doformigueiro. As formigas levam rapidamente o produto para dentro de suas galerias.Sucessivamente entram na cozinha e, aproveitando da momentânea ausência do cozinheiro,derramam toda a pimenta confeitada na moqueca do senador.Enfim, vertem o laxante na vasilha do coquetel.

-Isso vai tudo até a última gota?– pergunta Keco.-Tudo! Menos duas gotas que a gente irá engolir agora mesmo.-Seria essa uma forma de suicídio coletivo igual o dos últimos soldados Japoneses no filme“Cartas de Iwo Jima”?

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-Não exatamente, mas esse ato está estritamente relacionado a outro filme onde os Japonesesderrotam os Americanos: tenha paciência que você vai ver…– responde Pico com um sorrisosarcástico.

Finalmente anoitece.Os dois amigos, empoleirados sobre um poste, observam ansiosos a cena que se desenrola nogramado da casa dos políticos.Os convidados ocupam seus lugares enquanto uma gasguita, fantasiada de bruxa, canta, a todovolume, o seu repertório musical.Uns criados começam a servir os hóspedes, mas é o deputado que cuida pessoalmente dasexigências do senador: o puxa-saco anda tão atencioso que nem pensa em se alimentar.Durante duas horas a festa se desenvolve normalmente.Uma das “secretárias” mais bonitas chega a se sentar sobre as pernas do senador mas ele,rubro e molhado de suor, começa a se mexer na cadeira fazendo caretas esquisitas na tentativade disfarçar uma dor que está se tornando insuportável.De repente, não agüentando mais, se levanta, baixa as calças e, emanando um berrodesumano, pula na piscina para refrescar suas hemorróidas flamejantes.Quase no mesmo instante, as moças começam a gritar, pois as formigas enfurecidas agridemsuas pernas desprotegidas de meias e calçados fechados.Elas também acabam pulando na piscina.Pouco depois, vereadores e funcionários, que ainda não entenderam o que houve, iniciam a terdor de barriga e todos procuram um banheiro livre. Mas, sendo que na casa apenas existemdois deles, e todos estão com bastante urgência, acabam fazendo suas necessidadesdiretamente na grama. Naturalmente as formigas aproveitam para atacar as partes moles!Em breve o pânico é geral!Os convidados entram desesperados em seus carros e fogem a toda velocidade.Somente o deputado se aproxima ao senador na tentativa de socorrê-lo, e pergunta o que podefazer para o bem-estar do ilustre hóspede.

-Seu imbecil!– grita o senador -Juro, sobre minhas hemorróidas, que amanhã será expulso donosso partido com voto unânime!

O deputado, que ainda não se deu conta do que realmente aconteceu, desesperado põe as mãose levanta os olhos pro céu como a implorar o socorro de algum santo…

-Vamos, Keco, chegou o momento de afundar aquele fariseu! Crá!

Pico mergulha a toda velocidade, pega bem a mira e acerta em cheio, com sua bombafedorenta, o olho direito do político. Keco reforça a ação do camarada soltando a sua cargapestífera no olho esquerdo do homem.

-Tora! Tora! Tora!- grita Pico triunfante.-Tora! Tora! Tora!– lhe responde Keco que, junto com o amigo aterrissa são e salvo na casada Milady.

Ela os acolhe como heróis nacionais.

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-Queridos, vocês foram maravilhosos: Ahahahahaha! Merecem uma medalha de ouro, mastenho certeza que nada vai lhe deixar mais feliz do que uma panela de pipoca fumegante.-Obaaaaaa!– exclama Pico.-Vivaaaaa!– grasna Keco.

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PICO, KECO E O DELEGADO DE AÇO

Exatamente dois dias depois da épica batalha de Halloween, ao nascer do Sol, meia dúzia decarros da Polícia circunda a casa de Milady. Homens fortemente armados, protegidos porcoletes a prova de bala, se apostam no quintal, diante da porta e das janelas, enquanto, umpouco mais afastado, um blindado dá cobertura à ação apontando suas metralhadorasameaçadoras na direção da habitação.Um alto funcionário fardado toca a campainha e entrega à mulher, sonolenta e totalmentedesnorteada, uma ordem de prisão preventiva para Pico e Keco. A acusação é das piores:tentativa de insurreição contra os poderes do Estado.Ainda antes que Milady possa proferir uma só palavra, um grupo de dez elementosencapuzados e com as caras pintadas, invade os quartos em busca dos réus. As duas aves sãoencontradas em seus respectivos aposentos, trancadas dentro de uma gaiola de aço e postasnum camburão. O cortejo liga as sirenas e se afasta a toda velocidade tendo, como meta, aprincipal delegacia da cidade.

-Ouçam muito bem o que vou lhes dizer- proclama sério o delegado -é melhor vocêsconfessarem logo o seu crime, pois tenho o pavio curto e não sou de brincadeira!-Nada a declarar– responde Keco fleumaticamente.-Conheço os meus direitos!- afirma Pico com segurança.-Sujeitos, vocês ainda não entenderam que tenho meios adequados para soltar suas línguas,portanto repito: quero que me contem nos detalhes quem planejou a sua operação criminosa equais os seus comparsas. E não tentem me enrolar, pois já sei que na manhã daquele dia vocêsestiveram na casa do deputado, e até chegaram a conversar com um cozinheiro.-Ah, seu delegado, nós somos gente simples que gosta de discursar numa boa com qualquerhonesto trabalhador- minimiza Keco.-Também, daquela cozinha vinha um cheirinho gostoso de comida e, como era quase meio-dia… A propósito, nessa sua delegacia não tem nada de bom pra matar a fome? Nem umapipoca bem quentinha?- pergunta Pico.-Sargentooo!- grita o homem enfurecido.-Às ordens, seu delegado.-Leva imediatamente esses dois subversivos na masmorra número três, a mais sombria quetemos.

Os dois amigos são trancafiados num ambiente subterrâneo bastante escuro, sem catres e como chão de terra encharcada de umidade.

-Hei, Keco, você está achando sombria essa cela?-Irmão, eu já morei seja em castelos derrocados que em cemitérios; em comparação, essamasmorra parece um hotel de cinco estrelas. Inclusive acho que o delegado não sabe que oscorvos possuem uma excelente visão noturna… Hehehehe.-E olha quantas belas minhocas no chão… Provavelmente elas servem para horripilar oscoitados dos prisioneiros. Mas acredita que quando morei em Hollywood, todo final desemana meu pai me levava num restaurante chinês onde…-Duvido que seu pai tenha entrado em algum restaurante pela porta da frente…

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-Nunca afirmei isso, compadre, mas deixa contar… uma salada de minhocas era tida, pelosartistas, como uma das iguarias mais fina e exclusiva. E aqui a matéria prima não falta, e é degraça. Crá!

Sem demorar ulteriormente, Pico começa a engolir várias delas e convida o amigo aaproveitar do maná.

-Pico, você está completamente certo! Essas minhocas de delegacia são saborosas eexcelentes. Francamente não entendo por qual motivo todo ser humano tenha tanto nojodesses bichinhos.-Todo não, apenas aqueles que nunca freqüentaram o jet-set de Hollywood… Hahahahaha.

Enquanto isso, o sargento, que ficou espiando o interior da cela pelo olho mágico, corre parao seu superior e relata:

-Seu delegado, aqueles malditos devem ter seguido um curso de sobrevivência num campo deadestramento no exterior, sendo que não apenas não tiveram medo do escuro, mas estão atédestruindo o patrimônio do Estado.-Destruindo o quê?-Senhor, eles estão devorando as nossas minhocas.-Droga! Decerto são terroristas treinados a se alimentar com qualquer imundície! Vá buscá-los de imediato!

Poucos minutos depois o subalterno volta com os dois detentos.

-Muito bem… Admito que vocês receberam um bom treinamento, mas eu também sou durãoe juro que logo vão chorar e suplicar clemência! Sargento, prenda os acusados no pau-de-arara.-Com licença, doutor, mas isso fica tecnicamente impossível.-Então os pendure de cabeça pra baixo!

