Philippa gregory - a rainha branca

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A RAINHA BRANCA

PHILIPPA GREGORY

Badana da capa:

PHILIPPA GREGORY nasceu no Quénia em 1954, mas mudou-se

com a família para Bristol, na Inglaterra, quando tinha dois anos.

Frequentou a Universidade de Sussex, onde um curso de Iniciação à

História viria a mudar a sua vida.

Até hoje já publicou livros - muitos deles bestsellers. Philippa

Gregory é doutorada em Literatura do Século XVII pela Universidade de

Edimburgo e os seus romances reflectem uma pesquisa e um pormenor

histórico meticulosos. O seu período favorito da História é a época Tudor,

sobre a qual já escreveu vários romances, alguns dos quais foram adaptados

pela BBC a dramas históricos.

Títulos da autora publicados pela Civilização Editora:

A Espia da Rainha, Janeiro 2006

Catarina de Aragão, Outubro 2006

O Amante da Rainha, Março 2007

A Herança Bolena, Novembro 2007

Duas Irmãs, Um Rei, Janeiro 2008

A Outra Rainha, Fevereiro 2009

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Capa © Liane Payne

Philippa Gregory

Civilização Editora

Título original: The White Queen

Copyright © 2009 Philippa Gregory

Esta edição só pode ser vendida em Portugal e nos países lusófonos

excluindo o Brasil.

Copyright da edição portuguesa © 2009 Civilização Editora

Todos os direitos reservados

Tradução: Maria Beatriz Sequeira

Revisão

Departamento Editorial da Civilização Editora

Adaptação da capa

Civilização Editora

Créditos fotográficos

Capa © Liane Payne

Fotografia © Jeff Cottenden

Design © Depto. Arte S&S/Rafaela Romaya

Pré-impressão, impressão e acabamento

CEM Artes Gráficas, Barcelos para Civilização Editora em Fevereiro

de 2010

ISBN 978-972-26-3012-2

Depósito Legal 302433/09

Civilização Editora

Rua Alberto Aires de Gouveia, 27 4050-023 Porto Tel.: 226 050 900

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Para Anthony

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Eduardo III (1312-1377)

Filhos de Eduardo III - Eduardo, O Príncipe Negro

João de Gaunt, (1.º Duque de Lencastre) (1340-1399)

Edmundo, Duque de Iorque (1341-1402)

Casa de LENCASTRE

João de Gaunt, 1º duque de Lencastre casou em primeiras núpcias

com Blanche de Lencastre; deste casamento nasceu Henrique IV (1367-

1413), que casou com Maria de Bohun (1369-1394), pais de Henrique V

(1386-1422) que casou com Catarina de Valois (1401-1437), pais de

Henrique VI (1421-. Após a morte de Henrique V Catarina de Valois casou

com Owen Tudor. Deste casamento nasceu Edmundo Tudor (1430).

Henrique VI casou com Margarida de Anjou em 1430.

João de Gaunt, 1º Duque de Lencastre Casou em terceiras núpcias

com Catarina Swynford; deste casamento nasceu João de Beaufort, Conde

de Somerset (1373-1410) pai de João Beaufort, Duque de Somerset (1404-

1444), pai de Margarida de Beaufort (1444-).

Casa de IORQUE

Do casamento de Edmundo, Duque de Iorque com Isabel de Castela

nasceu Ricardo, Conde de Cambridge (1373-1415), pai de Ricardo, Duque

de Iorque (1411-) que casou com Cecília Nevil e tiveram 3 filhos: Eduardo

IV (1442-), Jorge, Duque de Clarence (1449-) e Ricardo, Duque de

Gloucester (1552-)

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Os Primos em guerra

As Casas de Iorque, Lencastre e Tudor na Primavera de

1464

Batalhas das guerras entre primos

Ano Localidade Vencedor

1455 St. Alban's Iorque

1459 Ludford Bridge

Lencastre

1459 Blore Heath Lencastre

1460 Northampton

Iorque

1460 Wakefield Lencastre

1461 St. Alban's Lencastre

1461 Mortimer's Cros s

Iorque

1461 Towton Iorque

1461 Ferrybridge Iorque

1464 Hedgeley Moor

Iorque

1464 Hexham Iorque

1470 Losecote Field

Iorque

1471 Tewkesbury Iorque

1471 Barnet Iorque

Na escuridão da floresta, o jovem cavaleiro podia ouvir o

esparrinhar da fonte, muito antes de conseguir ver o ténue luar reflectido

na superfície tranquila. Preparava-se para dar um passo em frente,

ansiando por mergulhar a cabeça, absorver a frescura, quando susteve a

respiração, ao vislumbrar algo escuro, movendo-se nas profundezas da

água. Havia uma sombra esverdeada no tanque fundo da fonte, algo

semelhante a um peixe enorme, algo parecido com o corpo de alguém que

se tivesse afogado. Depois moveu-se e pôs-se de pé, e ele viu,

assustadoramente despida, uma mulher que se banhava. A pele dela, ao

erguer-se, com a água a escorrer-lhe pelo corpo, era ainda mais pálida do

que o tanque de mármore branco, o cabelo negro molhado, escuro como

uma sombra.

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Ela é Melusina, a deusa da água, e pode ser encontrada em fontes e

quedas-d’água escondidas em qualquer floresta da Cristandade, mesmo

naquelas que ficam tão distantes como a Grécia. Também se banha em

fontes mouriscas. Nos países do Norte, onde os lagos estão cobertos de

gelo e este estala quando ela se levanta, conhecem-na por outro nome. Um

homem pode amá-la, se mantiver o seu segredo e a deixar sozinha quando

deseja banhar-se, e ela pode retribuir-lhe esse amor até ele quebrar a sua

palavra, como os homens sempre fazem, e ela o arrastar para as

profundezas, com a sua cauda de peixe, e transformar o sangue infiel dele

em água.

A tragédia de Melusina, seja qual for a língua que a relate,

independentemente da melodia que a cante, é que um homem prometerá

sempre mais do que pode fazer a uma mulher que não é capaz de

compreender.

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PRIMAVERA DE 1464

O meu pai é Sir Ricardo Woodville, o Barão Rivers, nobre inglês,

proprietário de terras e apoiante dos legítimos Reis da Inglaterra, a linha

dos Lencastre. A minha mãe descende dos Duques da Borgonha e, assim,

possui o sangue aquoso da deusa Melusina, que fundou a casa real da

família com o seu extasiado amante ducal, e ainda pode ser encontrada, por

vezes, em momentos de grande dificuldade, gritando um aviso sobre os

telhados de castelos, quando um filho e herdeiro está a morrer e a família

condenada ao fracasso. Ou, pelo menos, é o que dizem os que acreditam

em tais coisas.

Com esta minha ascendência contraditória, terra sólida inglesa e uma

deusa da água francesa, poderia esperar-se qualquer coisa de mim: uma

feiticeira ou uma rapariga normal. Há quem diga que sou ambas as coisas.

Mas hoje, quando penteio o meu cabelo com especial cuidado e o

componho sob o meu toucado mais alto, pego nas mãos dos meus dois

filhos órfãos de pai e sigo pela estrada que leva a Northampton, daria tudo

o que sou para ser, só desta vez, simplesmente irresistível.

Tenho de atrair a atenção de um homem jovem que vai a caminho de

mais uma batalha contra um inimigo que não pode ser derrotado. Talvez

nem sequer me veja. Não é provável que ele esteja com disposição para

pedintes ou namoricos. Tenho de suscitar a compaixão dele pela minha

posição, inspirar a compaixão dele pelas minhas necessidades e ficar

gravada na memória dele o tempo suficiente para que faça algo por ambas.

E este é um homem que tem mulheres bonitas a atirarem-se a ele todas as

noites da semana, e uma centena de pretendentes para cada posição que ele

possa oferecer.

É um usurpador e um tirano, meu inimigo e filho do meu inimigo,

mas eu estou muito para além de poder ser leal a alguém que não sejam os

meus filhos e eu mesma. O meu pai cavalgou para a batalha de Towton

para combater este homem que agora se autodenomina Rei da Inglaterra,

apesar de ser pouco mais do que um fanfarrão; e nunca vi um homem tão

destroçado como o meu pai, quando regressou a casa, de Towton, o seu

braço que segura a espada a manchar o casaco de sangue, o rosto pálido,

afirmando que este rapaz é um comandante de tal ordem como nunca

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vimos, e que a nossa causa está perdida, e que todos ficamos sem esperança

enquanto ele viver. Vinte mil homens foram ceifados em Towton sob as

ordens deste rapaz; nunca ninguém vira tantas mortes na Inglaterra. O meu

pai disse que havia sido uma ceifa de membros da casa de Lencastre, não

uma batalha. O Rei legítimo e a sua mulher, a Rainha Margarida de Anjou,

fugiram para a Escócia, devastados pelas mortes.

Aqueles de nós que ficaram na Inglaterra não se renderam

prontamente. As batalhas prosseguiram, para resistir a este falso rei, este

rapaz de Iorque. O meu próprio marido foi morto a comandar a nossa

cavalaria, há apenas três anos, em St. Albans. E agora fiquei viúva, e todas

as terras e fortuna a que em tempos chamei minhas foram-me tiradas pela

minha sogra, com a boa vontade do vencedor, o chefe deste rei-menino, o

grande marionetista que se sabe ser o fazedor de reis: Ricardo Neville,

Conde de Warwick, que fez deste rapaz vaidoso um rei, agora com apenas

vinte e dois anos, e que transformará a Inglaterra num Inferno para aqueles

de nós que ainda defendem a Casa de Lencastre.

Existem partidários dos Iorque em todas as grandes casas da região,

agora, e todos os negócios ou lugares rentáveis estão na posse deles. O rei-

menino deles está no trono e os seus partidários compõem agora a nova

corte. Nós, os derrotados, somos indigentes nas nossas próprias casas e

estranhos na nossa própria região, o nosso rei, um exilado, a nossa rainha,

uma estrangeira vingativa que conspira com a nossa antiga inimiga, a

França. Temos de nos conformar com o tirano de Iorque, ao mesmo tempo

que rezamos para que Deus se volte contra ele e para que o nosso rei

legítimo varra O Sul com um exército, para ainda mais uma batalha.

Entretanto, como muitas mulheres com um marido morto e um pai

derrotado, tenho de recompor a minha vida como uma manta de retalhos.

Tenho de reconquistar a minha fortuna de algum modo, ainda que me

pareça que nenhum parente ou amigo possa abrir caminho para mim.

Somos todos conhecidos como traidores. Fomos perdoados, mas não somos

amados. Nenhum de nós detém qualquer poder. Terei de ser a minha

própria advogada e apresentar o meu caso a um rapaz que respeita tão

pouco a justiça que se atreveria a reunir um exército contra o seu próprio

primo: um rei ordenado. O que é que alguém poderá dizer a um selvagem

destes, que ele possa compreender?

Os meus filhos, Tomás, que tem nove anos, e Ricardo, que tem oito,

estão vestidos com as suas melhores roupas, o cabelo húmido e alisado, os

rostos brilhantes do sabão. Aperto-lhes bem as mãos enquanto eles

permanecem de cada um dos meus lados, porque eles são verdadeiros

rapazes e atraem a sujidade como por magia. Se os largar um segundo, um

vai arranhar os sapatos e o outro rasgar as meias, ambos conseguirão ficar

com folhas no cabelo e lama nas faces, e Tomás cairá, de certeza, ao rio.

Assim, ancorados pela minha mão forte, passam o peso de uma perna para

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a outra, numa agonia de tédio, e só se endireitam quando digo:

- Chiu, estou a ouvir cavalos.

A princípio, soa como o bater da chuva, e depois, passados alguns

momentos, um estrondo como trovões. O tinido do arnês e o esvoaçar dos

estandartes, o tilintar das cotas de malha e o arquejar dos cavalos, o som, o

cheiro e o bramido de uma centena de cavalos, conduzidos a grande

velocidade, é avassalador e, apesar de eu estar determinada em destacar-me

e fazer com que parem, não consigo deixar de me encolher e recuar. Como

será enfrentar estes homens a cavalgarem na batalha com as lanças

estendidas diante de si, como um muro galopante de bordões? Como é que

algum homem poderia encar-lo?

Tomás vê a cabeça loira desprotegida no meio de toda a fúria e

ruído, e, como o rapaz que é, grita:

- Urra!

E, ao ouvir o grito da sua voz de soprano, vejo a cabeça do homem

voltar-se, e ele vê-me, bem como aos rapazes, e a sua mão agarra as rédeas

e grita:

- Alto!

O cavalo dele levanta-se sobre as patas traseiras, depois de sofrer um

puxão das rédeas para que se detivesse, e toda a cavalgada se move em

círculos e sobresta-se, praguejando por aquela paragem súbita, e depois,

abruptamente, tudo fica em silêncio e a poeira ondeia em nosso redor.

O cavalo dele resfolega, abana a cabeça, mas o cavaleiro é como

uma estátua sobre a garupa alta. Está a olhar para mim e eu para ele, e está

tudo tão silencioso que consigo ouvir um tordo nos ramos de um carvalho,

por cima de mim. Como ele canta! Meu Deus, canta como se fosse um

cântico de glória, a própria alegria transformada em som. Nunca tinha

ouvido um pássaro cantar assim, como se estivesse a cantar com alegria a

felicidade.

Dou um passo em frente, ainda a segurar as mãos dos meus filhos,

abro a boca para apresentar o meu caso, mas, nesse momento, nesse

momento crucial, fico sem palavras. Pratiquei bastante. Tinha um pequeno

discurso muito bem preparado, mas agora não tenho nada. E é quase como

se não precisasse de palavras. Limito-me a olhar para ele e espero que, de

algum modo, ele compreenda tudo - o meu receio do futuro e as minhas

esperanças para estes meus rapazes, a minha falta de dinheiro e a irritante

pena do meu pai, que faz com que viver debaixo do tecto dele seja tão

insuportável para mim, a frieza da minha cama à noite, e o meu desejo de

ter outro filho, a sensação de a minha vida ter terminado. Querido Deus, só

tenho vinte e sete anos, a minha causa foi derrotada, o meu pobre marido

está morto. Terei de ser uma das muitas pobres viúvas que irão passar o

resto dos seus dias junto da lareira de outrem, tentando ser uma boa

hóspede? Nunca irei voltar a ser beijada? Nunca voltarei a sentir alegria?

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Nunca mais?

E o pássaro continua a cantar como se dissesse que a alegria é fácil,

para aqueles que a desejem.

Ele faz um gesto com a mão para o homem mais velho ao seu lado e

o homem resmunga uma ordem, os soldados voltam os cavalos para fora da

estrada e dirigem-se para debaixo da sombra das árvores. Mas o rei

desmonta, com um salto, do seu grande cavalo, deixa cair as rédeas, e

caminha na minha direcção e dos meus filhos. Sou uma mulher alta, mas

dou-lhe, aproximadamente, pelo ombro, ele deve ter bastante mais de um

metro e oitenta de altura. Os meus filhos esticam o pescoço para o ver: é

um gigante para eles. Tem o cabelo louro, olhos cinzentos, um rosto

bronzeado, aberto, sorridente, cheio de encanto, agradável na sua graça.

Este é um rei como nunca vimos antes na Inglaterra: é um homem que as

pessoas amarão, assim que o virem. E os seus olhos estão cravados no meu

rosto, como se eu guardasse um segredo que ele tem de saber, como se nos

conhecêssemos desde sempre, e sinto as minhas bochechas arderem, mas

não consigo desviar os olhos dele.

Neste mundo, uma mulher modesta baixa os olhos, mantém-nos

fixos nos chinelos; um pedinte baixa-se numa vénia e estende uma mão

suplicante. Mas eu mantenho-me de pé, estou chocada comigo mesma,

olhando-o fixamente, como um camponês ignorante, e apercebo-me de que

não consigo apartar os olhos dos dele, da sua boca sorridente, do seu olhar,

que arde na minha face.

- Quem é esta? - pergunta ele, ainda olhando para mim.

- Vossa Graça, esta é a minha mãe, Lady Isabel Grey - responde

educadamente o meu filho Tomás, e retira o boné, baixando-se, apoiado

num joelho.

Ricardo, do meu outro lado, também se ajoelha e murmura, como se

não pudesse ser ouvido:

- Este é o rei? A sério? É o homem mais alto que já vi na minha vida!

Eu baixo-me numa vénia, mas não consigo desviar o olhar. Em vez

disso, cravo os olhos nele, como uma mulher poderia olhar fixamente com

olhos ardentes para um homem que adora.

- Levantai-vos - diz ele. A sua voz é baixa, para que apenas eu a

ouça. - Haveis vindo para falar comigo?

- Preciso da vossa ajuda - digo. Mal consigo formar as palavras.

Sinto-me como se a poção de amor, em que a minha mãe ensopou o lenço

que ondeia do meu toucado, estivesse a exercer efeito em mim e não nele. -

Não consigo obter as terras do meu dote, as minhas arras, agora que

enviuvei - gaguejo diante do seu interesse sorridente. - Agora sou viúva.

Não tenho do que viver.

- Viúva?

- O meu marido era Sir John Grey. Morreu em St. Albans - afirmo. É

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o mesmo que confessar a minha traição e a condenação dos meus filhos. O

rei reconhecerá o nome do comandante da cavalaria do seu inimigo. Mordo

o lábio. - O pai deles cumpriu o seu dever, tal como o concebia, Vossa

Graça: foi leal ao homem que ele considerava ser o rei. Os meus filhos

estão completamente inocentes.

- Ele deixou-vos estes dois filhos? - sorri para os meus rapazes.

- A melhor parte da minha fortuna - digo. - Este é o Ricardo e este é

o Tomás Grey.

Ele acena com a cabeça na direcção dos meus filhos, que levantam

os olhos para ele como se ele fosse uma espécie de cavalo de fina raça,

demasiado grande para eles afagarem, mas uma figura a quem prestar uma

admiração temerosa, e depois olha para mim.

- Tenho sede - afirma. - A vossa casa fica perto?

- Ficaríamos muito honrados... - olho de relance para o guarda que

cavalga com ele. Devia haver mais de uma centena deles. Ele ri-se.

- Eles podem seguir viagem - decide. - Hastings - o homem mais

velho volta-se e aguarda. - Vós ides prosseguindo para Grafton. Já vos

apanho. Smollett pode ficar comigo, e Forbes. Irei dentro de

aproximadamente uma hora.

Sir Guilherme Hastings olha-me da cabeça aos pés, como se eu fosse

um pedaço de uma fita bonita que estivesse à venda. Lanço-lhe um olhar

duro em resposta, e ele tira o chapéu e faz-me uma vénia, dirige uma

saudação ao rei, grita para que os guardas voltem a montar.

- Para onde vos dirigis? - pergunta ele ao rei. O rei-menino olha para

mim.

- Vamos a casa do meu pai, o Barão Rivers, Sir Ricardo, Woodville -

afirmo orgulhosamente, ainda que saiba que o rei reconhecerá o nome de

um homem que fruía de um lugar elevado nos favores da corte dos

Lencastre, que combateu por eles, e que uma vez ouviu palavras duras dele,

pessoalmente, quando Iorque e Lencastre se encontravam prestes a

combater. Todos conhecemos o suficiente uns dos outros, mas esquecer

que em tempos todos fomos leais a Henrique VI é uma cortesia geralmente

cumprida, até estes se terem transformado em traidores.

Sir Guilherme ergue as sobrancelhas perante o sítio escolhido pelo

rei para parar.

- Então, duvido que queirais ficar muito tempo - diz ele, de modo

inconveniente, e continua a cavalgar. O chão treme quando eles passam, e

deixam-nos numa tranquilidade calorosa, à medida que a poeira vai

assentando.

- O meu pai foi perdoado e o título foi-lhe restituído digo, na

defensiva. - Vós próprio o haveis perdoado, depois de Towton.

- Recordo-me do vosso pai e da vossa mãe - afirma o rei num tom

uniforme. - Conhecia-os desde pequeno, em bons e maus tempos. Só me

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surpreende que nunca me tenham apresentado a vós.

Tenho de reprimir uma risada. Este rei é famoso por ser um sedutor.

Ninguém com bom senso deixaria a filha conhecê-lo.

- Poderíeis vir por aqui? - pergunto. - É só uma breve caminhada até

à casa do meu pai.

- Quereis uma boleia, rapazes? - pergunta-lhes. As cabeças deles

erguem-se subitamente, como patinhos suplicantes. Podeis subir os dois -

afirma ele, e pega em Ricardo, e depois em Tomás, para os colocar sobre a

sela. - Agora, segurai-vos bem. Vós ao vosso irmão e vós... sois o Tomás,

não é assim?... segurai-vos à maçaneta da sela.

Enrola as rédeas em volta do braço e, a seguir, oferece-me o outro

braço, e assim caminhamos até à minha casa, pelo meio do bosque, debaixo

da sombra das árvores. Posso sentir o calor do braço dele através do tecido

golpeado da sua manga. Tenho de me refrear para não me inclinar para ele.

Olho em frente, para a casa e para a janela da minha mãe, e vejo, pelos

reduzidos movimentos atrás dos painéis de vidro com pinázios, que ela tem

estado a olhar cá para fora, e desejando precisamente que isto aconteça.

Ela está à porta de entrada quando nos aproximamos, o criado da

casa ao seu lado. Baixa-se numa vénia.

- Vossa Graça - afirma de modo agradável, como se o rei a visitasse

todos os dias. - Sois muito bem-vindo a Grafton Manor.

Um criado surge a correr e segura as rédeas do cavalo para o

conduzir para o pátio dos estábulos. Os meus filhos seguram-se para

percorrerem os últimos metros, a minha mãe recua e faz uma vénia diante

do rei, enquanto este entra no salão.

- Aceitais um copo de cerveja branda? - pergunta. - Senão, temos um

vinho muito bom, dos meus primos, da Borgonha?

- Aceito a cerveja, se não vos importais - responde ele

agradavelmente. - Cavalgar faz-me sede. Está quente, para a Primavera.

Um bom dia para vós, Lady Rivers.

A mesa alta do grande salão está posta com os melhores copos e um

jarrão com cerveja, assim como outro que contém vinho.

- Estais à espera de alguém?

Ela sorri-lhe.

- Nenhum homem no mundo conseguiria passar a cavalo pela minha

filha sem se deter - retorque ela. - Quando ela me disse que desejava expor-

vos o caso dela, tive de colocar na mesa a nossa melhor cerveja. Calculei

que fôsseis parar.

Ele ri-se do orgulho demonstrado por ela, e volta-se para sorrir para

mim.

- Na verdade, um homem que conseguisse passar por vós sem se

deter só poderia ser cego - comenta.

Preparo-me para fazer um pequeno comentário, mas, mais uma vez,

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nada acontece. Os nossos olhos encontram-se, e não consigo pensar em

nada para lhe dizer. Limitamo-nos a ficar ali de pé, a olhar um para o outro

por um longo momento, até a minha mãe lhe passar um copo e dizer

baixinho:

- À vossa saúde, Vossa Graça!

Ele abana a cabeça, como se despertasse.

- E o vosso pai, está cá? - pergunta.

- Sir Ricardo foi até à propriedade ao lado, falar com os nossos

vizinhos - respondo. - Esperamos que regresse a horas de jantar.

A minha mãe pega num copo limpo, ergue-o à luz e manifesta a sua

impaciência como se este estivesse manchado.

- Com a vossa licença - diz ela, e sai. Eu e o rei ficamos a sós no

grande salão, o sol a jorrar pela enorme janela atrás da mesa comprida, a

casa em silêncio, como se todos estivessem a suster a respiração e à escuta.

Ele vai para trás da mesa e senta-se na cadeira do dono da casa.

- Por favor, sentai-vos - diz ele, e aponta para a cadeira ao seu lado.

Eu sento-me como se fosse a sua rainha, à direita dele, e deixo-o servir-me

um copo de cerveja branda. - Analisarei a vossa reivindicação das vossas

terras - diz. - Desejais ter a vossa própria casa? Não sois feliz, vivendo aqui

com a vossa mãe e o vosso pai?

- Eles são gentis comigo - digo. - Mas estou acostumada a ter a

minha própria casa, estou habituada a gerir as minhas próprias terras. E os

meus filhos não terão nada se eu não conseguir reclamar as terras do pai

deles. É a sua própria herança. Tenho de defender os meus filhos.

- Têm sido tempos difíceis - responde ele. - Mas, se eu conseguir

manter o meu trono, farei com que a Lei dos Solos volte a vigorar, de uma

costa à outra da Inglaterra, e os vossos filhos crescerão sem receio da

guerra.

Assinto com a cabeça.

- Sois leal ao Rei Henrique? - pergunta-me. - Seguis a vossa família

na qualidade de apoiantes leais da casa de Lencastre?

A nossa história não pode ser negada. Sei que se travou uma batalha

furiosa em Calais entre este rei, que na altura não passava de um jovem

filho da casa de Iorque, e o meu pai, nesse tempo, um dos grandes Lordes

de Lencastre. A minha mãe era a primeira dama da corte de Margarida de

Anjou; deve ter conhecido e protegido o belo e jovem filho da casa de

Iorque uma dúzia de vezes. Mas quem imaginaria então que o mundo

poderia virar-se do avesso e que a filha do Barão Rivers teria de suplicar a

esse mesmo rapaz para que as suas próprias terras lhe fossem devolvidas?

- A minha mãe e o meu pai foram muito importantes na corte do Rei

Henrique, mas a minha família e eu agora aceitamos o vosso reinado -

afirmo muito depressa.

Ele sorri.

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- É sensato da parte de todos vós, uma vez que eu venci - responde

ele. - Aceito a vossa homenagem.

Rio-me e, imediatamente, o seu rosto torna-se mais caloroso.

- Deve terminar em breve, queira Deus - diz ele. - Henrique não tem

mais do que um punhado de castelos, na região sem lei do Norte. Pode

juntar um grupo de salteadores, como qualquer fora-da-lei, mas não

consegue reunir um exército decente. E a rainha dele não pode continuar a

trazer cá para dentro os inimigos do país para combater o seu próprio povo.

Aqueles que lutarem por mim serão recompensados, mas mesmo aqueles

que combateram contra mim verão que serei justo na vitória. E farei com

que a minha lei vigore, mesmo no Norte da Inglaterra, mesmo nas suas

fortalezas, até à própria fronteira da Escócia.

- Ides para o Norte agora? - pergunto. Bebo um gole de cerveja

branda. É a melhor que a minha mãe faz, mas tem um sabor picante; deve

ter-lhe adicionado algumas gotas de uma tintura, um filtro de amor, algo

para fazer com que o desejo cresça. Não preciso de nada. Já estou sem

fôlego.

- Precisamos de paz - afirma ele. - Paz com a França, paz com os

Escoceses, e paz de irmão para irmão, de primo para primo. Henrique tem

de render-se; a mulher dele tem de parar de trazer tropas francesas para o

nosso país para lutarem contra os ingleses. Não devíamos continuar a estar

divididos, Iorque contra Lencastre: devíamos ser todos ingleses. Não há

nada que faça adoecer mais um país do que o seu próprio povo a lutar entre

si. Destrói famílias; está a matar-nos diariamente. Isto tem de terminar, e eu

pôr-lhe-ei um fim. Vou acabar com esta guerra.

Sinto o receio sinistro que as pessoas deste país conhecem há quase

uma década:

- Tem de haver mais uma batalha?

Ele sorri.

- Tentarei mantê-la longe da vossa porta, minha dama. Mas tem de

ser travada e tem de sê-lo em breve. Perdoei o Duque de Somerset e

aceitei-o como amigo, e agora ele voltou a juntar-se a Henrique, um vira-

casaca da Casa de Lencastre, infiel, como todos os Beaufort. Os Percy

estão a sublevar o Norte contra mim. Odeiam os Neville, e a família

Neville é a minha maior aliada. Agora é como uma dança: os dançarinos

ocupam os seus lugares; têm de dar os seus passos. Irão travar uma batalha;

não pode ser evitado.

- O exército da rainha vai passar por aqui? - ainda que a minha mãe a

adorasse e tivesse sido uma das suas damas de companhia mais

importantes, devo dizer que o exército dela é uma força de terror absoluto.

Mercenários, que não se preocupam nada com o país; franceses que nos

odeiam; e os homens selvagens do Norte da Inglaterra que encaram os

nossos campos férteis e cidades prósperas apenas como não sendo úteis

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para mais nada senão a pilhagem. Da última vez, ela trouxe os escoceses,

acordando que poderiam ficar com tudo o que roubassem, como

honorários. Mais valia ter contratado lobos.

- Eu detê-los-ei - diz ele simplesmente. - Irei ao encontro deles no

Norte da Inglaterra e derrotá-los-ei.

- Como podeis ter tanta certeza? - exclamo.

Ele dirige-me um sorriso, e eu sustenho a respiração.

- Porque nunca perdi nenhuma batalha - responde simplesmente. - E

nunca perderei. Sou rápido no campo, e hábil; sou corajoso e tenho sorte. O

meu exército desloca-se mais depressa do que qualquer outro; faço com

que marchem mais rápido e movo-os completamente armados. Antecipo as

intenções deles e tomo a dianteira do meu inimigo. Não perco batalhas,

tenho sorte na guerra como no amor. Nunca perdi em nenhum dos jogos.

Não vou perder contra Margarida de Anjou; vencerei.

Rio-me da confiança dele, como se não estivesse impressionada;

mas, na verdade, ele deixa-me deslumbrada. Ele termina a caneca de

cerveja e põe-se de pé.

- Obrigado pela vossa gentileza - diz.

- Já ides embora? Ides partir agora? - gaguejo.

- Ireis escrever os detalhes da vossa reivindicação para mim?

- Sim. Mas...

- Com nomes e datas e tudo o mais? A terra que alegais ser vossa e

os detalhes da vossa propriedade?

Quase agarro a manga dele para o manter junto de mim, como um

pedinte.

- Fá-lo-ei. Mas...

- Então, despeço-me de vós.

Não há nada que eu possa fazer para o deter, a não ser que a minha

mãe se tenha lembrado de fazer com que o cavalo dele fique coxo.

- Sim, Vossa Graça, e obrigada. Mas sois muito bem-vindo a ficar.

Daqui a pouco jantaremos... ou...

- Não, tenho de ir embora. O meu amigo Guilherme Hastings deve

estar à minha espera.

- É claro, é claro. Não desejo atrasar-vos...

Acompanho-o até à porta. Estou angustiada por ele partir tão

abruptamente, e, no entanto, não consigo lembrar-me de nada para o fazer

ficar. Na soleira da porta, ele volta-se e pega-me na mão. Inclina a cabeça

loira numa vénia e, de forma deliciosa, vira a minha mão. Dá um beijo na

palma e fecha os meus dedos sobre o local que beijou, como se para o

guardar em segurança. Quando se ergue, a sorrir, vejo que sabe

perfeitamente que o gesto me fez derreter e que conservarei a mão fechada

até à hora de me deitar, altura em que poderei levá-la à boca.

Page 16: Philippa gregory - a rainha branca

Baixa os olhos para o meu rosto arrebatado, para a minha mão que se

abre, contra a minha vontade, para tocar na manga dele. Então, enternece-

se.

- Eu próprio virei buscar o documento que ides elaborar, amanhã -

afirma. - É evidente. Julgastes que iria ser de outro modo? Como podeis?

Pensastes que poderia voltar-vos as costas, e não voltar? É claro que irei

voltar. Amanhã, ao meio-dia. Vejo-vos a essa hora?

De certeza que me ouve arquejar. A cor acorre ao meu rosto e as

minhas bochechas estão a escaldar.

- Sim - gaguejo. - A... manhã.

- Ao meio-dia. E ficarei para almoçar, se possível.

- Ficaremos muito honrados.

Faz-me uma vénia, volta-se e começa a caminhar pelo salão,

passando pelas portas duplas escancaradas e saindo para a luz viva do Sol.

Ponho as mãos atrás das costas e seguro-me a enorme porta de madeira,

para me apoiar. Para dizer a verdade, os meus joelhos estão demasiado

fracos para que consiga manter-me de pé.

- Ele foi embora? - pergunta a minha mãe, entrando silenciosamente

pela pequena porta lateral.

- Volta amanhã - respondo. - Vai voltar amanhã. Vem cá amanhã

para falar comigo.

Quando o Sol está a pôr-se e os meus filhos dizem as orações da

noite, cabeças loiras inclinadas sobre as mãos entrelaçadas, aos pés das

suas camas de ripas, a minha mãe conduz-me pela porta da frente da casa e

ao longo de um caminho serpenteante até ao local onde a ponte, um par de

pranchas de madeira, atravessa o rio Tove. Caminha sobre elas até ao outro

lado, o seu toucado cónico roçando nas árvores inclinadas, e faz-me sinal

para que a siga. Do outro lado, pousa a mão num enorme freixo e eu vejo

que existe um fio escuro de seda amarrado em volta da madeira de grão

áspero do tronco espesso.

- O que é isto?

- Enrolai o fio - é tudo o que ela me diz. - Enrolai o fio trinta

centímetros, todos os dias.

Ponho a mão no fio e puxo-o suavemente. Solta-se com facilidade;

há algo leve e pequeno amarrado à extremidade oposta. Nem consigo

imaginar o que poderá ser, uma vez que o fio dá voltas até à outra margem

do rio, para o meio dos juncos, em águas profundas, do outro lado.

- Magia - digo, num tom terminante. O meu pai baniu tais práticas

desta casa: a lei do país proíbe-as. Quando se prova que alguém é bruxa, a

pena aplicada é a morte, morte por afogamento através da cadeira (1), ou

estrangulamento por um ferreiro, nos cruzamentos da aldeia. Mulheres

como a minha mãe não estão autorizadas a desenvolver as suas capacidades

na Inglaterra de hoje; fomos declaradas interditas.

Page 17: Philippa gregory - a rainha branca

Nota 1: No original ’-ducking stool” - Instrumento de punição,

tortura, aplicado especificamente a mulheres, que consistia numa

cadeira/banco dependurado na extremidade de um braço móvel de madeira

montado na margem de um rio.

A mulher era amarrada à c adeira/banco e este era mergulhado

repetidas vezes na água de um rio. Esta punição era plicada por crimes de

prostituição ou bruxaria. (N. da T.). da T.)

- Magia - concorda ela, imperturbável. - Magia poderosa, para uma

boa causa. Vale bem o risco. Vinde aqui todos os dias e enrolai-o, trinta

centímetros de cada vez.

- E o que vai acontecer? - pergunto-lhe. - No fim desta vossa linha de

pesca? Que grande peixe vou apanhar?

Ela sorri para mim e põe a mão na minha bochecha.

- O que o vosso coração desejar - diz ela carinhosamente.

- Não vos criei para serdes uma viúva pobre.

Volta-se e inicia o caminho de regresso pela ponte pedonal, e eu

puxo o fio como ela me disse que fizesse, trinta centímetros, amarro-o

depressa, e vou atrás dela.

- Então, para que me haveis criado? - pergunto-lhe, enquanto

seguimos lado a lado até à casa. - Qual o meu papel? No vosso grande

plano? Num mundo em guerra, onde, ao que parece, apesar da vossa

previsão e magia, estamos presas no lado vencido?

A lua nova está a erguer-se, um pequeno crescente de Lua. Sem

pronunciar uma palavra, ambas pedimos desejos ao avistá-la; fazemos uma

reverência, e eu ouço o tilintar, quando revolteamos as moedas que temos

nos bolsos.

- Eduquei-vos para serdes o melhor que conseguirdes ser - diz ela

simplesmente. - Não sabia o que isso iria ser e continuo sem saber. Mas

não vos criei para serdes uma mulher só, que sente a falta do marido, que

luta para manter os filhos em segurança; uma mulher sozinha numa cama

fria, a sua beleza desperdiçada em terras desertas.

- Bem, Ámen - returco simplesmente, de olhos fixos no magro

crescente. - Ámen a isso. E que a lua nova me traga algo melhor.

Ao meio-dia do dia seguinte, trago o meu vestido comum e estou

sentada nos meus aposentos privados, quando a criada surge a correr para

me comunicar que o rei cavalga pela estrada que conduz à casa. Não me

permito correr até à janela para o procurar, não me consinto precipitar-me

na direcção do espelho de prata martelada do quarto da minha mãe. Pouso

o bordado, e dirijo-me à grande escadaria de madeira, para que, quando a

porta se abrir e ele entrar no salão, eu esteja a descer serenamente,

aparentando ter sido desviada dos meus afazeres domésticos para receber

um hóspede que surgiu de surpresa.

Page 18: Philippa gregory - a rainha branca

Aproximo-me dele com um sorriso, ele saúda-me com um beijo

cortês no rosto, e sinto o calor da sua pele e vejo, por entre os meus olhos

semicerrados, a suavidade do cabelo que se encaracola na nuca. O cabelo

cheira levemente a especiarias e a pele do pescoço a lavado. Quando olha

para mim, reconheço-lhe o desejo no rosto. Solta a minha mão devagar e eu

recuo com relutância. Volto-me e faço uma reverência, quando o meu pai e

os meus dois irmãos mais velhos, António e João, se aproximam para

fazerem as suas vénias.

A conversa ao jantar é afectada, como tem de ser. A minha família é

deferente para com este novo Rei da Inglaterra; mas não é possível negar

que jogámos as nossas vidas e a nossa fortuna nesta batalha contra ele, e o

meu marido não foi o único da nossa casa e família que não regressou. Mas

é assim que tem de ser numa guerra que foi denominada ”A Guerra entre

Primos”, uma vez que irmãos combatem contra irmãos e os respectivos

filhos seguem-nos para a morte. O meu pai foi perdoado, os meus irmãos

também, e agora o vencedor divide o pão com eles, como se para esquecer

que triunfou sobre eles em Calais, como se para esquecer que o meu pai

virou as costas e fugiu do seu exército, na neve ensanguentada de Towton.

O rei Eduardo é agradável. É encantador com a minha mãe e

divertido com os meus irmãos António e João, e depois com Ricardo,

Eduardo e Leonel, quando se juntam a nós, mais tarde. Três das minhas

irmãs mais novas encontram-se em casa, e jantam em silêncio, de olhos

esbugalhados de admiração, mas demasiado receosas para pronunciarem

uma palavra. A mulher de António, Isabel, está silenciosa e elegante, ao

lado da minha mãe. O rei observa o meu pai e faz-lhe perguntas sobre caça

e as terras, acerca do preço do trigo e da inabilidade da mão-de-obra. Na

altura em que começam a servir a fruta em calda e as doçarias, ele conversa

como um amigo da família, e eu posso encostar-me para trás na minha

cadeira e observá-lo.

- E, agora, vamos aos negócios - diz ele ao meu pai. - Lady Isabel

disse-me que perdeu as terras que lhe foram legadas por morte do marido.

O meu pai assente.

- Lamento incomodar-vos com este assunto, mas tentámos resolvê-lo

com Lady Ferrers e com Lorde Warwick sem resultados. Foram

confiscadas depois - pigarreia - depois de St. Albans, compreendeis. O

marido dela foi morto lá. E, agora, ela não consegue que as terras a que tem

direito pela morte dele lhe sejam devolvidas. Ainda que o marido seja

considerado um traidor, ela própria está inocente e devia, pelo menos,

receber as suas arras.

O rei vira-se para mim.

- Haveis escrito o vosso título e a reivindicação das vossas terras?

- Sim - afirmo. Entrego-lhe o papel e ele dá-lhe uma olhadela.

- Irei falar com Sir Guilherme Hastings e pedir-lhe que trate da

Page 19: Philippa gregory - a rainha branca

resolução deste assunto - diz ele simplesmente. - Ele será vosso advogado.

Parece ser tão fácil quanto isto. De uma penada, serei liberta da

minha pobreza e recuperarei a minha propriedade; os meus filhos terão uma

herança e eu deixarei de ser um fardo para a minha família. Se alguém me

pedir em casamento, irei para o matrimónio com propriedades. Já não sou

um alvo de caridade. Não terei de ficar grata por receber uma proposta.

Não terei de agradecer a um homem por se casar comigo.

- Sois muito bondoso, Senhor - afirma o meu pai num tom

agradável, e acena com a cabeça na minha direcção.

Obedientemente, levanto-me da minha cadeira e baixo-me, numa

vénia.

- Agradeço-vos - afirmo. - Isto significa tudo para mim.

- Serei um rei justo - diz ele, olhando para o meu pai. Não quereria

que nenhum inglês sofresse com a minha ascensão ao trono.

O meu pai envida esforços visíveis no sentido de silenciar a sua

resposta, de que alguns de nós já sofreram.

- Desejais mais vinho? - interrompe-o a minha mãe, muito depressa.

- Vossa Graça? Marido?

- Não, tenho de ir embora - responde o rei. - Estamos a reunir as

tropas em todo o Northamptonshire e a equipá-las.

Empurra a cadeira para trás, e todos nós - o meu pai e irmãos, a

minha mãe e irmãs e eu - nos levantamos como marionetas, para ficarmos

de pé como ele.

- Podeis mostrar-me o jardim antes de eu partir, Lady Isabel?

-

- Terei toda a honra em fazê-lo - replico.

O meu pai abre a boca para oferecer a sua companhia, mas a minha

mãe diz depressa:

- Sim, ide, Isabel - e os dois saímos da sala sem um acompanhante.

Faz calor como se fosse Verão, quando saímos do escuro do salão,

ele estende-me o braço e descemos os degraus para o jardim, de braço

dado, em silêncio. Sigo pelo caminho que contorna o jardim e

serpenteamos, observando as sebes podadas e as pedras imaculadamente

brancas; mas não vejo nada. Ele puxa a minha mão e coloca-a debaixo do

seu braço, sinto o calor do seu corpo. A lavanda está a florescer, e eu

consigo sentir o aroma, doce como a flor de laranjeira, intenso como

limões.

- Tenho pouco tempo - diz ele. - Somerset e Percy estão a unir-se

contra mim. O próprio Henrique sairá do seu castelo e conduzirá o seu

exército, se estiver nessa disposição e se puder comandá-lo. Pobre alma,

disseram-me que agora recuperou a razão, mas pode perdê-la novamente a

qualquer momento. A rainha deve estar a planear desembarcar um exército

de franceses para os apoiar e nós teremos de enfrentar o poder da França

Page 20: Philippa gregory - a rainha branca

em solo inglês.

- Rezarei por vós - digo.

- A morte está perto de todos nós - retorque ele com ar sério. - Mas é

uma companheira constante de um rei que conquista a sua coroa no campo

de batalha, e que, agora, parte mais uma vez no seu cavalo, para combater.

Detém-se e eu imito-o. Está tudo muito silencioso, à excepção de um

pássaro que canta. A expressão dele é grave.

- Posso enviar um pajem para que vos leve para junto de mim esta

noite? - pergunta ele baixinho. - Desejo-vos, Lady Isabel Grey, como nunca

desejei outra mulher antes. Vireis ter comigo? Peço-vos. não como rei, e

nem sequer como um soldado que pode morrer na batalha, mas como um

homem simples, à mulher mais bonita que já viu. Vinde ter comigo,

suplico-vos, vinde ter comigo. Poderia ser o meu último desejo. Vireis ter

comigo esta noite?

Abano a cabeça.

- Perdoai-me, Vossa Graça, mas sou uma mulher de honra.

- Posso nunca voltar a fazer-vos este pedido. Sabe Deus como

poderei nunca voltar a pedi-lo a nenhuma mulher. Não pode haver

nenhuma desonra nisto. Posso morrer na próxima semana.

- Mesmo assim.

- Não vos sentis só? - pergunta ele. Os seus lábios estão quase a tocar

a minha testa, de tal forma está próximo de mim, consigo sentir o calor da

sua respiração na minha bochecha.

- E vós não sentis nada por mim? Podeis afirmar que não me

desejais? Só uma vez? Não me desejais agora?

O mais devagar que sou capaz, permito que os meus olhos se ergam

até ao rosto dele. O meu olhar fixa-se na sua boca, depois levanto o olhar.

- Valha-me Deus, tenho de vos ter - suspira ele.

- Não posso ser vossa amante - digo simplesmente. - Preferia morrer

a desonrar o meu nome. Não posso trazer essa vergonha para a minha

família - faço uma pausa. Estou ansiosa para não ser demasiado

desincentivadora. - Independentemente do que o meu coração possa desejar

- digo, muito baixinho.

- Mas vós desejais-me? - pergunta ele infantilmente, e eu deixo-o

perceber o calor na minha face.

- Ah - digo. - Não posso dizer-vos...

Ele espera.

- Não posso dizer-vos o quanto...

Vejo, rapidamente disfarçado, o cintilar do triunfo. Ele pensa que me

vai ter.

- Então, vireis?

- Não.

- Então, tenho de partir? Tenho de deixar-vos? Não posso.

Page 21: Philippa gregory - a rainha branca

- inclina o rosto para mim e eu levanto o meu. O seu beijo é tão

suave como o roçar de uma pena na minha boca macia.

Os meus lábios entreabrem-se ligeiramente e consigo senti-lo tremer

como um cavalo preso com uma rédea curta. - Lady Isabel... Juro-o...

Tenho de...

Dou um passo atrás, nesta dança deliciosa.

- Se apenas... - digo.

- Virei amanhã - diz ele abruptamente. - À noite. Ao pôr do Sol. Ireis

ter comigo ao lugar onde vos vi pela primeira vez? Debaixo do carvalho?

Ireis encontrar-vos comigo lá? Gostaria de me despedir antes de partir para

norte. Tenho de voltar a ver-vos, Lady Isabel. Pelo menos isso. Tenho de o

fazer.

Assinto em silêncio, vejo-o rodar sobre os calcanhares e caminhar de

volta a casa. Vejo-o contornar o pátio dos estábulos e, alguns momentos

mais tarde, o seu cavalo cavalga, disparado, pela estrada abaixo, com os

dois pajens a esporearem os seus cavalos para acompanhar o ritmo. Vejo-o

sair do meu campo de visão e, depois, atravesso a pequena ponte pedonal

por cima do rio e encontro o fio enrolado no freixo. Retlectidamente,

enrolo mais uma extensão do fio e amarro-o. Em seguida, dirijo-me a casa.

Ao jantar do dia seguinte existe uma espécie de conferência familiar.

O rei enviou uma carta para dizer que o amigo, Sir Guilherme Hastings,

apoiará a minha reivindicação da minha casa e das minhas terras em

Bradgate, e que eu posso ter a certeza de que a minha fortuna me será

restituída. O meu pai fica satisfeito: mas todos os meus irmãos - António,

João, Ricardo, Eduardo e Leonel - estão unidos na desconfiança contra o

rei, com o orgulho alerta dos rapazes.

- Ele tem fama de libertino. De certeza que vai pedir para se

encontrar com ela, de certeza que a vai chamar para a corte - declara João.

- Não lhe devolveu as terras por caridade. Vai exigir o pagamento -

concorda Ricardo. - Não existe uma mulher na corte com quem ele não

tenha dormido. Porque não tentaria a sorte com Isabel?

- Um Lencastre - diz Eduardo, como se isso fosse suficiente para

garantir a nossa inimizade, e Leonel assente, com um ar sério.

É um homem difícil de rejeitar - diz António pensativamente. - É

bastante mais experiente do que João; viajou por toda a Cristandade e

estudou com grandes pensadores, e os meus pais ouvem-no sempre. - Seria

de pensar, Isabel, que vos sentiríeis comprometida. Receio que fôsseis

sentir uma obrigação em relação a ele.

Encolho os ombros.

- De forma alguma. Só posso contar comigo, mais uma vez. Pedi ao

rei justiça e recebi-a, tal como deveria ser, como qualquer suplicante

deveria receber, quando tem a razão do seu lado.

Page 22: Philippa gregory - a rainha branca

- No entanto, se ele vos chamar, não ireis para a corte afirma o meu

pai. - Este é um homem que conseguiu seduzir metade das esposas de

Londres e que agora tenta repetir a proeza com as damas da Casa de

Lencastre. Este não é um homem honrado como o abençoado Rei

Henrique.

Também não é um tolo como o abençoado Rei Henrique, penso, mas

em voz alta digo:

- É claro, Pai, o que quer que me ordeneis.

Ele olha severamente para mim, desconfiado da obediência imediata.

- Não credes que lhe deveis os vossos favores? Os vossos sorrisos?

Ou pior?

Encolho os ombros.

- Pedi-lhe a justiça de um rei, não um favor - respondo. - Não sou um

criado cujos serviços podem ser comprados, ou um camponês que pode ser

obrigado a prestar juramento a um senhor. Sou uma dama de boas famílias.

Tenho as minhas próprias lealdades e obrigações que considero e honro.

Não são propriedade dele. Não estão à disposição de nenhum homem.

A minha mãe baixa a cabeça para ocultar o seu sorriso. É filha da

Borgonha, descendente de Melusina, a deusa da água. Nunca se considerou

obrigada a fazer nada na vida; nunca conceberia que a sua filha fosse

obrigada a fazer o que quer que fosse.