O sargento obedece ao superior e amarra as perninhas dos dois amigos a uma haste encravadana parede.Keco, por nada incomodado pela posição, pergunta:

-Hei, Pico, você se lembra de quando, na Antiga Roma, tive que segurá-lo pelos pés de tantoque estava embriagado?-Pois é, irmão, mas garanto que aquele vinho foi o melhor que já tomei na minha vida.-É, mas você arrotou, e deixou escapar do bico o lança-perfume que incendiou a cidade…-Verdade, mas quem se importa, afinal quem levou a culpa foi aquele idiota do Nero.KKKKKKK-Isso mesmo! Tanto que inventaram a famosa canção: “Nero botou fogo em Roma, vocêincendiou o meu coraçãooo” KKKKKKKKKKKK

Novamente o sargento se aproxima ao superior e murmura:

-Seu delegado, parece até que os dois estão se divertindo…

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-Eh, aqueles monstrinhos tem nervos de aço. Tenho certeza que foram os elementos melhoresno curso de agentes secretos treinados para desestabilizar o nosso País. Mas solta eles quedessa vez vou usar uma arma infalível: o choque elétrico! Ninguém agüenta essa tortura…

Os dois amigos, que ouviram as palavras do oficial, uma vez soltos vão se empoleirar nas pásdo ventilador fixado no teto da sala.

-Desçam imediatamente daí- ordena o delegado.-Descer pra quê?– pergunta Pico –Aqui o panorama é melhor e o ar muito mais puro que aíem baixo.-Sargentooo! Liga o ventilador na velocidade máxima!- berra o homem enquanto solta umviolento murro em cima da escrivaninha.

O subalterno obedece mas, devido o peso das aves nas extremidades das pás, o aparelho sópode girar bem vagarosamente.

-Ah, Keco, esse ventilador me faz lembrar de quando era mais novo e costumava subir,obviamente de graça, no carrossel que havia perto da nossa casinha. Porém, apesar da saudadeque despertou em mim, estou gostando.-Pois é, irmão, esse ventinho é mesmo delicioso.

Enquanto isso, o delegado, furioso, manda o sargento apanhar uma escada bem comprida e osdois começam a subir. O sargento, magrelo, vai primeiro…

-Tenha cuidado, seu idiota! Não viu que pisou a minha mão?-Desculpe, doutor, mas não estou me sentindo seguro… Esse troço anda meio bambo e agente pode despencar.

Realmente o teto é muito alto e a escada começa a balançar perigosamente.Bem naquele instante, Pico, talvez devido a emoção da lembrança infantil, evacua uma gosmarosada, resíduo da digestão das minhocas.O delegado grita:

-Cuidado, sargento! Eles estão soltando armas químicas!

O sargento, na tentativa de esquivar o material supostamente tóxico, instintivamente efetuaum brusco movimento lateral. Como resultado a escada vai ao chão de uma altura de quasequatro metros.Uma sonora gargalhada de Pico e Keco se sobrepõe aos gemidos dos dois homens bemmachucados.

-Malditos terroristas, vocês acabaram de assinar a sua sentença de morte!- berra o delegadoenquanto saca o revólver e o aponta na direção dos dois amigos.-Solte imediatamente os meus corvinhos!- grita Milady que acaba de entrar na salaacompanhada por um senhor austero, de terno e gravata.-Quem são vocês?- pergunta surpreendido o delegado?-Eu sou a defensora dos acusados e trouxe os pedidos de “habeas corvus”!

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-Minha senhora, acho que queria dizer “habeas corpus”…-Isso mesmo, mas, tratando-se de corvos e não de pessoas, esse termo é muito mais adequado.Quanto ao alto funcionário que está comigo, é Diretor do IBAMA e pretende dar umaimportante advertência…-Delegado, esses animais são protegidos pela Lei. O senhor nem se atreva a arrancar umapena deles, se não quiser ser preso por crime federal e inafiançável.

O delegado engole em seco e nada pode fazer se não assinar o termo de soltura.Contemporaneamente Milady recebe uma ligação no celular: trata-se, nada menos, que doSuperintendente da Polícia Federal, o qual deseja dar uma bronca no delegado.

-Às ordens, senhor superintendente, em que posso ajudar?-A minha amiga Milady me contou da prisão de Pico e Keco. Saiba que eles já cooperaramtanto com o IBAMA que com a PF. Inclusive, a ajuda deles foi essencial para desmascararuma quadrilha que atuava disfarçada de religiosos, os mesmos meliantes que o senhor nuncaconseguiu prender. Espero que os dois acusados sejam soltos sem demora e recebam asdevidas desculpas pela injustiça que tiveram que sofrer.-Conte com a minha lealdade, senhor superintendente, estarei sempre à sua disposição!

O delegado, bastante acanhado, balbucia umas desculpas tentando jogar a responsabilidadeem cima do deputado, mas os nossos amigos nem sequer se dignam de dar-lhe ouvido e saemlogo da delegacia.Lá fora encontram um farto grupo de jornalistas e equipes de TV que os fotografam e osentrevistam.Pico, todo exaltado, exclama:

-Olha só! Estou tão famoso que, qualquer coisa aconteça comigo, já chovem paparazzi. Crá!-Sinto em lhe decepcionar- observa Milady- mas quem chamou a imprensa foi o própriodelegado no intento de apresentar dois temidos terroristas. Infelizmente pra ele, o feitiço viroucontra o feiticeiro!-Mas seja otimista, Pico- acrescenta Keco –quem sabe que isso não represente um primeiropequeno passo na direção de Hollywood… Ahahahahaha!!

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PICO, KECO E A CASA MAL-ASSOMBRADA

Numa tarde de domingo, enquanto no andar de cima Pico e Keco estão assistindo o filme“Apocalypse Now”, uma senhora de idade toca a campainha da casa de Milady.As duas amigas conversam bastante e, depois de ter tomado chá com biscoitos, Milady chamaos seus amigos:

-Pico, Keco, desçam e venham cumprimentar Dona Iolanda.

Os dois corvos se apresentam e a velha senhora os saúda cordialmente.

-Queridos, essa minha amiga está com um pequeno problema e quer saber se pode contar coma sua cooperação.

-Semper fi!- responde imediatamente Pico usando a saudação típica dos marines, os fuzileirosnavais americanos.

-Com muito prazer, D. Iolanda- acrescenta Keco. –A senhora pode nos explicar do que setrata?

-Bom, como já referi a Milady, acontece que meu tio Ernesto faleceu recentemente deixando-me a sua bela mansão situada no interior. O imóvel é do século XIX, muito valioso e eu, quesobrevivo com uma aposentadoria mixuruca, iria me beneficia bastante da venda daquelepalacete. No entanto, uma cláusula no testamento exige que eu passe uma noite inteiranaquela casa. Se não fizer isso dentro de uma semana, a propriedade passará automaticamentea outro herdeiro, o meu primo William.

-E qual o problema- pergunta Pico –por acaso lá não tem cama?

-Não é isso. Acontece que, quando era vivo, meu tio me convidava freqüentemente a passaros finais de semana com ele, mas sempre me recusei, pois acredito que aquele palacete sejamal-assombrado e eu morro de medo de fantasmas. Ernesto ria dessa minha fraqueza, diziaque sou boba, que almas não existem, e agora não tenho outra opção se não me submeter aessa prova, mas não encontro a coragem.

-Uai, por que não convida Milady ir junto com você?- pergunta Keco.

-O fato é que o testamento especifica que devo passar pelo menos uma noite sozinha. Jáperguntei ao notário se essa proibição se estende a qualquer ser vivo e ele me disse que, sedesejar, posso ficar na companhia de um animal...

-Keco, como você é um verdadeiro animal, acho que está apto a acompanhar a senhora-exclama Pico divertido.

-Compadre, lembre-se que aqui se faz e aqui se paga- responde Keco despeitado.

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-Chega dessa conversa tola!- atalha Milady. –Vocês dois irão passar uma noite junto com D.Iolanda. A não ser que tenham medo de assombração...

-Era o que faltava- responde Keco –já morei numa casa que, em comparação, a da FamíliaAddams é uma creche. Crá!

-E eu, que tenho espírito de marine, não me assusto nem diante de um batalhão devietcongues equipados com AK-47. Estarei às suas ordens senhora. Semper fi!

Dois dias depois, D. Iolanda, acompanhada pelo notário, duas testemunhas e os corvos, viajaao interior, rumo o palacete do tio falecido.O pequeno grupo chega na boca-da-noite. O notário abre o portão e acompanha a senhora e asduas aves até a sala de estar. Logo em seguida sai, lacra porta e janelas com fitas de papel quesão carimbadas e assinadas por ele e as testemunhas.A noite desce rapidamente.Dentro da habitação, a herdeira se deita numa cama situada num quarto do primeiro andarenquanto Pico e Keco permanecem acordados do lado de fora do aposento.

-Hei, irmão- fala Pico –parece que aqui está tudo nos trinques.-Pois é, por enquanto nada de anormal, mas vamos ficar de olhos bem abertos.

No meiar da noite um forte vendaval sacode a casa e, improvisamente, a energia vai embora.O ambiente, fracamente iluminado pelos raios lunares que entram pelas janelas, pega umaspecto sombrio.De repente, do lado oposto do longo corredor onde se encontram os nossos amigos, apareceuma estranha luz azulada que ilumina sinistramente a cena durante poucos segundos.

-Oxente, o que é isso?- pergunta Pico.-É um simples fogo-fátuo- responde Keco com a maior tranqüilidade.-Mas esse fogo tem algo a ver com a presença de um fantasma?-Relaxa, é só combustão espontânea de fosfina...-Ah, já sei, é pum de defunto, né?-Santa ignorância! É um gás produzido pela decomposição de material orgânico. Crá!-E não foi o que disse? A propósito, Keco, desde quando você entende de química?-Irmão, vários anos atrás encontrei abrigo num velho prédio da Universidade de Bolonha.Havia um grupo de estudantes de química que gostava de mim e sempre me davampedacinhos de mortadela que, naquela cidade, é realmente deliciosa. E eu, para não perderesses petiscos, me empoleirava no peitoril da janela da sala de aula; foi assim que aprendimuitas noções dessa disciplina e...

A conversa entre os dois é interrompida por rangidos provenientes da sala de estar, situada notérreo. Os corvos vão logo averiguar do que se trata, mas não encontram ninguém.

-Keco, estou começando a me preocupar.-Mantenha a calma e lembre-se que um verdadeiro marine nunca tem medo de nada!-Tá certo, tá certo, mas pelo menos os vietcongues eram criaturas desse mundo. Crá!

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A situação parece se estabilizar, mas, meia hora mais tarde, as duas aves ouvem distintamenteo ruído do assoalho pisado por alguém que passeia vagarosamente.Por um brevíssimo instante, na penumbra se materializa a figura indistinta de um senhor demeia idade, bastante magro, vestindo um robe marrom escuro e com um charuto aceso entreos dedos.O misterioso indivíduo começa a tossir e, logo em seguida, desaparece atrás de uma porta.

-Hei, aquela parece ser uma alma de verdade!- Exclama Pico.-Nunca ouvi dizer que os fantasmas fumam e pegam bronquite- responde Keco. –Vamos atrásdele. Crá!

Inutilmente os corvos procuram encontrar a estranha figura. Toda vez que eles ouvem umbarulho vindo de um quarto, correm lá, mas quando chegam não acham mais ninguém. Essejogo esquisito de esconde-esconde continua por duas horas.

-Pico, nessa casa deve existir alguma passagem secreta e o sujeito está aproveitando dela parazombar da gente, mas vamos perseverar.-Então você acha que o nosso fantasma é uma pessoa viva?-Vivíssima, Pico, e tenho a certeza que o nome dele é William. O cafajeste arrumou essapresepada no intento de amedrontar a velhinha para que ela fuja daqui. Nesse caso quem vaiherdar é ele.-Elementar, Watson, mas vamos dar uma lição a esse malando. Ficaremos à espreita e, logoque ele aparecer de novo, irá saborear os nossos bicos de aço. Crá!

A espera é demorada, mas, lá pela madrugada, enfim o sujeito aparece.

-É ele, é o malandro- berra Keco –bicos a obra!

Logo o estranho indivíduo enxerga os corvos e, instintivamente, levanta os braços paraproteger o rosto.Pico e Keco tentam afundar seus bicos afiados nas carnes do malandro, mas o homem revelaser completamente imaterial.

-Minha Nossa Senhora dos corvos sem alma! Ele está mais franzino que filé de mariposa-Exclama Pico.-Estou sem palavras- acrescenta Keco.-Compadre, acho que esse fulano faleceu e esqueceram de avisá-lo- sussurra Keco.-Bem como no filme “The Others”, com Nicole Kidman. A situação é a mesma...

O homem, visivelmente preocupado, pergunta o que as duas aves estão fazendo na casa dele.

-Estamos em busca de um certo William: é esse o nome do senhor?- pergunta Pico tentandodisfarçar o espanto.-Desconheço essa pessoa, meu nome é Francisco. Porém, durante anos, até duas semanasatrás, várias vezes me deparei com uma alma perambulando pela casa de noite e garanto quetive medo. Mas parece que sumiu de vez. Essa noite me levantei devido ter escutado vozes nacasa. O tal do William que vocês estão procurando seria um fantasma?

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-Afirmativo, senhor- responde prontamente Keco –Eu e o meu amigo somos caçadores defantasmas, por isso invadimos a sua casa. Desculpe se não lhe avisamos antes, mas a nossaforma de trabalhar exige ação imediata. No entanto, por sorte sua, averiguamos que nessa casanão há assombração alguma.-Ah, que bom- responde a alma –agora que estou mais aliviado peço licença, preciso merecolher. E muito obrigado pela boa notícia que me deram. Boa noite, amigos!-Tenha uma boa noite, senhor, e cuide da sua saúde!- responde Pico.

No dia seguinte um lindo sol ilumina a casa e Dona Iolanda se levanta muito bem-humorada.

-A senhora dormiu bem? Teve medo?- pergunta Keco.-Nunca dormi tão bem como essa noite e tive sonhos maravilhosos. Deve ser o ambiente, ocharme dessa casa, sei lá. Mas tomei uma decisão: não vou mais vender esse palacete e ireimorar aqui.-Muito bem, D. Iolanda! O ar da campanha e a tranqüilidade absoluta são ideais para osidosos- replica Pico.

Logo depois, o notário volta com as testemunhas e, após ter constatado a integridade doslacres, assina um documento e volta pra cidade junto com os corvos.Os dois amigos contam tudo pra Milady e ela pergunta por qual motivo não alertaram asenhora sobre a presença de um fantasma na casa.

-Oh, Milady, aquele fantasma é tão bonzinho que não faria mal a uma mosca- responde Pico.-E, como as pessoas idosas freqüentemente sofrem pela solidão, caso D. Iolanda tenhainsônia, sempre haverá alguém com quem conversar. Né isso compadre? KKKKKK!-Isso mesmo, irmão- responde Keco –Ahahahah!-Hummm, mas vocês são mesmo duas pimentas, né? –observa Milady.-No comment –responde Keco.-Nós somos anjos, Milady, anjos pretos. Semper fi! Hehehehe –acrescenta Pico.

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PICO, KECO E O OUTRO MUNDO

-Hei, Milady, hoje você parece estar de baixo astral. Algum problema?- pergunta Pico meiopreocupado.-Não é nada não, apenas uma leve dor de cabeça…- responde a amiga um pouco abatida.

Keco chama o colega de lado e, em voz baixa, comenta:

-Compadre, fiquei sabendo que ela gastou um dinheirão para pagar o advogado que redigiu onosso “habeas corvus”. Além disso, nesses últimos tempos, suas finanças sofreram um graverevés: é evidente que agora se encontra num estado de stress emocional. Acho melhor a gentesair de casa para que ela possa encontrar sossego e refletir com calma na intimidade.-Tá certo, tá certo… Vamos dar uma voltinha no nosso quarteirão. Crá!

Os dois amigos começam a passear na calçada, inclusive em frente à mansão do deputadoderrotado na épica “Batalha de Halloween”.Pouco depois, enquanto ainda conversam a respeito dos problemas da Milady, nem se dãoconta que um luxuoso carro, vindo de trás, soube repentinamente na calçada indo exatamentena direção deles.Só no último instante Keco enxerga do perigo e grita:

-Cuidado, irmão!

Mas já é tarde demais e as rodas do possante veículo esmagam as duas aves.