O meu pai desvia o olhar dela para mim e encolhe os ombros, como

se para admitir a independência inveterada das mulheres obstinadas. Acena

com a cabeça na direcção do meu irmão João e diz:

- Vou cavalgar até à aldeia de Old Stratford. Quereis vir comigo? - e

os dois saem juntos.

- Quereis ir para a corte? Admirai-lo? Apesar de tudo? - pergunta-me

António baixinho, quando os meus outros irmãos saem da sala.

- Ele é o Rei da Inglaterra - afirmo. - É claro que irei, se ele me

convidar. Que outra coisa iria fazer?

- Talvez porque o Pai tenha acabado de dizer que não devíeis ir, e eu

vos tenha aconselhado a que não fôsseis.

Encolho os ombros.

- E eu ouvi muito bem.

- De que outra forma pode uma viúva pobre construir o seu caminho

num mundo cruel? - provoca-me ele.

- De facto.

- Seríeis uma tonta, se vos vendêsseis por um preço baixo - avisa-me

ele.

Olho-o sob as minhas pestanas.

- Não estou a pensar vender-me de modo algum - afirmo.

- Não sou um rolo de fita. Não sou uma perna de presunto. Não estou

à venda para ninguém.

Page 23: Philippa gregory - a rainha branca

Ao pôr do Sol, estou à sua espera debaixo do carvalho, escondida nas

sombras esverdeadas. Fico aliviada ao ouvir o som de apenas um cavalo na

estrada. Se ele tivesse vindo com um guarda, ter-me-ia escapulido para

casa, receando pela minha segurança. Por muito terno que ele possa ser,

nos confins do jardim do meu pai, não me esqueço de que ele é o

denominado rei do exército iorquista e que eles violam mulheres e

assassinam os seus maridos, como se fosse algo natural. Deve ter

endurecido ao ver coisas que ninguém deveria testemunhar; ele próprio

deve ter feito coisas que representam os mais negros dos pecados. Não

posso confiar nele. Por muito arrebatador que seja o seu sorriso e por muito

sinceros os seus olhos, por muito que pense nele como um rapaz projectado

para a grandeza pela sua ambição, não posse confiar nele. Estes não são

tempos para cavalheirismos; não são os tempos dos cavaleiros na floresta

negra, das belas damas em fontes iluminadas pelo luar e promessas de amor

que serão baladas, cantadas para todo o sempre.

Mas ele parece um cavaleiro numa floresta negra, quando pára o

cavalo e desmonta com um salto, num movimento descontraído.

- Viestes! - exclama ele.

- Não posso ficar muito tempo.

- Estou tão contente só por terdes vindo - ri-se de si próprio, quase

desnorteado. - Hoje parecia uma criança; não consegui dormir, a noite

passada, a pensar em vós, e todo o dia me perguntei se viríeis, e afinal

viestes!

Enrola as rédeas do cavalo no ramo de uma árvore e coloca o braço

em volta da minha cintura.

-Minha dama querida - diz-me ele ao ouvido. - Sede gentil comigo.

Tirai o vosso toucado e soltai o cabelo.

É a última coisa que pensei que me fosse pedir, e fico chocada,

consentindo imediatamente. A minha mão dirige-se logo às fitas do meu

toucado.

- Eu sei. Eu sei. Julgo que me estais a deixar louco. Tudo em que

tenho conseguido pensar o dia inteiro é em se me deixaríeis soltar o vosso

cabelo.

Em resposta, desaperto as fitas apertadas do meu alto toucado cónico

e levanto-o para o tirar. Pouso-o cuidadosamente no chão e viro-me para

ele. Gentilmente, como qualquer aia, ele pousa a mão no meu cabelo e

retira os ganchos de marfim, guardando cada um deles no bolso do seu

gibão. Consigo sentir o beijo acetinado do meu cabelo espesso, enquanto a

cascata loira que ele constitui me cai sobre o rosto. Sacudo a cabeça e atiro-

o para trás, como uma crina dourada espessa, e ouço o seu gemido de

desejo.

Gentilmente, inclina-se sobre mim, pressionando-me, de modo que

fique debaixo dele. Depois, sinto as suas mãos puxarem o meu vestido,

Page 24: Philippa gregory - a rainha branca

puxarem-no para cima, e encosto as minhas mãos ao peito dele, afastando-o

suavemente.

- Isabel - sussurra ele.

- Já vos disse que não - declaro com firmeza. - E estava a falar a

sério.

- Viestes ao meu encontro!

- Vós pedistes que o fizesse. Quereis que parta agora?

- Não! Ficai! Ficai! Não fujais, juro que não... Deixai-me só beijar-

vos mais uma vez.

O meu coração está a bater acelerada e perceptivelmente, estou tão

pronta para o seu toque que começo a pensar que poderia deitar-me com

ele, só uma vez, poderia permitir-me este prazer, só uma vez... Mas, então,

afasto-me e digo:

- Não, não, não...

- Sim - diz ele com mais veemência. - Não vos vai acontecer nada de

mal, juro-vos. Vireis para a corte. Tudo o que pedirdes. Por Deus, Isabel,

deixai-me possuir-vos, estou desesperado para vos ter. Desde que vos vi

ali...

O seu peso está sobre mim; e está a pressionar-me para baixo. Viro a

cabeça para o outro lado, mas a sua boca está no meu pescoço, no meu

peito; estou ofegante de desejo, e depois sinto, inesperadamente, uma onda

de raiva, ao aperceber-me de que ele já não está a abraçar-me, mas a forçar-

me, prendendo-me como se eu fosse uma prostituta atrás de um saco de

feno. Está a levantar o meu vestido como se eu fosse uma meretriz;

empurra o joelho entre as minhas pernas como se eu tivesse consentido, e a

minha fúria dá-me de tal modo força que o empurro novamente para trás e,

aí, no seu grosso cinto de couro, sinto o punho da sua adaga.

Ele puxou o meu vestido para cima, e debate-se com o seu justilho,

os seus calções; daqui a pouco, será demasiado tarde para me queixar.

Desembainho a sua adaga. Ao ouvir o som sibilante do metal, ele recua, de

joelhos, chocado, e, retorcendo-me, afasto-me dele e ponho-me de pé, com

a adaga fora da bainha, a lâmina cintilante e terrível sob os últimos raios de

sol.

Num instante, ele ergue-se, ziguezagueando e alerta.

- Desembainhais uma lâmina contra o vosso rei? - profere ele

encolerizado. - Sabeis o que é um acto de traição, quando o cometeis,

senhora?

- Eu desembainho uma lâmina contra mim, contra mim própria -

digo rapidamente. Levo a ponta afiada à minha garganta e vejo os olhos

dele estreitarem-se. - Juro que, se avançardes mais um passo, se avançardes

um centímetro que seja, cortarei a minha garganta diante de vós e sangrarei

até à morte, aqui, no chão em que me iríeis desonrar.

- Estais a fazer teatro!

Page 25: Philippa gregory - a rainha branca

- Não. Para mim, isto não é um jogo, Vossa Graça! Não posso ser

vossa amante. Dirigi-me a vós, inicialmente, para pedir justiça, e vim ter

convosco, esta noite, por amor, e sou uma louca em fazê-lo, suplico o vosso

perdão pela minha loucura. Mas eu também não consigo dormir, e não

consigo pensar noutra coisa que não seja em vós, e também eu não era

capaz de deixar de me interrogar vezes sem conta se viríeis. Mas, mesmo

assim... mesmo assim, não devíeis...

- Poderia retirar-vos essa adaga a qualquer momento - ameaça ele.

- Esqueceis que tenho cinco irmãos. Brinco com espadas e adagas

desde criança. Cortarei a garganta antes de conseguirdes chegar junto de

mim.

- Nunca o faríeis. Sois uma mulher com apenas a coragem de uma

mulher.

- Experimentai. Experimentai. Não conheceis a minha coragem.

Podeis vir a lamentar o que vier a acontecer.

Ele hesita por um segundo, o seu coração a latejar, numa mistura

perigosa de génio e desejo, e depois recompõe-se, levanta as mãos num

gesto de rendição, e recua um passo.

- Vencestes, senhora. E podeis ficar com a adaga, como um saque de

vitória. Tomai... - desafivela a bainha e atira-a ao chão. - Ficai também com

a maldita bainha, porque não ficais?

As pedras preciosas e o ouro esmaltado cintilam na penumbra.

Nunca apartando os meus olhos dele, ajoelho-me e pego na bainha.

- Acompanhar-vos-ei até casa - diz ele. - Levar-vos-ei em segurança

até à vossa porta.

Abano a cabeça.

- Não, não posso ser vista convosco. Ninguém pode saber que nos

encontrámos em segredo. Eu seria humilhada.

Por um instante, penso que ele irá discutir comigo, mas ele baixa a

cabeça.

- Então, segui à minha frente - diz ele. - E eu irei atrás de vós como

um pajem, como vosso criado, até vos ver chegar cm segurança ao vosso

portão. Podeis alegrar-vos com o vosso triunfo, por me terdes a seguir-vos

como um cão. Uma vez que me tratais como um louco, servir-vos-ei como

um louco; e podereis desfrutar.

Não há nada a dizer para acalmar a sua raiva, por isso, assinto e

volto-me para começar a caminhar diante dele, tal como ele me disse que

fizesse. Seguimos em silêncio. Consigo ouvir o rumor da sua capa atrás de

mim. Quando chegamos ao fim do bosque e podemos ser avistados a partir

da casa, detenho-me e viro-me para ele.

- A partir daqui estarei em segurança - afirmo. - Tenho de suplicar-

vos que me perdoeis pela minha loucura.

- Tenho de suplicar-vos que me perdoeis por ter usado a força - diz

Page 26: Philippa gregory - a rainha branca

ele num tom constrangido. - Talvez eu esteja demasiado acostumado a

conseguir o que quero. Mas devo dizer, nunca me rejeitaram apontando-me

uma faca. Neste caso, a minha própria faca.

Volto-a ao contrário e estendo-lhe o punho.

- Aceitai-a de volta, Vossa Graça.

Ele abana a cabeça.

- Ficai com ela como recordação minha. Será o meu único presente

para vós. Um presente de despedida.

- Não voltarei a ver-vos?

- Nunca - diz ele simplesmente e, fazendo uma ligeira vénia, afasta-

se.

- Vossa Graça! - chamo, e ele volta-se e pára. - Não quero que

partais aborrecido comigo - digo debilmente. - Espero que possais perdoar-

me.

- Haveis feito de mim um tonto - diz ele, numa voz gelada. - Podeis

congratular-vos por serdes a primeira mulher a fazê-lo. Mas sereis a última.

E nunca voltareis a fazer de mim um tonto.

Baixo-me numa vénia, ouço-o voltar-se e o som da sua capa a bater

nos arbustos de cada um dos lados do caminho. Espero até deixar de o

ouvir e depois ergo-me para me dirigir a casa.

Existe uma parte de mim, da jovem mulher que sou, que deseja

correr lá para dentro, lançar-me sobre a minha cama e chorar até

adormecer. Mas não é o que faço. Não sou uma das minhas irmãs, de riso e

lágrima fácil. São raparigas a quem as coisas acontecem, e que sofrem com

elas. Mas eu considero-me um pouco mais do que uma rapariga tonta. Sou

a filha da deusa da água. Sou uma mulher a quem corre água nas veias e

com o poder na sua linhagem. Sou uma mulher que faz com que as coisas

aconteçam, e ainda não fui derrotada. Não fui derrotada por um rapaz com

uma coroa recém-conquistada, e nenhum homem voltará a afastar-se de

mim com a certeza de que não voltará.

Por isso, não vou logo para casa. Sigo pelo caminho da fonte pedonal

que atravessa o rio, até ao lugar onde o freixo está rodeado pelo fio da

minha mãe, enrolo mais o fio e aperto-o com firmeza, e só então caminho

em direcção a casa, cismando, à luz do ténue luar.

Então, espero. Todas as noites, durante vinte e duas, desço até ao rio

e puxo o fio como uma pescadora. Um dia sinto repuxar, e a linha fica

esticada, quando o objecto na sua extremidade, seja lá o que for, se liberta

dos juncos na margem da água. Puxo suavemente, como se estivesse a

recolher um peixe capturado, sinto o fio soltar-se e ouço um pequeno

chape, enquanto algo pequeno, mas pesado, cai mais fundo, se revira na

corrente, e depois fica imóvel entre os seixos do leito do rio.

Caminho para casa. A minha mãe está à minha espera junto do lago

das carpas, olhando para baixo, para o seu próprio reflexo invertido na

Page 27: Philippa gregory - a rainha branca

água, prata no cinzento do escurecer. A sua imagem parece um longo peixe

prateado agitando-se no lago, ou uma mulher a nadar. O céu por trás dela

está coberto de nuvens, como penas brancas sobre seda clara. A lua está a

erguer-se, uma Lua em quarto minguante, agora. A água está alta esta

noite, transpondo o pequeno molhe. Quando chego perto dela e olho para

dentro da água, seria de pensar que ambas nos estávamos a erguer das

águas, como os espíritos do lago.

- Fazei-lo todas as noites? - pergunta-me ela. - Puxais a linha?

- Sim.

- Óptimo. Isso é bom. Ele enviou-vos alguma lembrança? Alguma

mensagem?

- Não estou à espera de nada. Ele disse que não queria voltar a ver-

me.

Ela suspira.

- Está bem.

Caminhamos de volta a casa.

- Dizem que ele está a reunir as suas forças em Northampton _ diz

ela. - O Rei Henrique está a concentrar as suas em Northumberland e irá

marchar para sul, para Londres. A rainha irá ao seu encontro com um

exército francês que desembarcará em Hull. Se o Rei Henrique vencer, não

importará o que Eduardo diz ou pensa, porque estará morto, e o rei legítimo

será reposto.

A minha mão move-se apressadamente para agarrar a manga dela,

numa contradição imediata. Veloz como uma víbora que se prepara para

atacar, a minha mãe agarra os meus dedos.

- O que é isto? Nãosuportais ouvir falar da derrota dele? _ Não o

digais. Não o digais.

- Não digo o quê?

- Não suporto pensar que ele vai ser derrotado. Não suporto pensar

nele morto. Ele pediu-me que me deitasse com ele, como um soldado que

enfrenta a morte.

Ela dá uma sonora gargalhada.

- É claro que pediu. Que homem que vai partir para a guerra alguma

vez resistiu à oportunidade de tirar daí o maior partido?

- Bem, eu recusei. E, se ele não voltar, lamentarei essa recusa para o

resto da vida. Já estou arrependida. Irei sentir-me arrependida para sempre.

- Porquê o arrependimento? - provoca-me ela. - De uma maneira ou

de outra, as vossas terras ser-vos-ão devolvidas.

Ou as recuperais por ordem do Rei Eduardo, ou ele morre e o Rei

Henrique será rei e restituir-vos-á as vossas terras. Ele é o nosso rei, da

legítima Casa de Lencastre. Seria de pensar que lhe desejávamos a vitória,

e a morte ao usurpador Eduardo.

- Não o digais - repito. - Não lhe desejeis mal.

Page 28: Philippa gregory - a rainha branca

- Não importa o que eu digo, parai e pensai - aconselha-me

severamente. - Sois uma rapariga da Casa de Lencastre. Só podereis

apaixonar-vos pelo herdeiro da Casa de Iorque se ele for o rei vitorioso e se

tiverdes algo a lucrar com esse amor. São dias difíceis, estes que vivemos.

A morte é nossa companheira, nossa parente. Não vale a pena pensar, não

lhe podeis resistir. Ireis descobrir que ela está por perto. Levou o vosso

marido; ouvi: levará o vosso pai, os vossos irmãos e os vossos filhos.

Estendo as duas mãos para a interromper.

- Chiu, chiu. Pareceis Melusina a avisar a sua casa da morte dos

homens.

- Estou a avisar-vos - diz ela num tom sinistro. - Vós transformais-

me em Melusina, quando andais por aí a sorrir como se a vida fosse fácil,

pensando que podeis namoriscar com um usurpador. Não haveis nascido

em tempos tranquilos. Vivereis a vossa vida num país dividido. Tereis de

construir o vosso caminho por entre o sangue, e conhecereis a perda.

- Não vislumbrais nada de bom para mim? - pergunto, entre dentes

cerrados. - Não prevedes, como uma mãe amorosa, nada de bom para a

vossa filha? Não vale a pena amaldiçoardes-me, porque eu já estou quase a

chorar.

Ela detém-se, e o rosto duro da vidente dissolve-se no calor da mãe a

quem amo.

- Creio que o tereis, se é isso que desejais - diz ela.

- Mais do que à própria vida.

Ela ri-se de mim, mas o seu sorriso é carinhoso.

- Ah, não o digais, filha. Nada neste mundo é mais importante do que

a vida. Tendes um longo caminho a percorrer e muitas lições a aprender, se

não o sabeis.

Encolho os ombros e pego-lhe no braço e, caminhando com passo

certo, dirigimo-nos para casa.

- Quando a batalha estiver terminada, seja quem for que vença, as

vossas irmãs têm de ir para a corte - diz a minha mãe. Está sempre a fazer

planos. - Podem ficar em casa dos Bourchier, ou dos Vaughn. Já deviam ter

ido, há vários meses, mas não suportava a ideia de elas estarem longe de

casa, com o país nesta sublevação, sem nunca saber o que poderia

acontecer a seguir, e nunca conseguir receber notícias. Mas, quando esta

batalha tiver acabado, talvez a vida volte a ser o que era, apenas sob o

reinado da Casa de Iorque, em vez do da Casa de Lencastre, e as meninas

podem ir para casa dos nossos primos, para receberem uma educação.

- Sim.

- E, em breve, o vosso filho Tomás terá idade suficiente para sair de

casa. Devia viver com os parentes; tem de aprender a ser um cavalheiro.

- Não - digo com uma ênfase súbita que a faz virar-se e ficar a olhar

para mim.

Page 29: Philippa gregory - a rainha branca

- Qual é o problema?

- Quero manter os meus filhos junto de mim - afirmo. - Os meus

filhos não podem ser afastados de mim.

- Necessitarão de uma educação adequada; terão de servir na casa de

um lorde. O vosso pai encontrará alguém, os padrinhos deles poderiam...

- Não - repito. - Não, Mãe, não. Não consigo pôr essa hipótese. Eles

não vão sair de casa.

- Filha? - vira o meu rosto para o luar para me conseguir ver mais

claramente. - Nem parece vosso, este capricho repentino e sem motivo. E

todas as mães do mundo têm de deixar os filhos saírem de casa para

aprenderem a ser homens.

- Os meus filhos não vão ser levados para longe de mim - consigo

ouvir a minha voz tremer. - Tenho medo... Tenho medo por eles. Receio...

Receio por eles. Nem sequer sei o quê. Mas não posso deixar os meus

filhos partirem para casa de estranhos.

Ela coloca o braço caloroso em volta da minha cintura.

- Bem, isso é bastante natural - diz carinhosamente. - Perdestes o

vosso marido; é natural que queirais manter os vossos filhos em segurança.

Mas, um dia, eles vão ter de partir, sabeis.

Não cedo à pressão suave que ela exerce sobre mim.

- É mais do que um capricho - digo. - É mais como...

- É uma Visão? - pergunta ela, num tom de voz muito baixo. -

Tendes conhecimento de algo que lhes pode acontecer? Haveis tido uma

Visão, Isabel?

Abano a cabeça e as lágrimas começam a brotar.

- Não sei, não sei. Não posso dizer. Mas a ideia de os afastarem de

mim, e de serem estranhos a cuidar deles, de eu acordar durante a noite e de

saber que não estão sob o mesmo tecto que eu, de despertar de manhã e de

não ouvir as vozes deles, a ideia de eles estarem num quarto estranho,

servidos por estranhos, não me podendo ver... Não consigo suportá-la. Nem

sequer a ideia consigo suportar.

Ela envolve-me com os braços.

- Calma - diz ela. - Calma. Não tendes de pensar nisso. Falarei com o

vosso pai. Eles não precisam de partir, até vós sentirdes que aceitais a

situação - pega-me na mão. - Bem, estais gelada - afirma ela, surpreendida.

Toca no meu rosto com uma certeza súbita. - Não se trata de um capricho,

quando estais simultaneamente fria e quente, debaixo do luar. Isto é uma

Visão. Minha querida, haveis sido avisada de que os vossos filhos correm

perigo.

Abano a cabeça.

- Não sei. Não posso ter a certeza. Só sei que ninguém nunca me

deveria tirar os meus filhos. Nunca os deixarei partir.

Ela concorda com a cabeça.

Page 30: Philippa gregory - a rainha branca

- Muito bem. Convencestes-me, pelo menos. Haveis visto um

qualquer perigo para os vossos filhos, se eles forem levados para longe de

vós. Assim seja. Não choreis. Mantereis os vossos filhos perto de vós e nós

mantê-los-emos em segurança.

Então, espero. Ele disse-me claramente que nunca voltaria a vê-lo,

por isso, não espero por nada, sabendo muito bem que estou à espera de

nada. Mas, de algum modo, não consigo deixar de estar à espera. Sonho

com ele: sonhos apaixonados, de dsejo ardente, que me despertam a meio

da noite, enrolada lençol, a transpirar de desejo. O meu pai pergunta-me

porque não como. António abana a cabeça na minha direcção simulando o

seu pesar.

A minha mãe dardeja-me com olhos brilhantes e diz:

- Ela está bem. Ela vai comer.

As minhas irmãs sussurram, para me perguntar se estou a jejuar pelo

rei bonito, e eu digo severamente:

- Não me servia de nada.

E, então, espero.

Espero mais sete noites e sete dias, como uma donzela numa torre de

um conto de fadas, como Melusina banhando-se na fonte, no meio da

floresta, esperando que um cavaleiro surdisse, a cavalo, por caminhos não

trilhados, e a amasse. Todas as noites puxo um pouco mais o laço de fio até

que, ao oitavo dia, ouço um reduzido tilintar de metal a bater na pedra, olho

para a água e vejo um clarão dourado. Inclino-me para o retirar. É um anel

de ouro, belo e simples. Um lado é liso, mas o outro tem quatro

extremidades forjadas, como se fossem as extremidades de uma coroa.

Ponho-o na palma da minha mão, onde ele deixou o seu beijo, e parece um

diadema em miniatura. Enfio-o no dedo da minha mão direita - não estou a

atrair a infelicidade ao colocá-lo no meu dedo do anel de noivado - e serve-

me perfeitamente e fica-me bem. Retiro-o com um encolher de ombros,

como se não fosse de ouro forjado borgonhês da mais alta qualidade. Meto-

o no bolso, e dirijo-me a casa com ele guardado em segurança.

E, ali - sem aviso -, ali está um cavalo à porta e um cavaleiro em

cima dele, um estandarte sobre a sua cabeça, a rosa branca da Casa de

Iorque desfraldada à brisa. O meu pai está diante da porta da entrada, que

se encontra aberta, a ler uma carta. Ouço-o dizer:

- Dizei a Sua Graça que terei toda a honra. Estarei lá depois de

amanhã.

O homem faz uma vénia em cima da sela, lança-me uma saudação

casual, espora o cavalo e parte.

- O que é que se passa? - pergunto, subindo as escadas.

- Uma convocação - diz o meu pai com um ar severo. - Todos temos

de partir outra vez para a guerra.

- Vós não! - digo com medo. - Vós não, Pai. Outra vez, não.

Page 31: Philippa gregory - a rainha branca

- Não. O rei ordena-me que indique dez homens de Grafton e cinco

de Stony Stratford. Preparados e equipados para marcharem sob as suas

ordens contra o rei da Casa de Lencastre. Temos de mudar de lado. Ao que

parece, o jantar que lhe oferecemos saiu-nos caro.

- E quem vai liderá-los? - tenho tanto medo de que ele diga os meus

irmãos: - Não é o António? Nem o João?

- Eles têm de servir sob as ordens de Sir Guilherme Hastings - afirma

ele. - Ele irá integrá-los nas tropas treinadas.

Hesito.

- Ele disse mais alguma coisa?

- Isto é uma convocatória - replica o meu pai num tom irritado. - Não

é um convite para o pequeno-almoço do primeiro de Maio. É claro que ele

não disse nada, excepto que passariam por cá, de manhã, depois de

amanhã, e que os homens têm de estar prontos para se alinharem nessa

altura.

Roda sobre os calcanhares e entra em casa, deixando-me com o anel

de ouro, em forma de coroa, pontiagudo, no bolso.

A minha mãe sugere, ao pequeno-almoço, que as minhas irmãs e eu,

e os dois primos que estão hospedados em nossa casa, poderíamos gostar

de ver o exército passar, e os nossos homens partirem para a guerra.

- Não consigo imaginar porquê - retorque o meu pai, irritado. - Seria

de pensar que já havíeis visto homens suficientes! partirem para a guerra.

- Fica bem manifestarmos o nosso apoio - diz ela em voz baixa. - Se

ele vencer, será melhor para nós se ele pensar que enviámos os homens

voluntariamente. Se ele perder, ninguém vai lembrar-se de que assistimos à

passagem dele, e podemos negá-lo.

- Sou eu que lhes vou pagar, não sou? Vou armá-los com o que

tenho? As armas que me restam da última vez que saí para combater, e que,

por sinal, foi contra ele? Vou juntá-las, vou enviá-las e comprar botas para

os que não têm nenhumas. Seria de pensar que estava a demonstrar o meu

apoio!

- Então, temos de fazê-lo de boa vontade - diz a minha mãe.

Ele concorda com a cabeça. Sempre cedeu perante a minha mãe,

neste tipo de questões. Ela era uma Duquesa, casada com o nobre Duque de

Bedford, quando o meu pai não era mais do que o escudeiro do marido

dela. Ela é filha do Conde de Saint-Pol, da família real da Borgonha, e é

uma cortesã sem igual.

- Gostaria que viésseis connosco - prossegue ela. - E talvez

pudéssemos encontrar uma bolsa com ouro, na sala do tesouro, para Sua

Graça.

- Uma bolsa com ouro! Uma bolsa com ouro! Para fazer guerra

contra o Rei Henrique? Agora somos Iorquistas?

Ela espera até a revolta dele acalmar.

Page 32: Philippa gregory - a rainha branca

- Para mostrarmos a nossa lealdade - diz ela. - Se ele derrotar o Rei

Henrique e voltar a Londres vitorioso, então, será a sua corte e os seus

favores reais que serão a origem de toda a riqueza e de todas as

oportunidades. Será ele quem distribuirá as terras e quem terá a

responsabilidade das nomeações para os cargos, será também ele quem

autorizará os casamentos. E nós temos uma família numerosa, com muitas

raparigas, Sir Ricardo.

Por um momento, todas ficamos paralisadas e de cabeças baixas,

prevendo uma das explosões atroadoras do meu pai. Depois, com

relutância, ele ri-se.

- Deus vos abençoe, minha oradora fascinante - diz. - Tendes razão,

como tendes sempre. Farei o que dizeis, apesar de ser contra os meus

princípios, e podeis dizer às meninas que usem rosas brancas, se

conseguirem encontrar alguma nesta altura.

Ela inclina-se para ele e dá-lhe um beijo na bochecha.

- As roseiras-bravas estão em botão nas sebes - diz ela. Não é tão

bom como se estivessem completamente floridas, mas ele perceberá a

nossa intenção, e é só isso que importa.

É claro que durante o resto do dia as minhas irmãs e primas estão

frenéticas, experimentando roupas, lavando o cabelo, trocando fitas e

ensaiando as suas reverências. A mulher de António, Isabel, e duas das

nossas damas de companhia mais calmas dizem que não irão, mas todas as

minhas irmãs estão fora de si, de entusiasmo. O rei e a maior parte dos

lordes da sua corte irão passar por aqui. Que oportunidade para causar boa

impressão aos homens que irão ser os novos senhores deste país! Se

vencerem.

- O que ides vestir? - pergunta-me Margarida, vendo-me distante do

entusiasmo.

- Usarei o meu vestido cinzento e o meu véu cinzento.

- Esse não é o vosso melhor vestido; é apenas o que vestis aos

domingos. Porque não pondes o azul?

Encolho os ombros.

- Vou porque a Mãe quer que vamos - afirmo. - Não espero que

ninguém olhe duas vezes para nós - retiro o vestido do armário e sacudo-o.

Tem um corte ajustado ao corpo com meia cauda atrás. Combino-o com um

cinto cinzento, um pouco descaído sobre a minha cintura. Não digo nada a

Margarida, mas sei que me favorece mais do que o meu vestido azul.

- Depois de o rei ter vindo pessoalmente jantar, convidado por vós? -

exclama ela. - Porque não olharia duas vezes para vós? Da primeira vez,

olhou bastante. Ele deve gostar de vós: devolveu-vos as vossas terras; veio

cá jantar. Passeou no jardim convosco. Porque não viria cá a casa outra

vez? Porque não vos haveria de favorecer?

- Porque, entre essa altura e agora, eu consegui o que queria, mas ele

Page 33: Philippa gregory - a rainha branca

não - digo cruamente, atirando o vestido para o lado. - E, ao que parece, ele

não é um rei tão generoso como os das baladas. O preço pela gentileza dele

era elevado, demasiado elevado para mim.

- Nunca quis possuir-vos? - murmura ela, horrorizada.

- Exactamente.

- Oh, meu Deus, Isabel. O que dissestes? O que fizestes?

- Disse que não. Mas não foi fácil.

Ela fica deliciosamente escandalizada.

- Ele tentou forçar-vos?

- Não muito. Não importa - balbucio. - E não é que eu fosse mais

importante para ele do que uma rapariga que estava na beira da estrada.

- Talvez não devêsseis vir amanhã - sugere ela. - Se ele vos ofendeu.

Podeis dizer à Mãe que estais doente. Eu digo-lhe, desejardes.

- Oh, eu vou - digo, como se, de qualquer forma, me fosse

indiferente.

De manhã, já não tenho tanta coragem. Uma noite sem dormir, o

pedaço de pão e a carne de vaca ao pequeno-almoço não contribuem para

melhorar o meu aspecto. Estou pálida como mármore e, ainda que

Margarida esfregue ocre vermelho nos meus lábios, não perco o ar abatido,

uma beleza espectral. Entre as minhas irmãs e primas belamente vestidas,

eu, com o meu vestido e o meu toucado cinzentos, destaco-me como uma

noviça num convento. Mas, quando a minha mãe me vê, assente, agradada.

- Pareceis uma dama - diz ela. - Não como algumas raparigas

camponesas enfeitadas com as suas melhores vestes para irem a uma feira.

Como repreensão, aquele comentário não surte efeito. As raparigas

estão tão encantadas por lhes ser permitido comparecer na convocação que

não se importam nada de serem repreendidas por estarem exageradamente

ornamentadas. Descemos juntas a estrada em direcção a Grafton e vemos

diante de nós, ao lado da estrada nacional, um grupo errante de homens

armados com bordões, um ou dois com mocas: os recrutas do meu Pai. Deu

a todos uma divisa com uma rosa branca e relembrou-lhes que, agora,

devem lutar pela Casa de Iorque. Costumavam ser soldados de infantaria da

Casa de Lencastre; têm de recordar-se de que, agora, são vira-casacas. É

claro, é-lhes indiferente a mudança de lealdade. Combatem conforme ele

lhes ordenou, porque ele é o senhorio deles, o proprietário dos campos que

eles trabalham, das suas casas, de quase tudo o que vêem à sua volta. É

dele o moinho onde moem o milho, a taberna onde bebem paga-lhe renda.

Alguns deles nunca passaram além das terras que lhe pertencem. Quase não

conseguem imaginar um mundo no qual ”escudeiro” não signifique,

simplesmente, Sir Ricardo Woodville, ou o filho, que se lhe seguirá.

Quando ele era partidário da Casa de Lencastre, eles também eram. Depois,

foi-lhe concedido o título Rivers, mas eles continuaram a ser dele e ele

deles. Agora manda-os combater pela Casa de Iorque e eles farão o seu

Page 34: Philippa gregory - a rainha branca

melhor, como sempre. Foi-lhes prometido que seriam remunerados por

combaterem, e que as suas viúvas e Filhos seriam amparados, no caso de

eles perderem a vida. É tudo o que precisam de saber. Isso não faz deles um

exército inspirado, mas eles levantam a voz, numa saudação rude ao meu

pai, e retiram os chapéus com sorrisos apreciadores pelas minhas irmãs e

por mim, e as suas mulheres e os seus filhos inclinam-se em vénias, quando

nos dirigimos a eles.

As trombetas começam a tocar repentinamente e todas as cabeças se

voltam na direcção do ruído. Contornando a esquina, num trote regular,

surgem as cores e os trombeteiros do rei, atrás deles, os arautos, atrás deles,

os alabardeiros da casa real, e, no meio de todo aquele bramido e de

estandartes ondulantes, está ele.

Por um momento, sinto que vou desmaiar, mas a mão da minha mãe

mantém-se firme sob o meu braço, e eu acalmo-me. Ele levanta a mão,

dando sinal para que parem, e a cavalgada detém-se. Atrás dos primeiros

cavalos e cavaleiros, está um longo séquito de homens armados; atrás

deles, outros novos recrutas, com um ar acanhado, como os nossos homens,

e depois uma comitiva de carroças com alimentos, mantimentos, armas,

uma enorme carreta puxada por quatro cavalos de tiro maciços, e uma fila

de póneis e mulheres, acompanhantes da campanha e seres errantes. É

como uma pequena cidade em movimento; uma pequena cidade mortífera,

que se desloca para fazer o mal.

O Rei Eduardo toma balanço para desmontar do seu cavalo, e dirige-

se ao meu pai, que se baixa numa vénia:

- Foi tudo o que conseguimos reunir, lamento, Vossa Graça. Mas

juraram servir-vos - afirma o meu pai. - E isto, para ajudar a vossa causa.

A minha mãe dá um passo em frente e oferece a bolsa com ouro. O

Rei Eduardo pega nela e avalia o peso na sua mão e, em seguida, beija-a

cordialmente em ambas as bochechas.

- Sois generosos - diz. - E eu não esquecerei o vosso apoio.

Os olhos dele deslocam-se dela para mim, para o lugar onde estou

com as minhas irmãs, e todas fazemos uma reverência ao mesmo tempo.

Quando me levanto, ele continua a olhar para mim, e há um momento em

que todo o ruído do exército, dos cavalos e dos homens a alinharem-se se

transforma em silêncio, e é como se só existíssemos eu e ele, sozinhos, no

mundo inteiro. Sem pensar no que estou a fazer, como se ele me tivesse

chamado sem proferir uma palavra, dou um passo na sua direcção, e depois

mais um, até ter ultrapassado o meu pai e a minha mãe, e estar cara a cara

com ele, tão perto que ele poderia beijar-me, se o desejasse.

- Não consigo dormir - diz ele, tão baixo que só eu o consigo ouvir. -

Não consigo dormir. Não consigo dormir. Não consigo dormir.

- Nem eu.

- Vós também não?

Page 35: Philippa gregory - a rainha branca

- Não.

- De verdade?

- Sim.

Ele dá um profundo suspiro, como se estivesse aliviado.

- Então, é amor?

- Suponho que sim.

- Não consigo comer.

- Não.

- Não consigo pensar noutra coisa que não seja em vós. Não posso

continuar nem um segundo assim; não consigo cavalgar para a batalha

deste modo. Sou tão tonto como um rapazinho. Estou louco por vós, como

um rapazinho. Não consigo ficar sem vós; não ficarei sem vós. Seja o que

for que me custe.

Consigo sentir a cor do meu rosto intensificar-se, bem como o calor

nas minhas faces, e, pela primeira vez em dias, consigo sentir-me rir.

- Não consigo pensar em nada excepto em vós - murmuro. - Nada.

Pensei que estava doente.

O anel em forma de coroa pesa-me no bolso, o meu toucado

arrepanha-me o cabelo; mas estou ali sem me aperceber de nada, não vendo

nada para além dele, não sentindo nada senão o seu hálito morno na minha

cara e o odor do seu cavalo, da pele da sua sela, bem como o seu cheiro:

especiarias, água de rosas. suor.

- Estou louco por vós - diz ele.

Sinto o meu sorriso abrir-se nos meus lábios, quando, por fim, olho

para o seu rosto.

- E eu por vós - digo em voz baixa. - De verdade.

- Bem, então, casai comigo.

- O quê?

- Casai comigo. Não há mais nada a fazer.

Dou um risinho nervoso.

- Estais a brincar comigo.

- Estou a falar a sério. Penso que vou morrer se não vos tiver.

Quereis casar comigo?

- Sim - murmuro.

- Amanhã, de manhã, chegarei a cavalo, bem cedo. Casai comigo,

amanhã, de manhã, na vossa pequena capela. Trarei o meu capelão, vós

trazeis testemunhas. Escolhei alguém em quem possais confiar. Terá de

permanecer em segredo durante algum tempo. Quereis fazê-lo?

- Sim.

Pela primeira vez, ele sorri, um sorriso caloroso que se espalha pelo

seu rosto claro e largo.

- Valha-me Deus, poderia tomar-vos nos meus braços, neste preciso

momento - diz ele.

Page 36: Philippa gregory - a rainha branca

- Amanhã - sussurro.

- Às nove da manhã - diz ele. Ele volta-se para o meu pai.

- Podemos oferecer-vos refrescos? - pergunta o meu pai,; olhando do

meu rosto enrubescido para o rei sorridente.

- Não, mas amanhã jantarei convosco, se for possível - diz ele. -

Estarei a caçar aqui perto, e espero passar um bom dia - faz uma vénia à

minha mãe e a mim, lança uma saudação às minhas irmãs e primas e,

ganhando balanço, monta na sela. - Alinhar - diz ele para os homens. - É

uma marcha curta, uma boa causa e um jantar, quando paramos. Sede leais

para comigo e eu serei um bom senhor para vós. Nunca perdi uma batalha,

e vós estareis seguros comigo. Levar-vos-ei a um excelente saque e trar-

vos-ei em segurança de volta a casa.

São precisamente as palavras certas a dizer-lhes. E, por uma vez,

ficam com um ar mais alegre e dirigem-se, arrastando os pés, para o fim da

linha, as minhas irmãs acenam com as suas rosas em botão, os trombeteiros

fazem-se ouvir, e todo o exército avança novamente. Ele faz-me um sinal

com a cabeça sem sorrir, e eu ergo a mão, numa despedida.

- Amanhã - murmuro quando ele passa por mim.

Tenho dúvidas em relação a ele, mesmo quando dou ordem ao pajem

da minha mãe para despertar de manhã e dirigir-se à capela, pronto para

cantar um salmo. Tenho dúvidas em relação a ele, mesmo quando vou ter

com a minha mãe e lhe digo que o Rei da Inglaterra, em pessoa, me disse

que deseja casar comigo em segredo e lhe pergunto se pode vir comigo e

ser minha testemunha, e que traga a sua dama de companhia, Catarina.

Tenho dúvidas em relação a ele, quando, com o meu melhor vestido azul,

fico ali, no ar frio da manhã da pequena capela. Tenho dúvidas em relação

a ele até ao preciso momento em que ouço os seus passos apressados

avançarem pela curta nave lateral, até sentir o seu braço em volta da minha

cintura e o seu beijo na minha boca, e ouvi-lo dizer ao padre:

- Casai-nos, Padre. Estou com pressa.

O rapaz canta o seu salmo e o padre pronuncia as palavras. Faço o

meu juramento e ele o seu. Indistintamente, vejo o rosto encantado da

minha mãe e as cores da janela de vidro fosco projectarem um arco-íris aos

nossos pés, no chão de pedra da capela.

Então, o padre pergunta:

- E a aliança?

E o rei responde:

- Uma aliança! Sou um palerma! Esqueci-me! Não tenho uma

aliança para vós - vira-se para a minha mãe. - Vossa senhoria, podeis

emprestar-me um anel?

- Oh, mas eu tenho um - digo, quase surpreendida comigo mesma. -

Tenho um aqui - do bolso, tiro o anel que retirei tão lenta e pacientemente

da água, o anel em forma da coroa da Inglaterra, que veio com a magia

Page 37: Philippa gregory - a rainha branca

marinha para realizar os desejos do meu coração, e o próprio Rei da

Inglaterra mete-mo no dedo, como aliança de casamento. E eu sou mulher

dele.

E Rainha da Inglaterra - ou, pelo menos, a Rainha da Inglaterra da

Casa de Iorque.

O braço dele está bastante apertado em volta da minha cintura e o

rapaz canta a ordem, depois, o rei vira-se para a minha mãe e pergunta:

- Vossa senhoria? Para onde posso levar a minha noiva?

A minha mãe sorri e dá-lhe uma chave.

- Há uma cabana de caça junto ao rio - volta-se para mim. - A

Cabana do Rio. Pedi que a preparassem para vós.

Ele assente com a cabeça, arrasta-me para fora da pequena capela e

pega em mim para me pôr em cima do seu cavalo de caça. Monta atrás de

mim e sinto os seus braços apertarem-se em meu redor, quando ele toma as

rédeas. Seguimos a passo ao longo da margem do rio e, quando me encosto

para trás, posso sentir o coração dele bater. Conseguimos avistar a pequena

cabana por entre as árvores e há uma onda de fumo a sair da chaminé. Ele

balança-se para desmontar do cavalo e ergue-me para que eu desça, leva o

animal para os estábulos, nas traseiras da casa, enquanto eu abro a porta. É

um lugar simples, com a lareira acesa, um jarro de cerveja de casamento e

duas canecas sobre a mesa de madeira, dois bancos preparados para

comermos o pão, o queijo e a carne, e uma grande cama de madeira, feita

com os melhores lençóis de linho. A divisão escurece, quando ele passa a

porta da entrada, baixando-se para passar sob as vigas do tecto.

- Vossa Graça... - começo a dizer e depois corrijo-me. Meu senhor.

Marido.

- Esposa - diz ele, com uma satisfação tranquila. - Vamos para a

cama.

O sol da manhã, que estava tão luminoso, ao incidir nas traves e no

tecto revestido a água de cal, quando fomos para cama, está a tornar o local

dourado, ao final da tarde, altur em que ele me diz:

- Agradeço à Nossa Senhora dos Céus por o vosso pai me ter

convidado para jantar. Sinto-me fraco por causa da fome. Estou a morrer de

fome. Deixai-me sair da cama, sua bruxa

- Ofereci-vos pão e queijo, há duas horas - relembro-lhe -, mas vós

não me deixastes fazer os três passos até à mesa, para os ir buscar para vós.

- Estava ocupado - diz ele, e puxa-me novamente para junto do seu

ombro despido. Com o seu cheiro e o toque da sua pele, sinto o meu

desejo por ele crescer novamente e movemo-nos juntos. Quando nos

deitamos de costas, a divisão está rosada com a luz do pôr do Sol, e ele sai

da cama.

- Tenho de me lavar - diz. - Quereis que vos traga um jarro de água

Page 38: Philippa gregory - a rainha branca

do pátio?

A cabeça dele roça no tecto; o corpo é perfeito. Observo-o da cabeça

aos pés com satisfação, como um corretor de cavalos olha para um belo

garanhão. É alto e magro, os seus músculos são duros, e o peito largo, os

ombros fortes. Sorri para mim e o meu coração palpita por ele.

- Estais com ar de quem tem vontade de me devorar - diz.

- E tenho - respondo. - Não consigo imaginar como vou conseguir

saciar o meu desejo por vós. Creio que vou ter de vos manter prisioneiro

aqui e de vos comer em pequenas costeletas, dia após dia...

- Se eu vos fizesse prisioneira, devorar-vos-ia de um ávido trago - ri-

se ele. - Mas vós não sairíeis enquanto não estivésseis grávida.

- Oh! - o pensamento mais encantador invade-me agora. Oh, irei dar-

vos filhos e eles irão ser príncipes.

- Ireis ser a mãe do Rei da Inglaterra, e a mãe da Casa de Iorque, que

governará para sempre, se Deus assim o quiser.

- Ámen - digo devotamente, e não sinto nenhuma sombra, nenhum

tremor, nem qualquer sensação de intranquilidade. Que Deus vos envie de

volta a casa, para junto de mim, em segurança.

- Eu venço sempre - diz ele na sua confiança suprema. - Ficai feliz,

Isabel. Não ireis perder-me no campo de batalha.

- E irei ser rainha - digo novamente. Pela primeira vez, compreendo,

compreendo verdadeiramente que, se ele regressar a casa da batalha como

rei legítimo, é porque Henrique estará morto; então, este jovem será o

inquestionável Rei da Inglaterra - e eu serei a primeira dama do país.

Depois do jantar, ele despede-se do meu pai e prepara-se para partir

para Northampton. O seu pajem veio aos estábulos e deu de comer e de

beber aos cavalos, deixando-os, em seguida, prontos, à porta.

- Voltarei amanhã à noite - diz ele. - Tenho de ver os meus homens e

de reunir o meu exército, o dia todo. Mas virei ter convosco, ao final do

dia.

- Vinde ter à cabana de caça - murmuro. - E terei lá jantar para vós,

como uma boa esposa.

- Amanhã à noite - promete ele. Depois, volta-se para o meu pai e a

minha mãe e agradece-lhes pela hospitalidade, agradece as vénias deles

com um aceno de cabeça, e sai.

- Sua Graça é muito atencioso convosco - comenta o meu pai. - Não

permitais que isso vos dê a volta à cabeça.

- A Isabel é a mulher mais bonita da Inglaterra - responde docemente

a minha mãe. - E ele aprecia um rosto bonito; mas ela conhece bem os seus

deveres.

E depois, tenho de continuar a esperar. Ao longo da noite, depois de

jogar às cartas com os meus filhos e de os ouvir dizer as suas orações e

Page 39: Philippa gregory - a rainha branca

preparar-se para dormir. Ao longo de toda a noite, e, apesar de estar

exausta e deliciosamente dorida, não consigo dormir. Durante todo o dia

seguinte, quando caminho e falo, é como se estivesse num sonho, à espera

que chegue a noite, o momento em que a sua cabeça espreite pela porta e

ele entre na pequena divisão, me envolva com os braços e diga:

- Esposa, vamos para a cama.

Passam três noites, nesta bruma de prazer, até à última manhã, em

que ele me diz:

- Tenho de ir, meu amor, e ver-vos-ei quando tudo estiver terminado

- é como se alguém me tivesse atirado água gelada para a cara, fico

sobressaltada e digo:

- Ides partir para a guerra?

- Já tenho o meu exército reunido, e os meus espiõel comunicaram-

me que Henrique recebeu ordens da mulher para se encontrar com ela na

costa leste, com as tropas dela. Partirei imediatamente e trá-lo-ei para a

batalha e, em seguida, marcharei ao encontro dela, assim que ela

desembarcar.

Agarro a sua camisa, quando ele a veste.

- Não ides partir já?

- Hoje - diz ele, afastando-me gentilmente, e continuando a vestir-se.

- Mas eu não suporto estar sem vós.

- Não. Mas ides suportar. Agora ouvi.

Este é um homem diferente do jovem amante arrebatado da nossa

lua-de-mel de três noites. Não tenho pensado em mais nada, a não ser no

nosso prazer; mas ele tem estado a fazer planos. É um rei que está a

defender o seu reino. Espero para ouvir as ordens que ele me vai dar.

- Se vencer, e eu irei vencer, voltarei para junto de vós e, logo que

possível, anunciaremos o nosso casamento. Haverá muitos a quem essa

ideia desagradará, mas está consumado, tudo o que podem fazer é aceitá-lo.

Assinto. Sei que o seu grande conselheiro, Lorde Warwick, está a

planear o seu casamento com uma princesa francesa, e Lorde Warwick está

habituado a dar ordens ao meu jovem marido.

- Se a sorte me for contrária e eu morrer, então, vós não direis nada

acerca deste casamento e destes dias - ergue a mão para silenciar a minha

objecção. - Nada. Não teríeis nada a ganhar por ser a viúva de um impostor

falecido, cuja cabeça será espetada nos portões de Iorque. Seria a vossa

ruína. Tanto quanto todos sabem, sois filha de uma família que é leal à

Casa de Lencastre. Deveis permanecer desse modo. Ireis recordar-vos de

mim nas vossas preces, espero. Mas será um segredo entre mim, vós e

Deus. E de certeza que dois de nós Manteremos o silêncio, porque um de

nós é Deus e o outro estará morto.

- A minha mãe sabe...

- A vossa mãe sabe que a melhor forma de vos manter em segurança

Page 40: Philippa gregory - a rainha branca

será silenciar o pajem e a dama de companhia. E já está preparada para

isso, ela compreende, e eu dei-lhe dinheiro.

Engulo um soluço.

- Muito bem.

E gostaria que vos casásseis de novo. Escolhei um bom homem, um

que vos ame e que tome conta dos vossos filhos, e sede feliz. Eu gostaria

que fôsseis feliz.

Inclino a cabeça num tormento emudecido.