-Pega o desgraçado! –grita um transeunte.-Foi o deputado que atropelou os corvos!- berra outro.-Chamem a polícia, vamos atrás desse patife que nem parou pra socorrer as vítimas! –comentam várias pessoas que assistiram à triste cena.

Já está se juntando uma pequena multidão e os mais afoitos tentam iniciar uma perseguição,mas o carro do político sai em alta velocidade e ninguém consegue alcançá-lo.

-Hei, Keco, o que é toda essa barafunda? Fez o quê o deputado?-Amigo, tenho que lhe dar uma péssima notícia… Ele nos esmagou, agora estamos mortos.-Ah, para de falar asneiras, nunca me senti tão bem e tão vivo como agora! Crá!-Se não acreditar, olha os nossos corpos espatifados na calçada…-Vixiii… parecem duas folhas de papel-carbono. Mas agora o que vai acontecer?

Keco olha pro amigo e coça a cuca em busca de uma resposta, mas, em breve, as duas avescomeçam a esvaecer-se para, logo em seguida, materializar-se de novo na entrada de umaimensa caverna.

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Lá, uma moça ruiva e bonita, se aproxima sorridente. Ela veste uma blusa de pele preta,umbigo de fora, uma curta minissaia da mesma cor e um par de botas de cano alto. Na mãosegura um chicote.

-Olá, amigos, o Inferno os recebe de braços abertos.-Quem é você?- pergunta Pico –e também, o que fizemos de tão mal para merecer passar oresto da eternidade nesse local de aflição?-Meu nome é Adelina e fui levada pra fogueira no ano de 1601.-Tá vendo, compadre, os horrores da Inquisição? Uma pobre menina inocente vítima daabominável caça às bruxas- observa Keco revoltado.-Inocente uma ova!- responde Adelina –Eu fui bruxa de verdade e o meu malefício preferidoera transformar em estrume o ouro acumulado pelos altos prelados, por isso fui presa equeimada sem tanta cerimônia. Quanto a vocês, não se preocupem, é tradição que os corvos,sendo de regra relacionados aos cemitérios e outros lugares sombrios, obtenham um lugar dedestaque aqui no Inferno. Em particular, devido suas boas referências, terão ambos um cargode confiança.-Obaaa! Tá vendo, Keco, eu sempre disse que quem nasce em Hollywood é fadado a tersucesso, seja nesse que no outro mundo!

Os três entram num escritório subterrâneo onde estão duas escrivaninhas com os respectivoscomputadores.

-Pico, o seu trabalho é bem simples- explica Adelina –na tela do seu PC vai aparecer umaseqüência de faturas relativas ao material entregue ao nosso depósito principal. Tudo o quedeverá fazer será encaminhar esse material às seções oportunas.-Elementar, Watson –responde Pico com segurança.-Quanto a você, Keco, uma vez por hora lhe será entregue um pergaminho contendo os nomesdos danados que acabam de chegar. Terá apenas que conferir esses dados com osarmazenados num arquivo do seu computador. Alguma dúvida?

Devido ambos os amigos nada opinar, a bruxinha os cumprimenta de novo e os deixa a seusafazeres.

-A minha tarefa é simplesmente ridícula.- afirma Pico –Aqui só chegam tambores de gasolinae é evidente que basta clicar na opção: “enviar para os queimadores de almas”. Ainda bemque esse meu PC está com Internet. Vou logo baixar uns filmes para me atualizar sobre asnovidades do Festival do Cinema de Veneza.

Depois de duas horas de trabalho Keco dá um pulo na cadeira e exclama:

-Olha só quem acaba de chegar no Inferno… Aqui tá escrito o seguinte: “Deputado estadual,loroteiro, bajulador, ladrão, corrupto e assassino de aves. Ao tentar avançar um sinalvermelho, foi bater numa carreta. Transferir para o Setor P-428, jaula n° 986”.

-Compadre, estamos esperando o quê?- pergunta Pico –Vamos logo dar as boas-vindas aonosso espatifador.

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Os dois, com a ajuda de um mapa oportuno, localizam rapidamente o local. O deputado seencontra totalmente nu, preso dentro de uma gaiola de aço enquanto, ao seu redor, váriasmesas estão fartas com as melhores delícias do mundo. Atrás do danado, uma placa de bronzecom a pétrea sentença: “Passou a vida comendo, passará a eternidade sofrendo a fome!”

-Ah, meus amados corvinhos, me passem pelo menos uma fatiazinha de pizza, que estoudesmaiando de fome. Tenham piedade de mim…-Mas você, seu malvado, não teve piedade da gente quando nos denunciou ao delegado e,muito menos, quando nos deixou mais finos que lâminas de barbear- responde severo Kecoenquanto o amigo não para de engolir iguarias.-Me perdoem, meus queridos… naquele dia estava bêbedo e temeroso que a minha carreiraterminasse por sua causa. Por isso perdi a cabeça e os atropelei, mas me dei mal quando,fugindo, tentei avançar um sinal vermelho… Mas juro, sobre a minha honra política, queestou sinceramente arrependido.-Tá certo, tá certo...- atalha Pico –se agora você se ajoelhar e nos pedir perdão, irei lhe dar umpar de sanduiches.-Sim, sim… piedade e perdão, perdão e piedade- choraminga o deputado em lágrimas.-Vamos embora –chateia-se Pico –esse sujeito está me dando nojo.-Como assim? E a sua promessa?-Xiii… Você passou a vida fazendo promessas que nunca foram cumpridas. Agora chegou asua vez de ser enganado. Crá!

Quando os dois amigos voltam ao escritório, Adelina já está à espera deles.

-Pico, você se deu conta do grave erro que cometeu?-Eu?-Sim, você! Enquanto assistia a seus filmes, embaralhou duas faturas e mandou um tonel devodca para os queimadores.-E qual o problema? Pensei que o Inferno fosse FLEX…-O problema não é o que foi queimado, e sim o fato que Britacão, o chefe da nossa área,recebeu um tambor de gasolina e o tragou todinho pensando que fosse vodca. Ainda bem queele não tem alma, senão teria vomitado até ela. Sinto muito, mas tenho que transferi-los paraoutro emprego.

A diabinha os acompanha num local onde está uma série de escadas íngremes, escavadas narocha. Em cada uma delas, um danado sobe vagarosamente carregando nas costas uma pedrabem pesada. Ao pé de cada escada um capeta está de plantão, pronto a castigar o réu.

-E quem seriam esses “senhores”- pergunta curioso Keco?-São funcionários brutais que abusaram de seu poder para esmagar os mais humildes. Agoraeles mesmos correm continuamente o risco de serem esmagados. No caso em que algum delesse mostre relaxado durante a subida, avisem imediatamente o guardião que o vigia. Bomtrabalho e procurem de não cometer ulteriores desastres, tá?

Durante um tempo os dois amigos executam sua tarefa à perfeição e vários prepotentesindolentes acabam sendo pungidos no traseiro. Apenas um deles, mais durão, continua a sua

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subida sem mostrar aparentes sinais de cansaço. Pico, indiscreto, quer ver de perto a cara delee, quando finalmente está diante do homem, grita:

-Ah, seu cafajeste, enfim lhe reconheço. Você é o sujeito da Imigração que nos fez deportarde Hollywood. Por sua causa perdi a possibilidade de realizar o meu sonho e me tornar ator decinema, mas juro que agora me paga!

E, aproveitando do fato que o danado usa ambas as mãos para segurar a pedra, começa a bicaro nariz dele até quando o homem, não suportando mais a dor, solta a rocha para se proteger. Agrande pedra começa a rolar a atinge em cheio a cabeça do demônio ao pé da escadaria. Osdois amigos se precipitam perto dele para socorrê-lo.

-Minha Nossa Senhora dos corvos queimados- exclama Pico.

Ao proferir essas palavras, um violento trovão, acompanhado por um tremor de terra, sacodeo Inferno e muitos capetas vão ao cão.

-Meu Jesus, o que foi isso- acrescenta Keco.

Dessa vez um terremoto de magnitude dez da escala Richter faz tremer toda a estrutura emuitas galerias desabam enquanto os diabos fogem aterrorizados.Passado o susto inicial, um grupo de capetas enfurecidos cerca os nossos amigos e perguntampor qual motivo eles se atreveram a pronunciar aqueles nomes sagrados, proibidos no local.

-Desculpem!- tenta explicar Pico -A gente nada sabia dessa regra. Garanto que essa falhanunca mais irá se repetir.-Disso tenho a maior certeza!- berra Britacão iracundo –Mandem chamar Pezinho…

Logo em seguida chega um demônio até maior que Hulk, com duas pernas do tamanho decolunas romanas e pés gigantescos. Ele pega as duas aves e, com um formidável chute naparte de trás, os faz entrar em órbita.Pico e Keco, impulsionados por uma energia desumana, não apenas furam a abóbada rochosado Inferno, mas prosseguem a sua corrida vertical por vários quilômetros até aterrissarsuavemente sobre uma grande nuvem dourada.

-Ainda bem que já estamos mortos, senão aquela pancada nos teria pulverizado- observaKeco.-Justamente, compadre, mas quem é esse franzino de longos cachos dourados que está seaproximando?

Ainda antes de obter uma resposta, a criatura celestial, com óculos de aros redondos e umabela túnica resplandecente, os cumprimenta com sua voz fina e suave:

-Salve, irmãos, sejam muito bem-vindos ao Paraíso. Por gentileza, queiram me acompanhar.

Pouco depois, os três se encontram diante de um belíssimo jardim fechado por um imensoportão. Enquanto o ser angelical o abre, Pico pergunta:

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-Então agora estamos entrando realmente no Paraíso?-Não exatamente, irmãos. Esse lugar seria a antecâmara; para acessar definitivamente faltainda uma simples formalidade: a assinatura do nosso chefe São Pedro. Atualmente ele estáviajando, mas vai voltar dentro de dois ou três dias. Fiquem à vontade e não se esqueçam deler esse folder contendo umas instruções importantes, viu?- responde o anjo.

Os dois amigos se deitam em cômodas espreguiçadeiras postas ao redor de uma grande eensolarada piscina onde jovens e moças brincam e se divertem.Uma bela anjinha se dirige a eles perguntando se desejam merendar.

-Pipoca, caviar e champanhe- responde Pico.-Compadre, acredito que nem as mais extravagantes estrelas de Hollywood cheguem amisturar pipoca com caviar, mas tudo bem… Pra mim ostras e champanhe bem geladinho-pede o Keco.

Passam assim dois dias de muita amenidade e Pico observa que, se essa é apenas aantecâmara, o Paraíso deverá ser ainda melhor. No entanto, as duas aves, começam a selembrar da amiga sentindo-se um pouco culpados por gozar de tanta felicidade enquanto eladeve estar ainda triste e mergulhada em apuros financeiros.

-Provavelmente Milady deve ter ido passar uns dias no sítio dela, lá nas montanhas.- dizKeco.-Quem sabe se o jornalzinho daquela cidade serrana reporta alguma notícia a respeito danossa amiga. Anja, por favor, vocês aqui tem jornais?- pergunta Pico.-Sim, irmão, temos de qualquer cidade do mundo. Basta me dizer qual e se prefere a data dehoje, de amanhã ou de outro dia futuro.-Minha Nossa Senhora! Isso sim que é progresso. Então me traga todos os números a partir dehoje até o final da semana. Crá!

Os dois amigos começam a procurar alguma notícia de Milady, mas não encontramabsolutamente nada.Certo ponto Keco se depara com a seguinte manchete: “Importante jazida aurífera descobertano sítio Boqueirão”.

-Hei colega, mas esse não é aquele terreno pedroso confinante com as terras da Milady?-Isso mesmo, e é justamente aquele lote cujo dono insistia pra vender pra nossa amiga a preçode banana, pois lá só dá cactos e cobras- confirma Pico.-Temos que dar um jeito e avisá-la antes que o ouro seja descoberto por outros. Crá!-Bem, vamos mesmo supor que ela se comporte igual Demi Moore no filme “Ghost”, masonde vamos encontrar a tempo uma Whoopy Goldberg que nos consinta comunicar? Temalguma idéia brilhante, Keco?-Ah, claro que tenho. Agora você enche bem a barriga, adormece, entra no sonho dela e…voilà. Deixa o recado e volta pra cá. Simples, não?

Em breve Pico já está roncando e não demora muito pra acordar novamente.

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-Missão cumprida! Ela me reconheceu, ficou feliz por ter me encontrado de novo e prometeuque irá de imediato comprar aquele terreno. Assim vai sair da pindaíba. Crá!-Perfeito, agora a gente não tem mais nada com que se preocupar- proclama Keco.-Tem sim!- atalha um anjo que acaba de chegar –Favor, venham comigo.

O pequeno grupo entra num grande prédio parecido com um ministério e Pico e Keco sãointroduzidos num austero salão onde, sentado atrás de uma elegante escrivaninha, São Pedroem pessoa os recebe e pergunta:

-Vocês leram o folder que lhe foi entregue?-A gente estava tão ocupada que acabamos esquecendo- responde Pico.-Então não sabem que antes de entrar nos sonhos dos mortais é obrigatório solicitar permissãoescrita e é absolutamente proibido comunicar informações sobre assuntos futuros,principalmente de tipo financeiro?! Se já não tivessem sido expulsos até de lá, os devolveriaao Inferno. O que me resta a fazer é mandá-los de volta à sua cidade. Infelizmente essa é aregra!

Em menos de um segundo os dois corvos se encontram novamente na casa da Milady.A felicidade dela não é menor que a surpresa de vê-los de novo em carne, osso e penas.

-Mas afinal Pico, como conseguiram voltar do outro mundo?-Bem, lembra da resposta daquele filme quando o protagonista diz: “O céu pode esperar”?Ahahahaha!-Sim, pode mesmo esperar, e o Inferno também!- acrescenta Keco -KKKKKKKK

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PICO, KECO E A MENINA TRAQUINA

-Hei, compadre, estamos no final do mês... Você não acha que está se esquecendo de umacerta coisinha? –pergunta Keco amofinado.-Magina, eu tenho memória de elefante, nunca esqueci nada na minha vida. Crá! –respondePico remansado.-E os cinqüenta contos que está me devendo?-Se preocupa de quê, por acaso não lhe assinei uma promissória?-Na verdade já assinou quatro, mas nunca me devolve meus dindins!-Ximariaaa, que cara desconfiado! Posso lhe passar um cheque pré-datado, tá bom?-Com qual data? 31 de Fevereiro de 2.999?-Minha Nossa Senhora dos corvos sem fundos, você tem coração de pedra. Nem bota fé noseu melhor amigo?!-E você não tem pena de mim, que estou envelhecendo e preciso de um modesto pé de meiapros meus anos futuros?-Se quiser posso lhe brindar com um grande pé na bunda! Ahahahaha!-Ô bicho abusado, já passou da medida. Agora vai me pagar por tamanha insolência!

Por um triz Pico escapa da fúria do amigo, interrompido na justa vingança pelos chamados deMilady:

-Queridos, preciso urgente de um favor. Uma minha amiga acabou de me ligar agorinha. Apobre está aperreada e pediu pra alguém ficar na casa dela tomando conta da filhinhaenquanto vai tentar descascar um grande abacaxi. Como eu também estou compromissadahoje, quem de vocês se habilita?-Ele! –Responde prontamente Pico apontando Keco.-Ele! –Responde Keco indicando Pico.-Pronto, entendi. Irão os dois juntos. A casa é aquela no final dessa nossa rua. O nome damenina é Carol. Se apressem que já vou dar um retorno à mulher.

Uns minutos mais tarde os dois corvos se deparam com a senhora que já está saindo de casa.

-Sejam bem vindos, amigos, e desculpem se perturbei a sua paz. Tenho um problema sério aser resolvido... Por favor, entretenham Carol até eu voltar. Grata!

Os corvos entram no quarto da menina e logo ela pergunta:

-Vocês vieram pra brincar comigo?-Pra brincar e lhe fazer companhia –responde Keco educadamente.-Então sentam-se aqui nessa mesinha que vamos tomar chá com bolachas.-Obaaa! Exclama Pico.

A garotinha começa a servir a merenda oferecendo uma bandeja vazia.

-Uai, cadê os biscoitos? E o chá? –pergunta Pico.-Disfarça, irmão. Fantasia de criança é assim mesmo. Apenas receba e agradeça.