”Mas, se tiverdes um rapaz, é completamente diferente. O meu filho

irá ser o herdeiro ao trono. Será o herdeiro da Casa de Iorque. Tereis de o

manter em segurança. Podereis ter de o manter escondido, até ter idade

suficiente para reivindicar os seus direitos. Pode viver sob um nome falso;

pode viver com gente pobre. Não sejais perfidamente orgulhosa. Escondei-

o num lugar seguro, até ele ter idade e força suficientes para reclamar a sua

herança. Ricardo e Jorge, os meus irmãos, serão os seus tios e guardiães.

Podeis confiar neles para proteger qualquer filho meu. Pode acontecer que

Henrique e o filho morram cedo e, então, o vosso filho será o único

herdeiro do trono da Inglaterra. Não conto com a mulher da Casa de

Lencastre, Margarida Beaufort. O meu filho deverá receber trono. É meu

desejo que ele fique com o trono, se conseguir conquistá-lo, ou se Ricardo

e Jorge puderem conquistá-lo para ele. Compreendeis? Tendes de esconder

o meu filho na Flandres e de o manter em segurança, por mim. Ele poderá

ser o próximo rei da Casa de Iorque.

- Sim - respondo simplesmente. Apercebo-me de que o meu

sofrimento e o meu temor por ele já não são um assunto privado. Se

gerámos um filho, nestas longas noites de amor, então ele não é apenas um

filho do amor, é um herdeiro do trono, um pretendente, um novo jogador na

antiga e mortífera rivalidade que existe entre as Casas de Iorque e de

Lencastre.

- Isto está a ser difícil para vós - diz ele, vendo o meu rosto pálido. -

A minha intenção é que nunca aconteça. Mas não vos esqueçais, o vosso

refúgio é a Flandres, se tiverdes de esconder o meu filho num lugar seguro.

E a vossa mãe tem dinheiro e sabe aonde se dirigir.

- Não esquecerei - digo. - Voltai para mim.

Ele ri-se. Não é um riso forçado; é o riso de um homem feliz,

confiante na sua sorte e nas suas capacidades.

- Voltarei - diz ele. - Confiai em mim. Casastes com um homem que

vai morrer no seu leito, de preferência depois de ter feito amor com a

mulher mais bonita da Inglaterra.

Estende os braços e eu aproximo-me e sinto o calor do seu abraço.

- Certificai-vos de que o fazeis - digo. - E eu assegurar-me-ei de que

Page 41: Philippa gregory - a rainha branca

a mais bonita mulher da Inglaterra, aos vossos olhos, seja sempre eu.

Beija-me, mas bruscamente, como se a sua mente já estivesse em

qualquer outra parte, e aparta-se da minha mão que o agarra. Já se afastou

de mim, muito antes de baixar a cabeça para passar na porta, e vejo que o

pajem já lhe trouxe o cavalo até à porta e está pronto para partir.

Corro para o exterior para lhe dizer adeus e ele já está em cima da

sela. O seu cavalo está a dançar no mesmo lugar; é um enorme animal cor

de avelã, forte e possante. Arqueia o pescoço e tenta recuar, lutando contra

as rédeas mantidas curtas por Eduardo. O Rei da Inglaterra ergue-se contra

o sol, no seu gigantesco cavalo de guerra, e, por um momento, também eu

acredito que ele é invencível.

- Que Deus vos acompanhe, boa sorte! - grito, e ele saúda-me e

esporeia o cavalo, partindo, o legítimo Rei da Inglaterra, para combater o

outro legítimo Rei da Inglaterra, pelo próprio reino.

Fico ali, com a mão levantada, num gesto de adeus, até deixar de ver

o seu estandarte com a rosa branca de Iorque, que segue à sua frente, até

deixar de ouvir o bater dos cascos do seu cavalo, até ele estar longe de

mim; e então, para meu horror, o meu irmão António, que tem estado a ver

tudo isto, sabe Deus há quanto tempo, sai de debaixo da sombra das árvores

e caminha em direcção a mim.

- Sua pega! - diz ele.

Fico a olhar para ele como se não compreendesse o significado da

palavra.

- Sois uma pega. Envergonhastes a nossa casa e o vosso nome, bem

como o nome do vosso pobre marido falecido, que morreu a combater

aquele usurpador. Deus vos perdoe, Isabel. Vou imediatamente contar tudo

ao meu pai, e ele irá mandar-vos para um convento, se não vos estrangular

antes.

- Não! - dou um passo em frente e agarro-lhe o braço, mas ele

sacode-me.

- Não me toqueis, sua puta! Julgais que quero ter as vossas mãos

sobre mim depois de terem andado por todo o corpo dele?

- António, isto não é o que pensais!

- Os meus olhos estão a enganar-me? - dispara ele brutalmente. - Isto

é um feitiço? Sois Melusina? Uma bela deusa que se banha nos bosques e

aquele que acabou de partir um cavaleiro que jurou servir-vos? Isto agora é

Camelot? Um amor honrado? Trata-se de poesia e não da sarjeta?

- É honrado! - sou levada a responder.

- Não conheceis o significado dessa palavra. Sois uma puta, e ele vai

entregar-vos a Sir Guilherme Hastings, quando voltarem a passar por aqui,

como faz com todas as suas pegas.

- Ele ama-me!

- Como diz a todas.

Page 42: Philippa gregory - a rainha branca

- Ama. E vai voltar para mim...

- Como promete sempre.

Furiosa, lanço o punho na sua direcção e ele baixa-se, escapando a

um murro no rosto. Depois vê o cintilar do ouro no meu dedo e quase se ri.

- Ele deu-vos isso? Um anel? Devo ficar impressionado com um

símbolo de amor?

- Não é um símbolo de amor, é uma aliança de casamento. Uma

aliança apropriada oferecida no casamento. Estamos casados - faço o meu

anúncio em triunfo, mas fico imediatamente desapontada.

- Valha-me Deus, ele enganou-vos - diz ele, angustiado. Abraça-me e

aperta-me a cabeça junto ao peito. - Minha pobre irmã, minha pobre tonta.

Debato-me para me soltar.

- Deixai-me, não sou tonta de ninguém. O que dizeis?

Ele olha para mim com pena, mas a sua boca contorce-se num

sorriso amargo.

- Peixai-me adivinhar, foi um casamento secreto, numa capela

privada? Nenhum dos amigos e cortesãos dele esteve presente? Não podeis

dizer nada a Lorde Warwick? Tendes de o manter em segredo? Tendes de

negar, se vos perguntarem?

- Sim. Mas...

- Não estais casada, Isabel. Haveis sido enganada. Foi uma cerimónia

simulada que não tem qualquer valor aos olhos de Deus nem dos homens.

Enganou-vos com um anel falso e um padre simulado, para conseguir

levar-vos para a cama.

- Não.

- Este é o homem que espera ser Rei da Inglaterra. Tem de casar com

uma princesa. Não vai casar com uma qualquer viúva indigente, que

encontrou na beira da estrada, a pedir-lhe que lhe devolvesse o seu dote. Se

ele alguma vez casar com uma mulher inglesa, será com uma das grandes

damas da corte dos Lencastre, provavelmente a filha de Warwick, Isabel.

Não vai casar com uma rapariga cujo pai lutou contra ele. É mais provável

que case com uma grande princesa da Europa, uma infanta da Espanha, ou

uma dauphine da França. Ele tem de casar de modo a obter uma posição

mais segura no trono, de forma a fazer alianças. Não vai casar com um

rosto bonito, por amor. Lorde Warwick nunca o permitiria. E ele não é

assim tão louco, ao ponto de ir contra os seus Próprios interesses.

- Ele não tem de fazer o que Lorde Warwick quer! Ele é o rei.

- Ele é uma marioneta de Warwick - afirma cruelmente o meu irmão.

- Lorde Warwick decidiu apoiá-lo, tal como o pai de Warwick apoiou o pai

de Eduardo. Sem o apoio de Warwick, nem o vosso amante nem o pai dele

poderiam ter feito nada da sua reivindicação ao trono. Warwick é o fazedor

de reis, e transformou o vosso amante em Rei da Inglaterra. Podeis estar

certa de que também irá inventar uma rainha. Será ele a escolher com quem

Page 43: Philippa gregory - a rainha branca

Eduardo casará, e Eduardo casará com a pessoa que ele decidir.

Estou tão estupefacta que fico sem palavras.

- Mas ele não o fez. Não pode fazê-lo. Eduardo casou-se comigo.

- Não foi. Houve testemunhas.

- Quem?

- A nossa Mãe, por exemplo - digo casualmente.

- A nossa mãe?

- Foi testemunha, juntamente com Catarina, a sua dama de

companhia.

- E o Pai sabe? Ele esteve lá?

Abano a cabeça.

- Aí tendes, então - diz ele. - Quem são as vossas muitas

testemunhas?

- A Mãe, Catarina, o padre e um menino do coro - digo.

- Que padre?

- Um que não conheço. O rei ordenou-lhe que viesse.

Ele encolhe os ombros.

- Se é que era padre. É mais provável que fosse um louco, ou actor,

fingindo por favor. Mesmo que seja um padre ordenado, o rei ainda pode

negar que o casamento tenha sido válido e será a palavra de três mulheres e

de um rapaz contra a do Rei da Inglaterra. É o suficiente para vos mandar

deter, com base numa acusação qualquer e para vos manter presas por cerca

de um ano, até ele casar com uma princesa da sua escolha. Fez-vos, a vós e

à Mãe, passar por idiotas.

- Juro-vos que ele me ama.

- Talvez ele ame - admite ele. - Como talvez ame cada uma das

mulheres com quem se deitou, e há centenas delas. Mas e quando a batalha

estiver terminada e ele voltar para casa, vir outra menina bonita na beira da

estrada? Esquecer-vos-á numa semana.

Esfrego a bochecha com a mão e apercebo-me de que tenho a face

lavada em lágrimas.

- Vou contar à Mãe o que me haveis dito - afirmo debilmente. É a

ameaça que lhe fazia na nossa infância -, na altura, não o assustava.

- Vamos os dois falar com ela. Não vai ficar feliz, quando se

aperceber de que foi enganada, ao ponto de empurrar a filha para a desonra.

Caminhamos em silêncio pelo meio dos bosques e atravessamos a

ponte pedonal. Quando passamos pelo enorme freixo, olho de relance para

o tronco. O fio enrolado desapareceu; nãohá provas de que a magia alguma

vez lá tenha estado. As águas do rio, de onde retirei o meu anel, fecharam-

se. Não há provas de que a magia alguma vez tenha funcionado. Não há

sequer provas de que exista algo como magia. Tudo o que tenho é um anel

Page 44: Philippa gregory - a rainha branca

de ouro em forma de coroa, que pode não significar nada.

A minha mãe encontra-se no jardim de ervas aromáticas, ao lado da

casa, e, quando nos vê, a mim e ao meu irmão, caminhar juntos num

silêncio obstinado, a um passo de distância, sem dizermos nada, endireita-

se, com as ervas aromáticas no cesto, e espera que nos aproximemos,

preparando-se para uma discussão.

- Filho - saúda ela o meu irmão. António ajoelha-se para lhe pedir a

bênção e ela pousa a mão na sua cabeça loura e sorri-lhe. Ele põe-se de pé e

segura-lhe a mão na sua.

- Julgo que o rei vos mentiu e à minha irmã também - diz ele sem

rodeios. - A cerimónia de casamento foi tão secreta que não existe ninguém

com autoridade para a provar. Creio que ele se deu ao trabalho de organizar

aquela cerimónia fictícia para a poder levar para a cama, e que negará que

são casados.

- Oh, credes? - diz ela, imperturbável.

- Creio - afirma ele. - E não será a primeira vez que fingiu casar-se

com uma dama para poder dormir com ela. Já jogou este jogo antes, e a

mulher acabou por ter um filho bastardo, e sem aliança de casamento.

A minha mãe, magnificentemente, encolhe os ombros.

- O que ele fez no passado é problema dele - responde ela. - Mas eu

vi-o casar-se e deitar-se com ela, e aposto que voltará, para a reivindicar

como mulher dele.

- Nunca - diz simplesmente António. - E ela ficará arruinada. Se

estiver à espera de uma criança, ficará totalmente desgraçada.

A minha mãe sorri para o seu rosto irritado.

- Se tivésseis razão e ele fosse negar o casamento, então, as

perspectivas dela seriam realmente fracas - concorda.

Volto a minha cabeça para longe deles. Passou apenas um instante

desde que o meu amado me estava a indicar como manter o seu filho em

segurança. Agora, esta mesma criança está a ser descrita como a minha

ruína.

- Vou ver os meus filhos - digo friamente a ambos, - Recuso-me a

ouvir isto e não vou falar do assunto. Sou-lhe fiel e ele é-me fiel a mim, e

vós arrepender-vos-eis de terdes duvidado de nós.

- Sois uma louca - diz o meu irmão, sem se deixar impressionar. -

Pelo menos isso lamento - e à minha mãe diz: - Haveis feito uma jogada

muito arriscada com ela, uma jogada brilhante; mas haveis posto em risco a

vida e a felicidade dela, com base na palavra de alguém conhecido por ser

mentiroso.

- Talvez - responde a minha mãe, sem se deixar afectar. - E vós sois

um homem sensato, meu filho, um filósofo. Mas há algumas coisas que

conheço melhor que vós.

Page 45: Philippa gregory - a rainha branca

Afasto-me com um ar pomposo. Nenhum deles me chama.

Tenho de esperar, todo o reino tem de esperar de novo para ouvir a

quem deve aclamar como rei, quem irá dar ordens. O meu irmão António

envia um homem para norte, para ir à procura de notícias, e, depois, todos

aguardamos que ele regresse para nos contar se a batalha foi travada, e se a

sorte do Rei Eduardo se manteve. Por fim, em Maio, o criado de António

chega a casa e diz que esteve no extremo mais a norte, perto de Hexham, e

encontrou um homem que lhe contou tudo. Uma má batalha, uma batalha

sangrenta. Hesito à porta de entrada; quero saber o resultado, não os

detalhes. Já não preciso de ver uma batalha para a imaginar; tornámo-nos

um país acostumado a lendas do campo de batalha. Todos já ouviram

contar dos exércitos alinhados nas suas posições, ou assistiram à carga, à

retirada e à pausa exausta, enquanto se reagrupam. Ou todos conhecem

alguém que esteve numa cidade à qual os soldados vitoriosos chegaram,

num festim determinado, e roubaram e violaram; todos conhecem histórias

de mulheres a fugirem para as igrejas em busca de refúgio, gritando por

ajuda. Todos têm conhecimento de que estas guerras dilaceraram o nosso

país, destruíram a nossa prosperidade, a nossa amizade entre vizinhos, a

nossa conliança em estranhos, o amor entre irmãos, a segurança das nossas

estradas, o afecto pelo nosso rei; e, no entanto, nada parece parar as

batalhas. Continuamos interminavelmente à procura de uma vitória final e

de um rei triunfante, que traga a paz; mas a vitória nunca chega, a paz

nunca é alcançada e o rei nunca permanece muito tempo no trono.

O mensageiro de António vai direito ao assunto. O exército do Rei

Eduardo venceu e de modo decisivo. As forças da Casa de Lencastre foram

derrotadas e o Rei Henrique, o pobre errante e perdido Rei Henrique, que

não sabe muito bem onde está, mesmo quando se encontra no seu palácio

de Whitehall, fugiu para os pântanos de Northumberland, com a cabeça a

prémio, como se fosse um criminoso, sem assistentes, até mesmo sem

seguidores, como um rebelde raiano, tào selvagem como uma gralha-de-

bico-vermelho.

A mulher dele, a Rainha Margarida de Anjou, em tempos, a melhor

amiga da minha mãe, fugiu para a Escócia com o príncipe herdeiro. Foi

derrotada e o marido vencido. Mas todos sabem que ela não aceitará a

derrota, irá conspirar e urdir um plano pelo filho, tal como Eduardo me

disse que terei de conspirar e urdir um plano para o nosso. Ela nunca ficará

parada enquanto não conseguir voltar à Inglaterra e a batalha não for

novamente travada. Nunca se deterá, até o marido morrer, o filho morrer, e

ela não ter mais ninguém para colocar no trono. É isso que significa ser

Rainha da Inglaterra, neste país, hoje. É assim que tem sido para ela há

quase dez anos, desde que o marido ficou incapaz para governar e o seu

país se tornou semelhante a uma lebre assustada, lançada no meio de uma

batalha, para a frente de uma matilha de cães de caça, dardejando para um

Page 46: Philippa gregory - a rainha branca

lado e para o outro. E pior, eu sei que é o que vai acontecer comigo se

Eduardo voltar para casa, para junto de mim. e me nomear a sua nova

rainha, e se gerarmos um filho e um herdeiro. O jovem que eu amo irá ser

rei de um reino instável, e eu terei de ser uma rainha pretendente.

E ele volta realmente. Manda-me um bilhete para me informar de

que venceu a batalha e que pôs fim ao cerco no castelo de Bamburgh, e que

me fará uma visita rápida enquanto o seu exército estiver a marchar em

direcção a sul. Virá cá jantar, escreve ele ao meu pai, e, num bilhete

privado para mim, escrevinha que passará cá a noite. Mostro o bilhete à

minha mãe.

- Podeis dizer a António que o meu marido me é fiel.

- Não direi nada a António - responde, pouco prestável. O meu pai,

de qualquer modo, consegue ficar agradado com a perspectiva de uma

visita do vencedor.

- Estávamos certos em ceder-lhe os nossos homens - diz ele à minha

mãe. - Abençoada sejais por isso, meu amor. Ele é o rei vitorioso e vós

haveis-nos colocado do lado vencedor mais uma vez.

Ela sorri-lhe.

- Podia ter corrido de uma forma ou de outra, como sempre - afirma

ela. - E foi Isabel quem deu a volta à cabeça dele. É ela que ele vem ver.

- Temos alguma carne de vaca bem curada? - pergunta ele - E João,

os rapazes e eu vamos caçar com o falcão e conseguiremos trazer boa caça.

- Iremos oferecer-lhe um bom jantar - assegura-lhe ela. Mas não diz

ao meu pai que ele tem um motivo mais importante para celebrar: o facto

de o Rei da Inglaterra ter casado comigo. Mantém o silêncio, e eu

pergunto-me se ela também pensa que ele me está a enganar.

De qualquer modo, não há sinais do que a minha mãe pensa, quando

o saúda com uma profunda vénia. Não manifesta qualquer familiaridade,

como uma mulher poderia mostrar para com o seu genro. Mas trata-o sem

frieza, como seguramente faria se estivesse convencida de que ele nos

tinha enganado às duas. Em vez disso, felicita-o como um rei vitorioso e

ele cumprimenta-a como uma grande senhora, uma antiga duquesa, e

ambos me tratam como uma filha preferida da casa.

O jantar é um sucesso, como devia ser, dado que o meu pai diz

fanfarronadas e está cheio de entusiasmo, a minha mãe está tão elegante

como sempre, as minhas irmãs no seu estado habitual de admiração

pasmada e os meus irmãos furiosamente silenciosos. O rei despede-se dos

meus pais e cavalga pela estrada abaixo, como se voltasse para

Northampton, e eu visto a minha capa e corro pelo caminho abaixo até à

cabana de caça, junto ao rio.

Ele chega lá antes de mim, o seu enorme cavalo de guerra está nos

estábulos, o seu pajem no palheiro, e ele abraça-me sem uma palavra. Eu

também não digo nada. Não sou tonta ao ponto de receber um homem com

Page 47: Philippa gregory - a rainha branca

suspeitas e queixas e, além disso, quando ele me toca, tudo o que quero é o

seu toque, quando me beija, tudo o que desejo são os seus beijos, e tudo o

que quero ouvir são as palavras mais doces do mundo, quando ele diz:

- Vamos para a cama, esposa.

De manhã, estou a pentear o cabelo diante do pequeno espelho de

prata e a prendê-lo com ganchos. Ele põe-se atrás de mim. a observar-me,

por vezes, pegando num anel de cabelo louro e enrolando-o no dedo para o

ver capturar a luz.

- Não estais a ajudar - digo, sorrindo.

- Não quero ajudar, quero empatar-vos. Adoro o vosso cabelo, gosto

de o ver solto.

- E quando vamos anunciar o nosso casamento, meu senhor? -

pergunto, observando o seu rosto reflectido.

- Ainda não - diz ele muito depressa, demasiado depressa: aquela é

uma resposta preparada. - Lorde Warwick está determinado em que eu case

com a Princesa Bona de Sabóia, para garantir a paz com a França. Tenho

de tirar algum tempo para lhe dizer que não pode ser. Ele vai ter de se

habituar à ideia.

- Alguns dias? - sugiro.

- Algumas semanas - diz ele de forma evasiva. - Ele irá ficar

desiludido e sabe Deus os subornos que recebeu para fazer com que esse

casamento se concretize.

- Ele é desleal? Deixa-se subornar?

- Não. Ele não. Ele recebe o dinheiro francês, mas não me trai:

somos como um só. Conhecemo-nos desde meninos. Ele ensinou-me a

combater em justas, deu-me a minha primeira espada. O seu pai era como

um pai para mim. Na verdade, ele tem sido como um irmão mais velho

para mim. Não teria combatido pelo meu direito ao trono se ele não

estivesse comigo.

- Ele é assim tão importante para vós?

- É o homem mais importante da minha vida.

- Mas vós ireis dizer-lhe; ireis levar-me para a corte - digo, tentando

manter a minha voz leve e inconsequente. - E apresentar-me-eis a corte

como vossa esposa?

- Quando chegar a altura certa.

- Posso, pelo menos, dizer ao meu pai, para que possamos encontrar-

nos abertamente como marido e mulher?

Ele ri-se.

- Mais valia contardes ao pregoeiro da cidade. Não, meu amor,

tendes de guardar segredo por mais algum tempo.

Pego no meu alto toucado, com o seu véu dependurado, prendo-o. Só

o peso faz-me dores de cabeça.

- Vós confiais em mim, não confiais, Isabel? - pergunta docemente.

Page 48: Philippa gregory - a rainha branca

- Sim - minto. - Totalmente.

António está de pé, ao meu lado, quando o rei parte a cavalo, de mão

erguida, em sinal de despedida, com um sorriso falso no rosto.

- Não ides com ele? - pergunta sarcasticamente. - Não ides para

Londres, para comprardes roupas novas? Não ides ser apresentada à corte?

Nãoireis estar presente na Missa do Dia de Acção de Graças, como rainha?

- Ele tem de contar a Lorde Warwick - digo. - Ele tem de lhe

explicar.

- Irá ser Lorde Warwick quem lhe irá explicar a ele - afirma sem

rodeios o meu irmão. - Irá dizer-lhe que nenhum rei da Inglaterra se pode

dar ao luxo de casar com uma pleibeia, nenhum rei da Inglaterra se casaria

com uma mulher que não é uma virgem comprovada. Nenhum Rei da

Inglaterra se casaria com uma mulher inglesa sem família nem fortuna. E o

vosso precioso rei irá explicar que se tratou de um casamento que não foi

testemunhado por nenhum lorde ou oficial da corte, que a sua nova mulher

nem sequer disse à própria família, que traz a aliança no bolso; e ambos

concordarão que pode ser ignorado como se nunca tivesse ocorrido. Como

ele fez antes, como voltará a fazer, enquanto houver mulheres tontas no

reino, e isso é o mesmo que dizer eternamente.

Viro-me para ele e, ao ver a dor no meu rosto, ele pára de me

atormentar.

- Ah. Isabel, não fiqueis com esse ar.

- Não me importa que ele não me reconheça publicamente, seu

palerma - disparo. - Não é uma questão de querer ser rainha: já nem sequer

se trata de uma questão de desejar um amor honrado. Estou louca por ele.

Estou loucamente apaixonada por ele. Iria ter com ele, mesmo que tivesse

de caminhar descalça.

Dizei-me que sou uma de muitas. Não me importa! Já não me

preocupo com o meu nome nem com o meu orgulho. Desde que possa tê-lo

mais uma vez, é tudo o que desejo, apenas amá-lo; a única coisa de que

quero estar certa é que vou voltar a vê-lo, e que ele me ama.

António rodeia-me com os braços e dá-me uma palmadinha nas

costas.

- É claro que ele vos ama - diz ele. - Que homem poderia não vos

amar? E, se ele não vos amar, então, é um idiota.

- Eu amo-o - digo lastimosamente. - Amá-lo-ia mesmo que ele fosse

um plebeu.

- Não. não amaríeis - diz ele gentilmente. - Sois filha da vossa mãe,

da cabeça aos pés; não é em vão que tendes o sangue de uma deusa a

correr-vos nas veias. Nascestes para serdes rainha e talvez tudo venha a

correr pelo melhor. Talvez ele vos ame e fique do vosso lado.

Inclino a cabeça para trás para analisar o seu rosto.

- Mas não acreditais nisso.

Page 49: Philippa gregory - a rainha branca

- Não - responde ele com honestidade. - Para vos dizer a verdade,

creio que foi a última vez que o vistes.

Page 50: Philippa gregory - a rainha branca

SETEMBRO DE 1464

Ele envia-me uma carta. Dirige-se a mim como Lady Isabel Grey e,

lá dentro, escreve ”meu amor”; não diz ”esposa”, para não me facultar nada

que possa provar o nosso casamento, se tiver de negá-lo. Escreve-me que

anda ocupado, mas que em breve mandará alguém vir buscar-me. A corte

encontra-se em Reading, ele irá falar com Lorde Warwick em breve. O

conselho vai reunir-se lá, há tanto a fazer. O rei desorientado, Henrique,

ainda nãofoi capturado; errando, algures, pelas colinas de Northumberland;

mas a rainha fugiu para o seu país de origem, a França, pedindo ajuda; por

isso, uma aliança com a França é mais importante que nunca, para a afastar

dos conselhos franceses, e para assegurar que ela não consegue arranjar

aliados. Ele não comenta que um casamento com uma francesa podia

ajudá-lo a obter tudo isso. Diz que me ama, que arde de amor por mim. São

palavras de um amante, promessas de um amante: nada que seja

vinculativo.

O mesmo mensageiro traz uma convocatória para que o meu pai

compareça na corte, em Reading. É uma carta-padrão, todos os nobres do

país devem ter recebido uma igual. Os meus irmãos António, João,

Ricardo, Eduardo e Leonel têm de ir com ele.

- Escrevei-me e contai-me tudo o que se passa - diz a minha mãe ao

meu pai quando estamos a vê-los montar seus cavalos. Eles constituem um

pequeno exército, a excelente prole da minha mãe.

- Deve estar a chamar-nos para anunciar o casamento com a princesa

francesa - resmunga o meu pai, inclinando-se Para apertar mais a sua cilha,

por baixo da aba da sela.

- E uma aliança com os Franceses há-de servir-nos de muito. Já se

viu do que nos serviu antes. Mesmo assim, terá de acontecer, se queremos

que Margarida de Anjou seja silenciada. E uma noiva francesa receber-vos-

ia na sua corte, uma compatriota.

A minha mãe nem pestaneja, diante da perspectiva da noiva francesa

de Eduardo.

- Escrevei e contai-me logo - diz ela. - E que Deus vos acompanhe,

meu marido, e vos mantenha em segurança.

Ele inclina-se na sela para lhe beijar a mão e depois volta a cabeça

do cavalo para a estrada que segue para sul. Os meus irmãos torcem os

chicotes, levantam os chapéus e gritam uma despedida. As minhas irmãs

acenam, a minha cunhada, Isabel, faz uma reverência a António, que ergue

a mão para ela, para a minha mãe e para mim. O seu rosto está triste.

Mas é António quem me escreve, dois dias mais tarde, e é o seu

criado que cavalga como um louco para me trazer a sua carta.

Page 51: Philippa gregory - a rainha branca

Irmã,

Este é o vosso triunfo e fico muito contente por vós. Houve uma

disputa tremenda entre o rei e Lorde Warwick, porque o meu senhor levou

um contrato de casamento ao rei, para que ele contraísse matrimónio com

a Princesa Bona de Sabóia, como todos estavam à espera. O rei, com o

contrato à sua frente e a pena na mão, levantou a cabeça e disse a sua

senhoria que não podia casar com a Princesa, porque na realidade - já

era casado. Seria possível ouvir uma pena cair; conseguir-se-ia ouvir o

arquejar dos anjos. Juro que ouvi o coração do próprio Lorde Wanvick

bater acelerado, ■quando pediu ao rei que repetisse o que tinha dito. O rei

estava pálido como uma rapariga, mas encarou Lorde Warwick (algo que

eu não gostaria nada de ter de fazer) e disse-lhe que todos os seus planos e

promessas valiam o Mesmo que nada. Sua senhoria agarrou o rei por um

braço, como se ele fosse um menino, e arrastou-o para fora da sala, para

uma câmara privada, deixando os restantes de nós mergulhados numa

bisbilhotice e numa estupefacção fervilhantes, como nabos a ferverem num

estufado.

Aproveitei a oportunidade para puxar o nosso pai para um canto e

para lhe dizer que o rei poderia ir anunciar o casamento convosco, de

modo a impedir que parecêssemos tão tontos como Lorde W - mas, mesmo

nesse momento, confesso-vos que receei que o rei pudesse ir admitir ter

casmado com outra dama. Houve outra dama de origem nobre, melhor do

que a nossa, para dizer a verdade, que foi mencionada, e ela tem um filho

dele. Perdoai-me, Irmã, mas vós não sabeis o quão negativa tem sido a

reputação dele. Por isso, o Pai e eu ficámos como lebres em Março,

saltando por tudo e por nada, enquanto a porta da câmara privada se

mantinha fechada e o rei permanecia lá dentro, trancado com o homem

que o construíra e que - Sabe Deus - o podia destruir com a mesma

rapidez.

É claro que Leonel queria saber sobre que estávamos a cochichar,

assim como João. Graças a Deus, Eduardo e Ricardo tinham saído, por

isso, só havia mais duas pessoas a quem eu tinha de contar -, mas, tal

como o Pai, eles não conseguiam acreditar, e eu tive de fazer um grande

esforço para manter os três calados. Podeis imaginar como foi.

Deve ter passado uma hora, e ninguém suportava abandonar a sala

do conselho até conhecer o fim desta história. Irmã, eles urinavam nas

lareiras, para não terem de sair do grande salão - e então a porta abriu-se

e o rei saiu com um ar abalado e Lorde Warwick com um rosto

carrancudo, depois o rei fez um dos seus sorrisos mais felizes e disse:

- Bem, meus lordes, agradeço-vos pela vossa paciência. Estou feliz e

orgulhoso de vos anunciar que estou casado com a Lady Isabel Grey - e

acenou com a cabeça na direcção do meu pai e eu juro que me lançou um

olhar que suplicava para que eu mantivesse o pai calmo, por isso, eu

Page 52: Philippa gregory - a rainha branca

agarrei o ombro do velhote e inclinei-me bastante para o manter bem firme

preso ao chão. Eduardo pôs-se do outro lado dele, como um balastro, e

Leonel benzeu-se, como se já fosse um arcebispo. Eu e o pai fizemos uma

vénia, orgulhosos, e sorrimos afectadamente, como se sempre tivéssemos

sabido e só nos tivéssemos esquecido de mencionar, por pura modéstia,

que agora éramos cunhado e sogro do Rei da Inglaterra.

João e Ricardo entraram aos tropeções, nesse momento

inconveniente, e tivemos de lhes murmurar que o mundo estava virado do

avesso e que tinham mais sorte do que podiam imaginar. Conseguiram

fechar as bocas e mantiveram-se ao meu lado e do Pai, e as pessoas

interpretaram as nossas expressões de estupefacção como orgulho

tranquilo. Éramos um quarteto de idiotas a tentarmos parecer calmos. Não

podeis imaginar a jactância, os gritos, as queixas e a discussão que se

seguiram. Ninguém que estivesse no meu campo de audição se atreveu a

sugerir que o rei tinha descido muito baixo, mas sei que atrás de mim e de

cada um dos meus lados havia homens que o pensam, e que continuarão a

pensá-lo. Mesmo assim, o rei manteve a sua cabeça loira erguida e

aguentou firmemente, o Pai e eu aproximámo-nos dele e sentámo-nos de

cada um dos seus lados, e todos os nossos irmãos atrás de nós, e ninguém

pode negar que somos uma família bonita, ou pelo menos alta, e já está,

ninguém pode negá-lo. Podeis dizer à Mãe que a sua jogada arriscada lhe

rendeu mil vezes mais: ireis ser Rainha da Inglaterra e nós seremos a

família que governa a Inglaterra, mesmo que ninguém na Inglaterra nos

deseje.

O pai manteve a boca fechada até termos abandonado a corte, mas

juro que os seus olhos se reviravam na cabeça como o Idiota Jim, de Stony

Stratford, até chegarmos aos nossos alojamentos e eu poder dizer-lhe o

que havia sido feito, e como havia sido feito - pelo menos, tanto quanto eu

sabia - e agora ele está ressentido por ninguém lhe ter contado, uma vez

que teria gerido tudo tão hem e teria sido tão discreto - mas, dado que ele

é sogro do Rei da Inglaterra, creio que vos perdoará, assim como à Mãe,

por guardarem as vossas malhas femininas para vós mesmas. Os vossos

irmãos saíram e foram embedar-se, a crédito, como qualquer outra pessoa

faria. Leonel jura que vai ser Papa.

O vosso novo marido está claramente surpreendido com a grande

discussão que desabou sobre a sua cabeça, e ser-lhe-á difícil reconciliar-se

com o seu antigo mestre, Lorde Warwick, Que hoje vai jantar à parte e que

se pode transformar num Perigoso inimigo. Nós temos de ir jantar com o

rei e os seus interesses são os nossos. O mundo mudou para nós, Rivers, e

tornámo-nos tão grandiosos que eu espero confiantemente que voemos

sobre as colinas. Agora somos Iorquistas apaixonados e podeis esperar

que o Pai plante rosas brancas nas suas sebes e que use uma flor no

Page 53: Philippa gregory - a rainha branca

chapéu. Podeis dizer à Mãe que, seja qual for a magia que tenha usado

para fazer com que isto acontecesse, é motivo de uma admiração atónita

do marido e dos filhos. Se a magia não tiver sido mais do que a vossa

beleza, também admiramos isso.

Sois agora convocada a apresentar-vos na corte, aqui, em Reading.

A ordem do rei irá ser enviada amanhã. Irmã, ficai avisada por mim e, por

favor, vinde vestida modestamente, com apenas uma escolta reduzida. Não

irá suscitar a inveja, mas devemos tentar não tornar a situação pior do que

ela já é. Fizemos de todas as famílias do reino nossas inimigas. Famílias

que nem sequer conhecemos estarão a amaldiçoar a nossa sorte e a

desejar que caiamos. Pais ambiciosos, com belas filhas, nunca nos

perdoarão. Teremos de estar atentos para o resto das nossas vidas.

Haveis-nos concedido uma excelente oportunidade, mas também nos

haveis colocado em grande risco, minha irmã. Sou cunhado do Rei da

Inglaterra, mas, esta noite, tenho de dizer que a minha maior esperança é

morrer na minha cama, em paz com o mundo, como um homem idoso.

Vosso irmão,

António

Mas penso que, entretanto, antes da minha morte em paz, vou pedir-

lhe que faça de mim Duque.

A minha mãe planeia a nossa viagem até Reading e a convocação da

nossa família como se fosse uma rainha militante. Todos os parentes que

poderão beneficiar da nossa ascensão, ou que possam contribuir para a

nossa posição, são ordenados a vir de todos os cantos da Inglaterra, e até a

nossa família da Borgonha - os seus parentes - é convidada para vir a

Londres assistir à minha coroação. Ela diz que eles me garantirão o estatuto

de nobreza e realeza de que necessitamos, e, além disso, no estado em que

o mundo se encontra, é sempre agradável ter parentes poderosos para nos

apoiarem, ou nos servirem de refúgio.

Ela começa a elaborar uma lista de lordes e damas elegíveis para se

casarem com os meus irmãos e irmãs; começa a considerar os filhos dos

nobres que serão entregues a um tutor e que podem ser educados no

berçário real, para nosso benefício. Conhece, e começa a ensinar-me, a

forma como funciona o direito de nomeação de funcionários, e o poder da

corte inglesa. Conhece-o bastante bem. O seu primeiro marido era membro

da família real, o Duque de Bedford. Na altura, ela era a segunda dama do

reino, a seguir à rainha da Casa de Lencastre; agora, vai ser a segunda

dama, a seguir à rainha da Casa de Iorque: eu. Ninguém sabe melhor do

que ela como abrir caminho no meio da Inglaterra nobre.

Envia uma lista de instruções a António, para que contrate alfaiates e

costureiras, para que eu tenha vestidos novos à minha espera, mas aceita os

seus conselhos de que devemos entrar na nossa grandeza com

Page 54: Philippa gregory - a rainha branca

tranquilidade, e sem qualquer sinal de regozijo por este salto, de fazermos

parte da derrotada Casa de Lencastre e de passarmos a ser os novos

parceiros da vitoriosa Casa de Iorque. As minhas irmãs, primas e cunhada

devem ir connosco para Reading, mas não haverá um séquito grandioso,

com estandartes e trompetes. O pai escreve-lhe, dizendo que há muitos que

invejam a nossa prosperidade, mas aqueles que ele receia acima de tudo são

o melhor amigo do rei, Sir Guilherme Hastings, o grande aliado do rei,

Lorde Warwick, e a família próxima do rei: a mãe, as irmãs e os irmãos,

uma vez que são quem tem mais a perder com os novos favoritos na corte.

Recordo-me de Hastings olhar para mim como se eu fosse uma

mercadoria de beira de estrada, o fardo de um vendedor ambulante, da

primeira vez que vi o rei, e prometo a mim mesma que nunca voltará a

olhar para mim daquele modo. Hastings, creio que consigo aguentar. Ele

adora o rei como ninguém, aceitará qualquer escolha de Eduardo, e ainda o

defenderá. Mas Lorde Warwick assusta-me. É um homem a quem nada

deterá para obter o que pretende. Enquanto rapaz, viu o pai revoltar-se

contra o seu rei legítimo e criar uma casa rival com o nome de Iorque.

Quando o seu pai e o de Eduardo foram mortos, juntos, ele continuou de

imediato o trabalho do pai e fez com que Eduardo fosse coroado rei, um

rapaz com apenas dezanove anos. Warwick é treze anos mais velho do que

ele: um homem adulto, comparado com um rapaz. É claro que sempre

planeou colocar um rapaz no trono e governar na sombra. O facto de

Eduardo me ter escolhido vai ser a primeira declaração de independência

em relação ao seu mentor, e Warwick será célere a impedir quaisquer

outras. Chamam-lhe o fazedor de reis e, quando éramos apoiantes da Casa

de Lencastre, dizíamos que os partidários da Casa de Iorque não eram mais

do que marionetas e que ele e a família eram os marionetistas. Agora, estou

casada com a marioneta de Warwick, e sei que ele também tentará pôr-me a

dançar ao som da sua melodia. Mesmo assim, não há tempo para nada,

excepto despedir-me dos meus filhos, fazê-los prometer que obedecerão

aos seus tutores e que serão bons, montar no novo cavalo que o rei enviou

para que eu faça a viagem e, com a minha mãe ao meu lado e as minhas

irmãs atrás de mim, sigo a estrada para Reading, em direcção ao futuro que

me aguarda.

Digo à minha mãe:

- Tenho medo.

Ela coloca o cavalo ao lado do meu e empurra para trás o capuz da

sua capa para que eu possa ver a confiança sorridente no seu rosto.

- Talvez - diz ela. - Mas eu estive na corte da rainha Margarida de

Anjou; juro que não podeis ser uma rainha pior do que ela.

Relutantemente, rio-me. Estas palavras são ditas por uma mulher que

foi a dama de companhia de maior confiança de Margarida de Anjou, bem

como a primeira dama da sua corte.

Page 55: Philippa gregory - a rainha branca

- Haveis mudado a vossa cantiga.

- Sim, porque agora canto num coro diferente. Mas, mesmo assim, é

verdade. Não podeis ser uma rainha pior para este país do que ela foi, Deus

a ajude, onde quer que se encontre agora.

- Mãe... Ela tinha um marido que, metade do tempo, andava de

cabeça perdida.

- E fosse ele santo, são ou completamente louco, ela sempre fez o

que queria. Arranjou um amante - disse ela alegremente, ignorando o meu

arquejar escandalizado. - É claro que arranjou. Onde credes que conseguiu

o filho, Eduardo? Não foi com o rei, que ficou totalmente surdo e mudo

durante todo esse ano em que a criança foi concebida e em que nasceu.

Espero que façais muito melhor do que ela. Não podeis duvidar de que

podeis fazer melhor do que ela. E Eduardo não pode deixar de fazer melhor

do que um santo meio louco, Deus abençoe o pobre homem. E, quanto ao

resto, deveis dar um filho e herdeiro ao vosso marido, proteger os pobres e

inocentes, e apoiar as esperanças da vossa família. É tudo o que tendes de

fazer e podeis fazê-lo. Qualquer tontinha com um coração sincero, uma

família com planos e uma bolsa aberta consegue fazê-lo.

- Deve haver muitas pessoas que me odeiam - digo. - Muitas que nos

odeiam.

Ela assente.

- Então, certificai-vos de que obtendes os favores que pretendeis e os

lugares de que necessitais antes de elas encherem os ouvidos do rei - diz ela

simplesmente. - Há muito poucos cargos importantes para os vossos

irmãos; existem apenas alguns nobres com quem as vossas irmãs podem

casar. Certificai-vos de que obtendes tudo o que pretendeis, no primeiro

ano, e aí tereis atingido o patamar mais alto, e estareis em posição de

batalha. Estamos preparados para o que quer que seja que venha contra nós,

e, mesmo que a vossa influência junto do rei diminua, continuaremos a

estar seguros.

- O meu senhor Warwick... - digo nervosamente.

Ela concorda com a cabeça.

- Ele é nosso inimigo - afirma ela. É a declaração de uma contenda

de sangue. - Vós ireis observá-lo e ser muito desconfiada em relação a ele.

Todos nos manteremos atentos a ele. A ele e aos irmãos do rei: Jorge, o

Duque de Clarence, que é sempre tão encantador, e o rapaz, Ricardo, o

Duque de Gloucester. Eles também serão vossos inimigos.

- Porquê os irmãos do rei?

- Os vossos filhos irão deserdá-los. A vossa influência irá afastar o

rei deles. Têm vivido unidos como três rapazes que não têm pai;

combateram lado a lado Pela família. Ele chama-lhes os três filhos de

Iorque; viu um sinal para os três, nos Céus. Mas, agora, quererá estar

convosco, não com eles.

Page 56: Philippa gregory - a rainha branca

E as concessões de terras e de riqueza que ele poderia ter feito a eles

virão para vós e para os nossos. Jorge era o herdeiro a seguir a Eduardo e

Ricardo o herdeiro depois dele. Assim que tenhais um filho rapaz, eles

descem um lugar na sucessão.

- Vou ser Rainha da Inglaterra - protesto. - Fazeis com que soe como

uma batalha de morte.

- É uma batalha de morte - diz ela simplesmente. - É isso que

significa ser Rainha da Inglaterra. Vós não sois a Melusina, erguendo-se de

uma fonte para uma felicidade tranquila. Não ireis ser uma mulher bonita

da corte, sem nada para fazer além da magia. O caminho que haveis

escolhido implica que tereis de passar a vossa vida em maquinações e em

combate. A nossa tarefa, enquanto vossa família, é certificarmo-nos de que

venceis.

Na escuridão da floresta, ele viu-a, e murmurou o nome dela,

Melusina, e, ao ouvir aquele chamado, ela ergueu-se das águas e ele viu

que ela era uma mulher de uma beleza fria e completa, até à cintura, e

que, na parte inferior do corpo, tinha escamas, como os peixes. Ela

prometeu-lhe que iria ter com ele e que seria sua esposa, prometeu-lhe

que o faria tão feliz como qualquer mulher mortal poderia fazê-lo.

Prometeu-lhe que refrearia o seu lado selvagem, a sua natureza variável,

que seria uma mulher normal para ele, uma esposa da qual se poderia

orgulhar; em troca, ele conceder-lhe-ia um tempo para que pudesse ser

ela mesma de novo, em que pudesse voltar ao seu elemento da água, em

que poderia esquecer a escravidão que é o destino da mulher, e voltar a

ser, apenas por um bocadinho, uma deusa da água. Ela sabia que ser

uma mulher mortal é difícil para o coração, difícil para os pés. Sabia que

precisaria de ficar sozinha na água, debaixo de água, as pequenas

ondulações reflectidas na sua cauda coberta de escamas, de vez em

quando. Ele prometeu-lhe que lhe daria tudo, tudo o que ela desejasse,

como os homens sempre prometem. E, apesar de tudo, ela confiou nele,

como as mulheres apaixonadas sempre confiam.

O meu pai e todos os meus irmãos partem a cavalo de Reading para

nos saudar, para que eu possa entrar na cidade com os meus familiares do

meu lado. Há multidões ao longo da estrada e centenas de pessoas vêem o

meu pai tirar o chapéu, quando cavalga em direcção a mim, e depois

desmontar e ajoelhar-se diante de mim, honrando-me como rainha.

- Levantai-vos, pai! - digo alarmada.

Ele ergue-se devagar e volta a fazer uma vénia.

- Tendes de vos acostumar, Vossa Graça - diz-me ele, a cabeça

Page 57: Philippa gregory - a rainha branca

inclinada sobre os joelhos.

Espero até ele se endireitar, a sorrir para mim.

- Pai. nãogosto de vos ver fazer-me uma vénia.

- Agora, sois a Rainha da Inglaterra, Vossa Graça. Todos os homens,

à excepção de um, têm de vos fazer vénia.

- Mas podeis continuar a tratar-me por Isabel, Pai?

- Só quando estivermos a sós.

- E dar-me-eis a vossa bênção?

O seu sorriso aberto garante-me que tudo está igual ao que era antes.

- Filha, temos de representar o papel de reis e rainhas. Sois a mais

recente e mais improvável rainha numa Casa nova e improvável. Nunca

sonhei que conquistaríeis um rei. Seguramente, nunca pensei que este rapaz

fosse conseguir conquistar o trono. Estamos a criar um mundo novo, aqui;

a formar uma nova família real. Temos de ser mais nobres do que a própria

realeza, ou ninguém acreditará em nós. Não posso dizer que eu próprio

acredite muito nisso.

Os meus irmãos desmontam todos dos seus cavalos, com um salto,

tiram as suas boinas e ajoelham-se diante de mim na via pública. Baixo os

olhos para António, que me chamou pega e mentiroso ao meu marido.

- Podeis manter-vos nessa posição - digo. - Quem tem razão, agora?

- Vós tendes - diz ele alegremente, erguendo-se, beijando-me a mão

e voltando a montar no cavalo. - Concedo-vos a alegria do vosso triunfo.

- Quem teria pensado? - diz João, com espanto. - Quem teria

sonhado?

- Onde está o rei? - pergunto, assim que iniciamos o nosso pequeno

cortejo, transpondo as portas da cidade. As ruas estão ladeadas por

habitantes da cidade, membros de guildas, aprendizes, e ouve-se um viva à

minha beleza e risos, quando passamos. Vejo António corar ao ouvir uma

série de obscenidades, e pouso a minha mão no seu punho coberto com

luva, cerrado sobre a maçaneta da sela.

- Chiu - digo. - As pessoas têm tendência a troçar. Este foi um

casamento secreto, não podemos negá-lo, e teremos de fazer esquecer o

escândalo. E vós não me ajudais nada se ficardes com ar ofendido.

De imediato, ele assume o sorriso afectado mais detestável.

- Este é o meu sorriso da corte - diz ele pelo canto da boca virado

para cima. - Uso-o quando falo com Warwick ou com os duques reais.

Agrada-vos?

- Muito elegante - digo, tentando não me rir. - Valha-me Deus,

António, credes que vamos conseguir sair-nos bem de tudo isto?

- Iremos sair-nos triunfantemente - diz ele. - Mas temos de nos

manter unidos.

Page 58: Philippa gregory - a rainha branca

Viramos na rua principal e, agora, há estandartes feitos à pressa e

imagens de santos nas janelas, lá em cima, para me darem as boas-vindas à

cidade. Cavalgamos até à abadia; e aí, no meio da corte e dos seus

conselheiros, vejo-o, Eduardo, vestido com tecido de ouro, com uma capa

escarlate e um chapéu escarlate na cabeça. É inconfundível, o homem mais

alto da multidão, o mais belo, o inquestionável Rei da Inglaterra. Ele vê-me

e os nossos olhos encontram-se, e é novamente como se mais ninguém ali

estivesse. Fico tão aliviada por vê-lo que lhe dirijo um leve aceno, como

uma miúda, e, em vez de esperar que eu pare o meu cavalo, que desmonte e

avance ao longo da passadeira até ele, sai do meio deles todos e vem

apressadamente pôr-se ao meu lado e pega-me para me retirar do meu

cavalo e para me envolver nos seus braços.