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Terminada a refeição imaginária, Carol suplica:

-Por favor, cantem uma musiquinha pra mim.-Escute essa: “Picooo é o pirata da perna de pauuu, tem um olho de vidrooo, e a cara depauuu”- entoa Keco.-Hei, se diz cara de mau –atalha Pico.-Que nada! Você é bem bonzinho, a sua cara não é de mau, é de pau mesmo!-Gostei! Mas agora vamos brincar de mamulengos –propõe Carol.

Pega os nossos amigos e os leva para um pequeno teatrinho de papelão. Prende as pontas dasasas, as perninhas e os bicos com fios, tentando encenar uma representação.

-Compadre, nunca brinquei antes de palhaço. Ufa! –Exclama Pico desalentado.-Pico, no seu caso não deve ser um grande esforço, você é um palhaço!-Viva! –Grita Carol –Vocês são mesmo muito engraçados. Porém estou a fim de jogar dedoutora. Deitem-se em cima dessas duas placas de isopor.

Um pouco a contragosto os corvos se deitam e logo a garotinha os prende com fita adesiva.

-Você, Keco, acabou de ter um ataque de coração e eu, que sou a sua cardiologista, irei lheoperar.

Carol, que já vestiu um jaleco branco e calçou um par de luvas de borracha, saca uma faca,um par de tesouras e fala:

-Vou retirar o seu coração dodói... Posso?-Pode sim, doutora! –o coração dele não presta, é mais podre que carniça! –responde Picoexultante.-Então vou arrancá-lo e substituí-lo com o seu, Pico.-Bem pregado, seu cafajeste! –sussurra Keco.-Peraí, menina, a gente não tem plano de saúde, não temos como pagar a cirurgia... –atalhaPico bastante vexado.-Melhor ainda, eu sou da ONG “Médicos sem Fronteiras”, e a minha missão é curar ospobres! Quero ser doutora no estrangeiro...-Va bene, va bene, mas melhor você soltar a gente antes que alguém se machuque de verdade.–atalha Keco.-Não, não e não! Eu quero ser uma grande médica! Quero aprender já já, e vocês são os meusprimeiros pacientes!-Sua impertinente, você não passa de uma grande mijona de rede! –exclama Pico raivoso –Seu pai nunca lhe ensinou as boas maneiras?

Ao ouvir as palavras de Pico, Carol entristece, larga faca e tesouras, se senta num cantinho doquarto enquanto seus olhos começam a marejar.

-Tá vendo, seu incivil, acabou de ferir a sensibilidade da criança chamando-a de mijona –resmunga Keco.

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Mas Carol se vira e, numa atitude de arrependimento, choraminga:

-Perdão, amigos, vocês estão sendo muito legais. Mas eu morro de saudades do meu painhoque sumiu sem dar notícias e por isso ando muito aflita.

-Oxente, o que aconteceu com ele? –tenta investigar Pico.

-Meu pai é engenheiro e foi contratado para trabalhar no exterior –responde Carol enquanto,com um dedo, mostra no mapa-múndi a cidade onde o pai desapareceu. Mainha já tentou ir láem busca dele, mas disse que não conseguiu obter o visto e o nosso Consulado não sabe oparadeiro dele. Por favor, me ajudem!

-Tá certo, tá certo. Diga-nos o nome completo de seu pai e o endereço onde ele morava eprometo que faremos tudo o que estiver em nosso poder para trazê-lo de volta! –respondePico enquanto Keco assente com a cabeça.

A menina, ainda acabrunhada, mas já um pouquinho aliviada, abraça e beija os corvos e, paraajudá-los em sua difícil tarefa, mostra umas fotos do homem, da casa dele e um mapa turísticodaquela localidade.Sem demora, os dois amigos tranqüilizam a garotinha e se dirigem ao aeroporto internacional.

-Hei, Keco, como vamos fazer para embarcar? Não temos nem lenço nem documento...-Relaxa, compadre, antes de sair da casa de Carol tirei essas etiquetas adesivas dos brinquedosdela. A gente as cola em nossos corpos, se achega sem chamar a atenção à esteira dasbagagens e vamos fingir ser aves empalhadas. O importante é não se mexer! Sacou?-Hummm, muito bem pensado. Se der certo usarei esse mesmo ardil para voltar aHollywood...

Efetivamente o estratagema funciona e, poucas horas depois os dois heróis desembarcam nameta.Em breve, mercê a proverbial memória fotográfica e o senso di orientação dos corvos, eleslocalizam a casa do engenheiro, mas está vazia. No entanto reparam que o portão está lacradocom uma fita amarela, daquelas normalmente usadas pela polícia.Mais tarde, guiados pelo raciocínio de Keco e pelo faro de Pico, chegam àquela que aparentaser a principal delegacia da cidade.Cautelosos, começam a espiar das janelas até que, enfim, identificam uma cela onde seencontra o engenheiro, sozinho.Passando facilmente entre as grades, entram e cumprimentam o detento.Ele fica pasmo, mas Pico e Keco falam da amizade com Carol e explicam como conseguiramchegar até lá.

-Faz mais de dez dias que estou preso sem que me permitam entrar em contato com o nossocônsul ou com a minha família. Inclusive até desconheço o motivo da minha prisão.-Esses sujeitos nem respeitam os direitos humanos –murmura Pico- Mas você não faz a menoridéia do que possa ter acontecido?

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-Hummm, pensando bem, uns dias antes de ser preso flagrei um nosso funcionário, naturaldessa cidade, enquanto estava escaneando documentos industriais reservados... Sabe, osnossos concorrentes pagam bem quem lhes fornece informações confidenciais...-Essa pista é bem interessante- aprova Keco- Mas antes de tudo é fundamental informar asautoridades consulares. Não fique agitado e deixe comigo. Crá!

Keco sai da cela e procura outra janela aberta. Consegue, assim, ter acesso a um escritóriovazio onde encontra um telefone celular que é imediatamente entregue ao pai da menina.Sem perder um segundo ele liga pro consulado informando da situação.

-Agora vou logo chamar a minha esposa e Carol para tranqüilizá-las...-Peraí, -interrompe Keco –antes de cantar vitória é preciso desvendar o motivo pelo qual foiinjustamente encarcerado. Sabe nos dizer onde podemos encontrar aquele funcionáriodesonesto?-Sim, com certeza.

O engenheiro fornece uma descrição do indivíduo explicando também onde pode serencontrado.

-Ligeiro, Pico, e sem esquecer de levar esse celular!

Em menos de meia hora os dois detetives penudos alcançam um local onde acham o dito-cujoem companhia de um policial e de outro desconhecido.

-Hei Keco, esse local tem um quê de equívoco que lembra de perto o famoso Rick’s CaféAméricain do filme Casablanca, lembra?-Sim, aquele interpretado magistralmente pelo inesquecível...-Humphrey Boga, acertei? –atalha Pico.-Cuidado, irmão! Pronunciar o nome dessa forma pode dar cadeia por atentado ao pudor! Onome certo é Bogart, não Boga.-Tá certo, tá certo, mas vamos prestar atenção aos meliantes...

O grupo não para de beber e de dar gargalhadas, mangando da ingenuidade do engenheiro.Sabidamente, os dois amigos gravam a cena mediante o celular. Quando enfim os malandrosse separam, Pico e Keco voltam à delegacia. Dessa vez o prisioneiro não está mais sozinho nacela, mas em companhia do vice-cônsul e de um advogado.

-Chegamos a tempo; eis a prova da inocência desse senhor –exclama Pico enquanto entrega ocelular ao advogado.-Essa é prova definitiva a qual demonstra que houve conspiração contra esse cidadão. Vamossolicitar imediatamente a soltura do engenheiro. Quanto a vocês, o consulado providenciará assuas passagens de volta.-Vivaaa! Iremos voar na Business Class? –pergunta Keco.-Infelizmente não temos como arcar com esse tipo de despesa, portanto viajarão de ônibus.-Aff, já estava sentindo o gostinho do Champanhe –murmura Pico.

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Uma semana depois os dois corvos chegam em casa onde são muito bem recebidos porMilady e a mãe da menina.

-Queridos, tenho muito orgulho de vocês, pois permitiram a Carol de reabraçar o pai. E, comono próximo domingo ele e a esposa vão sair juntos para comemorar, eles queriam saber seestariam a fim de passar a tarde na casa deles... Vai ter uma festinha de crianças e vocês sãoos convidados de honra.