Ouve-se um estrondo de aplausos encantados dos assistentes e um

silêncio chocado da corte, perante aquela quebra apaixonada do protocolo.

- Esposa - diz-me ele ao ouvido. - Graças a Deus, estou tão feliz por

vos ter nos meus braços.

- Eduardo - digo. - Tive tanto medo.

- Vencemos - diz ele simplesmente. - Ficaremos juntos para sempre.

Farei de vós Rainha da Inglaterra.

- E eu far-vos-ei feliz - digo, citando os votos de casamento. - Serei

formosa e alegre, na cama e na mesa.

- Não me interessa nada a hora das refeições - diz ele, num tom algo

vulgar, e eu escondo o rosto no seu ombro e rio-me.

Ainda me falta conhecer a sua mãe; e Eduardo leva-me aos seus

aposentos privados, antes do jantar. Ela não estava presente durante a

minha recepção de boas-vindas organizada pela corte, e tenho razão em lê-

lo como o seu primeiro sinal de rejeição, o primeiro de muitos. Ele deixa-

me à sua porta

- Ela quer ver-vos em privado.

- Como credes que vai ser? - pergunto nervosamente.

Ele sorri.

- O que pode ela fazer?

- É precisamente isso que gostava de saber, antes de ir enfrentá-la -

digo secamente, e passo por ele, quando abrem as portas da sala de

audiências. A minha mãe e três das minhas irmãs acompanham-me,

exercendo o papel de corte improvisada, as minhas damas de companhia

acabadas de anunciar, e avançamos com toda a ansiedade de uma

assembleia de bruxas arrastadas para o tribunal.

A Duquesa viúva, Cecília, está sentada numa grande cadeira coberta

por um dossel e não se dá ao trabalho de se pôr de pé para me

cumprimentar. Traz um vestido incrustado com jóias, ■na bainha e no

peito, e um enorme toucado quadrado, que usa orgulhosamente como uma

coroa. Muito bem, sou a mulher do seu filho, mas ainda não sou rainha

Page 59: Philippa gregory - a rainha branca

ordenada. Ela não é obrigada a fazer-me uma reverência e irá encarar-me

como um membro da Casa de Lencastre, um dos inimigos do filho. O

voltear da sua cabeça e a frieza do seu sorriso transmitem, com toda a

clareza, que, para ela, sou uma plebeia, como se ela própria não tivesse

nascido como uma mulher inglesa comum. Atrás da cadeira, estão as filhas

Ana, Isabel e Margarida, vestidas de modo sóbrio e modesto, de modo a

não ofuscar a mãe. Margarida é a mais bonita: loira e alta, como os irmãos.

Sorri timidamente para mim, a sua nova cunhada, mas nenhuma dá um

passo em frente para me dar um beijo, e a sala está tão calorosa como um

lago no mês de Dezembro.

Baixo-me numa vénia, mas não muito, para a Duquesa Cecília, por

respeito para com a mãe do meu marido, e atrás de mim vejo a minha mãe

fazer o seu gesto mais grandioso e depois permanecer imóvel, de cabeça

erguida, uma rainha ela mesma, em tudo, salvo a coroa.

- Não fingirei que estou contente com este casamento secreto - diz

rudemente a duquesa viúva.

- Privado - interrompe a minha mãe com elegância.

A duquesa hesita, espantada, e ergue as sobrancelhas num arco

perfeito.

- Peço desculpa, Lady Rivers. Haveis dito alguma coisa?

- Nem a minha filha nem o vosso filho iriam ao ponto de se

esquecerem de quem são e de se casarem em segredo - afirma a minha mãe,

o seu sotaque da Borgonha subitamente reavivado. É o próprio sotaque da

elegância e de estilo elevado, em toda a Europa. Não haveria forma mais

clara de relembrar a todos que é filha do Conde de Saint-Pol, membro da

realeza da Borgonha, por nascimento. Tratava a rainha pelo primeiro nome,

a quem só ela continua a referir-se como Margarida de Anjou, e com muita

ênfase no ”de” do título. Foi Duquesa de Bedford, pelo primeiro casamento

com um duque de sangue real, e a chefe da Casa de Lencastre, quando a

mulher tão orgulhosamente sentada diante de nós nasceu apenas como

Lady Cecília Neville, do Castelo de Raby. - É claro que não foi um

casamento secreto. Eu estive presente, bemm como outras testemunhas. Foi

um casamento privado.

- A vossa filha é bastante mais velha do que o meu filho - afirma Sua

Graça, participando na batalha.

- Não se pode dizer que ele seja um rapaz inexperiente. A reputação

dele é famosa. E eles só têm cinco anos de diferença.

Ouve-se a respiração arquejante das damas da duquesa e uma

sensação de alarme das suas filhas. Margarida olha-me com compaixão,

como se dissesse que não há como escapar à humilhação que se segue. Eu e

as minhas irmãs somos como pedras em pé, como se fôssemos bruxas

dançarinas sob um súbito feitiço.

- E o que é bom - diz a minha mãe, entusiasmando-se ao falar no

Page 60: Philippa gregory - a rainha branca

tema - é que, pelo menos, podemos ter a certeza de que ambos são férteis.

O vosso filho tem vários filhos bastardos, pelo que sei, e a minha filha tem

dois belos filhos legítimos.

- O meu filho vem de uma família fértil. Eu tive oito rapazes -

afirma a duquesa viúva.

A minha mãe inclina a cabeça e o lenço do seu toucado ergue-se

como uma vela inchada com a brisa cheia do seu orgulho.

- Oh, sim - comenta ela. - Pois tivestes. Mas, desses oito, apenas três

rapazes sobreviveram, claro. É tão triste. Por acaso, eu tenho cinco filhos.

Cinco. E sete filhas. A Isabel tem origens nobres e férteis. Creio que

podemos ter esperança de que Deus irá abençoar a nova família real com

descendência.

- No entanto, ela não foi escolha minha, nem de Lorde Warwick -

repete Sua Graça, numa voz a tremer de raiva. Não significaria nada se

Eduardo não fosse rei. Podia ignorá-lo se ele fosse um terceiro ou quarto

filho a desperdiçar-se...

- Talvez pudésseis. Mas esse assunto não nos diz respeito. Eduardo é

o rei. O rei é o rei. Sabe Deus como ele já travou batalhas suficientes para

provar o seu direito. ■■Eu poderia impedi-lo de ser rei - apressa-se ela a

dizer, o seu génio a tomar conta de si, as bochechas escarlates. Podia

deserdá-lo, podia renegá-lo, podia pôr Jorge no trono, em vez dele. O que

vos pareceria como resultado do vosso apelidado casamento privado, Lady

Rivers?

As damas da duquesa empalidecem e recuam, horrorizadas.

Margarida, que adora o irmão, murmura:

- Mãe! - mas não se atreve a dizer mais nada. Eduardo nunca foi o

preferido da mãe. Edmundo, o seu adorado Edmundo, morreu com o pai,

em Wakefield, e os vitoriosos da Casa de Lencastre espetaram as suas

cabeças nos portões de Iorque. Jorge, o seu irmão, também mais novo, e o

querido da mãe, é o predilecto da família. Ricardo, o mais novo de todos é

o mais pequeno da ninhada. É incrível que ela seja capaz de colocar um

filho à frente do outro, fora da ordem de sucessão!

- Como? - pergunta a minha mãe severamente, obrigando-a a revelar

as suas verdadeiras intenções. - Como derrubaríeis o vosso filho?

- Se não fosse filho do meu marido...

- Mãe! - queixa-se Margarida em voz alta.

- E como seria isso possível? - pergunta a minha mãe, tão doce como

veneno. - Acusaríeis o vosso próprio filho de ser bastardo? Designar-vos-

íeis a vós própria como pega? Apenas por despeito, apenas para nos

derrubar, seríeis capaz de destruir a vossa reputação e de trair o vosso

falecido marido Quando espetaram a cabeça dele nos portões de Iorque,

puseram-lhe uma coroa de papel, para escarnecer dele. Isso não seria nada,

comparado com o facto de vós lhe pordes agora um par de chifres. Seríeis

Page 61: Philippa gregory - a rainha branca

capaz de desonrar o vosso próprio nome? Envergonharíeis mais o vosso

marido do que os inimigos dele fizeram?

Ouve-se um pequeno grito entre as mulheres e a pobre Margarida

cambaleia como se fosse desmaiar. Eu e as minhas irmãs somos metade

peixe, não raparigas; limitamo-nos a arregalar os olhos para a nossa mãe e

para a mãe do rei, em confronto directo, como um par de homens

carregando achas um sobre o outro, num recinto de justas, dizendo o

impensável.

- Há muitos que acreditariam em mim - ameaça a mãe do rei.

- Então, seria uma vergonha ainda maior para vós - replica a minha

mãe, sem rodeios. - Os rumores acerca do modo como foi gerado chegaram

à Inglaterra. Na verdade, eu contava-me entre os poucos que juraram que

uma dama da vossa Casa Real nunca seria capaz de descer tão baixo. Mas

ouvir, todos ouvimos, uns mexericos a respeito de um arqueiro que se

chamava... como era o nome dele? - finge ter-se esquecido e dá

palmadinhas na testa. - Ah, já sei: Blaybourne. Um arqueiro chamado

Blaybourne, com quem se suponha que havíeis tido uma aventura amorosa.

Mas eu disse, e até a Rainha Margarida de Anjou disse, que uma dama tão

importante como vós não se aviltaria ao ponto de se deitar com um vulgar

arqueiro e de enfiar o filho bastardo dele no berço de um nobre.

O nome Blaybourne cai na sala como um tiro de canhão. Quase

conseguimos ouvir a bala rebolar até se deter. A minha mãe não tem medo

de nada.

- E, de qualquer forma, se conseguirdes fazer com que os lordes

deponham o Rei Eduardo, quem irá apoiar o vosso novo Rei Jorge?

Estaríeis segura de que o irmão dele, Ricardo, não tentaria, por sua vez,

alcançar o trono? E o vosso parente, Lorde Warwick, o vosso grande

amigo, não desejaria o trono para si? E porque não haverão eles de se

disputar entre si e criar uma nova geração de inimigos, dividindo o país,

lançando irmão contra irmão, mais uma vez, destruindo a própria paz que o

vosso filho conquistou para ele e para a vossa Casa? Destruiríeis tudo

apenas por despeito? Todos sabemos que a Casa de Iorque é louca de

ambição; iremos poder ver-vos comerem-se uns aos outros, como uma gata

assustada come as suas próprias crias?

É demasiado para ela. A mãe do rei estende uma mão para a minha

mãe. como que suplicando que pare.

- Não, não. Já chega. Já chega.

- Estou a lalar como amiga - diz a minha mãe, muito depressa, tão

sinuosa como uma enguia do rio. - E as vossas palavras irreflectidas contra

o rei não avançarão mais. As minhas filhas e eu não repetiremos um

escândalo desses. Esquecer-nos-emos de que alguma vez as haveis

pronunciado. Apenas lamento que tenhais chegado a pensar nelas. Fico

espantada por as dizerdes.

Page 62: Philippa gregory - a rainha branca

- Já chega - repete a mãe do rei. - Só queria que soubésseis que este

casamento mal concebido não foi uma escolha minha. Ainda que

compreenda que tenho de o aceitar. Vós mostrais-me que tenho de o

aceitar. Por muito que me humilhe, por muito que denigra o meu filho e a

minha casa, tenho

- Foi a escolha do rei e temos de lhe obedecer - diz a minha mãe,

tornando clara a sua vantagem. - O Rei Eduardo escolheu a sua esposa e ela

irá ser Rainha da Inglaterra e a dama mais importante, sem excepções, do

país. E ninguém pode duvidar de que a minha filha será a mais bela rainha

que a Inglaterra já viu.

A mãe do rei, cuja beleza era famosa, no seu tempo quando lhe

chamavam a Rosa de Raby, olha para mim, pelí primeira vez, sem prazer.

- Suponho que sim - diz ela relutante. Faço uma nova vénia.

- Devo tratar-vos por Mãe? - pergunto, animada.

Assim que a tortura da minha recepção de boas-vindas junto da mãe

de Eduardo está terminada, tenho de comparecer na minha apresentação à

corte. As encomendas que António fez aos costureiros de Londres foram

entregues a tempo e eu tenho um vestido novo para usar, no mais pálido

cinzento, guarnecido com pérolas. Tem um decote acentuado na frente,

com um cinto largo de pérolas e mangas compridas de seda. Uso-o com um

toucado cónico alto que é adornac com um lenço cinzento. É ao mesmo

tempo gloriosamente rico e encantadoramente modesto, e, quando a minha

mãe entra no meu quarto e vê que já estou vestida, pega nas minhas mãos e

beija-me em ambos os lados do rosto.

- Bela - diz ela. - Ninguém poderia duvidar que ele casou convosco

por se ter apaixonado à primeira vista. Um amor trovador, Deus vos

abençoe aos dois.

- Eles estão à minha espera? - pergunto nervosamente. Ela aponta

com a cabeça para a câmara do outro lado da porta do meu quarto.

- Estão lá todos: Lorde Warwick e o Duque de Clarence e meia dúzia

de outros.

Respiro fundo, levo a mão ao toucado para o endireitar e aceno com

a cabeça para as minhas damas de companhia para que abram as portas,

ergo a cabeça como uma rainha, e saio do quarto.

Lorde Warwick, vestido de preto, está de pé, junto da lareira, um

homem grande, nos seus trinta e muitos anos, ombros largos como um

rufião, um rosto austero de perfil, enquanto observa as chamas. Quando

ouve a porta abrir-se, vira-se e vê-me, olha-me com um semblante

carregado e cola um sorriso no rosto.

- Vossa Graça - diz e baixa-se numa vénia. Faço-lhe uma reverência,

mas vejo que o seu sorriso não lhe aquece os olhos. Estava a contar que

Eduardo permanecesse sob o seu controlo. Prometera ao Rei da França que

poderia dar-lhe Eduardo em casamento. Agora, tudo correu mal para ele, e

Page 63: Philippa gregory - a rainha branca

as pessoas perguntam se ele continua a ser o poder por trás deste novo

trono, ou se Eduardo toma as suas próprias decisões.

O Duque de Clarence, Jorge, o adorado irmão do rei, está ao seu

lado, parecendo um verdadeiro príncipe da Casa de Iorque, de cabelo

dourado, sorriso pronto, gracioso, mesmo em repouso, uma bonita e

refinada cópia do meu marido. É belo e bem constituído, a sua vénia é

elegante como a de um bailarino italiano e o seu sorriso encantador.

- Vossa Graça - diz ele. - A minha nova irmã. Fico contente com o

vosso casamento-surpresa e desejo-vos felicidade no vosso novo estado.

Estendo-lhe a mão e ele puxa-me para junto de si e beija-me

calorosamente em ambas as bochechas.

- Desejo-vos verdadeiramente muita alegria - diz, animado. - O meu

irmão é mesmo um homem de sorte. E eu fico contente por vos chamar

minha irmã.

Volto-me para o Conde de Warwick.

- Sei que o meu marido vos ama e que confia em vós como irmão e

como amigo - digo. - É uma honra conhecer-vos.

- A honra é toda minha - responde ele secamente. - Estais pronta?

Olho pelo canto do olho para trás de mim: as minhas irmãs e a minha

mãe estão alinhadas para me seguir em cortejo.

- Estamos prontas - digo e, com o Duque de Clarence de um lado e o

Conde de Warwick do outro, caminhamos

A minha primeira impressão é que toda a gente que alguma vez vi na

corte está presente, vestida com os seus melhores trajos, em minha honra, e

também há algumas centenas de rostos novos que vieram com a Casa de

Iorque. Os lordes estão à frente, com as suas capas debruadas a arminho, a

pequena aristocracia atrás deles, com as suas correntes de insígnias e jóias

em exibição. Os magistrados municipais e os conselheiros | de Londres

deslocaram-se em grupo para serem apresentados, entre eles os fundadores

da cidade. Os líderes civis de Reading estão cá, esforçando-se por ver e por

serem vistos, no meio dos grandes chapéus e plumas, atrás deles, os

representantes das guildas de Reading e a pequena aristocracia de toda a

Inglaterra. Este é um evento de importância nacional; qualquer pessoa que

tenha podido comprar um gibão e pedir um cavalo emprestado veio ver a

nova rainha escandalosa. Tenho de os enfrentar a todos sozinha, ladeada

pelos meus inimigos, enquanto um milhar de olhos me avaliam: desde os

meus pés, metidos nos chinelos, até ao meu alto toucado e ao meu véu

ligeiro, analisam as pérolas do meu vestido, o corte cuidadosamente

modesto, a perfeição da renda que oculta e, contudo, enaltece a brancura da

pele dos meus ombros. Lentamente, como uma brisa atravessando as copas

das árvores, eles tiram os chapéus e fazem vénias, e eu apercebo-me de que

estão a reconhecer-me como rainha, a rainha em lugar de Margarida de

Page 64: Philippa gregory - a rainha branca

Anjou, Rainha da Inglaterra, a mais importante mulher do reino, e nada na

minha vida alguma vez voltará a ser igual.

Sorrio para um lado e para o outro, agradecendo as bênçãos e os

murmúrios de elogio, mas descubro que aperto com força a mão de

Warwick, e ele sorri para mim, como se satisfeito com a minha sensação de

medo, e diz-me:

- É natural que estejais emocionada, Vossa Graça.

- Na verdade, é natural para uma plebeia, mas nunca teria acontecido

a uma princesa - eu devolvo-lhe o sorriso e não me consigo defender, e

também não sou capaz de falar..

Nessa noite, na cama, depois de termos feito amor, digo a Eduardo:

- Não gosto do Conde de Warwick.

- Foi ele quem fez de mim o que sou hoje - diz ele simplesmente. -

Tendes de gostar dele, por mim.

- E do vosso irmão Jorge? E de Guilherme Hastings?

Ele põe-se de lado e sorri-me.

- Esses são os meus companheiros e os meus irmãos de armas - diz

ele. - Casais com um exército em guerra. Não podemos escolher os nossos

aliados; não podemos escolher os nossos amigos. Limitamo-nos a ficar

satisfeitos por os termos. Amai-os por mim, minha querida.

Assinto, como se em obediência. Mas creio que sei quem são os

meus inimigos.

Page 65: Philippa gregory - a rainha branca

MAIO DE 1465

O rei decide que eu irei ter a coroação mais gloriosa que Inglaterra

alguma vez viu. Não se trata apenas de um cumprimento para mim.

- Vamos fazer de vós rainha, uma rainha inquestionável, e todos os

lordes do reino se ajoelharão diante de vós. A minha mãe... - interrompe-se

e faz uma careta. - A minha mãe terá de vos prestar homenagem, como

parte das celebrações. Ninguém poderá negar que sois rainha e minha

esposa. Isso silenciará aqueles que afirmam que o nosso casamento não é

válido.

- Quem diz isso? - pergunto. - Quem se atreve a dizer isso?

Ele faz um sorriso rasgado. Ainda é um rapazinho.

- Credes que vos diria, para que vós os transformásseis em sapos?

Não vos preocupeis com quem fala mal de nós. Eles não são importantes,

enquanto se limitarem a andar a bisbilhotar pelos cantos. Mas uma

coroação grandiosa para vós também afirma a minha posição como rei.

Todos podem ver que eu sou rei e aquele pobre Henrique é um pedinte,

algures na Cúmbria e a mulher dele é uma asilada do pai dela, em Anjou.

- Muito grandiosa? - pergunto, não me agradando muito a ideia.

- Ireis cambalear sob o peso das vossas jóias - promete ele.

De facto, foi ainda mais opulenta do que ele previu, mais rica do que

eu poderia ter imaginado. A minha entrada em Londres é feita pela Ponte

de Londres, mas a velha e suja via pública é transformada, recorrendo a

carroças e carroças de

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carga, e coberta com areia cintilante, numa estrada que mais parece

uma arena de justas. Sou saudada por actores vestidos de anjos, os seus

fatos feitos com penas de pavão, as suas asas deslumbrantes, como mil

olhos em tons de azul, turquesa e índigo. Os actores recriam um quadro da

Virgem Maria e dos santos; sou exortada a ser virtuosa e fértil. As pessoas

vêem-me ser indicada, como a escolha de Deus, para Rainha da Inglaterra.

Os coros cantam, quando eu entro na cidade, pétalas de rosa são atiradas

para cima de mim. Sou eu mesma, o meu próprio quadro: a mulher inglesa,

da Casa de Lencastre, vinda para ser a Rainha da Casa de Iorque. Sou um

objecto de paz e unidade.

Passo a noite anterior à minha coroação nos imponentes aposentos

reais da Torre, todos redecorados para a minha estada. Não gosto da Torre;

causa-me calafrios, quando sou levada em ombros, numa liteira, e

passamos sob o gradeamento de ferro, e António, que está ao meu lado,

Page 66: Philippa gregory - a rainha branca

ergue os olhos para mim.

- O que se passa?

- Odeio a Torre; cheira a humidade.

- Tornastes-vos muito exigente - diz António. - Já estais a começar a

ficar estragada com mimos, agora que o rei vos deu excelentes casas, a

herdade de Greenwich, e também a de Sheen.

- Não é isso - digo, tentando determinar o que causa o meu

desconforto. - É como se houvesse aqui fantasmas. E os meus filhos vão

passar aqui esta noite?

- Sim, toda a família está aqui, nos aposentos reais.

Faço uma pequena careta de desconforto.

- Não me agrada que os meus filhos estejam aqui - digo - É um lugar

aziago.

António benze-se e salta do seu cavalo para me ajudar a descer.

- Sorride - ordena-me entre dentes.

O governador da Torre está à espera para me cumprimentar e para

me entregar as chaves: este não é um momento para visões, ou para

fantasmas de rapazes há muito desaparecidos. - Muito graciosa rainha,

saudações - afirma ele, e eu pego na mão de António e sorrio, ouço a

multidão murmurar que sou Uma beleza, muito para além do que podiam

imaginar.

85

- Nada de excepcional - diz António, de modo que apenas eu o ouça

e, assim, tenho de virar a cabeça e de me conter para não rir. - Nada

comparado com a nossa mãe, por exemplo.

O dia seguinte é o da minha coroação na Abadia d Westminster. Para

o arauto da corte, que grita os nomes de Duques, Duquesas e Condes, é

uma lista das mais importantes e mais nobres famílias da Inglaterra e da

Cristandade. Para a minha mãe, que segue no meu séquito com as irmãs do

rei Isabel e Margarida, é o seu triunfo; para António, um homem com tanto

mundo e, no entanto, tão afastado do mesmo, creo que é uma gaiola de

loucos da qual desejaria estar bem longe; e, para Eduardo, é uma

declaração clara da sua riqueza e do seu poder perante um país que anseia

por uma família real com riqueza e poder. Para mim, é um enevoado de um

cerimonial durante o qual não sinto nada, além de ansiedade: apenas

desesperada por caminhar à velocidade correcta, de me lembrar de tirar os

sapatos e de seguir descalça pela carpete de brocado, de aceitar os dois

ceptros, um em cada mão, de expor o meu peito para receber o óleo

consagrado, de manter a cabeça firme para suportar o peso da coroa.

São necessários três arcebispos para me coroar, incluindo Tomás

Bourchier, e um abade, duas centenas de clérigos, mil coristas para

Page 67: Philippa gregory - a rainha branca

cantarem os meus louvores e para invocarem a bênção de Deus sobre mim.

As minhas parentes escoltam-me; acontece que tenho centenas delas. A

família do rei vem à frente, depois as minhas irmãs, a minha cunhada,

Isabel Scales, as minhas primas, as minhas primas da Borgonha, as minhas

parentes que apenas a minha mãe consegue localizar, e uma ou outra

mulher bonita que consegue obter, com alguma dificuldade, uma

apresentação. Todas querem ser damas na minha coroação; todas desejam

um lugar na minha corte.

Por tradição, eduardo nem sequer está junto de mim. Observa por

trás de um biombo, os meus dois filhos pequenos estão com ele: nem o

posso ver; não posso ganhar coragem no seu sorriso. Tenho de fazer isto

completamente

sozinha, com milhares de estranhos a observarem cada um dos meus

movimentos. Nada pode diminuir o valor de eu ter ascendido de mulher da

pequena aristocracia a Rainha da

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Inglaterra, de uma mera mortal a um ser divino: ao lado de Deus.

Quando me coroarem e ungirem com o óleo consagrado, torno-me um

novo ser, um ser que está acima dos mortais, apenas um degrau abaixo dos

anjos, amada, e a eleita dos Céus. Espero pelo calafrio que vou sentir pela

espinha abaixo, por saber que Deus me escolheu para ser Rainha da

Inglaterra; mas não sinto nada, além do alívio por a cerimónia ter

terminado e apreensão pelo banquete em grande escala que se seguirá.

Três mil nobres e respectivas damas sentam-se para jantar comigo, e

cada prato é composto por aproximadamente vinte acompanhamentos.

Retiro a coroa para comer e volto a colocá-la entre cada prato. É como uma

dança prolongada em que tenho de recordar os passos, e dura várias horas.

Para me proteger de olhares indiscretos, a Condessa de Shrewsbury e a

Condessa de Kent ajoelham-se para segurar um véu à minha frente, quando

como. Provo todos os pratos, por cortesia, mas não como quase nada. A

coroa pesa-me na cabeça como uma maldição e as minhas têmporas

latejam. Sei que ascendi ao lugar mais elevado da terra, e só anseio pelo

meu marido e pela minha cama.

A determinado momento da noite, há um instante, provavelmente por

alturas em que o décimo prato está a ser servido, em que penso que tudo

isto constitui um erro terrível e que teria sido mais feliz em Grafton, sem

qualquer casamento ambicioso e sem ter ascendido à realeza. Mas é

demasiado tarde para lamentações, e, ainda que os melhores pratos não me

saibam a nada, por causa do meu enfado, tenho de sorrir e sorrir, e de voltar

a colocar a minha coroa pesada, e de mandar os melhores pratos aos

favoritos do rei.

Page 68: Philippa gregory - a rainha branca

Os primeiros vão para os seus irmãos, Jorge, o jovem áureo, o Duque

de Clarence, e o mais novo filho da Casa de Iorque, Ricardo, de doze anos,

o Duque de Gloucester, que me sorri timidamente e que baixa a cabeça

quando lhe envio um pedaço de pavão estufado. É o mais diferente dos

irmãos possível, pequeno e tímido, e com o cabelo escuro, de compleição

franzina e tranquilo, enquanto os outros são altos e de cabelo cor de bronze

e cheios de importância. Gosto de Ricardo assim que o vejo e considero

que irá ser um bom

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companheiro e colega de brincadeiras para os meus filhos, que são

apenas um pouco mais novos que ele.

No fim do jantar, quando sou escoltada de volta para os meus

aposentos por dezenas de nobres e centenas de clérigos, mantenho a cabeça

bem erguida, como se não estivesse cansada, como se não estivesse

exausta. Sei que hoje me tornei algo mais do que uma mulher mortal:

tornei-me semi-deusa. Tornei-me uma divindade semelhante à minha

antepassac Melusina, que nasceu deusa e se tornou mulher. Teve de chegar

a um acordo difícil com o mundo dos homens para se deslocar de um

mundo para o outro. Teve de desistir da sua liberdade na água para

conseguir os seus pés, de forma a poder caminhar ao lado do marido, na

Terra. Não posso deixar de me perguntar o que terei de perder para ser

rainha.

Põem-me na cama, no leito de Margarida de Anjou, no quarto de

dormir real, que faz eco, e eu espero, com a colcha de tecido de ouro

puxada até às orelhas, até Eduardo conseguir apartar-se do banquete e vir

para junto de mim. É escoltado ao meu quarto por meia dúzia de

companheiros e criados, eles despem-no formalmente e só o abandonam

quando ele já tem a camisa de noite vestida. Ele apercebe-se do meu olhar

pasmado e ri-se enquanto fecha a porta atrás de si.

- Agora somos membros da realeza - diz ele. - Temos de suportar

estas cerimónias, Isabel.

Estendo os braços para ele.

- Desde que continueis a ser vós mesmo, apesar de carregardes a

coroa.

Ele despe a camisa e vem nu para junto de mim, os seus ombros

largos, a sua pele macia, os músculos movendo-se nas coxas, ventre e

ilharga.

- Sou vosso - diz ele simplesmente e, quando desliza para dentro da

cama fria, ao meu lado, praticamente esqueço que somos rainha e rei, e só

consigo pensar no seu toque e no meu desejo.

No dia seguinte, há um grande torneio e os nobres entram nas liças

Page 69: Philippa gregory - a rainha branca

com belos fatos, e com poesia a ser gritada pelos

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respectivos escudeiros. Os meus filhos estão no camarote real

comigo, de olhos esbugalhados e bocas abertas com a cerimónia, as

bandeiras, o glamour e as multidões, a enormidade da primeira grande

justa que já viram. As minhas irmãs e Isabel - a mulher de António - estão

sentadas ao meu lado. Começamos a formar uma corte de mulheres

bonitas; as pessoas já começam a falar de uma elegância nunca vista na

Inglaterra.

Os meus primos da Borgonha estão a atacar em força, as suas

armaduras são as que têm mais estilo, a sua poesia é a que tem melhor

métrica. Mas António, o meu irmão, é soberbo, a corte enlouquece com ele.

Monta um cavalo com tanta graça, leva a minha roseta e quebra as lanças

de uma dúzia de homens. Também não há ninguém que consiga equiparar a

sua poesia. Escreve ao estilo romântico das terras do Sul; fala de alegria

com laivos de tristeza, um homem que sorri perante a tragédia. Compõe

poemas acerca de um amor que nunca pode ser concretizado, de esperanças

que fazem um homem atravessar um deserto de areia, uma mulher

atravessar um oceano. Não é de admirar que todas as damas da corte se

apaixonem por ele. António sorri, apanha as flores que lhe atiram para a

arena e faz uma vénia, com a mão sobre o coração, sem pedir a nenhuma

dama a sua protecção.

- Conhecia-o, quando ele era apenas o meu tio - observa Tomás.

- É o favorito do dia - digo ao meu pai, que vem ao camarote real

beijar-me a mão.

- Em que está ele a pensar? - pergunta-me ele, perplexo. No meu

tempo, matávamos um adversário, não fazíamos um poema sobre ele.

A mulher de António, Isabel, ri-se.

- Este é o estilo da Borgonha. Estes são os tempos cavalheirescos -

digo ao meu pai, sorrindo da perplexidade que tem estampada no rosto.

Mas o vencedor do dia é Lorde Tomás Stanley, um homem bem-

parecido, que ergue a sua viseira e vem receber o prémio, satisfeito por ter

vencido. O lema desta família é exibido orgulhosamente no seu estandarte:

”Sans Changer.”

- O que significa? - murmura Ricardo para o irmão.

89

- Sem mudar - diz Tomás. - E vós saberíeis, se estudásseis, em vez

de desperdiçardes o vosso tempo.

- E vós nunca mudais? - pergunto a Lorde Stanley. Ele olha para

Page 70: Philippa gregory - a rainha branca

mim: a descendente de uma família que mudou completamente, que passou

de um rei para o outro, uma mulher que deixou de ser uma viúva para ser

rainha, e faz uma vénia.

- Eu nunca mudo - responde ele. - Apoio Deus, o rei e os meus

direitos, por essa ordem.

Sorrio. É inútil perguntar-lhe como sabe o que Deus quer, como sabe

que rei é o legítimo, como pode ter a certeza que os seus direitos são justos.

Estas sào perguntas para um tempo de paz, e o nosso país está em guerra há

demasiado tempo, por questões complexas.

- Sois um grande homem na liça das justas - comento. Ele sorri.

- Tive sorte de não ser escolhido para justar contra o vosso irmão

António. Mas tenho orgulho em justar diante de vós, Vossa Graça.

Inclino-me no camarote real para lhe entregar o prémio do torneio,

um anel com um rubi, e ele mostra-me que é demasiado pequeno para a sua

enorme mão.

- Tendes de casar com uma dama bonita - provoco-o. - Uma mulher

virtuosa, cujo preço seja superior aos rubis.

- A mais bela dama do reino já é casada e coroada - faz-me uma

vénia. - Como é que nós, que fomos negligenciados, conseguiremos

suportar a nossa infelicidade?

Rio-me das suas palavras, é a própria linguagem utilizada pelos meus

parentes, naturais da Borgonha, que transformaram o cortejar numa forma

de arte.

- Tendes de vos esforçar - digo. - Um cavaleiro tão formidável tem

de fundar uma grande casa.

- Fundarei a minha casa, e vós ver-me-eis vencer novamente - afirma

ele, e, por algum motivo, ao ouvir as palavras dele, sinto um ligeiro arrepio.

Este é um homem que não é forte apenas na liça das justas, penso. É um

homem que seria forte no campo de batalha. É um homem sem escrúpulos

e que perseguirá os seus próprios interesses. Formidável, de facto. Vamos

esperar que seja leal ao seu lema e que a sua fidelidade para com a

Casa de Iorque nunca mude.

90

Quando a deusa Melusina se apaixonou pelo cavaleiro, ele

prometeu-lbe que teria a liberdade de ser ela mesma se aceitasse ser

mulher dele. Acordaram que ela seria sua esposa e que caminharia pelos

seus pés, mas, uma vez por mês, poderia ir para os seus aposentos, encher

uma banheira com água e, apenas por uma noite, encarnar o seu ser

piscícola. E assim viveram muito felizes durante muitos anos. Porque ele a

amava e compreendia que uma mulher não pode viver sempre como um

homem. Ele compreendia que ela não podia pensar sempre da mesma

Page 71: Philippa gregory - a rainha branca

maneira que ele, caminhar como ele caminhava, respirar o ar que ele

respirava. Ela seria sempre um ser diferente dele, ouvindo música

diferente, escutando um som diferente, familiarizada com um elemento

diferente.

Ele compreendia que ela precisava do seu tempo a sós.

Compreendia que ela precisava de fechar os olhos, de se afundar sob o

brilho difuso da água, agitar a cauda, respirar pelas suas guelras e

esquecer as alegrias e as provações de ser uma esposa - só por algum

tempo, só uma vez por mês. Tiveram filhos que cresceram saudáveis e

bonitos; ele tornou-se mais próspero e o castelo deles era famoso pela sua

riqueza e pelo seu encanto. Era igualmente conhecido pela beleza e pela \

doçura extraordinárias da sua dama. e os visitantes vinham de muito longe

para verem o castelo, o seu lorde, e a sua bela e misteriosa mulher.

Asssim que sou coroada rainha, começo a tratar de estabelecer a

minha família, e eu e a minha mãe tornamo-nos as maiores casamenteiras

do reino.

- Isto não irá causar mais inimizades? - pergunto a Eduardo. - A

minha mãe tem uma lista de lordes para se casarem com as minhas irmãs.

- Tendes de o fazer - assegura-me ele. - Eles queixam-se de que vós

sois uma pobre viúva de uma família de desconhecidos. Tendes de

melhorar a vossa família casando-as com nobres.

91

- Somos tantas, tenho tantas irmãs, juro que irão ocupar todos os

jovens elegíveis. Vamos deixar-vos com escassez de lordes.

Ele encolhe os ombros.

- Este país esteve dividido entre Iorque ou Lencastre por

demasiado tempo. Criai-me outra grande família que me apoie,

quando Iorque começar a perder terreno, ou quando Lencastre nos

ameaçarem. Eu e vós precisamos de criar laços com a nobreza, Isabel.

Concedei rédea livre à vossa mãe, precisamos de primos e de parentes

em todos os condados do país. Irei fazer dos vossos irmãos nobres, e

dos vossos filhos, os que têm o apelido Grey. Temos de criar uma

grande família à vossa volta, tanto para a vossa posição como para

vossa defesa.

Aceito as suas palavras, vou ter com a minha mãe e encontro-a

sentada à mesa grande, nos meus aposentos, com linhagens, contratos e

mapas à sua volta, como um comandante a reunir as tropas.

- Vejo que sois a deusa do amor - comento.

Ela levanta os olhos para mim, franzindo a testa, concentrada.

- Isto não é amor; são negócios - diz ela. - Tendes a vossa família

para sustentar, Isabel, e mais vale casá-la com maridos ou mulheres

Page 72: Philippa gregory - a rainha branca

ricos. Tendes uma linhagem a criar. A vossa tarefa como rainha é

observar e ordenar a nobreza do vosso país: nenhum homem pode

crescer demasiado, nenhuma dama pode cair demasiado baixo. Isto eu

sei: o meu próprio casamento com o vosso pai foi proibido, e nós

tivemos de suplicar o perdão do rei, e de pagar uma multa.

- Seria de imaginar que isso vos colocaria do lado da liberdade e

do amor verdadeiro?

Ela ri-se brevemente.

- No que respeitava à minha liberdade e à minha história de

amor: sim. Quando se trata do ordenamento apropriado da vossa

corte: não.

- Deveis lamentar que António já seja casado, agora que

poderíamos encontrar-lhe uma excelente noiva?

A minha mãe franze a testa.

- Lamento que ela seja estéril e que tenha uma saúde fraca - diz

ela sem rodeios. - Podeis mantê-la na corte como dama

92

de companhia e ela é das melhores famílias; mas não me parece

que ela nos vá dar filhos e herdeiros.

- Tereis dezenas de filhos e herdeiros - prevejo, olhando para a

sua extensa lista de nomes e as setas desenhadas com ousadia entre os

nomes das minhas irmãs e os de nobres ingleses.

- Deveria ter - diz ela com satisfação. - E que nem um deles seja

menos do que Lorde.

assim, temos um mês de casamentos. Cada uma das minhas

irmãs contrai casamento com um lorde, à excepção de Catarina,

relativamente à qual consigo um melhor partido, prometendo-a a um

Duque. Ele ainda nem tem dez anos, é uma criança birrenta, Henrique

Stafford, o pequenino Duque de Buckingham. Warwick tinha-o em

mente para a sua filha Isabel. Mas, visto que o rapaz se encontra sob

tutela real desde a morte do pai, está à minha disposição. Recebo uma

gratificação pela sua guarda e posso fazer com ele o que eu quiser. É

um rapaz rude e arrogante comigo; julga ser de uma família tão

importante, está tão cheio de orgulho de si mesmo que eu sinto prazer

em forçar este jovem pretendente ao trono a casar com Catarina. Ele

considera-a, bem como a todos nós, insuportavelmente inferiores a ele.

Considera-se humilhado por casar com um membro da nossa família, e

constou-me que diz aos amigos, gabando-se como um rapazinho, que

irá vingar-se. E que, um dia, iremos temê-lo, que fará com que eu me

arrependa de alguma vez o ter insultado. Isto dá-me vontade de rir: e

Catarina fica contente por ir ser duquesa, mesmo tendo esta criança

Page 73: Philippa gregory - a rainha branca

rabugenta como marido.

O meu irmão de vinte anos, João, que, felizmente, continua

solteiro, irá casar com a tia de Lorde Warwick, Lady Catarina Neville.

Ela é a Duquesa viúva de Norfolk, tendo casado, dormido e enterrado

um Duque. Isto é uma bofetada em Warwick e, só isso, já me traz uma

alegria maliciosa, e, uma vez que a sua tia tem praticamente cem anos,

o casamento com ela é uma brincadeira do tipo mais cruel. Warwick

irá aprender quem faz as alianças agora na Inglaterra. Além disso, ela

deverá morrer em breve, e depois o meu irmão será de novo livre e

rico, para além do que é possível imaginar.

93

Para o meu filho, o meu querido Tomás Grey, compro a pequena

Ana Holland. A sua mãe, a Duquesa de Exeter, irmã do meu marido, cobra-

me quatro mil marcos pelo privilégio e eu aponto o preço do seu orgulho e

pago-o, de modo que Tomás possa herdar a fortuna dos Holland. O meu

filho vai ser tão rico como qualquer príncipe da Cristandade. Também

roubo ao Conde de Warwick o seu prémio - ele queria A Holland para o

seu sobrinho e estava tudo praticamente assinado e selado; mas eu suplanto

a sua oferta em mil marcos - uma fortuna, uma fortuna digna de um rei, que

eu posso desembolsar e Warwick não. Eduardo nomeia Tomás Marquês de

Dorset, para estar à altura das suas perspectivas. E eu terei algo equivalente

para o meu filho Ricardo Grey, logo que consiga encontrar uma rapariga

que lhe traga uma fortuna; entretanto, irá ser armado cavaleiro.

O meu pai passa a ser Conde; António não recebe Ducado acerca do

qual dizia piadas, mas obtém a suserania da ilha de Wight; e os meus outros

irmãos obtêm os seus lugares no serviço real ou na igreja. Leonel irá ser

bispo, como desejava. Utilizo a minha importante posição como rainha

para instalar a minha família em lugares de poder, como qualquer mulher

faria, e, de facto, como qualquer mulher que ascendeu à grandeza a partir

do nada seria aconselhada a fazer. Iremos ter os nossos inimigos - temos de

estabelecer ligações e aliados. Temos de estar em toda a parte.

No fim do longo processo de casamentos e enobrecimento, nenhum

homem poderá viver na Inglaterra sem encontrar um membro da minha

família: não será possível fazer trocas comerciais, arar um campo, ou julgar

um processo sem encontrar um dos membros da enorme família Rivers ou

seus dependentes. Estamos em toda a parte; estamos onde o rei escolheu

colocar-nos. E, se chegar um dia em que todos se voltem contra ele,

descobrirá que nós, os Rivers, estamos implantados bem fundo e somos

fortes, um fosso em volta do seu castelo. Quando ele perder todos os outros

aliados, continuaremos a ser seus amigos, e agora temos poder.

Somos-lhe leais e ele liga-se a nós. Juro-lhe a minha fé e o meu

Page 74: Philippa gregory - a rainha branca

amor, e ele sabe que não existe nenhuma mulher no mundo que o ame mais

do que eu. Os meus irmãos e o meu

94

pai, os meus primos e as minhas irmãs, e todos os nossos novos

maridos e mulheres lhe prometem a sua lealdade absoluta,

independentemente do que acontecer, seja quem for que nos ataque.

Criámos uma família nova juntos, nem Lencastre, nem Iorque; somos a

família Woodville, enobrecida como Rivers, e apoiamos o rei como uma

parede de água. Metade do reino pode odiar-nos, mas agora eu tornei-nos

tão poderosos que não me importo.

Eduardo dedica-se a governar um país que está habituado a não ter

rei. Nomeia juízes e xerifes para substituir os homens mortos na batalha;

ordena-lhes que imponham a lei e a ordem nos seus condados. Homens que

aproveitaram a ocasião para fazer guerra com os vizinhos têm de regressar

às suas próprias fronteiras. Os soldados licenciados de um lado ou de outro

têm de regressar às suas casas. Os grupos em conflito que aproveitaram a

sua oportunidade para sair a cavalo e espalhar o terror têm de ser

perseguidos e capturados, as estradas têm de ser tornadas outra vez seguras.

Eduardo dá início à dura tarefa de voltar a fazer da Inglaterra um país em

paz consigo mesmo. Um país em paz, em vez de um país em guerra.

Então, finalmente, chegamos ao termo de um estado de guerra

permanente, quando o anterior Rei Henrique, meio desorientado e meio

louco, é capturado, nas colinas de Northumberland, e Eduardo ordena que

seja levado para a Torre de Londres, para sua própria segurança e também

para a nossa. Ele nem sempre tem presença de espírito, Deus o ajude. Anda

pelas divisões da Torre e parece saber onde se encontra; parece estar

contente por estar em casa depois da sua errância. Vive tranquilamente, em

comunhão com Deus, com um padre ao seu lado, noite e dia. Nem sequer

sabemos se se recorda da mulher ou do filho que ela lhe disse ser seu;

seguramente, nunca fala nem pergunta por eles, que se encontram na

distante cidade de Anjou. Não sabemos ao certo se se lembra sempre de

que, em tempos, foi rei. Está indiferente ao mundo, pobre Henrique, e

esqueceu-se de tudo o que lhe tirámos.

95

VERÃO DE 1468

Eduardo confia a Warwick uma missão à França, e Warwick

aproveita a oportunidade de fugir da Inglaterra e da corte. Não suporta a

subida da nossa maré e o lento declínio das sua esperanças. Planeia fazer

Page 75: Philippa gregory - a rainha branca

um tratado com o Rei da França e assegura-lhe que o governo da Inglaterra

continua a estar nas suas mãos; e que vai escolher o marido da herdeira da

Casa de Iorque, Margarida. Mas está a mentir, e todos sabem que os seus

dias de poder terminaram. Eduardo ouve a minha mãe, a mim e os seus

outros conselheiros, que afirmam que o ducado da Borgonha tem sido um

amigo fiel, enquanto a França se tem revelado um inimigo constante, e que

poderíamos estabelecer uma aliança com a Borgonha para benefício do

comércio, em nome do nosso parentesco de primos, e que poderia ser

fortalecida com o casamento da irmã de Eduardo. Margarida, com o

próprio novo Duque: Carlos, que acabou de herdar as férteis terras da

Borgonha.

Carlos é um amigo fundamental para a Inglaterra. O Duque da

Borgonha é dono de todas as terras da Flandres, bem como do seu ducado

da Borgonha, e, assim, governa todas as terras baixas do Norte, todas as

terras entre a Alemanha e França, e as ricas terras do Sul. São grandes

compradores de tecido inglês, mercadores e nossos aliados. Os portos deles

estão voltados para os nossos, do outro lado do canal da Mancha; o seu

inimigo frequente é a França, e eles voltam-se para nós para estabelecer

uma aliança. São amigos tradicionais da Inglaterra e agora - através de mim

- parentes do rei da Inglaterra.

96

Tudo isto é planeado sem ser referido à rapariga propriamente dita, é

evidente; e Margarida vem ter comigo, quando estou a passear no jardim do

Palácio de Westminster, muito nervosa, como se alguém lhe tivesse

contado que o seu noivado com Dom Pedro de Portugal vai ser posto de

lado e que agora ela vai ser vendida àquele que apresentar a proposta mais

alta, ou a Luís da França, para um dos príncipes franceses, ou a Carlos da

Borgonha.

- Vai correr tudo bem - digo-lhe, apertando a sua mão na minha para

que ela possa caminhar ao meu lado. Tem apenas vinte e dois anos, e não

foi educada para ser a irmã de um rei. Não está acostumada ao modo como

o seu futuro marido pode ser substituído, consoante as necessidades do

momento, e a sua mãe, dividida entre as suas lealdades para com os seus

filhos rivais, falhou bastante na atenção que dedicou Às filhas.

Quando Margarida era pequena, pensava que iria casar com um lorde

inglês e viver num castelo inglês, a educar os filhos. Chegou mesmo a

sonhar ser freira - partilha o entusiasmo da mãe pela Igreja. Não se

apercebeu, quando o pai reivindicou o trono e o irmão o conquistou, que há

sempre um preço a pagar pelo poder, e que ele iria ser pago por ela, assim

como pelos restantes de nós. Continua sem se aperceber de que, embora

sejam os homens a partir para a guerra, são as mulheres quem sofre - talvez

Page 76: Philippa gregory - a rainha branca

mais do que qualquer outra pessoa.

- Não vou casar com um francês. Odeio os Franceses - diz com

veemência. - O meu pai combateu contra eles; não quereria que eu casasse

com um francês. O meu irmão nem devia pensar nisso. Não sei porque é

que a minha mãe considera essa possibilidade. Ela esteve com o exército

inglês, na França; sabe como são os Franceses. Sou membro da Casa de

Iorque. Não quero ser uma mulher francesa!

- Não ireis ser - returco com firmeza. - Esse é o plano do Conde de

Warwick e ele já não tem a atenção do rei. Sim, ele aceita subornos

franceses e favorece a França; mas o meu conselho ao rei foi que ele devia

fazer uma aliança com o Duque da Borgonha, e essa será uma aliança

melhor para vós. Inmaginai só: ireis ser minha parente! Ireis casar com o

Duque

97

da Borgonha e viver no bonito palácio de Lille. O vosso futuro

marido é um amigo honrado da Casa de Iorque e meu parente pelo lado da

minha mãe. É um bom amigo e, do palácio dele, podereis vir em visita a

casa. E, quando as minhas filhas tiverem idade suficiente, enviá-las-ei para

junto de vós, para que lhes ensineis a elegante vida da corte da Borgonha.

Não há nenhum lugar mais na moda e mais belo do que a corte da

Borgonha. Como Duquesa da Borgonha, sereis madrinha dos meus filhos.

Que tal?

Ela fica parcialmente reconfortada.

- Mas eu sou membro da Casa de Iorque - repete. - Quero ficar na

Inglaterra. Pelo menos, até termos derrotado finalmente a Casa de

Lencastre, e quero assistir ao baptismo do vosso filho, o primeiro príncipe

da Casa de Iorque. Depois, quererei vê-lo ser nomeado Príncipe de Gales...

- Vireis ao seu baptismo, quando o tivermos - prometo-lhe. - E nós

saberemos que a tia dele é uma boa guardiã. Mas podeis fazer avançar os

interesses da Casa de Iorque na Borgonha. Fareis com que a Borgonha

continue a ser amiga de Iorque e da Inglaterra e, se alguma vez Eduardo

estiver em perigo, saberá que pode recorrer à riqueza e às armas da

Borgonha. E, se alguma vez ele voltar a correr o risco de fazer um amigo

falso, pode voltar-se para vós para obter ajuda. Ireis gostar de ser a nossa

aliada, do outro lado do mar. Ireis ser o nosso porto seguro.

Ela deixa cair a sua pequena cabeça no meu ombro.

- Vossa Graça, minha irmã - diz ela. - É difícil para mim ir embora.

Perdi o meu pai e não tenho a certeza de que o meu irmão já não corra

perigo. Não estou segura de que ele e Jorge sejam amigos verdadeiros. Não

estou certa de que Jorge não inveje Eduardo, e receio o que o meu senhor

Warwick possa fazer. Quero ficar aqui. Quero estar junto de Eduardo e

Page 77: Philippa gregory - a rainha branca

convosco. Adoro o meu irmão Jorge; não quero deixá-lo desta vez. Não

quero deixar a minha mãe, não quero ir embora de casa.

- Eu sei - digo docemente. - Mas podereis ser uma irmã poderosa e

amiga de Eduardo e de Jorge como Duquesa da Borgonha. Saberemos que

existe sempre um país no qual poderemos confiar e que não deixará de ser

nosso amigo.

98

Saberemos que existe uma bela duquesa que é uma iorquista

convicta. Podeis ir para a Borgonha e ter filhos, filhos de Iorque.

- Credes que eu posso fundar uma Casa de Iorque, do outro lado do

mar?

Ireis fundar uma nova linhagem - asseguro-lhe. - E nós ficaremos

contentes por saber que vos encontrais lá, e iremos visitar-vos.

Ela faz uma expressão corajosa, e Warwick uma hipócrita, e escolta-

a até ao porto de Margate, nós vamos despedir-nos dela, da nossa pequena

duquesa, e eu sei que, de todos os irmãos e irmãs de Eduardo, Jorge, o

desleal, e Ricardo, o rapazinho, acabámos de mandar embora a mais

encantadora, a mais leal e a mais fiável iorquista de todos eles.

Para Warwick, esta é mais uma derrota às minhas mãos e às da

minha família. Ele tinha prometido que Margarida teria um marido francês,

mas tem de a levar ao Duque da Borgonha. Planeara fazer uma aliança com

a França e dissera que tinha o controlo da tomada de decisões na Inglaterra.

Em vez disso, vamos celebrar um casamento com a Casa Real da

Borgonha, a família da minha mãe. E todos podem ver que a Inglaterra está

a ser dirigida pela família Rivers e que o rei só nos dá ouvidos a nós.

Warwick escolta Margarida, na sua viagem de casamento, com um rosto

como se estivesse a chupar limões, e eu rio-me por trás da minha mão ao

vê-lo dominado e ultrapassado por nós em número, e considero-me

protegida da sua ambição e da sua malícia.

99

VERÃO DE 1469

Estou enganada, tão enganada. Não somos assim tão poderosos, não

o somos o suficiente. E eu deveria ter tido mais cuidado. Não pensei, e eu,

entre todas as pessoas, que receava Warwick antes de alguma vez o ter

conhecido, deveria ter pensado na sua inveja e na sua inimizade. Não previ

- e eu, de entre todas as rainhas com filhos em crescimento, deveria ter

antecipado - que Warwick e a amarga mãe de Eduardo poderiam unir-se e

pensar em colocar outro dos rapazes da Casa de Iorque no trono, no lugar

Page 78: Philippa gregory - a rainha branca

do primeiro que haviam escolhido, que o fazedor de reis iria fazer um novo

rei.

Deveria ter estado mais atenta a Warwick, uma vez que a minha

família o empurrou para fora dos seus cargos e conquistou as terras que ele

poderia ter querido para si próprio. Deveria ter igualmente adivinhado que

havia a tendência para Jorge, o jovem Duque de Clarence, lhe despertar

interesse. Jorge é um descendente da Casa de Iorque como Eduardo, mas

maleável, que se deixa tentar com facilidade, e, sobretudo, é solteiro.

Warwick olhou para Eduardo e para mim e para a força e a riqueza cada

vez maiores dos Rivers que coloquei em volta de Eduardo, e começou a

pensar que talvez pudesse criar outro rei, outra vez um novo rei, um rei que

lhe fosse mais obediente.

Temos três filhas bonitas, uma recém-nascida, e estamos à espera -

com uma ansiedade crescente - de um filho, quando Eduardo recebe a

notícia de que existe um rebelde em Yorkshire que se autodenomina

Robim. Robim de Redsdale.

um nome extravagante que não significa nada, um rebelde

100

insignificante que se esconde por trás de um nome lendário, reunindo

tropas, caluniando a minha família, exigindo justiça e liberdade e os

disparates habituais pelos quais os homens bons são tentados a abandonar o

cultivo dos seus campos para partir para a morte. Eduardo, a princípio,

presta muito pouca atenção e eu, tolamente, penso que não tem importância

nenhuma. Eduardo encontra-se em peregrinação com a minha família, os

meus filhos Grey, Ricardo e Tomás, e o seu irmão mais novo, Ricardo,

mostrando-se às pessoas e dando graças a Deus, e eu viajo ao seu encontro

com as meninas, e, apesar de nos escrevermos todos os dias, atribuímos tão

pouca importância à sublevação que ele nem a menciona nas suas cartas.

Mesmo quando o meu pai comenta comigo que alguém tem de estar

a pagar a estes homens - não estão armados com forquilhas, têm botas de

qualidade e marcham ordeiramente -. não lhe presto atenção. Mesmo

quando ele diz, alguns dias mais tarde, que estes homens pertencem a

alguém - camponeses ou rendeiros, ou homens que prestaram juramento a

um lorde -, praticamente não ouço a sua sabedoria conquistada à custa de

muito esforço. Mesmo Quando ele me chama a atenção para o facto de

nenhum homem pegar na sua segadeira e decidir partir e combater numa

guerra: alguém, o seu senhor, tem de dar as ordens. Nem nessa altura lhe

dou ouvidos. Quando o meu irmão João afirma que este país é de Warwick

e que, muito provavelmente, os rebeldes são treinados pelos homens de

Warwick, continuo sem atribuir muita importância ao assunto. Tenho uma

bebé pequena e o meu mundo gravita em redor do seu berço entalhado e

Page 79: Philippa gregory - a rainha branca

pintado a ouro. Estamos em viagem, no Sudeste da Inglaterra, onde somos

amados, o Verão está óptimo, e eu penso, quando penso, que os rebeldes,

muito provavelmente, regressarão a casa a tempo de procederem às

colheitas e que a agitação cessará por si mesma.

Não estou preocupada até o meu irmão, João, vir ter comigo, com

um r osto sério, e jurar que existem centenas, senão milhares, de homens

armados, e que só pode tratar-se do Conde de Warwick dedicado à sua

antiga actividade de fazer das suas, uma vez que mais ninguém conseguiria

reunir tantos

101

homens. Está novamente a fazer um rei. Da última vez, fez Eduardo,

para substituir o Rei Henrique; desta vez, quer fazer Jorge, Duque de

Clarence, irmão do rei, o filho que não tem relevância, para substituir o

meu marido, Eduardo. E assim substituir-me, bem como aos meus.

Eduardo encontra-se comigo em Fotheringhay, como tínhamos

combinado, silenciosamente furioso. Tínhamos planeado desfrutar da

bonita casa e dos terrenos, com aquele tempo de pleno Verão, e depois

seguir para a próspera cidade de Norwich, juntos, para uma grande entrada

cerimonial nessa cidade extraordinariamente rica. O nosso plano era

confundirmo-nos com as peregrinações e os banquetes das cidades do país,

administrar justiça e patrocínios, sermos vistos como rei e rainha no

coração do seu povo - em nada semelhante ao rei louco que se encontra

trancado na Torre e à sua ainda mais louca rainha, que está na França.

- Mas agora tenho de ir para norte e lidar com este assunto - queixa-

se Eduardo a mim. - Há novas rebeliões a surgirem como mananciais numa

enchente. Pensei que se limitava a um escudeiro descontente, mas todo o

Norte parece estar a pegar, mais uma vez, em armas. É Warwick, tem de

ser Warwick, ainda que não me tenha dito uma única palavra. Mas pedi-lhe

que viesse falar comigo, e ele não veio. Pareceu-me estranho mas sabia que

estava revoltado comigo, e agora, neste mesmo dia, soube que ele e Jorge

embarcaram num navio. Partiram juntos para Calais. Malditos sejam,

Isabel, tenho sido um idiota ao confiar neles. Warwick fugiu da Inglaterra,

Jorge acompanhou-o; escaparam para a mais forte guarnição inglesa, são

inseparáveis, e todos os homens que afirmam estar a lutar por Robim de

Redesdale são, na verdade, servidores remunerados de Jorge ou de

Warwick.

Fico sem ar. De repente, o reino que parecera calmo nas nossas mãos

está a desmoronar-se.

- O plano de Warwick deve ser utilizar contra mim todos os truques

que eu e ele usámos contra Henrique - Eduardo está a pensar em voz alta. -

Agora, está a apoiar Jorge, como antes me apoiou a mim. Se ele continuar

Page 80: Philippa gregory - a rainha branca

com isto, se utilizar a fortaleza de Calais como ponto de partida para

invadir a Ingla terr,a tratar-se-á de uma guerra entre irmãos,tal como

102

antes era uma guerra entre primos. Isto é muito mau, Isabel. E este

era o homem que eu considerava como um irmão. Este é o homem que

praticamente me pôs no trono. É meu parente e o meu principal aliado. Era

o meu melhor amigo.

Vira-me as costas, para que eu não possa ver a raiva e a perturbação

no seu rosto, e mal consigo respirar só de pensar neste homem tão

poderoso, neste tremendo comandante de homens, a atacar-nos.

- Tendes a certeza? Jorge está com ele? E foram para Calais juntos?

Ele quer o trono para Jorge?

- Não tenho a certeza de nada - grita ele de exasperação. Este é o

meu principal e maior amigo e com ele está o meu próprio irmão. Temos

combatido lado a lado no campo de batalha; temos sido irmãos de armas,

assim como família. Na Batalha de Mortimer’s Cross, havia três sóis no

céu, eu próprio os vi, três sóis: todos diziam que era um sinal de Deus para

mim, Jorge e Ricardo, os três filhos da Casa de Iorque. Como pode um

filho abandonar os outros? E quem mais me está a trair juntamente com

ele? Se não posso confiar no meu próprio irmão, quem ficará do meu lado?

A minha mãe deve saber disto: Jorge é o seu querido. Deve ter-lhe dito que

ia armar uma conspiração contra mim e ela guardou o seu segredo. Como

pode ele trair-me? Como é que ela é capaz?

- A vossa mãe? - repito. - A vossa mãe está a apoiar Jorge contra

vós? Porque haveria ela de fazer algo semelhante?

Ele encolhe os ombros.

- É a velha história. Não sabe se eu sou filho do meu pai. Se eu sou

um Iorque legítimo, nascido e criado. Jorge afirma que eu sou um bastardo

e que isso faz dele o herdeiro legítimo. Sabe Deus porque haveria ela de

apoiar algo deste estilo. Deve odiar-me, por me ter casado convosco e

tomar o vosso partido, mais do que até eu imaginei. - Como é que ela se

atreve!

Não posso confiar em mais ninguém, para além de vós e da vossa

família - excclama Eduardo. - Todas as outras pessoas em quem confiava

desapareceram da minha vista, e agora ouço que este Robim de Yorkshire

tem uma lista de exigências que quer que eu satisfaça, e que Warwick

anunciou ao povo que as considera razoáveis. Razoáveis! Prometeu que ele

103

e Jorge desembarcarão com um exército para protestar junto de mim.

Page 81: Philippa gregory - a rainha branca

Protestar! Eu sei o que ele quer dizer com isso! Não é exactamente o

mesmo que fizemos a Henrique? E eu não sei como se destrói um rei? O

pai de Warwick não levou o meu próprio pai a protestar junto do Rei

Henrique, planeando afastá-lo da mulher e dos seus aliados? Não ensinou

ao meu pai como isolar um rei da mulher e dos seus aliados? E agora está a

planear destruir-me com o mesmo estratagema. Ele julga que sou idiota?

- E Ricardo? - indago ansiosamente, pensando no outro irmão, o

rapaz tímido que se transformou num homem tranquilo e sério. - A quem é

que ele é leal? Toma o partido da vossa mãe?

É o seu primeiro sorriso.

- O meu Ricardo continua a ser-me fiel, graças a Deus - diz ele

brevemente. - Ricardo sempre me foi fiel. Sei que pensais que é um rapaz

difícil, mal-humorado. Sei que as vossas irmãs se riem dele, mas ele é

honesto e é-me fiel. Enquanto Jorge pode ser subornado à esquerda ou à

direita. É um rapaz ambicioso, não é um homem. Só Deus sabe o que

Warwick lhe prometeu.

- Isso, eu posso dizer-vos - respondo ferozmente. - É fácil. O vosso

trono. E a herança das minhas filhas.

- Mantê-los-ei a todos - ele pega nas minhas mãos e beija-as. - Juro

que irei mantê-los a todos. Vós ides para a cidade de Norwich, tal como

tínhamos planeado. Cumpri o vosso dever, representai o papel de rainha

como se não estivésseis preocupada. Mostrai-lhes um rosto sorridente e

confiante. E eu irei acabar com a conspiração destas serpentes, antes de ela

sequer começar.

- Eles admitem que esperam destronar-vos? Ou insistem que

pretendem apenas protestar junto de vós?

Ele faz uma careta.

- É mais que irão destronar-vos, querida. Querem que a vossa

família e os vossos conselheiros sejam exilados da corte. A grande queixa

deles é que estou a ser mal aconselhado e que a vossa família me está a

destruir.

Fico sem ar.

- Eles andam a difamar-me?

104

- É um disfarce, uma pantomina - diz ele. - Não lhe deis importância.

É a mesma cantiga de isto não se tratar de uma rebelião contra o rei, mas

contra os seus maus conselheiros. Eu próprio a cantei, tal como meu pai, e

como Warwick fez contra Henrique. Então, dissemos que era tudo culpa da

rainha e do Duque de Somerset. Agora, eles dizem que a culpa é vossa e da

família que tendes ao vosso redor. É fácil culpar a esposa. É sempre mais

fácil acusar a rainha de ser uma má influência do que declarar-se contra o

Page 82: Philippa gregory - a rainha branca

rei, é evidente. Depois, quando estiver sozinho diante deles, sem amigos e

sem família, irão destruir-me. Irão obrigar-me a declarar que o nosso

casamento foi falso, que as nossas filhas são bastardas. Far-me-ão nomear

Jorge meu herdeiro, talvez ceder-lhe o meu trono. Tenho de levá-los a uma

oposição aberta, na qual possa derrotá-los. Confiai em mim, manter-vos-ei

em segurança.

Encosto a minha testa à sua.

- Quem me dera ter-vos dado um filho - digo muito baixinho. - Aí,

eles saberiam que só poderia haver um herdeiro. Gostava de vos ter dado

um príncipe.

- Ainda há muito tempo para isso - responde ele com firmeza. - E eu

adoro as nossas filhas. Há-de vir um filho, não tenho dúvidas, meu amor. E

eu manterei o trono em segurança para ele. Confiai em mim.

Deixo-o ir. Ambos temos trabalho a fazer. Ele parte a cavalo de

Fotheringhay, atrás de um estandarte cruelmente rumorejante e rodeado

por guardas prontos a combater para ir para Nottingham, para o enorme

castelo que lá existe, e aguardar que o inimigo se apresente. Eu prossigo

para Norwich com as minhas filhas, para me comportar como se a

Inglaterra fosse toda minha, como se tudo ainda fosse um jardim tranquilo

e agradável para a rosa de Iorque, e não temo nada. Levo os meus filhos

Grey comigo. Eduardo propôs que o acompanhassem, para terem uma

primeira impressão de uma batalha, mas eu receio por eles e trago-os

comigo e com as meninas. Por isso, tenho dois jovens muito amuados, de

quinze e treze anos, enquanto sigo viagem para Norwich, e nada lhes

agradará, uma vez que desejavam participar na sua primeira batalha. faço

uma entrada com grande pompa, com os coros a cantar e flores a serem

lançadas para o chão à minha frente,

105

com representações a enaltecerem a minha virtude e dando boas-

vindas às minhas filhas. Eduardo espera pelo momento certo, em

Nottingham, reunindo novamente os seus soldados, aguardando que o

inimigo desembarque.

Enquanto esperamos, desempenhando os nossos diferentes papéis,

perguntando-nos quando irão chegar os nossos inimigos, e onde

desembarcarão, recebemos mais notícias. Na cidade de Calais, com uma

permissão especial do Papa - que deve ter sido procurada e obtida, em

segredo, pelos nossos próprios arcebispos -, Jorge casou com a filha de

Warwick, Isabel Neville. Agora, é genro de Warwick e, se este conseguir

pôr Jorge no trono de Eduardo, Warwick fará da sua própria filha rainha, e

ela ficará com a minha coroa.

Cuspo como um gato, ao pensar nos nossos arcebispos vira-casacas

Page 83: Philippa gregory - a rainha branca

escrevendo ao Papa, em segredo, para ajudar os nossos inimigos, em Jorge

diante do altar, com a filha de Warwick, e na antiga ambição de Warwick

em combustão lenta. Penso na rapariga de rosto pálido, uma das duas

raparigas Neville, porque Warwick não tem nenhum filho e,

aparentemente, não pode ter mais nenhum, e juro que ela nunca usará a

coroa da Inglaterra enquanto eu viver. Penso em Jorge, virando a casaca

como o menino mimado que é, e alinhando nos planos de Warwick como

a criança estúpida que é, e juro vingar-me dos dois. Tenho tanta certeza de

que tudo isto terminará numa batalha, e numa batalha amarga entre o meu

marido e o seu antigo tutor na guerra, Warwick, que sou apanhada de

surpresa, tal como Eduardo é apanhado de surpresa, quando Warwick

desembarca sem aviso, encontra e esmaga o exército real reunido em

Edgecote Moor, perto de Banbury, antes sequer de Eduardo ter saído do

Castelo de Nottingham.

É um desastre. Sir Guilherme Herbert, Conde de Pembroke, jaz

morto no campo de batalha, um milhar de homens galeses em volta dele, o

rapaz da Casa de Lencastre que se encontra sob a sua tutela, Henrique

Tudor, fica sem tutor. Eduardo está na estrada para Londres, cavalgando o

mais depressa que pode, para armar a cidade para o cerco, prestes a avisá-

los de que se encontra na Inglaterra, quando figuras armadas bloqueiam a

estrada, à sua frente.

106

O Arcebispo Neville, parente de Warwick, nomeado por nós, avança

e faz de Eduardo, o seu rei, prisioneiro, dizendo-lhe, enquanto ele é

cercado, que Warwick e Jorge já estão no reino, e que o exército real já foi

derrotado. Acabou, Eduardo foi derrotado, mesmo antes de a batalha ser

declarada, mesmo antes de colocar o arnês no seu cavalo de batalha. As

guerras, que julguei terem terminado em paz, a nossa paz, culminaram na

nossa derrota, sem que Eduardo tivesse sequer desembainhado a sua

espada, e a Casa de Iorque irá ser fundada com base no joguete que é Jorge

e não no meu filho, que ainda não nasceu.

Estou em Norwich, fingindo-me confiante, simulando uma

graciosidade régia, quando me trazem um mensageiro enlameado, vindo da

parte do meu marido. Abro a carta.

Queridíssima esposa,

Preparai-vos para más notícias.

O vosso pai e o vosso irmão foram presos numa batalha perto de

Edgecote, em combate pela nossa causa, e Warwick tem-nos em seu poder.

Page 84: Philippa gregory - a rainha branca

Também eu fui feito prisioneiro, estou detido no Castelo de Warwick, em

Middleham. Capturaram-me na estrada, quando me dirigia para junto de

vós. Não estou ferido e eles também não.

Warwick acusou a vossa mãe de ser feiticeira e afirma que o nosso

casamento foi um acto de bruxaria criado por vós e por ela. Por isso, ficai

avisada: correis as duas um grave perigo. Ela tem de abandonar o país de

imediato: mandá-la-ão estrangular como bruxa se puderem. Vós também

vos deveis preparar para o exílio.

Parti, com as nossas filhas, para Londres, o mais depressa possível,

armai a Torre para um cerco, e levantai a cidade. Assim que a cidade

estiver pronta para o cerco, tendes de pegar nas meninas e procurar

refúgio na Flandres. A acusação de bruxaria é muito grave, meu amor.

Irão executar-vos se julgarem que conseguem convencer as pessoas.

Mantende-vos em segurança, acima de qualquer outra coisa.

Se julgardes melhor, mandai as meninas embora já, em segredo, e

colocai-as em casa de pessoas humildes, escondidas. Não sejais orgulhosa,

Isabel, escolhei um refúgio onde

107

ninguém as vá procurar. Temos de resistir a isto se pretendemos

voltar a lutar pelo vosso direito.

Custa-me mais colocar-vos, a vós e a elas, em perigo do que

qualquer outra coisa no mundo. Escrevi a Warwick a exigir saber o

resgate que ele pretende receber pelo regresso seguro do vosso pai e do

vosso irmão João. Não tenho dúvidas de que ele os enviará de volta para

junto de vós e podeis pagar o que eles exigirem com dinheiro do Tesouro.

O vosso marido, O único Rei da Inglaterra, Eduardo

Batem à porta da minha sala de audiências e o empurrão que dão na

porta faz-me pôr de pé de um salto, na expectativa, não sei, de que seja o

próprio Conde de Warwick, com um monte de paus de lenha verde para

nos queimar, a mim e à minha mãe; mas é o presidente do município de

Norwich que me havia saudado com uma cerimónia tão elaborada apenas

alguns dias antes.

- Vossa Graça, trago notícias urgentes - diz ele. - Más notícias.

Lamento.

Respiro fundo para me acalmar.

- Dizei-me.

- É sobre o vosso pai e o vosso irmão.

Sei o que ele vai dizer. Não por previsão, mas pelo modo como o seu

rosto redondo apresenta rugas de preocupação, pela noção do sofrimento

que me vai causar. Sei-o pela forma como os homens atrás dele se unem,

Page 85: Philippa gregory - a rainha branca

pouco à vontade, como pessoas que trazem as piores notícias. Adivinho-o,

pelo modo como as minhas próprias damas de companhia suspiram, como

uma brisa de luto, e se reúnem atrás da minha cadeira.

- Não - digo. - Não. São prisioneiros. Estão em poder de cidadãos

ingleses de honra. Têm de ter direito a um pedido de resgate.

- Quereis que vos deixe? - pergunta ele. Olha para mim como se eu

estivesse doente. Não sabe o que dizer a uma rainha que chegou a esta

cidade em glória e que a deixará acorrer perigo de vida. - desejais que saia

e que volte mais tarde, Vossa Graça?

108

- Contai-me - digo. - Contai-me agora o pior que há para contar e eu

encontrarei uma forma de o suportar.

Ele olha de relance para as minhas damas, à procura de ajuda, e

depois os seus olhos escuros regressam a mim.

- Lamento, Vossa Graça. Lamento-o mais do que consigo dizer. O

vosso pai, o Conde Rivers, e o vosso irmão, Sir João Rivers, foram feitos

prisioneiros na batalha, uma nova batalha entre novos inimigos, o exército

do rei contra o próprio irmão do rei, Jorge, o Duque de Clarence. O Duque

parece manter uma aliança agora com o Conde de Warwick, contra o vosso

marido... talvez já soubésseis? Uma aliança contra o vosso gracioso marido

e contra vós. O vosso pai e o vosso irmão foram feitos prisioneiros quando

lutavam por Vossa Graça e foram executados. Foram decapitados - lança-

me um olhar fugaz. Não devem ter sofrido - opina. - Estou certo de que foi

rápido.

- E com que acusação? - quase não consigo falar. A minha boca está

entorpecida, como se alguém me tivesse esmurrado o rosto. - Eles estavam

a lutar por um rei ordenado, contra rebeldes. O que poderia alguém afirmar

contra eles? Qual poderia ser a acusação?

Ele abana a cabeça.

- Foram executados por ordem de Lorde Warwick - diz ele em voz

baixa - Não houve julgamento, não houve acusação. Aparentemente, a

palavra do meu senhor Warwick é agora lei. Mandou-os decapitar sem

serem julgados e sem ser decretada uma sentença, sem justiça. Quereis que

dê ordens para que sejais escoltada até Londres? Ou ordenarei a vinda de

um navio? Desejais partir para outro país?

- Tenho de ir para Londres - respondo. - É a minha capital, este é o

meu reino. Não sou uma rainha estrangeira, para fugir para a França. Sou

uma cidadã inglesa. Vivo e morro aqui - corrijo-me. - Viverei e lutarei

aqui.

- Posso apresentar-vos as minhas mais sinceras condolêncks? A vós

e ao rei?

Page 86: Philippa gregory - a rainha branca

Tendes notícias do rei?

- Estávamos à espera de que a vossa graciosa pessoa pudesse

reconfortar-nos?

- Não soube de nada - minto. Não ficarão a saber por mim que o rei

foi feito prisioneiro no Castelo de Middleham, que

109

fomos derrotados. - Partirei esta tarde, dentro de duas horas, dizei-

lhes. Partirei a cavalo para reivindicar a minha cidade de Londres e depois

reclamaremos a Inglaterra. O meu marido nunca perdeu uma batalha.

Derrotará os seus inimigos, levai os traidores a julgamento e far-se-á

justiça.

Ele faz-me uma vénia, todos eles o fazem, e saem, de costas. Sento-

me na minha cadeira, como uma rainha, o dossel tecido de ouro sobre a

minha cabeça, até a porta se fechar atrás deles, e então digo às minhas

damas:

- Deixai-me. Preparai-vos para a nossa viagem. Elas ficam agitadas e

hesitam. Anseiam por me deter e me acarinhar, mas vêem o ar sinistro no

meu rosto e afastam-se. Fico sozinha na sala iluminada pelo sol e vejo que

a cadeira na qual me encontro sentada está lascada, o entalhado sob a

minha mão tem falhas. O dossel sobre a minha cabe está coberto de pó.

Percebo que perdi o meu pai e o meu irmão, o pai mais gentil e amoroso

que uma filha já teve, e um bom irmão. Perdi-os por uma cadeira lascada e

um tecido cheio de pó. A minha paixão por Eduardo e a minha ambição

pelo trono colocaram-nos, a todos nós, na linha da frente da batalha e

custaram-me este primeiro sangue: o meu querido irmão e o pai que amo.

Penso no meu pai a pôr-me em cima do meu primeiro pónei e a

dizer-me que levante o queixo e mantenha as mãos para baixo, para segurar

firmemente as rédeas, para mostrar ao pónei quem manda ali. Penso nele a

segurar a face da minha mãe com as mãos em concha e a dizer-lhe que ela é

a mulher mais inteligente da Inglaterra, e que não se deixaria orientar por

ninguém que não fosse ela; e de depois seguir o seu próprio caminho.

Penso em como ele se apaixonou por ela, quando era o escudeiro do

primeiro marido dela, e ela a sua senhora, que nunca deveria ter olhado

para ele. Penso nele a casar com ela, no momento em que ela ficou viúva,

desafiando todas as regras, e de lhes dizerem que compunham o mais belo

casal da Inglaterra, casado por amor, o que ninguém, além dos dois, se teria

atrevido a fazer. Recordo-me dele em Reading, como António o descrevia,

fingindo conhecer toda a gente e com os olhos irrequietos. Seria até capaz

de me rir de amor por ele, relembrando como me disse que

110

Page 87: Philippa gregory - a rainha branca

podia tratar-me por Isabel em privado, agora que sou rainha, e que

tínhamos de nos acostumar. Penso em como encheu o peito, quando lhe

revelei que iria casar o seu filho com uma Duquesa e que ele próprio iria

ser Conde.

E, em seguida, penso em como a minha mãe irá receber esta perda e

que serei eu quem terá de lhe dizer que ele sofreu uma morte de traidor, por

lutar pela minha causa, depois de ter combatido a vida inteira pelo lado

oposto. Reflicto em tudo isto, e sinto-me abatida e completamente enjoada,

o mais abatida e enjoada que me senti em toda a vida, ainda mais do que

quando o meu Pai regressou a casa, da batalha de Towton, e disse que a

nossa causa estava perdida, muito mais do que quando o meu marido não

voltou para casa, de St. Albans, e me disseram que tivera uma morte

corajosa, numa carga contra a Casa de Iorque.

Sinto-me pior do que nunca, porque agora sei que é mais fácil levar

um país para a guerra do que fazê-lo viver em paz, e um país em guerra é

um lugar amargo para se viver, um lugar arriscado para ter filhas e um

lugar perigoso para se alimentar esperanças de ter um filho.

Sou recebida em Londres como uma heroína e a cidade é toda

partidária de Eduardo; mas isso não fará qualquer diferença se aquele

talhante de Warwick o matar na prisão. Estabeleço a minha residência, por

enquanto, na bem fortificada Torre de Londres com as minhas filhas e os

meus filhos Grey - são obedientes, estão assustados como cachorrinhos,

agora que percebem que nem todas as batalhas são vencidas e que nem

todos os filhos adorados regressam a casa em segurança. Ficam abalados

pela morte do tio João e todos os perguntam pela segurança do rei. Todos

estamos a sofrer: as minhas filhas perderam um excelente avô e um tio

adorado, e sabem que o pai corre um perigo terrível. Escrevo ao meu

parente, o Duque da Borgonha, e peço-lhe que prepare um refúgio seguro

na Flandres, para mim, para os meus filhos Grey e para as minhas filhas

régias. Digo-lhe que temos de procurar uma cidade pequena, sem qualquer

importância, e

111

uma família pobre que possa fingir estar a acolher primas inglesas.

Tenho de encontrar um lugar onde as minhas filhas se possam esconder e

nunca sejam encontradas.

O Duque jura que fará mais do que isso. Apoiará a cidade se se

unirem por mim e pela Casa de Iorque. Promete enviar homens e um

exército. Pergunta-me quais são as notícias que tenho do rei. Se ele se

encontra em segurança.

Page 88: Philippa gregory - a rainha branca

Não posso escrever-lhe para o reconfortar. As notícias do meu

marido são inexplicáveis. É um rei em cativeiro, tal como o pobre Rei

Henrique. Como é possível algo semelhante? Como pode algo assim

continuar? Warwick continua a mantê-lo prisioneiro no Castelo de

Middleham e a convencer os lordes a negarem que Eduardo alguma vez foi

rei. Há aqueles que afirmam que será proposta uma opção a Eduardo: ou

abdicar do trono a favor do irmão, ou subir os degraus para o cadafalso.

Warwick exige a coroa ou a sua cabeça. Há os que defendem que é só uma

questão de dias, até sabermos que Eduardo foi destronado e que fugiu para

a Borgonha; ou que foi morto. Tenho de ouvir todas estas coscuvilhices,

em vez de receber notícias, e pergunto-me se vou ficar viúva no mesmo

mês em que perdi o meu pai e o meu irmão. E como vou suportar isso?

A minha mãe vem ter comigo na segunda semana da minha vigília.

Vem da nossa antiga casa de Grafton, de olhos secos e, de certo modo,

vergada, como se tivesse uma ferida no ventre e estivesse dobrada por

causa da dor. No instante em que a vejo, percebo que não terei de lhe dizer

que é viúva. Ela sabe que perdeu o grande amor da sua vida e a sua mão

repousa sempre no nó do seu cinto, como se estivesse a estancar um

ferimento mortal. Tem conhecimento de que o marido morreu mas

ninguém lhe disse como perdeu a vida, nem porquê. Tenho de a levar para

o meu quarto privado, fechar a porta para as crianças não ouvirem, e

procurar as palavras para descrever a morte do seu marido e do seu filho. E

foi uma morte vergonhosa, para homens bons, às mãos de um traidor.

- Tenho tanta pena - afirmo. Ajoelho-me aos seus pés e aperto-lhe as

mãos. - Tenho tanta pena, Mãe. Vou exigir a cabeça de Warwick por isto.

Vou fazer com que Jorge seja morto.

112

Ela abana a cabeça. Ergo os olhos para ela e vejo-lhe rugas no rosto

que juro nunca terem estado lá antes. Perdeu o brilho de uma mulher

satisfeita e a alegria desapareceu do seu rosto, deixando rugas de cansaço.

- Não - diz ela. Afaga o meu cabelo entrançado e diz: Calma, calma.

O vosso pai não quereria que sofrêsseis. Ele conhecia muito bem os riscos.

Não era a primeira batalha em que participava, sabe Deus. Tomai - mete a

mão dentro do vestido e entrega-me um bilhete manuscrito. - A última carta

que ele me escreveu. Envia-me as suas bênçãos e o seu amor por vós.

Escreveu-a quando lhe disseram que iria ser liberto. Julgo que ele sabia a

verdade.

A caligrafia do meu pai é clara e bem marcada, tal como a sua

eloquência. Não consigo acreditar que não vou voltar a ouvir uma, nem a

ver a outra, nunca mais.

- E João... - interrompe-se ela. - O João é uma perda para mim e para

Page 89: Philippa gregory - a rainha branca

a sua geração - diz ela em voz baixa. - O vosso irmão João tinha a vida

inteira pela frente.

Faz uma pausa.

- Quando criamos um filho e ele se torna um homem, começamos a

pensar que está em segurança, que estamos protegidas do desgosto. Quando

uma criança vence todas as doenças da infância, quando vem um ano de

peste e leva os filhos dos vizinhos e, mesmo assim, o nosso filho sobrevive,

começamos a pensar que ele estará seguro para sempre. Todos os anos

pensamos: mais um ano longe do perigo, mais um ano para se tornar um

homem. Eu criei o João, criei todos os meus filhos, sem fôlego, cheia de

esperança. E nós casámo-lo com aquela mulher idosa por causa do título e

da fortuna dela, e rimo-nos, sabendo que ele lhe sobreviveria. Foi uma

grande piada para nós, sabendo que ele era um marido tão jovem, de uma

mulher tão velha. Rimo-nos para troçar da idade dela, tendo noção de que

ela estava muito mais perto da sepultura do que ele. E agora ela vai assistir

ao enterro dele e manter a sua fortuna. Como é possível algo assim?

Dá um longo suspiro, como se estivesse demasiado cansada Para

mais alguma coisa.

- no entanto, eu devia saber. De todas as pessoas do mundo, eu devia

ter sabido. Tenho o dom da Visão, devia ter

113

previsto tudo, mas algumas coisas são demasiado obscuras para se

preverem. Estes são tempos difíceis e a Inglaterra é um país de infortúnios.

Nenhuma mãe pode estar segura de que não vai sepultar os seus filhos.

Quando um país está em guerra, primo contra primo, irmão contra irmão,

nenhum rapaz se encontra em segurança. Sento-me sobre os calcanhares.

- A mãe do rei, a Duquesa Cecília, irá conhecer esta dor. Sentirá a

dor que vós sentis agora. Conhecerá a perda do filho Jorge - disparo. - Juro-

o. Irá vê-lo sofrer a morte de mentiroso e de um vira-casaca. Haveis

perdido um filho e o mesmo sucederá com ela, tendes a minha palavra.

- Assim como vós, segundo essa regra - avisa-me a minha mãe. -

Mais e mais mortes, e mais contendas, e mais crianças sem pai, e mais

noivas viúvas. Quereis chorar o vosso filho desaparecido, no futuro, como

eu estou a fazer agora?

- Depois de Jorge, podemos reconciliar-nos - replico obstinadamente.

- Eles têm de ser punidos por isto. Jorge e Warwick são homens mortos, a

partir de hoje - levanto-me, dirijo-me à mesa. - Vou rasgar um canto desta

carta - afirmo. - Escreverei a morte deles, com o meu próprio sangue, na

carta do meu pai.

- Estais errada - diz ela calmamente, mas deixa-me cortar um canto

da carta e devolver-lha.

Page 90: Philippa gregory - a rainha branca

Batem à porta e eu limpo as lágrimas da face, antes de deixar a

minha mãe dizer:

- Entrai - mas a porta é escancarada sem cerimónia, e Eduardo, o

meu querido Eduardo, entra no quarto, como se tivesse saído para um dia

de caça e pensasse que me iria fazer uma surpresa chegando a casa cedo.

- Meu Deus! Sois vós! Eduardo! Sois vós? Sois mesmo vós?

- Sou eu - confirma ele. - Os meus cumprimentos, milady Mãe

Jacquetta.

Corro para ele, e os seus braços rodeiam-me. sinto o seu cheiro

familiar, bem como a força do seu peito, e soluço assim que lhe toco.

- Julguei que estáveis na prisão - digo. - Pensei que ele ia matar-vos.

114

- Perdeu a coragem - diz ele curtamente, tentando afagar as

minhas costas e soltar o meu cabelo ao mesmo tempo. Sir Humphrey

Neville levantou Yorkshire a favor de Henrique e, quando Warwick se

revoltou contra ele, ninguém o apoiou; precisava de mim. Começou a

perceber que ninguém aceitaria Jorge como rei e que eu não iria ceder

o meu trono. Não estava à espera disso. Não se atreveu a decapitar-me.

Para dizer a verdade, nãome pareceu que conseguisse encontrar um

carrasco para o fazer. Sou um rei coroado: ele não pode simplesmente

cortar-me a cabeça como se fosse lenha. Fui ordenado; o meu corpo é

sagrado. Nem sequer Warwick se atreve a matar um rei a sangue-frio.

Veio ter comigo com o documento para a minha abdicação e eu

disse-lhe que não conseguia ver de que forma o assinaria. Estava

contente por permanecer em sua casa. O cozinheiro é excelente e a

adega ainda melhor. Disse-lhe que transferiria de boa vontade toda a

corte para o Castelo de Middleham se ele desejasse que fosse seu

hóspede para sempre. Disse-lhe que não conseguia perceber por que

motivo o meu governo não podia ser gerido a partir do seu castelo, a

suas expensas. Mas que nunca negaria quem sou.” Ele ri-se, com a sua

gargalhada sonora e confiante. - Querida, devíeis tê-lo visto. Ele

pensou que, se me tivesse em seu poder, teria a coroa à sua disposição.

Mas desfcobriu que eu era pouco prestável. Foi quase como assistir a

uma pantomina, vê-lo desorientado, sem saber o que fazer. Depois de

saber que vos encontráveis em segurança na Torre, não tive medo de

nada. Ele pensou que eu iria quebrar, quando me deteve, e eu nem

sequer me verguei. Achou que eu ainda era o rapazinho que o adorava.

Não percebeu que sou um homem adulto. Fui um hóspede bastante

agradável. Comi bem e, quando os amigos vinham visitar-me, solicitava

que fossem recebidos regiamente. Primeiro, pedi para passear nos

jardins, depois, na floresta. A seguir, disse que gostaria de ir dar um

Page 91: Philippa gregory - a rainha branca

passeio a cavalo, e que mal haveria em deixar-me ir caçar? Começou a

deixar-me sair para passear a cavalo. O meu conselho apareceu e

exigiu falar comigo, e ele não sabia como recusar. Encontrei-me com

eles e Aprovei uma ou duas leis para que toda a gente soubesse

115

que nada tinha mudado, que eu continuava a governar como rei. Foi

difícil não me rir na sua cara. Pensou prender-me e, em vez disso,

descobriu que estava meramente a suportar os custos de uma corte inteira.

Querida, pedi para ter um coro enquanto jantava e ele não conseguiu

encontrar uma forma de mo recusar. Contratei dançarinas e actores. Ele

começa a aperceber-se de que limitar-se a deter o rei não era suficiente: é

necessário destruí-lo. É necessário matá-lo. Mas não lhe dei nada; ele sabia

que eu preferia morrer a dar-lhe fosse o que fosse.

”Então, uma bela manhã, há quatro dias, os seus criados cometeram

o erro de me entregarem o meu próprio cavalo, o meu cavalo de guerra, o

Fúria, e eu sabia que ele conseguiria avançar mais depressa do que

qualquer coisa que ele tivesse nos estábulos. Por isso, pensei em cavalgar

para um pouco mais longe, e um pouco mais rápido do que o costume, e é

tudo. Pensei que poderia cavalgar até junto de vós, e foi o que fiz.”

- Já acabou? - pergunto, incrédula. - Conseguistes escapar?

Ele sorri de orgulho como um rapazinho.

- Gostaria de ver um cavalo que conseguisse alcançar no Fúria -

respondeu. - Tinham-no deixado nos estábulos durante duas semanas,

alimentando-o com aveia. Cheguei a Ripon antes de conseguir respirar.

Não teria conseguido fazê-lo parar, mesmo que quisesse.

Rio-me, partilhando o seu deleite.

- Graças a Deus, Eduardo, tive tanto medo! Pensei que nunca voltaria

a ver-vos. Meu amor, pensei que nunca mais voltaria a ver-vos.

Ele beija-me a cabeça e afaga-me as costas.

- Quando nos casámos, não vos disse que voltaria para junto de vós?

Não vos disse que morreria no meu leito convosco como minha esposa?

Não haveis prometido dar-me um filho? Credes que alguma vez, alguma

prisão me poderia apartar de vós?

Encosto o rosto ao seu peito como se quisesse enterrar-me naquele

corpo.

- Meu amor. Meu amor. Então, ides regressar com os vossos homens

e prendê-lo?

116

- Não, ele é demasiado poderoso. Ainda controla a maior parte do

Page 92: Philippa gregory - a rainha branca

Norte. Espero que consiga voltar a fazer a paz. Ele sabe que esta rebelião

falhou. Sabe que terminou. É suficientemente astuto para saber que perdeu.

Ele, Jorge e eu teremos de arranjar forma de nos reconciliarmos. Eles irão

suplicar o meu perdão e eu perdoar-lhes-ei. Mas ele aprendeu que não pode

deter-me e manter-me sob prisão. Agora sou rei; ele não pode inverter isso.

Jurou obedecer-me, tal como eu jurei governar. Sou o seu rei. Está feito. E

o país não tem apetite para mais uma guerra entre mais reis rivais. Não

quero uma guerra. Jurei trazer justiça e paz ao país.

Ele retira os últimos ganchos do meu cabelo e esfrega a cara no meu

pescoço.

- Tive muitas saudades vossas - diz ele. - E das meninas. Tive um

momento de fraqueza, ou dois, quando eles me levaram para o castelo e me

meteram numa cela sem janelas. E lamento o que sucedeu ao vosso pai e ao

vosso irmão - ergue a cabeça e olha para a minha mãe. - Lamento mais a

vossa perda do que sou capaz de dizer, Jacquetta - diz ele com franqueza. -

Estes são os destinos da guerra e todos conhecemos os riscos; mas eles

levaram dois homens bons, quando acabaram com o vosso marido e o

vosso filho.

A minha mãe assente com a cabeça.

- E quais irão ser as vossas condições para a reconciliação com o

homem que matou o meu marido e o meu filho? Calculo que também ireis

perdoá-lo?

Eduardo faz uma careta ao ouvir a dureza da sua voz.

- Não irá agradar-vos - avisa-nos a ambas. - Irei fazer do sobrinho de

Warwick Duque de Bedford. Ele é o herdeiro de Warwick; tenho de dar a

Warwick uma posição na nossa família, na família real: tenho de o ligar a

nós.

- Ides dar-lhe o meu antigo título? - pergunta a minha mãe incrédula.

- o título Bedford? O nome do meu primeiro marido? A um traidor?

- Não me interessa se o sobrinho dele tem um ducado - digo muito

depressa. - Foi Warwick quem matou o meu pai, não o rapaz. Não quero

saber do seu sobrinho.

Eduardo assente.

117

- E há mais - diz ele, pouco à vontade. - Irei dar a nossa filha Isabel

em casamento ao jovem Bedford. Ela tornará a aliança firme.

Volto-me para ele.

- Isabel? A minha Isabel?

- A nossa Isabel - corrige-me ele. - Sim.

- Ireis prometê-la em casamento, uma criança que ainda nem tem

quatro anos, à família do homem que assassinou o seu avô?

Page 93: Philippa gregory - a rainha branca

- Sim. Esta tem sido uma guerra entre primos. Terá de ser uma

reconciliação entre primos. E vós, meu amor, não ireis impedir-me. Tenho

de pôr Warwick em paz comigo. Tenho de lhe dar uma grande parte da

riqueza da Inglaterra. Desse modo, estou a dar-lhe, inclusive, uma

oportunidade para que a sua linhagem herde o trono.

- Ele é um traidor e um assassino, e vós pensais em casar a minha

filhinha com o seu sobrinho?

- Penso - responde ele com firmeza.

- Juro que tal nunca acontecerá - afirmo ferozmente, mais: digo-vos.

Prevejo que isso nunca acontecerá.

Ele sorri.

- Vergo-me à vossa presciência superior - diz ele, e faz-me uma

vénia magnífica a mim e à minha mãe. - E só o tempo irá provar se as

vossas previdências são verdadeiras ou falsas. Mas, entretanto, enquanto

sou Rei da Inglaterra e tenho o poder de dar a minha filha em casamento a

quem eu entender, farei sempre o meu melhor para impedir que os vossos

inimigos vos mergulhem, às duas, no rio, amarradas a uma cadeira, como

duas bruxas, ou que vos estrangulem num cruzamento. E digo-vos, uma

vez que sou rei, a única forma de fazer com que vós, e qualquer mulher e o

seu filho, neste reino, estejam tão seguras como deveriam é encontrar um

meio de pôr um fim a este estado de guerra.

118

OUTONO DE 1469

Warwick regressa à corte como um amigo estimado e um mentor

leal. Teremos de ser como uma família que sofre altercações ocasionais,

mas que, não obstante, se ama. Eduardo fá-lo bastante bem. Cumprimento

Warwick com um sorriso tão caloroso como uma fonte gelada a pingar

gelo. Espera-se que me comporte como se este homem não fosse o

assassino do meu pai e do meu irmão, e o carcereiro do meu marido. Faço o

que me mandam: não deixo escapar nem uma palavra da minha raiva, mas

Warwick sabe, sem que seja preciso dizer-lhe, que fez uma inimiga

perigosa para o resto da vida.

Ele sabe que eu não posso dizer nada e a sua pequena vénia, quando

me cumprimenta pela primeira vez, é triunfante.

- Vossa Graça - diz ele suavemente.

Como sempre em relação a ele, sinto-me em desvantagem, como

uma menina. Ele é um homem do mundo e estava a planear o destino do

seu reino quando eu ainda aprendia as minhas boas maneiras com milady

Grey, a mãe do meu marido, e obedecia ao meu primeiro marido. Ele olha

para mim como se eu ainda devesse estar a alimentar as galinhas, em

Page 94: Philippa gregory - a rainha branca

Grafton.

Quero ser gelada, mas receio parecer apenas amuada.

- Bem-vindo de volta à corte - digo relutantemente.

- Sois sempre graciosa - responde ele com um sorriso. - Nascestes

para serdes rainha.

O meu filho Tomás Grey solta uma pequena exclamação de raiva,

furioso, como o rapaz que é, e retira-se da sala. Warwick sorri abertamente

para mim.

119

- Ah, os jovens - diz ele. - Um rapaz promissor.

- Só posso alegrar-me por ele não ter estado com o avô e o tio

adorado em Edgecote Moor - digo, odiando-o.

- Oh, também eu!

Ele consegue fazer-me sentir como uma idiota e como uma mulher

que não pode fazer nada: mas o que eu puder fazer, farei. Na minha caixa

de jóias está um medalhão escuro, de prata negra, baça, e lá dentro,

trancado no escuro, tenho o seu nome, Ricardo Neville, escrito com o meu

sangue no pedaço de papel do canto da última carta do meu pai. Estes são

os meus inimigos. Amaldiçoei-os. Irei vê-los mortos aos meus pés.

120

INVERNO DE 1469-1470

Na hora mais escura da noite mais longa, em pleno solstíicio de

Inverno, eu e a minha mãe descemos até ao rio Tamisa, negro como vidro.

O caminho, desde o jardim do Palácio de Westminster, segue ao longo da

água, e o rio está alto, esta noite, mas muito escuro no meio da escuridão.

Quase não conseguimos vê-lo; mas conseguimos ouvi-lo, marulhando

contra o molhe e chapinhando contra os muros, e conseguimos senti-lo.

uma vasta presença negra, respirando como um enorme animal sinuoso,

elevando-se suavemente, como o mar. Este é o nosso elemento: eu inalo o

cheiro da água fria como alguém que sente o odor da sua terra, após um

longo exílio.