-Oba! Vai ter pipoca? –pergunta Pico.-Com toda certeza. –responde a esposa do engenheiro –E Carol vai receber um presente quedesejava há muito tempo.-Do que se trata? –pergunta Keco.-Do kit “O pequeno veterinário”...-Senhora –fala Pico sisudo- adoraríamos de verdade, mas lembrei que nesse final de semanatemos já um compromisso marcado, ou seja participar de um ciclo de meditaçãotranscendental...-Isso mesmo –acrescenta Keco.-Tudo bem –comenta a senhora- fica para outra vez.

E vai embora...

-Posso saber que história é essa? –pergunta Milady meio cismada.-Nada não –responde Pico –somos animais, mas não somos bestas! Hehehe.-E muito menos cobaias! Ahahahaha! –acrescenta Keco.-Ah, quase que esquecia –acrescenta Milady- a mãe da garota deixou essa gratificação:cinqüenta reais pra cada um de vocês.

Com uma rapidez fulminante, Keco se apossa das duas notas e fala pro amigo:

-Enfim estamos quites, irmão. Crá!-Aff...

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PICO, KECO E A CAPITAL DO CINEMA

-Meninos –fala Milady- como hoje é o Dia dos namorados, antes de sair de casa pracomemorar com o meu boy-friend, vou preparar um doce pra vocês. Fiquem em sua salaassistindo o filme “V de Vingança” que recebi emprestado de uma amiga.

Os dois se empoleiram em cima do sofá preferido e começam a degustar o espetáculo. Avisão do filme procede tranqüila até os corvos ouvirem um carro parar bem em frente aoportão. Curioso, Pico pausa o filme e olha fora da janela.Um jovem alto, bem arrumado, de longos cabelos loiros desce do veículo, confere o númeroda habitação e, sem hesitar, toca a campainha.

-Minha Nossa Senhora dos corvos acuados, mas eu já vi aquele cara –grita Pico com os olhosesbugalhados.-Deixa dar uma olhada –admira-se Keco enquanto voa pra janela.-Caramba, compadre! Agora que me lembro! É aquele hippy americano que deixamos noprego na estrada que leva à cidade de Ouro Tenebroso... Eta! Tá olhando pra cá, disfarça...-Acho que você está aludindo a Ouro Preto, mas tanto faz... Agora quem vai entrar pelo canoé você, pois foi por sua causa que Milady não deu carona ao rapaz.-Oxente! Salve-se quem puder! Cada um por si, Deus por todos e o capeta por ninguém –brada Pico enquanto corre para o banheiro escondendo-se dentro da privada.-Sai daí, seu molenga –ameaça Keco- antes que me dê vontade de dar descarga! Seja homeme enfrente o gringo. Crá!-Pra começar eu sou uma ave e não um homem. Em segundo lugar não quero passar o restode meus dias preso em Guantánamo vestindo um ridículo macacão alaranjado!-Pense positivo, irmão. Você nem sabe o que o cara veio fazer; além disso, ele já entrou e estáconversando com a nossa amiga.

Mal Keco acaba de proferir suas palavras que Milady os chama:

-Queridos, venham ver quem nos veio visitar...-Já sei –murmura Pico cabisbaixo- é o tal do V, o vingador...

Os dois se aproximam e o jovem os cumprimenta com bastante educação e respeito.

-My dear friends –inicia ele prosseguindo num português impecável, mas com forte sotaqueamericano- meu nome é Richard e vim para lhes agradecer, em particular demonstrar a minhagratidão ao Sr. Pico.-Aff, ele veio me dar o famoso “beijo da morte” como nos filmes de mafiosos. Estouperdido...- choraminga Pico.-Pois, foi graças a vocês que encontrei o amor da minha vida, a mulher de meus sonhos.-Estamos sem entender...- observa Keco.-Lembram de quando lhes pedi carona e não pararam?-Mr. Richard –suplica Pico- foi tudo um mal-entendido, nos deixe explicar...-Ah, my friend, eu sou budista e acredito no carma, e sei como até uma ação malvada podeacarretar o bem. Realmente, o carro que parou logo em seguida estava sendo dirigido por uma

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jovem maravilhosa que, em breve, tornou-se a minha companheira. Mas se vocês tivessem medado carona, provavelmente nunca teria tido a chance de conhecê-la.-Que linda história de amor, fico até arrepiada –comenta Milady com um sorriso –aceita umafatia de bolo?

O americano aceita, e a conversa continua amena e bem descontraída.Antes de sair de casa ele agradece novamente e, dirigindo-se principalmente a Pico, continua:

-Não foi fácil localizar a sua moradia, mas, sendo eu filho do embaixador dos Estados Unidos,pude contar com a cooperação do serviço secreto, a famosa CIA. Agora queria saber se vocêsaceitariam a hospitalidade da minha família que mora em Los Angeles...-Obaaa! –atalha logo Pico – bem pertinho de Hollywood, né?-Isso mesmo, e será um grande prazer levá-lo até lá pra lhes mostrar os estúdios de cinemamais famosos do mundo.-E iremos viajar na Classe Executiva? –pergunta Keco.-Yes, of course! E não se preocupem com o idioma, quem vai lhes receber e acompanhardurante a sua estadia é minha irmã Jenny, que conhece o Brasil e fala bem português.

Naturalmente os dois amigos aceitam o convite e, dez dias depois já estão voando comdestino Los Angeles.Durante a travessia, Pico, agoniado, chama:

-Hei, aeromoça...-Pois não senhor...-Tem certeza que essa é mesmo a Business Class?-Sim, senhor, por qual motivo está duvidando?-Porque nunca imaginei que na Classe Executiva as pessoas tivessem que permanecerenjauladas e sem direito ao Champanhe, oras!-As pessoas não, mas os corvos sim. Vocês estão voando na Primeira Classe dos animais. Asnormas da companhia impedem que sejam servidas bebidas alcoólicas aos pets, mas possolhes oferecer pipoca com guaraná. Aceitam?-Va bene, va bene. Melhor que nada... –responde Keco.

Após uma viagem enfadonha os dois desembarcam no aeroporto internacional onde Jenny osespera e os ajuda nas práticas de desembarque.

-Enfim chegamos na capital mundial do cinema. Crá! Seria um sonho trabalhar aqui...-All right, Mr. Pico. Depois de amanhã já poderemos dar uma volta pelas ruas de Hollywood,cidade onde conheço algumas pessoas ligadas ao mundo do cinema. Talvez consiga lhearrumar uma pequena parte num filme... Mas antes quero ter o prazer de levá-los a assistiruma partida de baseball, que é o esporte mais popular nos Estados Unidos.

Assim, já no dia seguinte, os três vão assistir ao famoso jogo. No estádio lotado, o públicoexulta quando um dos dois times marca um ponto decisivo.

-Estão vendo, queridos, aquele batedor é tão habilidoso que em apenas dois anos de carreiratornou-se um dos esportistas mais ricos de Los Angeles.

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-Afinal –comenta Pico- é toda uma questão de reflexos. Sendo os meus simplesmentefantásticos, tenho certeza que poderia ser um excelente batedor...-Sim, de carteiras! –atalha Keco.

Por um triz os dois corvos não começam a brigar. Por sorte Jenny, naquele exato momento,consegue, pelo celular, marcar um encontro com um conhecido dela.Assim, conforme combinado, Pico, Keco e Jenny vão a Hollywood onde se deparam com ocineasta em companhia de sua namorada.A jovem apresenta os corvos ao manager e, enquanto conversam, percorrem juntos, a pé, otrecho duma avenida bastante badalada. De repente uma van pára no meio da rua e dela desceum elemento cujo rosto está escondido por uma máscara de Guy Fawkes. O sujeito olha aoseu redor como se estivesse em busca de alguém.Enquanto os outros transeuntes se calam perplexos, Pico começa a gritar:

-Vivaaa! Esse deve ser o famoso ator Hugo Weaving, o intérprete de “V de Vingança” Hei,amigooo, estamos aquiii! Prazer em te conhecer! Pode nos brindar com um seu autógrafo?