- Tenho de ter um filho - digo à minha mãe.

E ela sorri e diz:

- Eu sei.

No bolso, ela traz amuletos dependurados de três fios e, cuidadosa

como um pescador que coloca um isco num anzol, atira cada um deles para

o rio e dá-me o fio para eu segurar. Ouço um pequeno chape, à medida que

cada um deles cai na água, e recordo-me do anel de ouro que retirei do rio,

Page 95: Philippa gregory - a rainha branca

cinco anos antes, em casa.

- Vós escolheis - diz-me ela- - Vós escolheis qual deles retirais da

água - espalha os três fios na minha mão esquerda e eu seguro-os bem.

A Lua sai de detrás da nuvem. É uma Lua de aviso, gorda e prateada;

desenha uma linha de luz ao longo da água escura, e eu escolho um fio e

seguro-o na minha mão direita.

- Este.

121

Page 96: Philippa gregory - a rainha branca

- Tendes a certeza?

- Sim.

De imediato, ela retira uma tesoura prateada do bolso e corta os

outros dois fios, para que, seja o que for que lá estava preso, seja levado

para as águas escuras.

- O que eram?

- Eram as coisas que nunca acontecerão; são o futuro que nunca

conheceremos. São os filhos que não irão nascer, as oportunidades que não

iremos aproveitar e a sorte que não iremos ter - afirma ela. - Foram embora.

Estão perdidas para vós. Em vez de pensar nelas, vede o que haveis

escolhido.

Inclino-me no muro do palácio para puxar o fio e este saf da água, a

pingar. Na extremidade, está uma colher de prata, uma bela colher de prata

de bebé, e, quando a agarro na minha mão, vejo, sob o brilho do luar, que

tem gravada uma pequena coroa e o nome ”Eduardo”.

Celebramos o Natal em Londres e transformamo-lo numa festa de

reconciliação, como se um banquete fosse transformar Warwick num

amigo. Recordo-me de todas as vezes que o pobre Rei Henrique tentou

juntar os seus inimigos e fazê-los jurar amizade, e sei que outros, na corte,

vêem Warwick e Jorge como convidados de honra e que se riem, tapando a

boca com as mãos.

Eduardo ordena que tudo seja grandioso, e quase dois mil nobres da

Inglaterra se sentam para jantar connosco na véspera do Dia de Reis, sendo

Warwick o principal entre eles. Eduardo e eu usamos as nossas coroas e a

moda mais recente, feita com os tecidos mais ricos. Eu uso apenas branco-

prateado e tecido de ouro, nesta estação de Inverno, e dizem que, de facto,

sou a Rosa Branca de Iorque.

Eduardo e eu oferecemos presentes a mil dos comensais, e favores a

todos eles. Warwick é um convidado muito popular, e eu e ele

cumprimentamo-nos com absoluta cortesia. Quando o meu marido mo

ordena, danço até com o meu cunhado Jorge: de mãos dadas e sorrindo

para o seu belo rosto pueril. Mais uma vez, reparo como ele é parecido com

o meu marido

122

Eduardo: uma versão mais delicada e mais pequena da beleza loura

de Eduardo. Mais uma vez, fico espantada pela forma como as pessoas

gostam dele, assim que o vêem. Ele tem todo o encanto natural dos Iorque

e nenhuma da honra de Eduardo. Mas não me esqueço e não perdoo.

Cumprimento a sua nova noiva Isabel, filha de Warwick, com

gentileza. Dou-lhe as boas-vindas à minha corte e desejo-lhe muita

felicidade. Ela é uma pobre, magra e pálida rapariga, com um ar bastante

Page 97: Philippa gregory - a rainha branca

aterrado, pelo papel que tem de representar no esquema montado pelo pai.

Agora, por casamento, entrou na mais traiçoeira e perigosa família da

Inglaterra, na corte do rei que o marido traiu. Necessita de alguma simpatia

e eu sou fraternal e amorosa com ela. Um estranho da corte, que nos

visitasse nesta época tão hospitaleira, pensaria que a adoro como a uma

parente. Pensaria que eu não perdi o meu pai, um irmão. Pensaria que eu

não tenho memória.

Não me esqueço. E na minha caixa de jóias está um medalhão

escuro, e dentro do medalhão escuro está o canto de uma página da última

carta do meu pai, e nesse pedaço de papel, escritos com o meu próprio

sangue, estão os nomes de Ricardo Neville, Conde de Warwick, e Jorge,

Duque de Clarence. Não me esqueço, e um dia todos o irão saber.

Warwick continua enigmático, o homem mais importante do reino, a

seguir ao rei. Aceita as honras e os favores que lhe são apresentados com

uma dignidade gelada, como um homem a quem tudo é devido. O seu

cúmplice, Jorge, é como um cachorrinho de caça, saltando e fazendo festas.

Isabel, a mulher de Jorge, senta-se junto das minhas damas de companhia,

entre as minhas irmãs e a minha cunhada, Isabel, e eu nãoposso deixar de

sorrir, quando a vejo voltar a cabeça ao ver o marido dançar, ou o modo

como estremece quando ele grita brindes em honra do rei. Jorge, tão louro e

com um rosto redondo, sempre foi um rapaz adorado dos Iorque e, neste

banquete de Natal, comporta-se com o irmão mais velho não apenas como

se tivesse sido perdoado, mas também como se fosse sê-lo sempre, por

tudo. É o menino mimado da família - acredita realmente que não pode

fazer nada de mal.

O irmão mais novo dos Iorque, Ricardo, Duque de Gloucester,

agora com dezassete anos, um rapaz bonito e

123

franzino, pode ser o bebé da família, mas nunca foi o favorito. De

todos os rapazes da Casa de Iorque, ele é o único que se parece com o pai, é

moreno e de estrutura pequena, parece uma criança que foi trocada por

outra, comparado com a liiu de ossos largos e beleza dos Iorque. É um

jovem pio, sensatC muito à vontade na sua grande casa, no Norte da

Inglaterrsj onde leva uma vida de dever e serviço austero para com o povo.

Considera a nossa corte cintilante um embaraço, cot se estivéssemos a

exibir-nos como pagàos num banquete cristão. Olha para mim, juro-o,

como se eu fosse um dragão ambiciosamente esparramado em cima do

tesouro, não uma sereia em águas prateadas. Calculo que me olha

simultaneamente com desejo e medo. É uma criança que teme uma mulher

que nunca conseguiu compreender. Ao seu lado, os meus filhos Grey,

apenas um pouco mais jovens, são mundanos e alegres. Estão sempre a

Page 98: Philippa gregory - a rainha branca

convidá-lo para ir caçar com eles, para irem tomar uma bebida nas

tabernas, para se divertirem ruidosamente pelas ruas, mascarados, e ele,

nervosamente, recusa.

As notícias sobre o nosso banquete de Natal chegam a toda a

Cristandade. Dizem que a nova corte da Inglaterra é a mais bonita,

elegante, rebuscada e graciosa da Europa. Eduardo está determinado a que

a corte inglesa dos Iorque se torne tão famosa como a da Borgonha, pela

moda, pela beleza e pela cultura. Ele adora boa música, e temos um coro a

cantar, ou músicos a tocarem, em todas as refeições; eu e as minhas damas

aprendemos as danças da corte, e compomos as nossas. O meu irmão

António é o mais importante guia e conselheiro em tudo isto. Já esteve na

Itália e fala dos novos conhecimentos • i novas artes, da beleza das antigas

cidades da Grécia e de Rr e de como as suas artes e os seus estudos podem

ser reni dos. Fala com Eduardo para que ele traga pintores, poetas músicos

da Itália, sobre como utilizar a riqueza da coroa p fundar escolas e

universidades. Fala de novos conhecimentos da nova ciência, da aritmética

e da astronomia, e cie tudoncA^ e maravilhoso. Fala da aritmética que

começa pelo núnv zero, e tenta explicar como isso transforma tudo.

Menciona U’11-1 ciência que consegue calcular distâncias que não podem

medidas: afirma que devia ser possível saber a distância au Jsabel, a sua

mulher, observa-o em silêncio, e diz que ek 1

um mago, um homem sábio. Somos uma corte de beleza, grai i<

isidade e conhecimento, e eu e Eduardo encomendamos o melhor de

tudo.

l ico surpreendida com o que custa gerir uma corte, o preço de

ioda esta beleza, até as contas dos alimentos, dos pedidos permanentes,

da parte de todos os cortesãos, para uma audiência, uma posição, uma

parcela de terra ou um favor, um lugar onde possam lançar impostos

ou ajuda para reivindicar uma herança.

- Isto é o que é ser rei - diz-me Eduardo, enquanto assina as

últimas petições do dia. - Como Rei da Inglaterra, sou dono de tudo.

lodos os Duques, Condes e Barões detêm as suas terras como um favor

meu; todos os cavaleiros e escudeiros abaixo deles têm um riacho de

um rio. Todos os pequenos agricultores, rendeiros, enfiteutas e

camponeses abaixo deles dependem do meu favor. Tenho de distribuir

riqueza e poder, de forma a manter os rios a correrem. E, se correr

mal, ao mínimo sinal de que vai correr mal, haverá alguém a dizer que

desejaria que Henrique ocupasse novamente o trono, que antes tudo

era melhor. Ou que pensa que o seu filho Eduardo ou Jorge poderiam

fazer um trabalho mais generoso. Ora, seguramente, para Deus, existe

outro pretendente ao trono noutro local qualquer... o filho de

Page 99: Philippa gregory - a rainha branca

Margarida de Beaufort, Henrique, vamos pegar no rapaz da Casa de

Lencastre, só para variar... que poderia acelerar o fluxo. Para manter

o meu poder, tenho de o distribuir em jogadas cuidadosamente

espaçadas e seleccionadas. Tenho de agradar a toda a gente. Mas não

demasiado.

São camponeses desbravadores de dinheiro - digo irritada. - E a

sua lealdade anda a par do seu interesse. Não pensam em mais nada a

não ser os seus desejos. São piores do que servos.

Ele sorri-me.

- E são mesmo. Cada um deles. E todos eles pretendem ter a sua

pequena propriedade e uma casa, tal como eu quero o trono, e tanto

como vós queríeis a herdade de Sheen, e cargos para todos os vossos

parentes. Todos ansiamos por riqueza e terras, e eu sou o proprietário

de tudo, e tenho de distribuir cautelosamente.

125

PRIMAVERA DE 1470

Quando o tempo fica mais quente, as manhãs começam a tornar-se

mais claras e os pássaros começam a cantar nos jardins do Palácio de

Westminster, os informadores de Eduardo trazem-lhe relatórios de

Lincolnshire, acerca de mais uma sublevação a favor de Henrique, o rei,

como se ele já não tivesse sido esquecido por toda a gente no mundo e não

estivesse a viver tranquilamente na Torre de Londres, mais um anacoreta

do que um prisioneiro.

- Vou ter de partir - diz-me Eduardo, com a carta na mão. - Se este

líder, seja ele quem for, for um precursor de Margarida de Anjou, tenho de

o derrotar, antes de ela desembarcar o seu exército para o apoiar. Ao que

parece, ela planeia usá-lo para testar o apoio da sua causa, para fazer com

que ele corra o risco de reunir tropas, e, quando ela vir que ele conseguiu

reunir um exército inglês para ela, desembarcará um francês e teremos de

enfrentar os dois.

- Ireis estar em segurança? - pergunto. - Contra esta pessoa que nem

sequer tem coragem de ter um nome próprio?

- Como sempre - responde ele com firmeza. - Masnão vou deixar que

o exército parta outra vez sem mim. Tenho de estar lá. Tenho de liderar.

- E onde está o vosso amigo leal, Warwick? - pergunto acidamente. -

E o vosso irmão de confiança, Jorge? Andam a recrutar pessoas por vós?

Estão a vir depressa para estar do vosso lado?

Ele sorri do meu tom.

- Ah, estais enganada, Rainhazinha da desconfiança. Tenho

Page 100: Philippa gregory - a rainha branca

126

uma carta de Warwick a oferecer-se para reunir homens para

marchar comigo e Jorge diz que me acompanhará.

- Então, certificai-vos de que os observais na batalha - digo, sem me

deixar convencer. - Não seriam os primeiros homens a levar soldados para

o campo de batalha e a mudar de facção à última hora. Quando o inimigo

estiver diante de vós, olhai para trás, para verdes o que os vossos amigos

leais e verdadeiros estão a fazer à vossa retaguarda.

- Eles prometeram-me lealdade - acalma-me ele. - A sério, minha

querida. Confiai em mim. Eu consigo vencer batalhas.

- Eu sei que conseguis, eu sei que sim - digo. - Mas é tão duro ver-

vos partir para a guerra. Quando terminará? Quando é que eles desistirão de

reunir exércitos por uma causa que está perdida?

- Em breve - responde ele. - Verão que estamos unidos e que somos

fortes. Warwick vai atrair o Norte para o nosso lado e Jorge demonstrará

ser um irmão leal. Ricardo está comigo, como sempre. Regressarei a casa

assim que este homem seja derrotado. Voltarei para casa cedo e dançarei

convosco, na manhã do Primeiro de Maio, e vós sorrireis.

- Eduardo, sabeis, só desta vez, desta única vez, creio que nãosuporto

ver-vos partir. Não pode ser Ricardo a comandar o exército? Com

Hastings? Não podeis ficar comigo? Desta vez, só desta vez.

Ele pega-me na mão e leva-a aos lábios. Não se deixa afectar pela

minha ansiedade, antes fica divertido com ela. Está a sorrir.

- Oh. porquê? Porquê desta vez? Porque é que esta vez é assim tão

importante? Tendes algo para me dizer?

Não consigo resistir-lhe. Retribuo-lhe o sorriso.

- sim, tenho algo para vos contar. Mas tenho estado a guardar-me.

- Eu sei. Eu sei. Pensastes que eu não sabia? Então, dizei-m e, que

gredo é esse acerca do qual eu não saberei nada?

- Deveria trazer-vos de volta a casa em segurança para junto de mim

- digo - Deveria trazer-vos para casa rapidamente, para junto cie mim, e

não fazer com que saísseis com toda a vossa pompa.

Ele aguarda, sorrindo. Tem estado à espera de que eu lhe diga, como

eu tenho estado a deliciar-me com o segredo.

127

- Dizei-me - pede ele. - Já demorou muito tempo.

- Estou outra vez à espera de bebé - digo. - E, desta vez, sei que é um

rapaz.

Ele puxa-me para junto de si e abraça-me carinhosamente.

- Eu sabia - diz ele. - Sabia que estáveis grávida. Tinha um

Page 101: Philippa gregory - a rainha branca

pressentimento. E como podeis saber que é um rapaz, minha feiticeira?

Eu sorrio para ele, segura nos mistérios femininos.

- Ah, não precisais de saber como o sei - digo. - Mas podeis saber

que tenho a certeza. Podeis estar certo disso. Sabei-o. Vamos ter um rapaz.

- O meu filho, Príncipe Eduardo - afirma ele.

Rio-me, pensando na colher de prata que retirei do rio prateado, na

noite do solstício de Inverno.

- Como sabeis que o seu nome vai ser Eduardo?

- É claro que sei. Estou decidido a pôr-lhe esse nome, há vários anos.

- O vosso filho, o Príncipe Eduardo - repito. - Então, certificai-vos de

que regressais a casa em segurança, a tempo do seu nascimento.

- Sabeis quando será?

- No Outono.

- Voltarei para casa em segurança para vos trazer pêssegos e

bacalhau salgado. O que era que desejáveis tanto, quando estáveis à espera

de Cecília?

- Salicórnia - rio-me. - É engraçado que vos recordeis! Nunca era

suficiente. Certificai-vos de que vindes para me trazerdes salicórnia e

qualquer outra coisa de que eu sinta desejo. Este é um rapaz, é um príncipe;

deve ter tudo o que desejar. Irá nascer com uma colher de prata na boca.

- Regressarei a casa para junto de vós. E vós nãovos deveis

preocupar. Não quero que ele nasça com a testa franzida.

- Então, prestai atenção a Warwick e ao vosso irmão. Não confio

neles.

- Prometeis descansar e estardes feliz e que fareis com que ele cresça

forte no vosso ventre?

- Prometei voltar em segurança e torná-lo forte na sua herança. -

contraponho.

- Está prometido.

128

Ele estava enganado. Valha-me Deus, Eduardo estava tão enganado.

Não, graças a Deus, em relação a vencer a batalha: porque esta foi a batalha

que apelidaram de Losecoat Field, em que os idiotas descalços que

combatiam pelo rei sem juízo estavam com tanta pressa para fugir que

deixaram cair as armas e até os casacos, para escapar à carga liderada pelo

meu marido, que estava a abrir caminho entre eles, para cumrir a promessa

que me tinha feito de voltar a casa a tempo e me trazer pêssegos e

salicórnia.

Não. ele estava enganado acerca da lealdade de Warwick e de Jorge,

o irmão, que, afinal, tinham planeado e pago a sublevação, e que, desta vez,

decidiram certificar-se da derrota de Eduardo. Iam matar o meu querido

Page 102: Philippa gregory - a rainha branca

Eduardo e colocar Jorge no trono. O seu próprio irmão e Warwick, que

tinha sido o seu melhor amigo, tinham decidido juntos que a única maneira

de derrotar Eduardo era apunhalá-los pelas costas, no campo de batalha, e

também o teriam feito, se não fosse o facto de ele cavalgar tão depressa, ao

atacar, que nenhum homem conseguiu apanhá-lo.

Antes sequer de a batalha ter tido início, Lorde Ricardo Welles, o

líder insignificante, pusera-se de joelhos diante de Eduardo, confessara o

plano, e mostrara as ordens de Warwick e o dinheiro de Jorge. Pagaram-lhe

para liderar uma sublevação em nome do Rei Henrique, mas, na verdade,

era apenas um simulacro para atrair Eduardo para a batalha e para o matar

aí. Warwick aprendera bem a sua lição. Aprendera que não é possível

prender um homem como o meu Eduardo. Ele tem de ser morto para ser

derrotado. Jorge, o seu próprio irmão, ultrapassara o seu afecto fraternal.

Estava pronto a rasgar a garganta do irmão, no campo de batalha, e, a

troco do seu sangue, chegar à coroa. Os dois haviam subornado e dado

ordens ao pobre Welles no sentido de que travasse uma batalha que

colocasse Eduardo em perigo, e depois descobriram, mais uma vez. que

Eduardo era demasiado para eles. Quando Eduardo viu as provas contra

eles, chamou-os como parentes, o amigo que havia sido como um irmão

mais velho para ele, e o jovem que era, de facto, seu irmão; e, quando eles

não

129

apareceram, soube o que pensar deles, por fim, e convocou-os, como

traidores, para lhe responderem: mas eles há muito que tinham fugido.

- Hei-de vê-los mortos - digo à minha mãe enquanto nos sentamos

diante de uma janela aberta, nos meus aposentos privados do Palácio de

Westminster, fiando lã e fio de ouro para fazer fio para uma capa

sumptuosa para o bebé. Será da mais pura lã de cordeiro e de ouro

inestimável, uma capa adequada a um principezinho, o mais importante

príncipe da Cristandade.

- Hei-de ver os dois mortos, juro-o, seja o que for que disserdes.

Ela aponta com a cabeça para a roca que tem na mão e para a lã que

eu estou a cardar.

- Não desejeis o mal sobre esta pequena capa - diz ela.

Interrompo a roda e pouso a lã ao lado.

- Aí tendes - digo. - O trabalho pode esperar, mas o desejar mal não.

- Sabíeis que Eduardo prometeu um salvo-conduto a Lorde Ricardo

Welles se ele confessasse a sua traição e se revelasse o plano; mas, quando

ele o fez, quebrou a palavra e matou-o?

Abano a cabeça. O rosto da minha mãe é grave.

- Agora, a família Beaufort está de luto por causa do seu parente

Page 103: Philippa gregory - a rainha branca

Welles, e Eduardo deu uma nova causa aos inimigos. Também quebrou a

sua palavra. Ninguém voltará a confiar nele. ninguém se atreverá a render-

se-lhe. Demonstrou ser um homem em quem não se pode confiar. Tão

cruel como Warwick

Encolho os ombros..

- Esses são os destinos da guerra. Margarida de Beaufort conhece-os

tão bem como eu. E, de qualquer forma, teria ficado infeliz, visto que é

herdeira da Casa de Lencastre e nós convocámos o marido dela, Henrique

Stafford, para marchar por nós - dou uma sonora gargalhada. - Pobre

homem, apanhado entre ela e a nossa convocatória.

A minha mãe não consegue esconder o sorriso.

- Não há dúvidas de que ela esteve o tempo todo ajoelhada - diz ela

maliciosamente. - Para uma mulher que se gaba que Deus a ouve, recebe

muito poucos benefícios Para o demonstrar.

130

- De qualquer modo, Welles não importa - digo. - Nem vivo nem

morto. O que importa é que Warwick e Jorge devem estar a dirigir-se para

a corte da França, a falar mal de nós, e com esperanças de conseguirem

reunir um exército. Temos um novo inimigo, e este está na nossa própria

casa, o nosso próprio herdeiro. Que família são os Iorque!

- Onde estão eles agora? - pergunta a minha mãe.

- No mar, a dirigir-se para Calais, segundo António. A Isabel já tem

uma barriga grande e está a bordo do navio com eles, sem ninguém que

cuide dela, além da mãe, a Condessa de Warwick. Devem estar com

esperanças de entrar em Calais e de reunir um exército. Warwick é adorado

lá. E, se conseguirem chegar a Calais, não teremos segurança nenhuma,

com eles à espera, mesmo do outro lado do canal, ameaçando os nossos

navios, a meio dia de viagem de Londres. Eles não podem entrar em Calais;

temos de o impedir. Eduardo enviou a frota para o mar, mas os nossos

barcos nunca conseguirão alcançá-los a tempo.

Ponho-me de pé e inclino-me para fora da janela aberta, para o sol.

Está um dia quente. O rio Tamisa, lá em baixo, reluz como uma fonte; está

calmo. Olho para sudoeste. Há uma linha de nuvens escuras no horizonte,

como se pudesse haver mau tempo no mar. Junto os meus lábios e dou um

breve assobio.

Atrás de mim, ouço a roca da minha mãe ser pousada e depois ouço

igualmente o som débil do seu assobio. Mantenho os olhos fixos na linha

de nuvens e deixo que a minha respiração silve como o vento de uma

tempestade. Ela vem pôr-se atrás de mim, com o braço em volta da minha

cintura larga. Juntas, assobiamos suavemente para o ar da Primavera, com

convocando uma tempestade.

Page 104: Philippa gregory - a rainha branca

Lenta, mas poderosamente, as nuvens escuras amontoam-se, uma

sobre a outra, até se formar uma acumulação enorme de ameaçadoras

nuvens negras, para sul, lá muito longe, sobre o mar. O ar torna-se mais

fresco. Estremeço com a súbita friagem, e então viramos as costas ao dia

mais frio e escuro e fechamos as janelas, ao chegarem as primeiras bátegas

de chuva.

- Parece que há tempestade no mar - comento.

131

Uma semana mais tarde, a minha mãe vem ter comigo com uma

carta na mão.

- Tenho notícias da minha prima da Borgonha. Ela diz que Jorge e

Warwick foram arrastados para o largo da costa de França e que quase

naufragaram nos mares tempestuosos, frente a Calais. Suplicaram ao forte

que os deixasse entrar, por causa de Isabel, mas o castelo recusou-se a

autorizá-los a entrar e ergueram a corrente, de uma ponta à outra da entrada

do porto. Levantou-se um vento, vindo do nada, e os mares quase os

empurraram contra as muralhas. O forte não os deixou entrar; não podiam

descarregar o barco em alto mar. A pobre da Isabel entrou em trabalho de

parto, no meio da tempestade. Andaram à deriva durante algumas horas e o

seu bebé morreu.

Benzo-me.

- Deus abençoe o pobrezinho - digo. - Ninguém lhes teria desejado

tal sorte.

- Ninguém desejou - afirma a minha mãe vigorosamente. - Mas, se

Isabel não tivesse embarcado no navio com traidores estaria em segurança,

na Inglaterra, com parteiras amigas cuidar dela.

- Pobre rapariga - digo, com a mão sobre o meu ventre enorme. -

Pobre rapariga. Tem sido muito pouco feliz no seu casamento grandioso.

Recordais-vos dela na corte, no Natal?

- E há notícias piores - prossegue a minha mãe. - Warwick e Jorge

foram ter com o seu grande amigo, o Rei Luís da França, e agora os dois

encontraram-se com Margarida de Anjou, em Angers, e estão a tecer mais

uma conspiração, tal como nós temos estado aqui.

- Warwick continua a conspirar contra nós?

A minha mãe faz uma careta.

- Deve ser mesmo um homem determinado, ver o seu neto morrer à

nascença, enquanto a família se encontra em fuga, e escapar directamente

de um quase naufrágio para renegar as suas juras de lealdade. Mas nada o

detém. Seria de pensar que uma tempestade surgida do nada o fizesse

pensar, mas nada o faz parar para pensar. Agora está a cortejar Margarida

Anjou, contra quem, em tempos, lutou. Teve de passar meia hora de

Page 105: Philippa gregory - a rainha branca

joelhos a suplicar-lhe perdão, a sua maior inimiga. Ela recusou-se a recebê-

lo se ele não se prestasse a esse acto de

132

contrição. Deus a abençoe, ela sempre se considerou uma pessoa

muito importante.

- O que credes que ele está a planear?

- É o rei francês quem está a planear a dança, agora. Warwick

considera-se um fazedor de reis, mas agora é uma marioneta. Chamam a

Luís da França aranha, e eu devo dizer que ele tece uma teia ainda mais

fina do que a nossa. Pretende destronar o vosso marido e diminuir o nosso

país. Está a usar Warwick e Margarida de Anjou para o fazer. O filho de

Margarida, o apelidado Príncipe de Gales, o Príncipe Eduardo de

Lencastre, vai casar com a filha mais nova de Warwick, Ana, para unir os

pais mentirosos de ambos num pacto que não podem desonrar. A seguir,

imagino que todos virão para a Inglaterra para libertar Henrique da Torre.

- Aquela coisinha da Ana Neville? - pergunto, imediatamente

divertida. - Foram entregá-la àquele monstro do Eduardo, para se

certificarem de que o pai não actua com deslealdade?

- Vão entregar - confirma a minha mãe. - Ela ainda só tem catorze

anos e eles vão casá-la com um rapaz a quem foi permitido que escolhesse

como pretendia executar os seus inimigos quando tinha apenas onze anos.

Foi educado para ser um demónio. Ana Neville deve estar a perguntar-se se

está a ascender para ser rainha ou a cair entre os danados.

- Mas isso muda tudo para Jorge - digo, pensando em voz alta. -

Uma coisa era combater contra o irmão, o rei, quando esperava matá-lo e

suceder-lhe; e agora? Porque é que ele lutaria contra Eduardo se não tem

nada a lucrar com isso? Porque combateria contra o irmão para colocar o

rei da Casa de Lencastre e o Príncipe da Casa de Lencastre no trono?

suponho que ele não pensou que algo desse tipo fosse acontecer, quando

zarpou com uma esposa prestes a dar à luz e um sogro determinado em

conquistar a coroa. Mas, agora, perdeu o filho e herdeiro, e o sogro tem

outra filha que poderia ser rainha. As perspectivas de Jorge mudaram

muito. Devia ter o bom senso de o perceber. Mas credes que o tem?

Alguém deveria aconselhá-lo - os nossos olhos encontram-se. Nunca

tenho de explicar nada à minha mãe: entendemo-nos os muito bem.

133

- Ides visitar a mãe do rei antes de jantar? - pergunta-me a minha

mãe.

Retiro o pé do pedal da roda de fiar e paro-a com a mão.

Page 106: Philippa gregory - a rainha branca

- Vamos falar com ela agora - sugiro.

Ela está sentada com as suas damas de companhia, a bordar uma

toalha de altar. Uma delas está a ler a Bíblia enquanto elas trabalham. Ela é

famosa pela sua devoção; a sua suspeita de que não somos tão santas

quanto ela, ou pior, que talvez sejamos pagãs, ou o pior de tudo, de que

talvez sejamos bruxas, é apenas um dos muitos receios que tem em relação

a mim. Os anos não melhoraram a ideia que tem de mim. Não queria que

eu casasse com o filho e, ainda age apesar de eu ter dado provas da minha

fertilidade e de ser uma boa esposa para ele, ela odeia-me. Na verdade, tem

sido tão descortês que Eduardo lhe deu Fotheringhay para a manter longe

da corte. Quanto a mim, não me impressiono com a sua santidade: se é uma

mulher assim tão bondosa, deveria ter ensinado melhor Jorge. Se Deus a

ouvisse, não teria perdido o seu filho Edmundo nem o seu marido. Faço-lhe

uma reverência quando entramos, e ela ergue-se para me fazer uma vénia.

Faz sinal às damas de companhia para que peguem no trabalho e se retirem

para um dos lados. Sabe que não estou a visitá-la para saber como vai a sua

saúde. Não há nenhum grande amor perdido entre nós e nunca haverá.

- Vossa Graça - diz, num tom regular. - Sinto-me honrada.

- Milady Mãe - digo eu, sorrindo. - O prazer é todo meu.

Sentamo-nos ao mesmo tempo para evitar a questão das prioridades,

e ela espera que eu seja a primeira a falar.

- Estou preocupada convosco - digo docemente. - Estou certa de que

estais preocupada com Jorge, tão longe de casa, declarado traidor, e

completamente envolvido com o traidor Warwick, afastado do irmão e da

família. Perdeu o primeiro filho, tem a vida num perigo tão grande.

Ela pestaneja. Não estava à espera de que eu manifestasse a minha

preocupação com o seu favorito, Jorge.

134

- É claro que desejo que ele se reconcilie connosco - diz,

cautelosamente. - É sempre triste quando os irmãos se disputam.

- E agora constou-me que Jorge vai abandonar a sua própria família -

digo queixosamente. - Um vira-casaca, não só contra o irmão, mas contra

vós e a sua própria casa.

Ela olha para a minha mãe, à espera de uma explicação.

- Ele aliou-se a Margarida de Anjou - diz a minha mãe, directa. - O

vosso filho, um Iorquista, vai combater pelo rei da Casa de Lencastre. É

uma vergonha.

- De certeza que vai ser derrotado: Eduardo vence sempre - afirmo. -

E depois terá de ser executado como traidor. Como pode Eduardo poupá-

lo, mesmo por amor fraternal, se Jorge adoptou as cores de Lencastre?

Pensai nele, a morrer com uma rosa vermelha no colarinho! Que vergonha

Page 107: Philippa gregory - a rainha branca

para vós! O que teria dito o seu pai?

Ela está verdadeiramente horrorizada.

- Ele nunca se aliaria a Margarida de Anjou - diz ela. - A maior

inimiga do pai?

- Margarida de Anjou espetou a cabeça do pai de Jorge numa estaca,

nas muralhas de Iorque, e agora ele está a servi-la - digo eu

ponderadamente. - Como é que algum de nós poderia perdoá-lo?

- Não é possível - replica ela. - Deve estar tentado a aliar-se a

Warwick. É difícil para ele ficar sempre em segundo lugar, atrás de

Eduardo, e... - interrompe-se, mas todos sabemos que Jorge tem ciúmes de

toda a gente: do irmão Ricardo, de Hastings, de mim, e de toda a minha

família. Sabemos que ela lhe encheu a cabeça de ideias loucas de que

Eduardo é um filho bastardo e que, portanto, ele é o herdeiro. - E, além

disso, de que...

- De que lhe servo? - acrescento suavemente. - Compreendo o que

pensais dele. Na verdade, ele nunca pensa em nada, excepto no que pode

lucrar, nunca em lealdade, nem na sua palavra, nem na sua honra. Ele é

completamente por si e nada pela Casa de Iorque.

Ela cora ao ouvir aquelas palavras, mas não pode negar que Jorge

tem sido o menino mimado mais egoísta que alguma vez virou a casaca.

135

- Quando se aliou a Warwick, julgou que ele iria fazer dele rei - digo

sem cerimónias. - Depois descobriram que ninguém queria ter Jorge como

rei se pudessem ter Eduardo. Apena duas pessoas neste país pensam que

Jorge é melhor do que o meu marido.

Ela aguarda.

- O próprio Jorge e vós - digo com precisão. - Então, ele fugiu com

Warwick, porque não se atrevia a enfrentar Eduardo depois de o ter voltado

a trair. E agora descobre que o plano de Warwick se alterou. Warwick não

irá colocar Jorge no trono. Irá casar Ana, a sua filha, com Eduardo de

Lencastre; irá pôr no trono o jovem Eduardo de Lencastre e assim tornar-se

sogro do Rei da Inglaterra. Jorge e Isabel já não são a sua escolha para

serem Rei e Rainha da Inglaterra. Agora, são Eduardo de Lencastre e Ana.

O melhor que Jorge pode esperar é ser cunhado do usurpador do Rei da

Inglaterra da Casa de Lencastre, em vez de irmão do legítimo rei da Casa

de Iorque.

A mãe de Jorge concorda com a cabeça.

- O que não vai representar um grande benefício para ele - comento.

- Para tanto trabalho e um perigo tão grande.

Deixo-a pensar por um momento no assunto.

- Agora, se ele virar a casaca mais uma vez e voltar para junto do

Page 108: Philippa gregory - a rainha branca

irmão, penitente e verdadeiramente leal, Eduardo recebê-lo-á de volta -

digo. - Eduardo perdoá-lo-ia.

- Perdoaria?

Assinto.

- Posso prometê-lo - não acrescento que nunca lhe perdoarei, e que

ele e Warwick são homens mortos para mim, desde que executaram o meu

pai e o meu irmão, após a batalha de Edgecote Moor, e que, daí em diante,

serão sempre homens mortos, independentemente do que fizerem. Os seus

nomes estão no meu medalhão negro, na minha caixa de jóias, e nunca

voltarão a ver a luz do dia, até eles mesmos estarem na escuridão eterna.

- Seria tão bom se Jorge, um homem jovem sem bons conselheiros,

pudesse saber de alguém, em privado, em segredo, que poderia voltar em

segurança para junto do irmão - observa a minha mãe como que por acaso,

olhando pela

136

janela, para as nuvens que se deslocam velozmente. - Às vezes, um

jovem precisa de receber bons conselhos. Por vezes, precisa de que lhe

digam que tomou um rumo errado, mas que pode regressar à estrada

principal. Um homem jovem como Jorge não devia estar a lutar pela Casa

de Lencastre, não devia morrer com uma rosa vermelha no colarinho. Um

homem jovem como Jorge devia estar junto da família, com os irmãos que

o adoram - faz uma pausa para permitir que a mãe dele assimile o que

acabou de dizer. Foi realmente muito bem feito.

«Se alguém pudesse dizer-lhe que seria bem-vindo em casa, então,

teríeis o vosso filho de volta, os irmãos estariam reunidos. Iorque

combateria por Iorque novamente, e Jorge não perderia nada. Seria irmão

do Rei da Inglaterra e seria Duque de Clarence como sempre foi. Podemos

assumir que Eduardo lhe perdoaria. É aí que está o seu futuro. Desta outra

forma ele é... o que poderíamos chamar-lhe? - faz uma pausa para se

perguntar o que se poderia chamar ao filho favorito de Cecília, depois

encontra as palavras: - Um grande cabeça-no-ar.”

A mãe do rei ergue-se; a minha mãe também se levanta. Eu

permaneço sentada, a sorrir para ela, deixando-a estar de pé à minha frente.

- Gosto sempre tanto de falar com as duas - diz ela, com a voz a

tremer de fúria.

Então, ponho-me de pé, com a mão sobre o meu ventre protuberante,

e espero que ela me faça uma reverência.

- Oh, eu também. Um bom dia, Milady Mãe - digo num tom

agradável.

E Foi isso que aconteceu, tão fácil como um feitiço. Sem que mais

nenhuma palavra seja dita, sem que Eduardo sequer tome conhecimento,

Page 109: Philippa gregory - a rainha branca

uma das damas da corte da mãe do rei decide ir visitar a sua grande amiga,

a mulher de Jorge, a pobre Isabel Neville. A dama, completamente tapada

com véus, apanha um barco, dirige-se a Angers, encontra Isabel, não perde

tempo com os seus choros no quarto, procura Jorge, fala-lhe do amor terno

e das preocupações da mãe com ele. Jorge, em troca, fala-lhe do seu

desconforto cada vez maior em relação aos aliados a quem não só prestou

juramento, mas com quem casou.

137

Deus, pensa ele, não abençoou a sua união, uma vez que o bebé

morreu durante a tempestade e nada lhe corre bem desde que casou com

Isabel. Seguramente, nada tão desagradável como aquilo deveria acontecer

a Jorge? Agora, está na companhia dos inimigos da sua família e - o que é

muito pior para ele - em segundo lugar, outra vez. O vira-casaca do Jorge

afirma que virá para a Inglaterra com o exército invasor de Lencastre, mas,

assim que puser os pés no reino do irmão adorado, dir-nos-á onde

desembarcaram e qual é a força de guerra deles. Aparentará estar do lado

deles, enquanto cunhado do Príncipe de Gales de Lencastre, até a batalha

começar a ser travada, e depois atacá-los-á pelas costas, abrirá caminho,

lutando, até junto dos irmãos. Irá ser um filho da Casa de Iorque, um dos

três filhos de Iorque, novamente. Podemos confiar nele. Destruirá os

amigos presentes e a família da sua própria mulher. É leal a Iorque. No

fundo do seu coração, sempre foi leal a Iorque.

O meu marido traz-me estas notícias encorajadoras, sem saber que

isto é resultado das acções das mulheres, a tecerem as suas teias em volta

dos homens. Repouso no meu sofá, com uma mão sobre o ventre, sentindo

o bebé mexer-se.

- Não é maravilhoso? - pergunta-me ele, verdadeiramente encantado.

- Jorge vai voltar para junto de nós!

- Sei que amais Jorge - digo. - Mas até vós tendes de admitir que ele

é um ser rastejante, que não é leal a ninguém.

O meu marido de coração generoso sorri.

- Oh, é o Jorge - diz gentilmente. - Não podeis ser dema siado dura

com ele. Sempre foi o preferido de toda a gente: sempre procurou o seu

próprio prazer.

Consigo esboçar um sorriso para lhe retribuir.

- Não sou demasiado dura com ele - afirmo. - Fico contente por ele

ter voltado para vós - e, no meu íntimo, digo para mim mesma: Mas ele é

um homem morto.

138

Page 110: Philippa gregory - a rainha branca

VERÃO DE 1470

Estou a correr atrás do meu marido, com a mão sobre o meu ventre

enorme, pelos longos corredores serpenteantes do Palácio de Whitehall. Os

criados correm atrás de nós transportando objectos.

- Não podeis ir. Jurastes-me que estaríeis comigo para o nascimento

do nosso bebé. Vai ser um rapaz, o vosso filho. Tendes de estar comigo.

Ele volta-se, com uma expressão grave.

- Querida, o nosso filho não terá um reino se eu não for. O cunhado

de Warwick, Henrique Fitzhugh, organizou uma revolta em

Northumberland. Não tenho dúvidas de que Warwick irá atacar no Norte e

que depois Margarida irá desembarcar o seu exército no Sul. Virá

directamente para Londres, para libertar o marido da Torre. Eu tenho de ir,

e tenho de partir depressa. Tenho de lidar com um e depois mudar de

sentido e marchar em direcção a sul para apanhar a outra, antes de ela

vir aqui para vos atacar. Nem me atrevo a parar pelo prazer de discutir

convosco.

- E eu e as meninas?

Ele murmura ordens para o escrivão, que corre atrás dele com uma

secretária, enquanto ele avança em direcção aos estábulos. Detém-se para

gritar ordens aos estribeiros. Os soldados correm para os armeiros, para

retirar as suas armas e couraças; os sargentos berram-lhes para que formem

fileiras. As grandes carroças estão a ser novamente carregadas com

tendas, armas, alimentos, equipamentos. O grande exército de Iorque está

outra vez em marcha.

139

- Tendes de ir para a Torre - ele anda de um lado para o outro

para me dar ordens. - Tenho de saber que estais em segurança. Todos vós, a

vossa mãe também, ide para os aposentos reais da Torre. Preparai-vos para

ter o bebé lá. Sabeis que virei o mais depressa que puder.

- Quando o inimigo está em Northumberland? Porque é que eu

tenho de ir para a Torre, quando vós ides partir para combater o inimigo

que está a centenas de quilómetros de distância?

- Porque só o diabo sabe ao certo onde Warwick e Margarida

irão desembarcar - diz ele brevemente. - Calculo que vão dividir-se em

duas batalhas e desembarcar um exército para apoiar a sublevação no Norte

e o outro em Kent. Mas não sei. Não recebi notícias de Jorge. Não sei o que

estão a planear. Suponde que sobem o Tamisa, enquanto eu estou a

combater em Northumberland? Sede o meu amor, sede corajosa, sede uma

rainha: ide para a Torre com as meninas e mantende-vos em segurança.

Assim, eu posso lutar e vencer e regressar a casa para junto de vós.

Page 111: Philippa gregory - a rainha branca

- E os meus filhos? - sussurro.

- Os vossos filhos virão comigo. Mantê-los-ei em segurança

conforme puder, mas já é altura de eles desempenharem o seu papel nas

nossas batalhas, Isabel.

O bebé volta-se dentro de mim como se também estivesse a

protestar, e eu sou silenciada pela palpitação provocada pelo movimento.

- Eduardo, quando é que alguma vez vamos estar em segurança?

- Quando eu tiver vencido - afirma ele com firmeza. - Deixai-

me ir e vencer agora, amada.

Deixo-o ir. Creio que nenhum poder do mundo conseguiria detê-lo, e

digo às meninas que vamos ficar em Londres, na Torre, um dos seus

palácios preferidos, e que o pai e os meios-irmãos partiram para combater

os homens maus que continuam a ansiar pelo velho Rei Henrique, embora

ele esteja preso na Torre, silencioso, nos seus aposentos, no andar mesmo

abaixo do nosso. Digo-lhes que o pai regressará em segurança para junto de

nós. Quando choram por ele, à noite, porque têm pesadelos com a rainha

cruel e o rei louco, e o

140

malvado tio Warwick, prometo-lhes que o pai derrotará as pessoas

más e voltará para casa. Prometo-lhes que ele trará os irmãos em segurança

de volta para casa. Deu a sua palavra. Nunca falhou. Ele regressará a casa.

Mas, desta vez, não volta.

Desta vez, não acontece.

Ele e os seus irmãos de armas, o meu irmão António, o seu irmão

Ricardo, o seu adorado amigo Sir Guilherme Hastings, e os seus leais

apoiantes são despertos com um abanão, em Doncaster, às primeiras horas

da manhã, por dois dos menestréis do rei que, ao regressarem embriagados

a casa, dos bordéis, por acaso, olharam de relance por cima das muralhas

do castelo e viram tochas na estrada. A guarda avançada do inimigo,

marchando durante a noite, um sinal seguro de que Warwick ia a

comandar, encontra-se a apenas uma hora de distância, talvez apenas a

momentos de distância, tendo vindo raptar o rei antes de ele conseguir

encontrar-se com o seu exército. Todo o Norte se revoltou contra o rei e

está pronto a combater por Warwick, e o grupo real irá ser tomado num

instante. A influência de Warwick é profunda e alargada, nesta parte do

mundo, e o irmão e o cunhado de Warwick viraram-se contra Eduardo e

estão a combater pelos seus parentes e pelo Rei Henrique, e estarão no

portão do castelo dentro de uma hora. Não há dúvidas na mente de

ninguém de que, desta vez, Warwick não fará prisioneiros.

Eduardo manda os meus dois filhos para junto de mim e, depois, ele,

Ricardo, António e Hastings montam nos seus cavalos e fogem durante a

Page 112: Philippa gregory - a rainha branca

noite, desesperados, para não serem feitos prisioneiros por Warwick ou os

seus parentes, certos de que, desta vez, haverá uma execução sumária para

todos. Warwick tentou uma vez capturar e manter Eduardo como

prisioneiro, como nós capturámos e detivemos Henrique, e aprendeu que

não há vitória tão decisiva como a morte. Nunca voltará a encarcerar

Eduardo e a esperar que todos admitam a derrota. Desta vez, quer vê-lo

morto.

Eduardo parte a cavalo no escuro, com os amigos e parentes, e não

tem tempo de me mandar chamar, de me dizer onde posso encontrar-me

com ele; nem sequer consegue

141

escrever-me para me dizer para onde se dirige. Duvido de que ele

próprio saiba. Tudo o que está a fazer é a fugir de uma morte certa. Mais

tarde pensará em como regressar a casa. Agora, esta noite, o rei está a fugir

para salvar a vida.

142

OUTONO DE 1470

As notícias chegam a Londres através de rumores duvidosos e são

todas, sempre, más. Warwick desembarca na Inglaterra, tal como Eduardo

previra, mas o que ele não previu foi a afluência de nobres para o lado do

traidor, para apoiar o rei que deixaram a apodrecer na Torre durante os

últimos cinco anos. O Conde de Shrewsbury junta-se a ele. Jasper Tudor,

que consegue recrutar a maior parte do País de Gales, junta-se a ele. Lorde

Tomás Stanley, que ganhou o anel de rubi nas justas da minha coroação e

me disse que o seu lema era “Sans Changer", junta-se a ele. Toda uma

hoste da pequena aristocracia segue estes comandantes influentes, e

Eduardo é rapidamente superado, em número, no seu próprio reino. Todas

as famílias da Casa de Lencastre foram buscar e poliram as suas armas

antigas, com a esperança de marcharem para a vitória, mais uma vez. Está a

acontecer tal como ele me avisou que aconteceria: não conseguiu espalhar a

riqueza de modo suficientemente rápido, de modo suficientemente justo, a

pessoas suficientes. Não conseguimos espalhar a influência da minha

família suficientemente longe, a um nível suficientemente profundo. E

agora eles pensam que se sairão melhor sob o governo de Warwick e do

velho rei louco do que sob Eduardo e a minha família.

Eduardo teria sido morto de imediato se tivessem conseguido

apanhá-lo; mas não conseguiram - o que é evidente. Mas ninguém sabe

onde ele está; e alguém vem à Torre, uma vez por dia, para me assegurar

Page 113: Philippa gregory - a rainha branca

que o viram e que estava a morrer por causa dos ferimentos, ou que o viram

e que ele

143

está a fugir para a França, ou que o viram num caixão e que ele está

morto.

Os meus filhos chegam à Torre sujos da viagem e cansados, furiosos

por não se terem escapado com o rei. Tento não me agarrar muito a eles,

nem beijá-los com mais frequência do que de manhã e à noite, mas mal

posso acreditar que eles regressaram em segurança para junto de mim. Tal

como não consigo acreditar que o mesmo não tenha acontecido com o meu

marido e o meu irmão.

Mando uma mensagem para Grafton, pedindo à minha mãe que

venha para junto de nós, para a Torre. Preciso dos conselhos e da

companhia dela, e, se estivermos mesmo perdidos e se eu tiver de partir

para o estrangeiro, quererei que ela venha comigo. Mas o mensageiro

regressa e a expressão do seu rosto é grave.

- A senhora vossa mãe não está em sua casa - diz ele.

- Onde é que ela está?

Ele mostra-se esquivo, como se desejasse que outra pessoa qualquer

me contasse as más notícias.

- Dizei-me de uma vez - digo, a minha voz aguda de medo. -

Onde é que ela está?

- Está presa - responde ele. - Por ordem do Conde de Warwick.

Ordenou a sua prisão, e os homens dele foram a Grafton e levaram-na.

- Warwick tem a minha mãe? - consigo sentir, nos ouvidos, o

meu coração bater aceleradamente. - A minha mãe foi feita prisioneira?

- Sim.

Ouço um ruído de algo a chocalhar e vejo que as minhas mãos estão

a tremer tanto que os anéis estão a produzir um clique contra os braços da

cadeira. Respiro fundo para me acalmar e agarro-me com força para me

impedir de tremer. O meu filho, Tomás, aproxima-se para ficar de um dos

lados da minha cadeira. Ricardo sobe os degraus para se pôr do outro lado.

- Com base em que acusação?

Penso. Não pode ser de traição: ninguém poderia argumentar que a

minha mãe tem feito mais do que aconselhar-me. Ninguém a poderia

acusar de traição, quando ela tem sido uma boa sogra para o rei coroado e

uma dama de companhia

144

Page 114: Philippa gregory - a rainha branca

amorosa para a sua rainha. Nem mesmo Warwick conseguiria descer

tão baixo, ao ponto de acusar de traição uma mulher e decapitá-la por amar

a sua filha. Mas este é o homem que matou o meu pai e o meu irmão, sem

um motivo. O desejo dele deve ser partir-me o coração e roubar a Eduardo

o apoio da minha família. Este é o homem que me matará se conseguir

apanhar-me.

- Lamento muito, Vossa Graça...

- Qual é a acusação? - pergunto. Tenho a garganta seca e tento

tossir um pouco.

- Bruxaria - responde ele.

Não é necessário um julgamento para matar uma bruxa, ainda que

nunca nenhum julgamento tenha falhado: é fácil encontrar pessoas que

testemunhem, sob juramento, que as suas vacas morreram, ou que o seu

cavalo os atirou ao chão, porque uma bruxa lhes deitou mau-olhado. Mas,

em qualquer um dos casos, não há necessidade de testemunhas nem de

julgamento. Basta um único padre para confirmar a culpa da bruxa, ou um

Lorde, como Warwick, pode simplesmente declará-la culpada e ninguém a

defenderá. Aí, ela poderá ser estrangulada e sepultada numa encruzilhada

da aldeia. Normalmente, pedem ao ferreiro que estrangule a mulher, uma

vez que, devido à sua actividade, este tem mãos grandes e fortes. A minha

mãe é uma mulher alta. Uma beleza famosa, com um pescoço longo e fino.

Qualquer homem conseguiria sufocá-la em minutos. Não tem de ser um

ferreiro musculado. Qualquer um dos guardas de Warwick poderia fazê-lo

facilmente; fá-lo-ia, num instante, ao ouvir uma palavra, idealmente a

palavra de Warwick.

- Onde é que ela está? - pergunto. - Para onde é que ele a levou?

- Ninguém em Grafton sabia para onde iam - diz o homem. -

Perguntei em todo o lado. Apareceu um esquadrão de cavalaria, e

obrigaram a vossa mãe a montar no assento de trás do cavalo do oficial

comandante, e levaram-na para norte. Não disseram a ninguém para onde

iam. Só disseram que ela estava presa por bruxaria.

- Tenho de escrever a Warwick - digo muito depressa. - Ide,

comei e trazei outro cavalo. Ainda preciso que viajeis, o mais rápido que

conseguirdes. Estais pronto para partir já?

145

- Já - diz ele, faz uma vénia e retira-se.

Escrevo a Warwick exigindo a sua libertação. Escrevo a todos os

arcebispos em quem mandávamos e a qualquer pessoa que julgo poder

interceder por nós. Escrevo aos velhos amigos da minha mãe e à família

ligada à Casa de Lencastre. Chego mesmo a escrever a Margarida de

Beaufort, que, enquanto herdeira da Casa de Lencastre, pode ter alguma

Page 115: Philippa gregory - a rainha branca

influência. Depois, dirijo-me à minha capela, a Capela da Rainha, e

ajoelho-me a noite inteira a rezar a Deus, para que não permita que este

homem cruel leve esta mulher bondosa, que apenas é abençoada com uma

Visão sagrada, alguns truques pagãos e uma total falta de deferência. De

madrugada, escrevo o seu nome numa pena de pomba e envio-a, a flutuar,

rio abaixo, para avisar Melusina de que a sua filha está em perigo.

Depois, tenho de aguardar por notícias. Tenho de esperar uma

semana inteira, sem saber nada e receando o pior. Todos os dias há pessoas

que me vêm dizer que o meu marido está morto. Agora, temo ouvir o

mesmo da minha mãe e ficar completamente sozinha no mundo. Rezo a

Deus, murmuro para o rio: alguém tem de salvar a minha mãe. Então, por

fim, sei que foi liberta e, dois dias mais tarde, ela vem ter comigo à Torre.

Corro para os seus braços e choro como se fosse a sua filha de dez

anos. Ela abraça-me e embala-me, como se eu ainda fosse a sua menina, e,

quando levanto os olhos para o seu rosto adorado, vejo que há aí lágrimas.

- Estou em segurança - diz ela. - Ele não me magoou. Não me

fez perguntas. Manteve-me presa apenas alguns dias.

- Porque vos deixou partir? - pergunto. - Escrevi-lhe, escrevi a

toda a gente, rezei e desejei; mas não pensei que ele fosse ser

misericordioso para convosco.

- Margarida de Anjou - responde ela com um sorriso forçado. -

De todas as mulheres do mundo! Ordenou-lhe que me libertasse, assim que

soube que ele me tinha prendido. Em tempos, fomos muito amigas, e ainda

somos parentes. Ela recordou-se do serviço que prestei na sua corte, e

ordenou a Warwick que me libertasse, senão, teria de enfrentar o seu

desagrado extremo.

Dou uma risada incrédula.

146

- Ela ordenou-lhe que vos libertasse e ele obedeceu?

- Ela agora é sogra da sua filha, bem como sua rainha - relembra

a minha mãe. - E ele prestou juramento como seu aliado e conta com o seu

exército para o apoiar, quando reconquistar o país. E eu era sua dama de

companhia quando ela veio para a Inglaterra como noiva, e sua amiga,

durante todos os anos em que ela reinou. Na altura, eu era membro da Casa

de Lencastre, até vós casardes com Eduardo.

- Foi bondoso da sua parte salvar-vos - admito.

- Esta é, de facto, uma guerra entre primos - afirma a minha

mãe. - Todos temos alguém que amamos na facção oposta. Todos temos de

enfrentar a hipótese de termos de matar a nossa própria família. Por vezes,

podemos ser misericordiosos. Deus sabe que ela não é uma mulher

misericordiosa, mas decidiu sê-lo comigo.

Page 116: Philippa gregory - a rainha branca

Durmo um sono agitado, nos ricos aposentos reais da Torre de

Londres, o luar bruxuleante reflectido pelo rio nos cortinados por cima da

minha cama. Estou deitada de costas, o peso do bebé é bastante no meu

ventre, tenho uma dor na ilharga, ando entre o sono e a vigília, quando

vejo, tão brilhante como o luar no arrás por cima de mim, o rosto do meu

marido, magro e envelhecido, inclinado sobre a crina galopante do seu

cavalo, cavalgando como um louco durante a noite, menos de uma dúzia de

homens em seu redor.

Dou um grito abafado e viro a almofada. O rico bordado fica

comprimido contra a minha bochecha, mas volto a adormecer; e acordo,

mais uma vez, com a imagem de Eduardo a cavalgar velozmente no meio

da escuridão, numa estrada estranha.

Fico meio acordada, a chorar por causa da imagem na minha mente,

e, enquanto passo do sono à vigília, vejo um pequeno porto de pesca,

Eduardo, António, Guilherme e Ricardo baterem a uma porta, discutindo

com um homem, alugando o seu barco, sempre a olharem por cima dos

ombros, para ocidente, à procura dos seus inimigos. Ouço-os prometer ao

chefe da embarcação qualquer coisa, qualquer

147

coisa, se ele lançasse o seu barquinho e os levasse para a Flandres.

Vejo Eduardo despir o seu sobretudo de pele e oferecê-lo como pagamento.

- Aceitai-o - diz ele. - Vale duas vezes mais do que o vosso

barco. Aceitai-o e eu considerarei que foi o pagamento de um serviço.

- Não - digo no meio do meu sono. Eduardo está a deixar-me, a

deixar a Inglaterra, a deixar-me a mim e a quebrar a sua palavra de que

estaria comigo durante o parto do nosso filho.

Os mares estão agitados ao largo, as ondas escuras coroadas de

espuma branca. O pequeno barco ergue-se e desce, rolando entre as ondas,

a água a entrar pela proa. Parece impossível que consiga subir à crista das

ondas, e depois cai nas depressões entre elas. Eduardo está de pé, à popa,

agarrando-se ao rebordo para se apoiar, é derrubado pelo movimento do

barco, olhando para trás, para o país a que chamava seu, procurando o

flamejar das tochas dos homens que vão atrás dele. Perdeu a Inglaterra.

Nós perdemos a Inglaterra. Ele reivindicou o trono e foi coroado rei.

Coroou-me rainha e eu acreditei que estávamos estabelecidos. Ele nunca

perdeu uma batalha; mas Warwick tem sido demasiado, demasiado rápido,

demasiado traiçoeiro para ele. Eduardo dirige-se para o exílio, tal como

Warwick fez. Mas Warwick foi direito ao Rei da França e encontrou um

aliado e um exército. Eu não consigo ver como é que Eduardo alguma vez

irá voltar.

Page 117: Philippa gregory - a rainha branca

Warwick está de novo no poder, e agora são o meu marido, o meu

irmão António e o meu cunhado Ricardo que são fugitivos, e sabe Deus

que vento alguma vez os trará de volta à Inglaterra. E as meninas e eu, e o

bebé que trago no ventre, somos os novos reféns, os novos prisioneiros.

Posso estar nos aposentos reais da Torre, por enquanto, mas em breve

estarei nos quartos do andar de baixo, com barras nas janelas, e o Rei

Henrique dormirá outra vez nesta cama, e eu serei aquela que as pessoas

dirão que deveria, por caridade cristã, ser liberta, para não morrer na prisão,

sem poder ver o céu aberto.

- Eduardo! - vejo-o olhar para cima, quase como se me conseguisse

ouvir chamá-lo no meu sono, no meu sonho. - Eduardo! - não consigo

acreditar que ele fosse capaz de me

148

deixar, que pudesse ter perdido a nossa luta pelo trono. O meu pai

sacrificou voluntariamente a vida para que eu pudesse ser rainha; o meu

irmão morreu ao seu lado. Agora não vamos ser mais do que pretendentes,

destronados, após alguns anos de boa sorte? Um rei e uma rainha que

abusaram das próprias forças e para quem a sorte se esgotou? Terão as

minhas filhas de ser as filhas de um homem acusado de traição? Terão elas

de casar com escudeiros insignificantes em propriedades rurais e de esperar

que as pessoas se esqueçam da vergonha do pai? Terá a minha mãe de

saudar Margarida de Anjou de joelhos e esperar conseguir insinuar-se na

sua confiança para voltar a ter o seu favor? Irei ter a opção de viver no

exílio ou de viver na prisão? E o que vai ser do meu filho, o bebé que ainda

não nasceu? Haverá a probabilidade de Warwick o deixar viver - ele que

perdeu o seu próprio neto e único herdeiro, enquanto nós lhe fechávamos

os portões de Calais, a sua filha a perder o bebé nas águas agitadas do mar

com um vento convocado por uma bruxa a empurrá-los para a costa?

Grito alto.

- Eduardo! Não me deixeis! - e o terror na minha voz desperta-me

completamente, e, no quarto ao lado, a minha mãe acende uma vela na

lareira e abre a porta.

- Já vem aí? O bebé? Vai nascer antes do tempo?

- Não. Tive um sonho. Mãe, tive um sonho terrível.

- Pronto, pronto, já passou - diz ela, rápida a reconfortar-me. Acende

velas nas minhas mesas-de-cabeceira; remexe o fogo com um pontapé do

chinelo. - Pronto, Isabel. Agora estais em segurança.

- Não estamos em segurança - digo certamente. - É

precisamente isso.

- Porquê? O que haveis sonhado?

Page 118: Philippa gregory - a rainha branca

- Era Eduardo, num navio, numa tempestade. Era de noite, as ondas

do mar eram gigantescas. Nem sequer sei se aquele barquito irá aguentar. É

um mau vento que não traz nada de bom, Mãe, e ele estava a enfrentar

ventos maus. Era o nosso vento. Era o temporal que convocámos para levar

Jorge e Warwick para longe. Fomos nós que o convocámos, mas ele não

cessou. Eduardo está no meio de uma tempestade que

149

nós criámos. Estava vestido como um criado, um homem pobre: não

tinha nada, nada, além das roupas que trazia vestidas. Tinha dado o casaco.

António estava lá; ele nem sequer tinha a capa. Guilherme Hastings estava

com eles, bem como o irmão de Eduardo, Ricardo. Eles eram os únicos

sobreviventes, eram os únicos que conseguiram fugir. Eram... - fecho os

olhos, tentando recordar-me. - Estavam a deixar-nos, Mãe. Oh, Mãe, ele

deixou a Inglaterra, ele deixou-nos. Está perdido. Nós estamos perdidas.

Eduardo foi-se embora, António também. Tenho a certeza disso.

Ela pega nas minhas mãos frias e esfrega-as com as suas.

- Talvez tenha sido só um sonho mau - diz ela. - Talvez não passe de

um sonho. As mulheres grávidas, quando se aproxima o parto, têm

devaneios estranhos, sonhos vívidos...

Abano a cabeça, empurro as cobertas para trás.

- Não, tenho a certeza. Foi uma Visão. Ele foi derrotado. Ele fugiu.

- Credes que ele foi para a Flandres? Para se refugiar junto da irmã, a

Duquesa Margarida, e Carlos da Borgonha?

Assinto.

- Claro. Claro que foi. E vai mandar chamar-me, não duvido. Ele

ama-me, adora as filhas e jurou que nunca me deixaria. Mas foi-se embora,

Mãe. Margarida de Anjou deve ter desembarcado e deve estar a marchar

em direcção a este sítio, a Londres, para libertar Henrique. Temos de partir.

Tenho de levar as meninas para longe daqui. Não podemos estar aqui

quando o exército dela chegar. Irão encarcerar-nos para sempre se nos

encontrarem aqui.

A minha mãe põe-me um xaile em volta dos ombros.

- Tendes a certeza? Podeis viajar? Quereis que envie uma

mensagem para as docas e vamos embarcar num navio?

Hesito. Tenho tanto medo da viagem quando o meu bebé está

próximo do seu tempo. Penso em Isabel, a chorar de dor, num barco a

oscilar nas ondas, e sem ninguém para a ajudar com o parto, o bebé a

morrer e sem sequer um padre para o baptizar. Não posso enfrentar o que

ela teve de enfrentar, com o vento a gritar nos cordames. Receio que o

vento que convoquei ainda esteja a soprar ao longo das vias marítimas, a

sua natureza maléfica insatisfeita com a morte de um bebé,

Page 119: Philippa gregory - a rainha branca

150

olhando em volta do horizonte, à procura de velas pouco seguras. Se

esse vento me vislumbra, a mim e às minhas filhas, no mar agitado, afogar-

nos-emos.

- Não, não aguento. Não me atrevo. Tenho demasiado medo do

vento. Vamos para um santuário. Vamos para a Abadia de Westminster.

Não se atreverão a fazer-nos mal aí. Aí, estaremos em segurança. Os

Londrinos ainda estão do nosso lado e a Rainha Margarida não invadirá um

santuário. Se o Rei Henrique estivesse são, nunca permitiria que ela

invadisse um santuário. Ele acredita que o poder de Deus faz mover o

mundo. Respeitará o santuário e fará com que Warwick nos deixe em paz.

Levaremos as meninas e os meus filhos Grey e vamos para um santuário.

Pelo menos, até o meu filho nascer.

151

NOVEMBRO DE 1470

Quando ouvia falar de homens desesperados suplicando que lhes

dessem refúgio, agarrando-se à argola da porta da igreja e provocando os

que acolhiam os ladrões, ou que entravam a correr pela nave lateral e iam

pousar a mão no altar principal como se estivessem a jogar a uma

brincadeira de infância, a apanhada, sempre pensei que, a partir daí, teriam

de viver do vinho da Missa e do pão da Hóstia, e de dormir nos bancos da

igreja, repousando a cabeça nas pequenas e espessas almofadas que se

destinavam a apoiar os joelhos. Afinal, descobri que as coisas não são

assim tão más. Vivemos na cripta construída no pátio da igreja de Santa

Margarida, dentro do recinto da abadia. É um pouco como viver numa

adega, mas conseguimos ver o rio das baixas janelas, num dos lados do

quarto, e conseguimos entrever a estrada pelo ralo da porta, do outro lado.

Vivemos como uma família pobre, dependendo da boa vontade dos

apoiantes de Eduardo e dos cidadãos de Londres, que adoram a família de

Iorque, e continuam a adorar, ainda que o mundo tenha mudado

novamente, a família de Iorque esteja escondida, e o Rei Henrique tenha

sido, mais uma vez, aclamado rei.

Warwick, o dominante Lorde Warwick, o assassino do meu pai e do

meu irmão, e o raptor do meu marido, entra em Londres em triunfo, com

Jorge, o seu genro infeliz, a seu lado. Jorge pode ser um espião na facção

deles, secretamente do nosso lado, ou pode ter virado a casaca novamente,

e agora ter esperanças de conseguir algumas migalhas da mesa real da Casa

de Lencastre. De qualquer forma, não me envia nenhuma

Page 120: Philippa gregory - a rainha branca

152

mensagem, nem faz nada para garantir a minha segurança. Baloiça

atrás do fazedor de reis, como se não tivesse nenhum irmão, nenhuma

cunhada, talvez ainda esperando uma oportunidade para ele mesmo ser rei.

Warwick, triunfante, retira o seu antigo inimigo, o Rei Henrique, da

Torre e proclama-o apto para governar e completamente reposto. Ele é

agora o libertador deste rei e o salvador da Casa de Lencastre, e o país está

cheio de alegria. O Rei Henrique está baralhado com esta viragem nos

acontecimentos, mas eles explicam-lhe, devagar e gentilmente, uma vez

por dia, que ele voltou a ser rei e que o primo Eduardo de Iorque fugiu.

Podem até dizer-lhe que nós, a família de Eduardo, estamos refugiados na

Abadia de Westminster, porque ele ordena - ou eles ordenam em seu nome

- que o santuário dos lugares sagrados seja respeitado, e nós estamos em

segurança na nossa prisão auto-imposta.

Todos os dias os talhantes nos mandam carne, os padeiros enviam-

nos pão, até as leiteiras dos campos verdes da cidade nos trazem selhas de

leite para as meninas, e os vendedores de fruta de Kent trazem-nos o

melhor da sua colheita à abadia, e deixam-no à porta para nós. Dizem aos

encarregados da igreja que são para a “pobre rainha”, neste momento de

dificuldade, e depois recordam-se de que existe uma nova rainha,

Margarida de Anjou, que aguarda apenas um vento de feição para zarpar e

regressar ao seu trono, e tropeçam nas suas próprias palavras e acabam por

dizer:

- Sabeis a quem me refiro. Mas certificai-vos de que lhe é entregue,

porque a fruta de Kent é muito boa para uma mulher que está a chegar ao

fim do seu tempo. Fará com que o bebé nasça mais facilmente. E dizei-lhe

que lhe desejamos tudo de bom e que voltaremos.

É difícil para as minhas filhas terem tão poucas notícias do pai, é

difícil para elas serem mantidas nas reduzidas e pequenas divisões, uma

vez que nasceram para terem o melhor de tudo. Toda a sua vida foi passada

nos maiores palácios da Inglaterra; agora estão confinadas. Podem pôr-se

em cima de um banco para espreitar pelas janelas para o rio, onde a barcaça

real costumava levá-las para cima e para baixo, de um palácio para o outro,

ou tentam revezar-se para subir para

153

uma cadeira e olhar, por entre as grades, para as ruas de Londres,

onde costumavam passear a cavalo e ouvir as pessoas abençoarem os seus

nomes e os seus rostos formosos. Isabel, a minha filha mais velha, tem

apenas quatro anos, mas é como se compreendesse que um momento de

Page 121: Philippa gregory - a rainha branca

grande sofrimento e dificuldade chegou para nós. Nunca me pergunta onde

estão as suas aves domesticadas; nunca pergunta pelos criados que

costumavam acarinhá-la e brincar com ela, nunca pergunta pela sua

cabeceira dourada ou o seu cãozinho, ou os seus preciosos brinquedos.

Comporta-se como se tivesse nascido e crescido neste espaço diminuto e

brinca com as irmãs mais pequenas como se fosse uma ama contratada, a

quem tivessem ordenado que se mostrasse alegre. A única pergunta que faz

é: onde está o seu pai? - e eu tenho de me habituar a que ela olhe para mim,

com um franzir de testa preocupado no seu rosto redondo, perguntando:

- O meu pai ainda é o rei aqui, Senhora minha Mãe?

É para os meus filhos que é mais difícil, porque são como crias de

leoa confinados no pequeno espaço e deambulam à nossa volta, discutindo.

A minha mãe acaba por lhes dar exercícios para fazerem, brincar às

espadas com cabos de vassouras, poemas para estudarem, jogos de salto e

apanhada que têm de fazer todos os dias, e eles vão registando os

resultados e esperam que os torne mais fortes na batalha pela qual anseiam,

e que reporá Eduardo no trono.

À medida que os dias vão ficando mais curtos e as noites mais

escuras, sei que a minha hora está a chegar e que o meu bebé está para

nascer. O meu grande pavor é morrer aqui, no parto, e que a minha mãe

fique aqui sozinha, na cidade do nosso inimigo, a tomar conta dos meus

filhos.

- Sabeis o que irá acontecer? - pergunto-lhe directamente.

- Haveis previsto? E o que irá acontecer às minhas filhas?

Vejo algum conhecimento nos seus olhos, mas o rosto que vira para

mim é imperturbável.

- Não ides morrer, se é isso que me estais a perguntar - responde ela

rotundamente. - Sois uma mulher saudável e o conselho do rei vai enviar

Lady Scrope para cuidar de vós, e duas parteiras. Não tendes motivos para

pensar que este parto vai ser mais complicado do que qualquer um dos

outros, e que

154

ides morrer. Espero que sobrevivais a este e que tenhais mais filhos.

- E o bebé? - pergunto, tentando ler a sua expressão.

- Sabeis que ele é saudável - diz ela, sorrindo. - Qualquer pessoa que

tenha sentido os pontapés que essa criança dá sabe que ela é forte. Não

tendes motivos para receios.

- Mas há qualquer coisa - digo com certeza. - Prevedes algo acerca

de Eduardo, do meu bebé, o Príncipe Eduardo.

Ela olha para mim por um instante e depois decide falar com

sinceridade.

Page 122: Philippa gregory - a rainha branca

- Não consigo vê-lo tornar-se rei - diz. - Li as cartas e olhei para o

reflexo da Lua na água. Tentei perguntar aos cristais e olhar para o interior

do fumo. De facto, experimentei tudo o que conheço e que está dentro das

leis de Deus e que é permitido neste lugar sagrado. Mas, para vos dizer a

verdade, Isabel: não consigo vê-lo ser rei.

Rio-me alto.

- É isso? É só isso? Valha-me Deus, Mãe, não consigo ver o seu

próprio pai voltar a ser rei, e ele foi coroado e ordenado! Não me consigo

ver ser rainha outra vez, e recebi o óleo consagrado no meu peito e tive os

ceptros nas mãos. Não estou à espera de um Príncipe de Gales, apenas que

seja um bebé saudável. Ele que nasça forte e que cresça para se tornar um

homem, e eu ficarei satisfeita. Não preciso que ele seja Rei da Inglaterra.

Só quero saber que ele e eu vamos ultrapassar isto.

- Oh, ides ultrapassar isto - diz ela. Um aceno despreocupado da sua

mão dissolve o ar pesado daquele espaço; as pequenas camas dobráveis das

minhas filhas a um canto; os colchões de palha dos criados, no chão, no

outro canto; a pobreza do espaço; a friagem da cave; a humidade na pedra

das paredes; a lareira que deita fumo; a coragem destemida dos meus

filhos, que se esquecem de que alguma vez viveram num lugar melhor. -

Isto não é nada. Tenho esperanças de que voltaremos a ascender e a

ultrapassar isto.

- Como? - pergunto-lhe, incrédula.

Ela inclina-se para mim e encosta a boca ao meu ouvido.

- Porque o vosso marido não está a plantar vinhas nem a fazer vinho

na Flandres - afirma ela. - Não está a cardar lã

155

nem a aprender a tecer. Está a preparar uma expedição, a fazer

aliados, a angariar dinheiro, a planear invadir a Inglaterra. Os mercadores

de Londres não são os únicos do país que preferem Iorque a Lencastre. E

Eduardo nunca perdeu nenhuma batalha. Estais recordada?

Insegura, anuo. Ainda que tenha sido derrotado e que se encontre no

exílio, é verdade que nunca perdeu nenhuma batalha.

- Então, quando ele atacar as forças militares de Henrique, mesmo

quando estas são comandadas por Warwick e instigadas por Margarida de

Anjou, não credes que irá vencer?

Não é um retiro apropriado, tal como deveria ser o retiro de uma

rainha, com um retiro cerimonial da corte, seis semanas antes da data do

parto, o encerramento das portadas e uma bênção ao quarto.

- Que disparate - diz a minha mãe com optimismo. - Já vos haveis

retirado da luz do dia, não é verdade? Retiro? Creio que nenhuma rainha

Page 123: Philippa gregory - a rainha branca

jamais esteve tão retirada. Quem é que alguma vez esteve em retiro num

santuário?

Não é um parto real como deveria ser, com três parteiras, duas amas-

de-leite, embaladoras, madrinhas nobres e aias ao lado, e embaixadores,

aguardando com ricos presentes. Lady Scrope é enviada pela corte de

Lencastre para se certificar de que tenho tudo o que necessito, e eu penso

que se tratou de uma atitude graciosa do Conde de Warwick para comigo.

Mas tenho de trazer o meu bebé ao mundo sem ter o meu marido à espera e

sem a corte à porta, e praticamente sem ninguém para me ajudar, e os seus

padrinhos são o Abade de Westminster e o prior, e a madrinha é Lady

Scrope: as únicas pessoas que estão comigo, nem grandes senhores da terra,

nem reis estrangeiros, os padrinhos habituais de um bebé real, mas pessoas

boas e gentis que estão encurraladas connosco em Westminster.

Dou-lhe o nome de Eduardo, como o pai deseja, e tal como a colher

de prata do rio profetizou. Margarida de Anjou, com a sua frota preparada

para a invasão retida no porto por

156

tempestades, envia-me uma mensagem para me dizer que lhe ponha

o nome João. Não quer outro Príncipe Eduardo na Inglaterra, para rivalizar

com o seu filho. Ignoro as suas palavras como se viessem de alguém sem

importância. Porque haveria de dar ouvidos às preferências de Margarida

de Anjou? O meu marido quis dar-lhe o nome de Eduardo, e a colher de

prata veio do rio com o nome dele gravado. Eduardo é como ele se chama:

Eduardo, Príncipe de Gales, será, mesmo que a minha mãe tenha razão e

ele nunca venha a ser Eduardo, o Rei.

Entre nós, chamamos-lhe Bebé, e ninguém lhe chama Príncipe de

Gales, e, ao adormecer, depois do parto, muito quentinha com ele nos meus

braços, meio embriagada por causa da bebida que me deram para ajudar ao

parto, penso que provavelmente este bebé nunca será rei. Não houve

canhões disparados em sua honra, nem grandes fogueiras acesas no cimo

dos montes. Nas fontes e canalizações de Londres não correu vinho, os

cidadãos não estão embriagados de alegria, não há anúncios da sua chegada

correndo pelas grandes cortes da Europa. É como ter um bebé normal, não

um príncipe. Talvez ele venha a ser um rapaz normal e eu me torne uma

mulher comum novamente. Talvez não venhamos a ser pessoas

importantes, escolhidas por Deus, mas apenas felizes.

157

INVERNO DE 1470-1471

Page 124: Philippa gregory - a rainha branca

Passamos o Natal refugiados. Os talhantes de Londres mandam-nos

um enorme ganso, e eu, os meus filhos e a pequena Isabel jogamos às

cartas e eu certifico-me de que perco uma moeda de sixpence de prata para

ela, e mando-a para a cama, encantada por ser uma jogadora a sério.

Passamos a véspera do Dia de Reis no refúgio, e eu e a Mãe compomos

uma pequena peça para as crianças, com fatos e máscaras e feitiços.

Contamos-lhes a nossa história familiar da Melusina, a bela mulher, metade

rapariga, metade peixe, que se encontra na fonte, na floresta, e casa com

um mortal por amor. Embrulho-me num lençol, que apertamos nos pés,

para fazer de conta que é uma grande cauda, solto o cabelo e, quando me

levanto do chão, as meninas ficam maravilhadas com a mulher peixe, a

Melusina, e os rapazes aplaudem. A minha mãe aparece com uma cabeça

de cavalo feita de papel colada num pau de vassoura, vestindo o justilho do

porteiro e usando uma coroa de papel. As meninas não a reconhecem e

assistem à peça como se nós fôssemos actores de pantominas contratados

na maior corte do mundo. Contamos-lhes a história do namoro entre a bela

mulher, que é metade peixe, e da forma como o seu apaixonado a consegue

convencer a abandonar a sua fonte, no meio dos bosques, e a arriscar-se a

viver no grande mundo. Só contamos metade da história: que ela vive com

ele, que lhe dá filhos belíssimos e que são felizes juntos.

A história tem muito mais do que isto, é claro. Mas descubro que não

quero pensar em casamentos por amor que terminam em separação. Não

quero pensar em ser uma mulher

158

que não pode viver neste novo mundo que está a ser criado pelos

homens. Não quero pensar em Melusina a erguer-se da sua fonte e a

refugiar-se num castelo, enquanto estou retida neste santuário, e todas nós,

filhas de Melusina, estamos encerradas num lugar onde não podemos ser

cabalmente nós mesmas.

O marido mortal de Melusina amava-a, mas ela intrigava-o. Ele não

compreendia a sua natureza e não estava satisfeito por viver com uma

mulher que era um mistério para ele. Permitiu que um hóspede o

persuadisse a espiá-la. Escondeu-se por trás das cortinas da sua casa de

banho e viu-a nadar, submersa na água da banheira, viu - horrorizado - a

reverberação da pequena ondulação nas escamas, ficou a saber o seu

segredo: que, apesar de o amar, de o amar verdadeiramente, ela continuava

a ser metade mulher, metade peixe. Não conseguiu suportar o que ela era, e

ela não conseguia evitar ser quem era. E, assim, deixou-a, porque, no seu

coração, receava que ela fosse uma mulher com uma natureza dividida - e

não se apercebeu de que todas as mulheres são criaturas de natureza

dividida. Era-lhe insuportável pensar que ela tinha um segredo, que tinha

Page 125: Philippa gregory - a rainha branca

uma vida escondida dele. Não conseguia, na verdade, tolerar a verdade de

Melusina ser uma mulher que conhecia as profundezas desconhecidas, que

nadava nelas.

A pobre Melusina, que se esforçara tanto por ser uma boa esposa,

teve de deixar o homem que a amava e de voltar para a água, descobrindo

que a terra era demasiado dura. Como muitas mulheres, não foi capaz de

encaixar na perfeição nas perspectivas do marido. Os pés doíam-lhe: não

podia seguir pelo caminho que o marido escolhesse. Tentou dançar para lhe

agradar, mas não conseguia negar a dor. Ela é a antepassada da casa real da

Borgonha, e nós, as suas descendentes, continuamos a tentar trilhar os

caminhos dos homens, e, por vezes, também nós descobrimos que o

caminho é insuportavelmente duro.

159

Consta-me que a nova corte organizou um alegre banquete de Natal.

Henrique, o rei, recuperou o juízo, e a Casa de Lencastre está triunfante.

Das janelas do refúgio, conseguimos ver as barcaças rio acima e rio abaixo,

enquanto os nobres se deslocam entre os seus palácios à beira-rio e

Westminster. Vejo a barcaça de Stanley passar. Lorde Stanley, que me

beijou a mão, no torneio da minha coroação, e que me disse que o seu lema

era: “Sans Changer”, foi um dos primeiros a receber Warwick, quando ele

desembarcou na Inglaterra. Ao que parece, afinal, ele é um apoiante da

Casa de Lencastre; talvez seja imutável para eles.

Vejo a barcaça dos Beaufort, com a bandeira do dragão vermelho de

Gales, desfraldada na popa. Jasper Tudor, o grande poder de Gales, está a

levar o sobrinho, o jovem Henrique Tudor, à corte, para visitar o rei, seu

parente. Meio proscrito, meio príncipe. Jasper deverá voltar aos castelos do

País de Gales, e Lady Margarida Beaufort verterá lágrimas de alegria sobre

o seu filho de catorze anos, Henrique Tudor, não tenho dúvidas. Foi

separada dele quando o colocámos sob a tutela de excelentes guardiães da

Casa de Iorque, os Herbert, e ela teve de suportar a perspectiva do seu

casamento com a herdeira da família Herbert, que era uma Iorquista. Mas

agora Guilherme Herbert está morto, perdeu a vida ao nosso serviço, e

Margarida Beaufort tem o filho de novo sob a sua guarda. Deve estar a

empurrá-lo para a corte, a incentivá-lo para que consiga favores e posições.

Deve querer que os seus títulos lhe sejam restituídos; deve querer que a sua

herança seja assegurada. Jorge, Duque de Clarence, roubou-lhe tanto o

título como as terras, e ela deve tê-las referido nas suas preces desde então.

É uma mulher extraordinariamente ambiciosa e uma mãe determinada. Não

duvido de que confisque o condado de Richmond a Jorge, no prazo de um

ano, e, se puder, o filho será nomeado herdeiro dos Lencastre, a seguir ao

príncipe.

Page 126: Philippa gregory - a rainha branca

Vejo a barcaça de Lorde Warwick, a mais bela que circula no rio, os

remadores remando ao ritmo da batida do tambor, à popa, movendo-se

velozmente contra a maré, como se nada pudesse deter este progresso em

frente, nem sequer a corrente do rio. Consigo até distingui-lo, de pé na proa

do barco, como

160

se quisesse governar até as próprias águas do rio, sem chapéu, que

leva na mão, para poder sentir o ar frio no seu cabelo escuro. Contraio os

lábios para convocar um vento, mas deixo-o seguir. Não faz diferença.

A filha mais velha de Warwick, Isabel, deve ir de mãos dadas com o

meu cunhado Jorge, nos assentos de trás da barcaça, enquanto passam

diante da minha prisão subterrânea. Talvez ela se recorde daquele Natal em

que chegou à corte como uma noiva renitente e eu fui gentil com ela, ou

talvez prefira esquecer-se da corte onde eu era a Rainha da Rosa Branca.

Jorge deve saber que estou aqui, a mulher do irmão, a mulher que se

manteve leal, quando ele não o fez: que vive na pobreza, na semiescuridão.

Deve saber que estou aqui: deve, inclusive, sentir que eu estou a observá-

lo, de olhos semicerrados, vigiando-o - este homem que, em tempos, foi

Jorge, da Casa de Iorque, e agora é um dos parentes favoritos da corte de

Lencastre.

A minha mãe pousa a mão no meu braço.

- Não lhes desejeis mal - avisa-me. - Ele volta para vós. Mais vale

esperardes. Eduardo deve estar a chegar. Não duvideis disso. Eu não

duvido, nem por um momento. Este tempo vai ser como um sonho mau. É

como António diz: sombras na parede. O que importa é que Eduardo

consiga reunir um exército suficientemente grande para derrotar Warwick.

- E como é que ele vai conseguir? - digo, olhando lá para fora, para a

cidade que agora se declara apoiante dos Lencastre. - Como é que ele pode

sequer tentar?

- Ele tem estado em contacto com os vossos irmãos e com todos os

seus parentes. Está a reunir as suas forças militares, e nunca perdeu

nenhuma batalha.

- Nunca lutou contra Warwick. E Warwick ensinou-lhe tudo o

que ele sabe sobre guerra.

- Ele é o rei - diz ela. - Mesmo que agora digam que isso não

significa nada. Foi coroado, recebeu uma ordenação divina, recebeu o óleo

consagrado no peito; não podem negar que ele é rei. Mesmo que outro rei

coroado e ordenado se sente no trono. Mas Eduardo tem sorte, e Henrique

não. Talvez tudo se resuma apenas a isso: ao facto de se ter sorte. E a Casa

de Iorque é uma casa com sorte.

Page 127: Philippa gregory - a rainha branca

161

Ela sorri.

- E é claro que nos tem a nós. Podemos desejar o seu bem, não há

mal nenhum em fazer um pequeno feitiço para atrair a boa sorte. E, se isso

não melhorar as suas hipóteses, então, nada o fará.

162

PRIMAVERA DE 1471

A minha mãe prepara tisanas, inclina-se na janela e despeja-as no rio,

murmurando palavras que ninguém consegue ouvir, atira pó para a lareira,

para fazer com que arda com cor verde e fumo. Nunca mexe as papas de

aveia das crianças sem sussurrar uma reza, vira os travesseiros duas vezes

antes de se meter na cama, bate os sapatos um contra o outro antes de os

calçar, para os libertar da má sorte.

- Alguma dessas coisas tem significado? - pergunta-me Ricardo,

olhando para a avó, que está a entrançar uma fita e a murmurar sobre ela.

Encolho os ombros.

- Às vezes - digo.

- É bruxaria? - pergunta ele nervosamente.

- Às vezes.

Depois, em Março, a minha mãe diz-me:

- Eduardo vai voltar para junto de vós. Tenho a certeza.

- Haveis tido uma visão? - pergunto.

Ela ri-se.

- Não, foi o talhante que me contou.

- O que é que o talhante vos contou? Há muitos mexericos em

Londres.

- Sim, mas ele recebeu uma mensagem de um homem de Smithfield

que trabalha nos barcos que vão para a Flandres. Ele viu uma pequena frota

navegar em direcção a norte, com as piores condições atmosféricas

possíveis, e um deles ostentava o estandarte com o Sol no seu Esplendor: a

insígnia da Casa de Iorque.

163

- Eduardo vai invadir o país?

- Talvez esteja a fazê-lo, neste preciso momento.

Em Abril, nas primeiras horas da noite, ouço o som de aplausos

vindo das ruas, no exterior, salto da minha cama e dirijo-me à janela para

ouvir. A criada da abadia bate à porta, entra a correr no quarto e balbucia:

Page 128: Philippa gregory - a rainha branca

- Vossa Graça! Vossa Graça! É ele. É o rei. Não o Rei Henrique, o

outro rei. O vosso rei. O rei da Casa de Iorque. O Rei Eduardo!

Componho a camisa de noite à minha volta e levo a mão à trança.

- Está aqui, agora? Estão a gritar-lhe vivas?

- Estão a gritar-lhe vivas agora! - exclama ela. - A acender tochas

para o orientar no caminho. A cantar e a atirar para o chão, à sua frente,

moedas de ouro. Para ele e para um grupo de soldados. E deve estar a

dirigir-se para aqui!

- Mãe! Isabel! Ricardo! Tomás! Meninas! - chamo. - Levantai-vos!

Vesti-vos! O vosso pai está a chegar. O vosso pai está a vir para junto de

nós! - agarro a criada pelo braço. - Trazei-me água quente para me lavar e o

melhor vestido que eu tenho. Deixai a lenha, não faz mal. Quem vai voltar

a sentar-se junto daquela lareira insignificante? - empurro-a para fora do

quarto para que vá buscar água e solto o meu cabelo da trança que faço

para dormir, enquanto Isabel entra a correr no meu quarto, de olhos

esbugalhados.

- A rainha má vem aí? Senhora minha mãe, a rainha má está aqui?

- Não, querida! Estamos salvos. É o vosso pai bondoso que vem

visitar-nos. Não conseguis ouvir os vivas?

Ponho-a em cima de um banco, para espreitar pelo ralo da porta,

depois passo água pelo rosto e torço o cabelo sob o meu toucado. A

rapariga traz-me o meu vestido e aperta-mo, debatendo-se com as fitas, e

depois ouvimos o estrondo da sua batida na porta e Isabel grita e salta do

banco para a abrir, e então cai, quando ele entra, mais alto e mais sério do

que ela o recorda, e num instante tenho de

164

correr para ele, descalça como estou, e estou novamente nos seus

braços.

- O meu filho - pergunta ele, depois de me ter abraçado, beijado e

esfregado o seu queixo áspero no meu rosto. - Onde está o meu filho? É

forte? Está bem?

- É forte e está bem. Faz cinco meses este mês - diz a minha mãe,

quando o traz, bem enfaixado, e faz a Eduardo uma grande vénia. - E vós

sede bem-vindo a casa, filho Eduardo, Vossa Graça.

Suavemente, ele afasta-me e dirige-se apressadamente para ela.

Tinha-me esquecido de como ele consegue mover-se com tanta celeridade,

como um dançarino. Tira o filho dos braços da minha mãe e, apesar de

murmurar “obrigado”, nem sequer a vê: está completamente distraído. Leva

o bebé até à luz da janela, e o Bebé Eduardo abre os seus olhos azul-

escuros e boceja, a sua boca semelhante a um botão de rosa a abrir-se, e

Page 129: Philippa gregory - a rainha branca

olha para o rosto do pai como se para devolver o intenso escrutínio dos

olhos cinzentos.

- Meu filho - diz ele baixinho. - Isabel, perdoai-me, por terdes de o

ter dado à luz aqui. Nunca teria querido que fosse assim.

Assinto em silêncio.

- Foi baptizado e deram-lhe o nome de Eduardo, como eu queria?

- Foi.

- E tem crescido?

- Começámos agora a dar-lhe alimentos sólidos - afirma a minha mãe

com orgulho. - E ele está a adaptar-se bem. Dorme bem e é um rapaz vivo e

esperto. A Isabel amamen- tou-o, e ninguém poderia ter sido melhor ama-

de-leite para ele. Arranjámos-vos aqui um principezinho.

Eduardo olha para ela.

- Obrigado por cuidardes dele - diz ele. - E por ficardes com a minha

Isabel - baixa os olhos. As filhas Isabel, Maria e Cecília estão reunidas à

sua volta, olhando para cima, para o pai, como se ele fosse um animal

estranho, talvez um unicórnio, que de repente surgiu, a meio galope, no seu

quarto de crianças.

Gentilmente, ele ajoelha-se para não ser tão alto em relação a elas,

ainda segurando o bebé nos braços.

165

- E vós sois as minhas meninas, as minhas princesas - diz-lhes ele

baixinho. - Lembrais-vos de mim? Estive fora muito tempo, mais do que

meio ano; mas sou o vosso pai. Estive longe de vós por muito, muito

tempo, mas nunca houve um dia em que não pensasse em vós e na vossa

bonita mãe e em que não jurasse que voltaria para junto de vós e que vos

colocaria novamente nos lugares que mereceis. Lembrais-vos de mim?

O lábio inferior de Cecília treme, mas Isabel fala:

- Eu lembro-me de vós - põe a mão no seu ombro e olha-lhe para o

rosto, sem medo. - Sou a Isabel, a mais velha. Lembro-me de vós; as outras

são muito pequenas. Recordais-vos de mim, a vossa Isabel? A Princesa

Isabel? Um dia serei Rainha da Inglaterra, como a minha mãe.

Rimo-nos das suas palavras, e ele põe-se de pé, entrega o bebé à

minha mãe e abraça-me. Ricardo e Tomás aproximam-se e ajoelham-se

diante dele para pedir a sua bênção.

- Os meus rapazes - diz ele calorosamente. - Deveis ter odiado

permanecer aqui engaiolados.

Ricardo faz um sinal afirmativo com a cabeça.

- Gostava de ter estado convosco, Senhor.

- Da próxima vez, estareis - promete-lhe Eduardo.

Page 130: Philippa gregory - a rainha branca

- Há quanto tempo estais na Inglaterra? - pergunto, as minhas

palavras a serem abafadas, porque ele começa a soltar- -me o cabelo. -

Tendes um exército?

- Vim com o vosso irmão e com os meus amigos

verdadeiros - afirma ele. - Ricardo, o meu irmão, o vosso irmão, António,

Hastings, claro, aqueles que partiram para o exílio comigo. E agora há

outros que estão a passar para o meu lado. Jorge, o meu irmão, abandonou

Warwick e vai combater por mim. Ele, Ricardo e eu voltámos a abraçar-

nos como irmãos, diante das muralhas de Coventry, debaixo do nariz de

Warwick. Jorge trouxe Lorde Shrewsbury para o nosso lado. E Sir

Guilherme Stanley juntou-se a nós. Haverá outros - penso no poder de

Warwick e na afinidade dos Lencastre, no exército francês que Margarida

irá trazer, e sei que não é suficiente.

- Esta noite posso ficar - diz ele. - Tinha de vos ver. Mas amanhã

tenho de partir para a guerra.

Mal posso acreditar no que me diz.

- Não ireis deixar-me amanhã?

166

- Querida, corri riscos em vir aqui. Warwick está refugiado em

Coventry e recusa render-se e travar uma batalha, porque sabe que

Margarida de Anjou está a chegar com o seu exército e, juntos, comporão

uma força militar poderosa. Jorge assumiu-se, está connosco e trouxe

Shrewsbury e os seus rendeiros; mas não é suficiente. Tenho de fazer

Henrique refém e partir para a enfrentar. Eles devem estar à espera de que

eu fique encurralado aqui, mas eu vou levar a batalha até eles e, se tiver

sorte, encontrarei Warwick e derrotá-lo-ei antes de ter de me debater com

Margarida e de a derrotar a ela.

A minha boca fica seca e eu engulo, com medo, só de pensar nele a

enfrentar um grande general, e depois o grande exército de Margarida.

- O exército francês virá com Margarida?

- O milagre é ela ainda não ter desembarcado. Ambos estávamos

prontos para partir ao mesmo tempo. Íamos disputar uma corrida até à

Inglaterra. Ambos fomos imobilizados pelas condições meteorológicas,

desde Fevereiro. Ela tinha a frota dela pronta para partir de Honfleur há

quase um mês, largou e foi obrigada a regressar a terra por uma

tempestade, vezes sem conta. Houve uma acalmia no vento, a meu favor,

durante pouco mais de um dia. Foi como magia, meu amor, e nós largámos,

levados pelo vento, toda a viagem até Yorkshire. Mas, pelo menos, isso dá-

me a oportunidade de os derrotar, um de cada vez, e não enfrentar um

exército unido, liderado pelos dois ao mesmo tempo.

Page 131: Philippa gregory - a rainha branca

Olho de relance para a minha mãe, ao ouvir a menção à tempestade,

mas a sua expressão é risonhamente inocente.

- Não ides partir amanhã?

- Querida, tendes-me esta noite. Vamos passar o tempo a falar?

Voltamo-nos e dirigimo-nos ao meu quarto, e ele fecha a porta com

um pontapé. Abraça-me, como sempre faz.

- Para a cama, esposa - diz ele.

Ele possui-me, como sempre, apaixonadamente, como um homem

sequioso que sacia a sua sede. Mas, por uma vez, esta

167

noite, é um homem diferente. O cheiro do seu cabelo e da sua pele é

o mesmo, e isso é o suficiente para me fazer suplicar pelo seu toque, mas,

depois de me possuir, estreita-me nos seus braços, como se, por uma vez, o

prazer não fosse suficiente. É como se quisesse algo mais de mim.

- Eduardo? - murmuro. - Estais bem?

Ele não responde, mas enterra a cabeça no meu ombro e pescoço,

como se quisesse afastar o mundo com o calor da minha carne.

- Querida, tive medo - diz ele. Quase não consigo ouvi-lo por estar a

falar tão baixo. - Querida, tive muito medo.

- De quê? - pergunto, uma pergunta tonta para um homem que teve

de se pôr em fuga para salvar a vida, que reuniu um exército no exílio e que

vai enfrentar o mais poderoso exército da Cristandade.

Ele vira-se e deita-se de costas, com a mão ainda a agarrar-me e a

manter-me encostada a ele, desde o esterno até à ponta dos pés.

- Quando disseram que Warwick vinha atacar-me, e que Jorge estava

com ele, soube que, desta vez, não iria apenas levar-me e manter-me

prisioneiro. Soube que, desta vez, iria ser a minha morte. Nunca tinha

pensado que alguém me quisesse matar, mas sabia que Warwick o faria, e

sabia que Jorge lhe permitiria que o fizesse.

- Mas conseguistes escapar.

- Fugi - disse ele. - Não foi uma retirada cuidadosa, meu amor, não

foi uma manobra. Foi uma debandada. Fugi, com medo de perder a vida e o

tempo todo soube que estava a ser cobarde. Fugi e deixei-vos ficar.

- Fugir de um inimigo não é cobardia - digo. - De qualquer forma,

haveis regressado para o enfrentar.

- Fugi e deixei-vos, e às nossas filhas, para o enfrentarem - diz ele. -

Creio que não consigo ter-me em boa conta por o ter feito. Não corri para

Londres, por vossa causa. Não vim para aqui, nem tomei uma posição

desesperada. Fugi para o porto mais próximo e apanhei o primeiro barco.

Page 132: Philippa gregory - a rainha branca

- Qualquer pessoa teria feito o mesmo. Nunca vos culpei - ergo-me,

apoiada no cotovelo, e baixo os olhos para o seu rosto. - Tínheis de fugir

para reunirdes um exército e voltar

168

para nos salvar. Toda a gente o sabia. E o meu irmão foi convosco, e

o vosso irmão Ricardo. Também eles consideraram que era a atitude mais

acertada.

- Não sei o que eles sentiram, enquanto fugiam como veados, mas eu

sei o que senti. Estava tão assustado como uma criança com um touro a

correr atrás dela.

Emudeço. Não sei como reconfortá-lo, ou o que dizer.