O desconhecido, cuja atenção é chamada pela algazarra do corvo, se aproxima do pequenogrupo, saca de uma bolsa uns ovos podres e atinge em cheio o cineasta e a mulher dele. Logoem seguida sai correndo e desaparece no meio da multidão.

-Viximaria, que bela ação! Vamos aparecer no filme? –comenta Pico entusiasmado- Mas cadêas câmaras que não as vejo?-Cala a boca, seu trouxa, esse não é cinema, aquele maluco nos agrediu de verdade –respondeKeco encabulado.

Jenny, vendo que o amigo cineasta está perto de explodir pela raiva, rapidamente se despedelevando consigo os dois corvos.

-Mr. Pico, veja bem... Nem tudo que acontece aqui em Hollywood é ficção. Agora aquelemeu conhecido ficou bastante chateado... Uma pena, pois ele costuma dar confiança aosnovatos. Perdeu uma oportunidade, vai aparecer outra. Mas tente não estragar tudo de novo,OK?-Tá certo, tá certo –responde Pico irritado- prometo que daqui pra frente irei levar tudo muitomais a sério.

Na manhã do sábado Jenny, radiante de alegria, comunica uma importante notícia a seusamigos penudos:

-Conversei com Mr. Thompson, importante produtor, e ele disse estar interessado emcontratar dois corvos para realizar um seriado sobre fenômenos paranormais. Essa noiteiremos todos jantar num dos restaurantes mais fashion da cidade. Right?

Às nove horas da noite, Jenny e seus amigos brasileiros, devidamente engravatados, seencontram com Mr. e Mrs. Thompson na frente do local. Trocam rápidos cumprimentos,entram e, enquanto Jenny e o casal se sentam numa mesinha perto do palco, Pico e Keco seacomodam em outra menor um pouco mais afastada.

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Tudo vai bem. Jenny conversa numa boa com os Thompsons falando, também, do talento dePico e de sua imensa força de vontade para se tornar uma estrela do cinema.Volta e meia, Mrs. Thompson, enternecida, olha na direção dos corvos anuindo com umsorriso.

-Tá vendo, seu descrente? –sussurra Pico –eles já estão planejando a minha carreira. Ah, semeu pai me visse iria ficar muito orgulhoso de mim. Crá!-Calma, irmão, ainda não assinou contrato algum... –murmura Keco- E você é capaz de irritaraté um santo com suas trapalhadas, fruto da herança genética de seu pai.-Não se atreva a falar mal dos meus antepassados, seu italiano devorador de macarrão.-Não sou hipócrita, adoro macarrão e, além disso, não quero abusar da hospitalidade doprodutor, diferente de você que continua enchendo a pança com aquele caríssimo suflê decaviar com pipoca.-Logo, quando eu também for milionário, irei retribuir em dobro. Crá.

Naquele instante um garçom leva pra mesa dos Thompsons um bolo de chocolate ensopadode álcool e o acende com um isqueiro.Pico, vendo o clarão da chama, grita assustado:

-Minha Nossa Senhora dos corvos carbonizados! Estão ateando fogo nos americanos!Estamos sofrendo um atentado de Al Queda! Socorrooo!-Se acalme, seu abestalhado, é apenas um pudding flambé- tenta tranqüilizar Keco.

Mas Pico já nem ouve a explicação do amigo: pega uma garrafa de seltz e dirige o jato bemem cima do doce. A chama se apaga, mas o vestido de Mrs. Thompson fica bastantelambuzado de chocolate.Todos os comensais permanecem de queixo caído e lançam olhadas de comiseração nadireção de Pico e de sua ilustre vítima.

-Compadre, melhor a gente se mandar logo, antes que chegue a polícia, o FBI e os NavySeals. Não quero se tratado igual terrorista –aconselha Keco.

Os dois amigos se afastam rapidamente do local deixando a pobre da Jenny pagar mico.Nos dias seguintes ela fica sem se comunicar com eles, até a raiva passar. Enfim, numamanhã de domingo, os procura e diz:

-Mr. Pico, apesar dos desastres que você provocou, ainda surgiu outra chance. O pai de ummeu amigo de faculdade é um famoso publicitário e pode ser que esteja interessado na suaarte. Nesse momento ele se encontra num campo de golfe onde luta para o título de campeãoda Califórnia. Vamos lá agora: se ele terminar o torneio vitorioso, será bem disposto em medar ouvidos e quem sabe...

Os três chegam ao campo quando o jogo está quase terminando. O publicitário, em vantagemsobre o seu adversário, está prestes a dar as últimas tacadas.

-Hei, Keco, como funciona esse jogo?

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-Tá vendo aquela baindeirinha lá? O homem deve fazer com que a bola dele chegue o maispróxima possível à haste, desferrando o número menor de tacadas. Vence quem chegarprimeiro. Mas agora fique no maior silêncio! Combinado?!

Pico segue com grande curiosidade as derradeiras fases do jogo.Agora o publicitário está prestes a dar o último golpe de taco à sua bola que se encontra amenos de dez metros do buraco. O empresário se concentra, pega bem a mira, calibra comprecisão o golpe e, com efeito, a pequena esfera pega a direção certinha.Quando faltam poucos metros e Pico se dá conta que a bolinha irá cair exatamente dentro doburaco, sussurra pro amigo:

-Keco, se aquela bola sumir no do buraco, o nosso homem está perdido, mas eu não voupermitir. Crá!

E, sem que Keco possa fazer nada para impedi-lo, levanta vôo, agarra a bola poucoscentímetros antes que ela entre na 18a hole e, orgulhoso, a entrega de volta ao jogador.O publicitário, enfurecido, desferra uma tremenda tacada no traseiro de Pico.O corvo some do mapa.Durante uns dias Keco e Jenny não deixam de procurá-lo, mas sem sucesso.

-Temo –comenta Jenny com Keco- que o nosso amigo tenha cometido um ato insano.-Não se preocupe amiga, a única forma de suicídio que ele conhece é comer pipoca atéexplodir, mas duvido que tenha encontrado uma loja capaz de cozinhar tamanha quantidadede milho arrebentado. Crá.

Finalmente uma noite, enquanto Keco está tentando pegar sono, ouve bicadas no vidro dajanela. É Pico que está de volta.

-Irmão, por onde andou esse tempo todo?-Fiquei perambulando pelos becos de Hollywood, pedindo esmola como já fazia meu pai.Você tinha razão, esse é mal de família...-Não fique triste, amigo. Cada qual nasce com algum talento, e o seu é de bagunçar. Essa é avida, mas conte sempre com a minha sincera amizade e a de Milady. Agora descanse, poisamanhã temos que embarcar. Boa noite.-Boa noite, amigo e... obrigado por tudo.

No dia seguinte os dois corvos são levados ao aeroporto por um rapaz amigo de Jenny.

-Ela deve estar tão chateada que nem quis comparecer ao embarque –observa Picodesconsolado.-Não posso censurá-la... –concorda Keco.

Enquanto estão na sala de espera e o alto-falante já anuncia a última chamada, lá vem ela,ofegante, correndo em direção de Pico.

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-Sorry, boy. Essa minha ausência não estava programada, mas passei boa parte da noite e damadrugada em companhia do amigo Phil. Mostrei pra ele todas as cenas gravadas com o meucelular...-Que cenas, e quem é esse sujeito? –pergunta Pico.-As cenas dos ovos podres, do pudim flambé e, of course, a da bola de golfe. Phil é um notodiretor do cinema underground e quase ficou sufocado de tantas gargalhadas que deu... E eleadora descobrir novos talentos.-Cinema underground? –pergunta Pico meio desconfiado –Aqueles que trabalham nosesgotos?-Nada disso, seu bobo! –responde Keco- Muitos atores famosos começaram com esse tipo decinema.-O seu amigo tem razão, e Phil quer que vocês comecem a trabalhar com ele já já. Eis ocontrato e um cheque de trinta mil dólares. Aceitam?-Mas por que eu também?- diz Pico.-Porque vocês são uma dupla perfeita, se completam um ao outro –reforça Jenny.

Pico, Keco e Jenny saem alegres do grande aeroporto enquanto milhares de passageirosseguem rumo para os seus próprios destinos.

FIM

Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida -em qualquer meio ouforma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópias, gravação-sem a expressa autorização doautor. Livro registrado na Fundação Biblioteca Nacional em 18/05/2012.