Ele suspira.

- Tenho lutado pelo meu país, ou pela minha vida, desde menino. E,

em todo esse tempo, nunca pensei que poderia perder. Nunca pensei que

seria capturado. Nunca pensei que morreria. É estranho, não é? Ides pensar

que sou um louco. Mas, em todo esse tempo, mesmo quando o meu pai foi

morto e o meu irmão também, nunca pensei que poderia acontecer-me.

Nunca pensei que iria ser a minha cabeça que seria decepada e espetada

numa estaca nas muralhas da cidade. Considerava-me imbatível,

invulnerável.

Aguardo.

- E agora sei que não sou - afirma. - Não disse isto a ninguém. Não o

direi a ninguém, excepto a vós. Mas não sou o homem com quem haveis

casado, Isabel. Casastes com um rapaz que não sabia o que era o medo.

Pensei que isso significava que eu era corajoso. Mas eu não era corajoso,

tinha apenas sorte. Até agora. Agora sou um homem e senti medo e fugi

dele.

Vou para dizer algo que o reconforte, uma mentira piedosa; mas

depois penso em dizer-lhe a verdade.

- Só os loucos não receiam nada - digo. - E um homem corajoso é

aquele que conhece o medo e que sai para o enfrentar. Na altura, fugistes,

mas agora voltastes. Ides fugir da batalha, amanhã?

- Valha-me Deus, não!

Sorrio.

- Então, sois o homem com quem casei. Porque o homem com quem

casei era um jovem corajoso, e vós continuais a sê-lo. O homem com quem

casei não conhecia o medo, nem tinha um filho, nem sabia o que era o

amor. Mas todas estas coisas foram-nos dadas e nós fomos mudados por

elas, mas não estragados por elas.

169

Page 133: Philippa gregory - a rainha branca

Ele olha para mim com um ar grave.

- Estais a falar a sério?

- Estou - respondo. - E eu também tive muito medo, mas convosco

aqui outra vez, já não tenho.

Ele puxa-me para ainda mais perto dele.

- Creio que agora vou dormir - diz ele, reconfortado como um

rapazinho, e eu abraço-o ternamente, como se ele fosse o meu menino.

Acordo, de manhã, perguntando-me porque estou tão alegre, porquê

o toque sedoso da minha pele, o calor no meu ventre, a minha sensação de

renovação e vida, e depois ele mexe-se ao meu lado e eu sei que me

encontro em segurança, que ele está em segurança, que estamos novamente

juntos, e que é por isso que acordei com o sol a bater na minha pele

desprotegida. No instante seguinte, lembro-me de que ele tem de partir. E,

apesar de já estar a mexer-se, não sorri, esta manhã. Isso volta a abalar-me.

Eduardo é sempre tão confiante, mas, esta manhã, a sua expressão é triste.

- Não digais uma palavra para me atrasar - diz ele, saindo da cama e

vestindo a roupa. - Não suporto ir-me embora. Não aguento ter de vos

deixar outra vez. Se me tentardes deter, juro que vou vacilar. Sorride e

desejai-me boa sorte, querida. Preciso da vossa bênção; preciso da vossa

coragem.

Engulo o meu medo.

- Tendes a minha bênção - digo, tensa. - Tendes sempre a minha

bênção. E toda a boa sorte do mundo - tento parecer alegre, mas a minha

voz treme. - Ides partir já?

- Vou buscar o Henrique a quem têm chamado rei - diz ele.

- Levá-lo-ei comigo como refém. Vi-o ontem, nos aposentos

dele, na Torre, antes de vir ter convosco. Ele reconheceu-me. Disse que

saberia que comigo, o seu primo, estaria em segurança. Parece uma criança,

coitado. Parecia não ter consciência de que era novamente rei.

- Só existe um Rei da Inglaterra - afirmo com firmeza. - E só houve

um Rei da Inglaterra desde que haveis sido coroado.

- Ver-vos-ei dentro de alguns dias - diz ele. - E vou partir

170

sem me despedir da vossa mãe e das meninas. É melhor assim.

Deixai-me partir depressa.

- Nem sequer tomais o pequeno-almoço? - não pretendo prantear-me,

mas não suporto deixá-lo partir.

- Vou comer com os homens.

- Claro - digo animadamente. - E os meus filhos?

Page 134: Philippa gregory - a rainha branca

- Levá-los-ei comigo. Podem servir de mensageiros. Mantê-los-ei o

mais seguros que puder.

Sinto o meu coração afundar-se de terror, também por eles.

- Óptimo - digo. - Além disso, voltais daqui a uma semana, não é

verdade?

- Se Deus quiser - responde ele.

Este é o homem que costumava jurar-me que nascera para morrer no

seu leito, comigo ao lado. Nunca me tinha respondido: “Se Deus quiser.”

Antes, era sempre a sua vontade que prevalecia - não a de Deus.

Detém-se à entrada da porta.

- Se eu morrer, pegai nas crianças e fugi para a Flandres - diz ele. -

Existe uma casa pobre em Tournai onde um homem me deve um favor. Ele

é um primo bastardo, ou algo do género, da família da vossa mãe. Receber-

vos-á como parente. Tem uma história preparada para justificar a vossa

presença lá. Fui falar com ele, e ele acordou comigo como deveríamos

proceder, em caso de necessidade. Já lhe paguei e escrevi o seu nome para

vós. Está na mesa do vosso quarto. Lede e queimai o papel. Podeis ficar

com ele e, quando a caça terminar, podeis ter uma casa vossa. Mas

escondei-vos lá durante um ou dois anos. Quando o meu filho for crescido,

talvez possa reivindicar os seus direitos.

- Não faleis desse assunto - digo ferozmente. - Nunca haveis perdido

nenhuma batalha, nunca perdeis. Estareis em casa daqui a uma semana, sei-

o.

- É verdade - diz ele. - Nunca perdi nenhuma batalha - consegue

esboçar um sorriso triste. - Mas nunca me defrontei com o próprio

Warwick. E não consigo reunir homens suficientes a tempo. Mas estou nas

mãos de Deus e, com a Sua vontade, venceremos.

E, com estas palavras, retira-se.

171

É Sábado de Páscoa, está escuro, e os sinos das igrejas de Londres

começam lentamente a repicar, um a seguir ao outro. A cidade está

tranquila, ainda sombria das orações de Sexta-Feira Santa, apreensiva: uma

capital que teve dois reis e agora não tem nenhum, uma vez que Eduardo

marchou para fora, levando Henrique na sua comitiva. Se ambos forem

mortos, o que será da Inglaterra? O que será de Londres? O que será de

mim e das minhas crianças adormecidas?

Eu e a minha mãe passámos o dia a costurar, a brincar com as

crianças e a fazer limpezas nos nossos aposentos. Dissemos as nossas

preces do Sábado de Páscoa, cozemos e pintámos ovos, preparando-os para

serem oferecidos como presentes no Dia de Páscoa. Assistimos à Missa e

recebemos a Sagrada Comunhão. Se alguém relatar o nosso

Page 135: Philippa gregory - a rainha branca

comportamento a Warwick, terá de dizer que estávamos calmas; irá dizer

que parecíamos confiantes. Mas agora, à medida que a tarde se vai

tornando mais cinzenta, estamos lado a lado junto da janela que dá para o

rio que passa tão perto, por baixo de nós. A minha mãe abre completamente

a janela para ouvir as ondulações silenciosas, como se o rio pudesse

murmurar notícias sobre o exército de Eduardo, e se o filho de Iorque pode

erguer-se novamente como um lírio da Quaresma, nesta Primavera, como

em tempos se ergueu.

Warwick abandonou o seu baluarte em Coventry para uma marcha

acelerada até Londres, seguro de que pode derrotar Eduardo. Os Lordes de

Lencastre afluíram ao seu estandarte, metade da Inglaterra está com ele, e a

outra metade está à espera de que Margarida de Anjou desembarque na

costa sul. O vento embruxado que a manteve imóvel no porto amainou:

estamos desprotegidas.

Eduardo recolhe homens da cidade e, a seguir, dos subúrbios de

Londres, e depois dirige-se para norte, para se defrontar com Warwick. Os

seus irmãos Ricardo e Jorge acompanham-no, e cavalgam ao longo da linha

de soldados de infantaria, relembrando-lhes que Iorque nunca perdeu uma

batalha, com o seu rei a comandar. Ricardo é adorado por todos os homens.

Confiam nele, ainda que tenha apenas dezoito anos. Jorge é

172

seguido por Lorde Shrewsbury e o seu exército de homens, e há

outros que seguem Jorge para a batalha e que não querem saber de que lado

estão quando seguem o seu senhor. No seu conjunto, constituem um

exército de cerca de nove mil homens, não mais do que isso. Guilherme

Hastings segue à direita de Eduardo, fiel como um cão. O meu irmão

António segue à retaguarda, controlando a estrada atrás deles, céptico,

como sempre.

Está a escurecer e eles começam a pensar em montar o acampamento

para passarem a noite, quando Ricardo e Tomás Grey, enviados por

Eduardo para seguirem à frente do exército, na grande estrada para norte,

para inspeccionarem o terreno à frente, voltam para trás.

- Ele está aqui! - diz Tomás. - Vossa Graça! Warwick está aqui, em

força, e estacionaram fora de Barnet, em formação de batalha, numa

serrania de terreno elevado que vem de ocidente para oriente, do outro lado

da estrada. Não vamos conseguir passar. Deve saber que estamos a chegar:

está pronto para nos receber. Bloqueou o nosso caminho.

- Silêncio, rapaz - diz Hastings pesadamente. - Não tendes de o dizer

a todo o exército. Quantos são?

Page 136: Philippa gregory - a rainha branca

- Não consegui ver. Não sei. Está a ficar muito escuro. São mais do

que nós.

Eduardo e Hastings trocam um olhar duro.

- Muitos mais? - pergunta Hastings.

Ricardo surge por trás do irmão.

- Parecem ser o dobro de nós, senhor. Talvez o triplo.

Hastings inclina-se sobre a sela em direcção a ele.

- E guardai isso para vós, também - afirma. Faz um sinal com a

cabeça para autorizar os rapazes a retirarem-se e volta-se para Eduardo. -

Vamos voltar atrás, esperamos pela manhã? Talvez retroceder até Londres?

Manter a Torre? Montar um cerco? Esperar por reforços da Borgonha?

Eduardo abana a cabeça.

- Vamos avançar.

- Se os rapazes estiverem certos, ele encontra-se em terreno elevado,

com o dobro do nosso efectivo, e à nossa

173

espera... - Hastings não precisa de terminar a previsão. A única

esperança de Eduardo contra um exército maior era o factor surpresa. O

estilo de batalha de Eduardo é a marcha rápida e o ataque surpresa, mas

Warwick sabe disso. Foi Warwick quem ensinou a Eduardo a sua estratégia

militar. Está meticulosamente preparado para ele. O mestre vai encontrar-se

com o seu pupilo e conhece todos os truques.

- Vamos avançar - diz Eduardo.

- Dentro de meia-hora, não veremos para onde estamos a ir - afirma

Hastings.

- Exactamente - responde Eduardo. - Nem eles. Ordenai aos homens

que marchem em silêncio, dai a ordem: quero silêncio absoluto. Fazei com

que se alinhem, prontos para a batalha, de frente para o inimigo. Quero-os

em posição para o despontar do dia. Atacaremos quando surgir a primeira

luz. Dizei-lhes que não façam fogueiras e que não acendam tochas:

silêncio. Dizei-lhes que essa é uma ordem minha. Irei passar uma vistoria e

murmurar-lhes. Não quero ouvir uma palavra.

Jorge e Ricardo, Hastings e António acenam afirmativamente com a

cabeça, ao ouvir as instruções, e começam a cavalgar, para a frente e para

trás, ao longo da fileira, ordenando aos homens que marchem em absoluto

silêncio e, quando as ordens forem dadas, que montem o acampamento no

sopé da serrania, de frente para o exército de Warwick. No momento em

que partem, em silêncio, pela estrada acima, o dia começa a ficar mais

escuro, o horizonte da serrania e as silhuetas dos estandartes desaparecem

no céu nocturno. A Lua ainda não se ergueu, o mundo dissolve-se na

escuridão.

Page 137: Philippa gregory - a rainha branca

- Está tudo bem - diz Eduardo, meio para si mesmo, meio para

António. - Mal os conseguimos ver, e eles estão lá em cima, contra o céu.

Eles não vão conseguir ver-nos de todo se olharem para baixo, para o vale;

tudo o que verão será o escuro. Se tivermos sorte, e se a manhã estiver

enevoada, não saberão que estamos aqui. Estaremos no vale, escondidos

pelas nuvens. Eles estarão onde podemos vê-los, como pombos no telhado

de um celeiro.

- Credes que eles irão esperar simplesmente pela manhã? - pergunta-

lhe António. - Para serem abatidos como pombos no telhado de um celeiro?

174

Eduardo abana a cabeça.

- Eu não esperaria. Warwick não esperará.

Como se em concordância, ouve-se um estrondo enorme,

terrivelmente próximo, e as chamas do canhão de Warwick cospem para a

escuridão, iluminando, numa língua de fogo amarelo, o exército que

aguardava nas trevas acima deles.

- Valha-me Deus, são pelo menos vinte mil - pragueja Eduardo.

- Dizei aos homens que se mantenham em silêncio, que passem a palavra.

Não respondam ao fogo, dizei-lhes, quero que sejam como ratos. Quero

que se comportem como ratos adormecidos.

Ouve-se uma risada abafada, quando um chalaceador sussurra um

guincho de rato. António e Eduardo ouvem a ordem sussurrada seguir ao

longo da fileira.

Os canhões ribombam novamente e Ricardo aproxima-se, o seu

cavalo negro no meio do escuro, praticamente invisível.

- Sois vós, irmão? Não consigo ver nada. O disparo está a

passar mesmo por cima das nossas cabeças, graças a Deus. Ele não faz

ideia de onde nos encontramos. Está a disparar a uma distância errada:

julga que estamos oitocentos metros mais atrás.

- Dizei aos homens que se mantenham em silêncio e ele não o saberá

até amanhecer - diz Eduardo. - Ricardo, dizei-lhes que têm de se manter

escondidos: nenhuma luz, nenhuma fogueira, silêncio absoluto - o irmão

assente e volta-se de novo para a escuridão. Eduardo chama António com o

dedo. - Pegai em Ricardo e Tomás Grey, e ide para uns mil e seiscentos

metros de distância, acendei duas ou três pequenas fogueiras, espaçadas,

como se estivéssemos a montar o acampamento no local onde os disparos

estão a cair. Depois afastai-vos delas. Dai-lhes algo que lhes sirva de alvo.

As fogueiras podem apagar-se de seguida: não volteis para junto delas para

que não sejais atingidos. Fazei apenas com que continuem a pensar que

estamos longe.

António anui e parte.

Page 138: Philippa gregory - a rainha branca

Eduardo desliza do cavalo, Fúria, para o chão, o pajem aproxima-se

e segura nas rédeas.

- Dai-lhe de comer e retirai-lhe a sela, retirai-lhe o freio da boca, mas

deixai ficar a rédea - ordena Eduardo. - Mantende

175

a sela ao vosso lado. Não sei se esta vai ou não ser uma noite longa.

E, depois, podeis descansar, rapaz, mas não por muito tempo, irei precisar

dele pronto uma boa hora antes do amanhecer, ou talvez até antes.

- Sim, Senhor - responde o rapaz. - Estão a distribuir alimentos e

água para os cavalos.

- Dizei-lhes que o façam em silêncio - repete o rei. - Dizei-lhes

que fui eu quem ordenou.

O rapaz assente com a cabeça, leva o cavalo para um local

ligeiramente afastado daquele onde se encontram os lordes.

- Montai sentinelas - diz Eduardo para Hastings. Os canhões voltam

a retumbar, fazendo-os saltar com o ruído. Conseguem ouvir o silvar das

balas por cima das suas cabeças e, depois, o baque, quando caem

demasiado longe, para sul, muito atrás da fileira do exército escondido.

Eduardo ri-se.

- Não vamos dormir muito, mas eles não vão dormir nada - comenta.

- Acordai-me depois da meia-noite, por volta das duas horas.

Retira a capa dos ombros e abre-a no chão. Tira o chapéu da cabeça e

coloca-o sobre o rosto. Alguns momentos depois, apesar do estrondo

regular do canhão e do baque do disparo, está a dormir. Hastings pega na

sua capa e estende-a, tão ternamente como uma mãe, por cima do rei

adormecido. Vira-se para Jorge, Ricardo e António.

- Sentinelas de duas horas cada um? - pergunta. - Eu encarrego-me

desta, depois desperto-vos, Ricardo, e vós e Jorge podeis vigiar os homens,

e enviar os seus batedores, depois vós, António - os três homens

concordam com a cabeça.

António enrola a capa à sua volta e deita-se ao lado do rei.

- Jorge e Ricardo estão juntos? - pergunta ele baixinho a Hastings.

- Eu confiaria em Jorge tanto quanto num gato - diz Hastings em voz

baixa. - Mas confiaria a minha vida a Ricardo. Ele fará com que o irmão

permaneça do nosso lado até a batalha ser travada. E vencida, se Deus

quiser.

- As probabilidades são poucas - diz António pensativamente.

- Nunca vi piores - diz Hastings alegremente. - Mas temos a razão do

nosso lado, e Eduardo é um comandante de sorte,

176

Page 139: Philippa gregory - a rainha branca

e os três filhos da Casa de Iorque estão juntos outra vez. Podemos

sobreviver, se Deus assim o quiser.

- Ámen a isso - António benze-se, e vai dormir.

- Além disso - diz Hastings baixinho, para si próprio -, não temos

alternativa.

Não consigo dormir no santuário de Westminster e a minha mãe fica

em vigília comigo. Algumas horas antes do amanhecer, quando a noite está

no seu período de maior escuridão e a Lua está a descer, a minha mãe abre

a janela e ficamos lado a lado, enquanto o grande rio escuro flui.

Gentilmente, expiro para a noite e, no ar frio, a minha respiração forma

uma nuvem, como neblina. A minha mãe ao meu lado suspira, a sua

respiração junta-se à minha e afasta-se numa espiral. Eu expiro mais uma e

outra vez, e agora a névoa reúne-se no rio, cinzenta, em contraste com a

água escura, uma sombra sobre o negrume. A minha mãe suspira, e a névoa

segue rio abaixo, obscurecendo a outra margem, levando o escuro da noite.

A luz das estrelas é ocultada pelas trevas, enquanto a névoa se torna mais

espessa, transformando-se em nevoeiro, e começa a espalhar-se friamente

ao longo do rio, pelas ruas de Londres, e para mais longe, para norte e para

oeste, avançando pelos vales do rio acima, mantendo a escuridão perto do

solo, de modo que, apesar de o céu se iluminar devagar, a terra continua

encoberta e os homens de Warwick, na serrania alta, fora de Barnet,

despertando na hora fria antes do amanhecer, olhando para baixo, para o

declive, à procura do inimigo, não conseguem ver nada abaixo de si, para

além de um estranho mar interior de nuvens que repousa em faixas pesadas

ao longo do vale, não conseguem ver nada do exército que está envolto e

silencioso, na escuridão, por baixo deles.

- Levai oFúria - diz Eduardo, em voz baixa, ao pajem. - Eu vou

combater a pé. Trazei-me a minha acha e a espada -

177

os outros lordes, António, Jorge, Ricardo e Guilherme Hastings, já se

encontram armados para o terror devastador do dia, os seus cavalos foram

levados para fora de alcance, selados e com freios, preparados, ainda que

ninguém o diga, para a fuga, se tudo correr mal, ou para um ataque, se as

coisas correrem bem.

- Estamos prontos? - pergunta Eduardo a Hastings.

- Tão prontos como sempre - diz Guilherme.

Eduardo levanta os olhos para a serrania, e subitamente afirma:

- Que Cristo nos salve. Estamos errados.

Page 140: Philippa gregory - a rainha branca

- O quê?

O nevoeiro levantou apenas numa pequena faixa e revela ao rei que

não está em formação do lado oposto aos homens de Warwick, frente a

frente, mas demasiado para a esquerda. Toda a ala direita de Warwick não

tem nada à sua frente. É como se o exército de Eduardo fosse um terço

mais curto. O exército de Eduardo está ligeiramente mais chegado para a

esquerda. Os homens colocados nessa zona não terão inimigo: lançar-se-ão

para a frente e não encontrarão qualquer resistência, o que os fará quebrar a

ordem da linha, mas, à direita, dispõe de muito poucos homens.

- É demasiado tarde para reagruparmos - decide ele. - Que

Cristo nos ajude, já que estamos a começar mal, fazei soar as trombetas; o

nosso momento é agora.

Os estandartes erguem-se, os galhardetes seguem lentamente, no ar

húmido, surgindo no meio do nevoeiro como uma inesperada floresta sem

folhas. As trombetas bramem, espessas e abafadas, na escuridão. Ainda não

despontou o dia e o nevoeiro torna tudo estranho e confuso.

- Atacar - ordena Eduardo, ainda que o seu exército mal consiga ver

o inimigo, e há um momento de silêncio, quando sente que os homens estão

como ele, vergados sob o peso do ar espesso, gelados até aos ossos com a

névoa, apavorados. - Atacar! - grita Eduardo, e abre caminho pela colina

acima, enquanto os seus homens o seguem, com um estrondo, ao encontro

do exército de Warwick, que, levantando-se repentinamente, a meio do

sono, de olhos cansados, consegue ouvi-los aproximar-se, e vislumbra-os

de vez em quando, mas não

178

pode ter a certeza de nada, como se tivessem surgido de uma parede,

o exército de Iorque com o seu rei à cabeça, destacando-se pela sua altura, à

cabeça, fazendo rodar uma acha, dirigindo-se a eles como um horror de

gigantes saídos das trevas.

No meio do campo, o rei avança e os Lencastre retrocedem à sua

frente, mas, no flanco, aquele fatal lado direito vazio, os Lencastre podem

atacar, pressionar, ultrapassando em número o combativo exército de

Iorque, centenas deles, contra os poucos homens que estão do lado direito.

No escuro e no meio do nevoeiro, os homens de Iorque, ultrapassados em

número, começam a tombar, à medida que o flanco esquerdo do exército de

Warwick avança pela colina abaixo, a esfaquear, a agredir com mocas, a

pontapear e a degolar, abrindo o seu caminho à força, chegando cada vez

mais perto do centro dos Iorquistas. Um homem volta-se e foge, mas não

avança mais do que alguns passos, até a sua cabeça ser cortada por um

grande oscilar de uma maça, mas esse primeiro movimento de fuga dá

origem a outro. Mais um soldado de Iorque, vendo cada vez mais homens

Page 141: Philippa gregory - a rainha branca

precipitarem-se pela colina abaixo em direcção a eles e sem qualquer

companheiro do seu lado, vira-se e dá dois passos para procurar segurança

e refúgio no nevoeiro e na escuridão. Outro segue-o, depois mais um. Um

cai, com uma espada que lhe atravessa as costas, o companheiro olha para

trás, o seu rosto branco subitamente pálido no escuro, em seguida, atira a

arma para o chão e começa a correr. Ao longo de toda a linha, os homens

hesitam, olham para trás, para a segurança tentadora da escuridão, olham

em frente e ouvem o grande troar do inimigo, que já sente a vitória, que

mal consegue ver as mãos diante do seu próprio rosto, mas que consegue

sentir o cheiro do sangue e do medo. O flanco esquerdo, sem opositores,

dos Lencastre corre pela colina abaixo, e o flanco direito de Iorque não se

atreve a enfrentá-los. Deixam cair as suas armas e fogem como veados,

correndo como uma manada, dispersando-se, aterrorizados.

Os homens do Conde de Oxford, que combatem pela Casa de

Lencastre, seguem-nos de imediato, uivando como cães de caça, seguindo-

lhes o cheiro, uma vez que continuam sem ver

179

no meio da bruma, com o Conde a incentivá-los a prosseguir até o

campo de batalha ficar para trás e o ruído da batalha ser abafado pela

névoa, e os Iorquistas em fuga perdidos; o Conde apercebe-se de que os

seus homens estão a fugir por iniciativa própria, dirigindo-se a Barnet e às

tabernas, já avançando lentamente, limpando as espadas e gabando-se da

vitória. Tem de galopar em redor deles para os ultrapassar e bloquear a

estrada com o seu cavalo. Tem de chicoteá-los. Tem de obrigar os seus

capitães a repreendê-los e a provocá-los. Tem de se inclinar na sela e de

atravessar o coração de um dos seus próprios homens, e de amaldiçoar os

outros, até conseguir que se detenham.

- A batalha não está terminada, seus filhos de uma puta! - grita-

lhes. - O Iorque ainda está vivo, assim como o irmão Ricardo, e como o

vira-casaca do seu irmão Jorge! Todos jurámos que a batalha terminaria

com as suas mortes. Vamos! Vamos! Provastes o sangue, viste-los fugir.

Vinde e acabai com eles, vinde e terminai o resto. Pensai no saque que lhes

podeis fazer! Eles estão meio derrotados, estão perdidos. Vamos fazer com

que os restantes fujam, vamos fazer com que saltem. Vamos, rapazes,

vamos, vamos, vamos vê-los correr como lebres!

Postos em ordem e persuadidos a entrar nas fileiras, os homens

voltam-se e o Conde empurra-os, a passo acelerado, de regresso de Barnet

para a batalha, o estandarte diante de si, com o emblema dos raios de sol

orgulhosamente erguido. Fica confuso com o nevoeiro e desesperado para

se juntar a Warwick, que prometeu riqueza a todos os homens que

estivessem ao seu lado, nesse dia. Mas o que De Vere de Oxford não sabe,

Page 142: Philippa gregory - a rainha branca

enquanto conduz as suas tropas de novecentos homens, é que as linhas de

batalha mudaram bruscamente. A quebra do anel do flanco direito de

Iorque e a progressão da sua esquerda empurrou o campo de batalha para

fora da serrania, e a linha de batalha percorre agora a estrada para Londres.

Eduardo ainda se encontra no seu centro; mas sente que está a perder

terreno, ficando para trás e fora da estrada, à medida que os homens de

Warwick os empurram cada vez mais. Começa a ter a sensação de derrota,

e isto é algo novo

180

para ele: tem o sabor do medo. Não consegue ver nada no meio da

bruma e do escuro, para além dos atacantes que aparecem, um atrás do

outro, saídos da névoa à sua frente, e ele reage com o instinto de um

homem cego à arremetida de homens que surgem, e que vêm, e que

continuam a vir, e a vir, com uma espada ou um machado, ou, por vezes,

uma segadeira.

Pensa na mulher e no filho bebé, que o esperam e que dependem da

sua vitória. Não tem tempo para pensar no que lhes acontecerá se falhar.

Consegue sentir os seus próprios soldados à sua volta, abrindo-lhe

caminho, como se estivessem a ser empurrados para trás pelo simples peso

dos homens adicionais de Warwick. Consegue sentir-se ficar aborrecido

com a aproximação imparável dos seus inimigos, a solicitação constante

para que oscile, invista, espete a lança, mate: ou seja morto. No ritmo da

sua resistência, tem um vislumbre, quase uma visão, de tão brilhante que é,

do irmão Ricardo: oscilando, atravessando com a lança, avançando e

avançando, e, no entanto, sentindo o braço que segura a espada ficar

cansado e falhar. Tem uma imagem na sua mente de Ricardo sozinho, no

campo de batalha, sem ele, voltando-se para enfrentar uma carga, sem um

amigo ao lado, e isso revolta-o e faz com que grite:

- Iorque! Deus e Iorque!

De Vere de Oxford, lançando apressadamente as suas tropas, dá

ordem para atacar, vendo a linha de batalha à sua frente, esperando

conduzir os seus homens para a retaguarda das linhas de Iorque, sabendo

que semeará a destruição, saindo do nevoeiro na direcção deles, tão útil

como novos reforços da Casa de Lencastre, tão aterrorizador como uma

emboscada. No escuro, investem, espadas e armas empunhadas e já

cobertas de sangue, para a retaguarda - não dos soldados de Iorque, mas do

seu próprio exército, da linha de Lencastre, que se entregou à batalha e que

está fora da colina.

- Traidor! Traição! - grita um homem, apunhalado pelas costas, que

olha em volta e vê De Vere. Um oficial da Casa de Lencastre olha por cima

do ombro e tem a mais terrível visão que se pode ter no campo de batalha:

Page 143: Philippa gregory - a rainha branca

soldados novos, vindos da retaguarda. No meio da bruma, não consegue

distinguir

181

claramente a bandeira, mas vê, tem a certeza de que vê, o Sol no seu

Esplendor, o estandarte de Iorque, esvoaçar orgulhosamente sobre a cabeça

das tropas novas que estão a correr pela estrada acima, vindas de Barnet, as

espadas desembainhadas diante de si, achas rodando nas suas mãos, as

bocas escancaradas, enquanto gritam, na sua investida poderosa. Confunde

o estandarte dos Raios de Sol de Oxford com a insígnia de Iorque. Ele e os

seus homens têm soldados de Iorque à frente, empurrando-os

violentamente, combatendo como homens que não têm nada a perder, mas

cada vez mais homens surgem da névoa, de trás, como um exército de

espectros, é mais do que qualquer homem pode suportar.

- Virar! Virar! - alguém grita em pânico, e outra voz grita:

- Reagrupar! Reagrupar! Retroceder! - e as ordens são correctas, mas

as vozes estão repletas de pânico e os homens voltam as costas ao exército

de Iorque à sua frente, para encontrarem outro exército atrás de si. Não

conseguem reconhecer os seus aliados. Julgam que estão cercados, que são

em número inferior e estão certos da sua morte, e o coração foge-lhes

apressadamente.

- De Vere! - grita o Conde de Oxford, vendo os seus homens

atacarem o seu próprio lado. - De Vere! Por Lencastre! Parai! Parai! Em

nome de Deus, parai! - mas já é tarde de mais. Aqueles que agora

reconhecem o estandarte de Oxford com os Raios de Sol e vêem De Vere

agredindo violentamente no meio da confusão, gritando para colocar os

homens em ordem, pensam que ele virou a casaca no meio da batalha,

como os homens fazem, e aqueles que estão suficientemente perto, os seus

antigos amigos, viram-se contra ele como cães furiosos, para o matar como

algo pior do que um inimigo: um traidor no campo de batalha. Mas, no

nevoeiro e no caos, a maioria das forças de Lencastre sabe apenas que um

inimigo desconhecido se encontra diante de si, avançando com soldados de

nuvens, e agora um novo batalhão surge da retaguarda, e a escuridão e a

névoa na estrada podem esconder mais, vindas de todos os lados. Quem

sabe quantos soldados se erguerão do rio? Quem sabe que horror aquele

Eduardo, casado com uma bruxa, pode invocar dos rios, fontes e cursos de

água? Conseguem ouvir

182

os sons da batalha e os gritos dos feridos; mas não conseguem ver os

seus senhores, não são capazes de reconhecer os seus comandantes. O

Page 144: Philippa gregory - a rainha branca

campo de batalha está a mudar; nem sequer conseguem ter a certeza de

quem são os seus camaradas, à meia-luz sinistra. Centenas atiram as armas

para o chão e desatam a correr. Todos sabem que esta é uma guerra na qual

não serão feitos prisioneiros. Estar do lado derrotado implicará a morte.

Eduardo, apunhalando e fendendo, precisamente no seio da batalha,

Guilherme Hastings do lado do braço que segura o escudo, de espada

desembainhada, o punhal na outra mão, brada:

- Vitória de Iorque! Vitória de Iorque! - e os seus soldados

acreditam nesse grito possante, assim como o exército de Lencastre,

atacado pela frente, no meio da escuridão, atacado pela retaguarda, no meio

do nevoeiro, e agora sem líder, enquanto Warwick grita para que o pajem o

salve, lança-se para o cavalo que o aguarda, e foge a galope.

É o sinal para que a batalha se transforme em mil aventuras.

- O meu cavalo! - grita Eduardo para o seu pajem. - Trazei-me o

Fúria! - e Guilherme junta as mãos em concha e empurra o seu senhor para

cima, para que este monte na sela, agarra as suas próprias rédeas, trepa para

o seu cavalo, e corre atrás do seu senhor, mestre e maior amigo, e os lordes

de Iorque avançam, num galope precipitado, atrás de Warwick,

amaldiçoando-o por escapar.

A minha mãe endireita as costas com um suspiro e juntas fechamos a

janela. Ambas estamos pálidas por termos passado a noite em vigília.

- Acabou - diz ela com certeza. - O vosso inimigo está morto. O

vosso principal e mais perigoso inimigo. Warwick não fará mais reis. Terá

de encontrar-se com o Rei dos Céus e explicar-lhe o que julga que tem

andado a fazer a este pobre reino cá em baixo.

- Os meus filhos estão em segurança, creio?

- Tenho a certeza disso.

183

As minhas mãos estão enroladas como garras, tal como um gato.

- E Jorge, o Duque de Clarence? - pergunto. - O que pensais que lhe

aconteceu? Dizei-me que morreu no campo de batalha!

A minha mãe sorri.

- Como sempre, está do lado do vencedor - afirma. - O vosso

Eduardo ganhou esta batalha e o leal Jorge está do seu lado. Podeis chegar

à conclusão de que tendes de perdoar Jorge pela morte do vosso pai e do

vosso irmão. Poderei ter de deixar a minha vingança para Deus. Jorge pode

sobreviver. Afinal, é irmão do próprio rei. Mataríeis um príncipe real?

Seríeis capaz de matar um príncipe da Casa de Iorque?

Abro a minha caixa de jóias e retiro o medalhão de esmalte preto.

Primo o pequeno fecho e abro-o. Lá estão os dois nomes - Jorge, Duque de

Clarence, Ricardo Neville, Conde de Warwick - escritos no pedaço de

Page 145: Philippa gregory - a rainha branca

papel que rasguei da última carta do meu pai. A carta que ele escreveu, com

esperança, à minha mãe, falando no seu resgate, nunca sonhando que

aqueles dois, que havia conhecido toda a sua vida, o matariam por um

motivo tão insignificante como o despeito. Rasgo-o ao meio e, a parte que

diz Ricardo Neville, Conde de Warwick, esmago na minha mão. Nem

sequer me dou ao trabalho de a atirar para a lareira. Deixo-a cair no chão,

calco-a e atiro-a para os juncos. Pode ser pó. O nome de Jorge volto a

colocar no meu medalhão e na minha caixa de jóias.

- Jorge não sobreviverá - digo redondamente. - Se eu mesma tiver de

segurar uma almofada sobre o seu rosto enquanto ele estiver a dormir na

cama, sob o meu telhado, como convidado em minha casa, sob a minha

protecção, o parente adorado do meu marido. Jorge não sobreviverá. Um

filho da Casa de Iorque não é inviolável. Vê-lo-ei morto. Pode estar a

dormir pacificamente na sua cama na própria Torre de Londres e eu não

deixarei de fazer com que seja morto.

Tenho dois dias com Eduardo quando ele regressa a casa da batalha,

dois dias em que nos mudamos novamente para

184

os aposentos reais da Torre de Londres, limpos à pressa e com os

pertences do pobre Henrique a serem afastados para um canto. Henrique, o

pobre rei louco, voltou aos seus antigos aposentos com barras nas janelas, e

ajoelha-se em oração. Eduardo come como se tivesse passado fome durante

várias semanas, chapinha como Melusina num prolongado banho de

imersão, possui-me sem graciosidade, sem ternura, toma-me como um

soldado toma a sua concubina, e adormece. Acorda apenas para anunciar

aos cidadãos de Londres que as histórias da sobrevivência de Warwick não

são verdadeiras: ele próprio viu o corpo do homem. Foi morto quando fugia

da batalha, quando se escapulia como um cobarde, e ordena que o seu

corpo seja exibido na Catedral de São Paulo, para que não haja dúvidas de

que o homem está morto.

- Mas não vou permitir que seja desonrado - afirma.

- Eles espetaram a cabeça do nosso pai numa estaca, no portão de

Iorque - relembra-lhe Jorge. - Com uma coroa de papel na cabeça.

Devíamos espetar a cabeça de Warwick numa estaca, na Ponte de Londres,

esquartejar o seu cadáver e distribuí-lo por todo o reino.

- É um bonito plano que propondes para o vosso sogro - comento. -

Isso não irá perturbar um pouco a vossa mulher, enquanto desmembrais o

seu pai? Além disso, pensei que havíeis jurado amá-lo e segui-lo?

- Warwick pode ser sepultado com honra pela sua família na Abadia

de Bisham - decide Eduardo. - Não somos selvagens. Não fazemos guerra a

cadáveres.

Page 146: Philippa gregory - a rainha branca

Temos dois dias e duas noites juntos, mas Eduardo está à espera de

um mensageiro, e mantém as tropas armadas e prontas, e então o

mensageiro chega. Margarida de Anjou desembarcou em Weymouth,

demasiado tarde para apoiar o seu aliado, mas pronta para lutar pela sua

causa sozinha. De imediato, recebemos relatórios da sublevação da

Inglaterra. Lordes e escudeiros que não reuniriam os seus homens por

Warwick consideram seu dever apoiar a rainha, quando ela aparece armada

para a batalha, e o marido dela, Henrique, está detido por nós, o seu

inimigo. As pessoas começam a dizer que esta é a última batalha, a que vai

contar: uma última batalha, que significará tudo. Warwick está morto; não

185

intermediários. É a Rainha da Casa de Lencastre contra o Rei

Eduardo, a Casa Real de Lencastre contra a Casa Real de Iorque, e todos os

homens de todas as aldeias do reino têm de fazer uma escolha; e muitos

escolhem-na a ela.

Eduardo ordena aos seus lordes, de todos os condados, que venham

ao seu encontro, totalmente armados e com um número apropriado de

homens, exige que todas as cidades lhe enviem tropas e dinheiro para lhes

pagar, não isenta nenhuma.

- Tenho de partir de novo - diz ele ao amanhecer. - Mantende o meu

filho em segurança. Seja o que for que acontecer.

- Mantende-vos em segurança - respondo. - Seja o que for que

acontecer.

Ele acena, pega na minha mão e leva a minha palma à sua boca,

fecha os meus dedos sobre o seu beijo.

- Sabeis que vos amo tanto hoje como quando me esperastes

debaixo daquele carvalho?

Anuo. Não consigo falar. Ele parece-me um homem que faz as suas

despedidas.

- Óptimo - diz ele apressadamente. - Recordais que, se correr mal,

deveis levar as crianças para a Flandres? Lembrais-vos do nome do

pequeno barqueiro de Tournai com quem deveis ir ter para que vos

esconda?

- Lembro - murmuro. - Mas não vai correr mal.

- Deus queira - responde ele, e com essas últimas palavras roda sobre

os calcanhares e sai para enfrentar mais uma batalha.

Os dois exércitos correm, um contra o outro, o de Margarida dirige-

se para Gales para reunir reforços, Eduardo, no seu encalço, tentando isolá-

la. As forças de Margarida, comandadas pelo Conde de Somerset,

juntamente com o filho dela, o jovem príncipe cruel que comanda as suas

Page 147: Philippa gregory - a rainha branca

próprias tropas, avançam pelas zonas rurais, dirigindo-se para oeste, para

Gales, onde Jasper Tudor irá sublevar os Galeses a favor deles e onde os

habitantes da Cornualha irão ao seu

186

encontro. Depois de chegarem às montanhas de Gales, serão

imbatíveis. Jasper Tudor e o seu sobrinho Henrique Tudor podem fornecer-

lhes um porto seguro e exércitos preparados. Ninguém conseguirá tirá-los

da fortaleza de Gales, podem reunir as forças que quiserem e marchar sobre

a Inglaterra em força.

Com Margarida, viaja a pequena Ana Neville, a filha mais nova de

Warwick, a noiva do príncipe, cambaleando, ao receber a notícia da morte

do pai, da traição do cunhado Jorge, Duque de Clarence, abandonada pela

mãe, que se encerrou num convento, na sua dor pela perda do marido.

Devem compor um trio desesperado, tudo apostado na vitória, e tanto já

perdido.

Eduardo, tendo partido para fora de Londres, reunindo as tropas à

medida que progride, está desesperado para os apanhar antes que

atravessem o grande rio Severn e desapareçam nas montanhas de Gales.

Quase de certeza que não irá ser possível. É uma distância demasiado

grande para percorrer e demasiado rápido para marchar, e as suas tropas,

esgotadas da batalha em Barnet, nunca chegarão lá a tempo.

Mas o primeiro ponto de travessia de Margarida, em Gloucester, é-

lhe barrado. A ordem de Eduardo é para que não sejam autorizados a

atravessar o rio para Gales, e o forte de Gloucester espera por Eduardo, e

barra o vau. O rio, um dos mais fundos e mais fortes da Inglaterra, está alto,

e a corrente acelerada. Sorrio ao pensar nas águas da Inglaterra a virarem-

se contra a rainha francesa.

Em alternativa, o exército de Margarida tem de se dirigir para norte e

avançar rio acima para procurar outro local onde possa atravessar, e agora o

exército de Eduardo só se encontra trinta e dois quilómetros atrás deles,

trotando como cães de caça, impelidos a avançar pelo chicote de Eduardo e

do irmão Ricardo. Nessa noite, o exército da Casa de Lencastre monta o

seu campo num velho castelo em ruínas, à saída de Tewkesbury, protegidos

das condições climatéricas pelas paredes prestes a desmoronarem-se, certos

de poderem atravessar o rio pelo vau, na manhã seguinte. Esperam, com

alguma confiança, pelo exausto exército de Iorque, que marcha

directamente de uma batalha para a outra, e corre agora,

187

Page 148: Philippa gregory - a rainha branca

esfarrapado, numa marcha forçada de cinquenta e oito quilómetros

num só dia, de uma ponta à outra do país. Eduardo pode apanhar o inimigo,

mas pode ter esgotado o espírito dos seus próprios soldados na corrida para

a batalha. Conseguirá lá chegar, mas com soldados sem fôlego, que não

estão preparados para nada.

188

3 DE MAIO DE 1471

A Rainha Margarida e a sua infeliz nora, Ana Neville, requisitam

uma casa próxima denominada Payne’s Place, e aguardam pela batalha

que, acreditam, fará delas Rainha e Princesa de Gales. Ana Neville passa a

noite ajoelhada, rezando pela alma do pai, cujo corpo se encontra em

exibição, para que todos os cidadãos o vejam, nos degraus diante do altar

da Catedral de São Paulo, em Londres. Ela reza pelo sofrimento da mãe,

que, depois de desembarcar na Inglaterra, tomou conhecimento, antes ainda

de os seus pés terem tido tempo de secar, que o marido havia sido

derrotado, morto ao fugir de uma batalha, e que era viúva. A Duquesa

viúva, Ana de Warwick, recusou dar mais um passo que fosse com o

exército de Lencastre, e encerrou-se na Abadia de Beaulieu, abandonando

as duas filhas aos seus maridos inimigos: uma, casada com o príncipe de

Lencastre, e a outra, com o Duque de Iorque. A pequena Ana reza pelo

destino da irmã, Isabel, presa para toda a vida ao vira-casaca de Jorge, e

agora novamente uma Condessa de Iorque, cujo marido combaterá do lado

oposto da batalha, amanhã. Reza, como sempre faz, para que Deus envie a

luz da Sua razão ao seu jovem marido, o Príncipe Eduardo de Lencastre,

que se torna cada dia mais perverso e cruel, e reza por si mesma, para poder

sobreviver a esta batalha e, de algum modo, regressar outra vez a casa. Já

não sabe muito bem onde poderá ser a sua casa.

O exército de Eduardo é comandado pelos homens que ele adora: os

irmãos, ao lado de quem morreria de bom grado, se for a vontade de Deus

que morram nesse dia. Os seus medos

189

acompanham-no; agora sabe como é a derrota e nunca voltará a

esquecê-la. Mas também sabe que não há meio de evitar esta batalha: tem

de persegui-la com a marcha forçada mais célere que a Inglaterra já viu.

Pode muito bem sentir medo; mas, se pretende ser rei, terá de lutar, e de

lutar melhor do que alguma vez o fez. O irmão, Ricardo, Duque de

Gloucester, ordena as tropas à frente de todos, lidera com a sua feroz,

inteligente e leal coragem. Eduardo trava a batalha no centro, e Guilherme

Page 149: Philippa gregory - a rainha branca

Hastings, que daria a sua vida para impedir que uma emboscada alcançasse

o rei, defende na retaguarda. Para António Woodville, Eduardo tem uma

necessidade especial.

- António, quero que vós e Jorge pegueis num pequeno grupo de

lanceiros, e que vos escondais nas árvores, à nossa esquerda - diz Eduardo

em voz baixa. - Tereis duas tarefas aí. Primeiro, certificar-vos-eis de que

Somerset não envia quaisquer tropas das ruínas do castelo para nos

surpreenderem pela esquerda, e observareis a batalha e lançareis um ataque,

quando o considerardes necessário.

- Confiais assim tanto em mim? - pergunta António, pensando nos

dias em que os dois jovens eram inimigos e não irmãos.

- Confio - responde Eduardo. - Mas, António... Sabeis que sois um

homem sábio, um filósofo, e a morte e a vida são semelhantes para vós?

António faz uma careta.

- Só possuo alguns conhecimentos, mas prezo muito a minha vida,

Senhor. Ainda não consegui ascender a esse nível de desapego.

- Nem eu - diz Eduardo com fervor. - E também prezo muito os meus

órgãos genitais, irmão. Certificai-vos de que a vossa irmã pode colocar

mais um príncipe no berço - diz ele sem rodeios. - Poupai os meus

testículos para ela, António.

António ri-se e faz uma saudação simulada.

- Far-me-eis sinal, se necessitardes de mim?

- Ireis ver claramente se estiver a passar por necessidades. O meu

sinal será quando estiver com ar de quem está a ser derrotado - diz ele

directamente. - Não deixeis chegar a esse ponto, é tudo o que vos peço.

190

- Farei o meu melhor, Senhor - concorda António, num tom

uniforme, e volta-se para conduzir a sua companhia de duzentos lanceiros

para o esconderijo.

Eduardo espera apenas até conseguir ver que eles se encontram em

posição e que são invisíveis para a força dos Lencastre, que se encontra

atrás das muralhas do castelo, na colina, e depois dá uma ordem para o seu

canhão.

- Fogo!

Ao mesmo tempo, a tropa de arqueiros de Ricardo lança uma chuva

de setas. O tiro do canhão atinge as paredes em ruínas do velho castelo e

blocos de pedras desmoronam-se, com as balas de canhão, sobre as cabeças

dos homens que se abrigam em baixo. Ouve-se um grito, quando um

homem é atingido agonizantemente com uma seta na face, e, depois, mais

uma dezena grita, enquanto as setas certeiras caem como saraiva sobre eles.

O castelo demonstra ser mais uma ruína do que uma fortaleza. Não há

Page 150: Philippa gregory - a rainha branca

abrigo por trás das paredes, e os arcos a desabarem e as pedras a caírem são

mais um perigo do que um refúgio. Os homens saem, espalhando-se em

todas as direcções, alguns deles a correrem pela colina abaixo, antes de lhes

ser dada ordem para avançarem, outros virando para Tewkesbury, em

retirada. Somerset grita para que o exército se agrupe e invista pela colina

abaixo em direcção às tropas do rei, que estão abaixo, mas os seus homens

já estão em fuga.

Gritando de raiva, e ajudados pela inclinação do solo, correndo cada

vez mais rápido, as tropas de Lencastre lançam-se com violência para baixo

e apontam ao centro das forças de Iorque onde o rei, alto, com a coroa

sobre o capacete, está pronto para os receber. Eduardo é iluminado por uma

alegria viva e implacável que acabou por conhecer, após uma juventude

passada em batalhas. Assim que os homens de Lencastre abrem caminho

em direcção a ele pela primeira fileira, saúda-os com o seu sabre numa mão

e um machado na outra. As longas horas de treino nas justas, a pé, na arena,

entram em acção e os seus movimentos são tão rápidos e naturais como os

de um leão espicaçado: uma estocada, uma rosnadela, uma volta, uma

punhalada. Os homens continuam a vir na sua direcção e ele nunca hesita.

Apunhala gargantas desprotegidas,

191

para cima e sob o capacete. Corta inteligentemente o braço que

segura a espada de um homem, por cima da axila exposta. Pontapeia um

homem na zona genital e, quando a vítima se dobra, desce o machado sobre

a sua cabeça, esmagando-lhe o crânio.

Mal o choque do impacto faz recuar as tropas de Iorque, o flanco

comandado por Ricardo intervém pela lateral, e começa a mutilar e a

apunhalar, uma carnificina impiedosa, com o jovem Duque precisamente

no seio da batalha, pequeno, cruel, um matador no campo, um aprendiz do

terror. A pressão determinada dos homens de Ricardo quebra a carga em

frente do exército de Lencastre, e este hesita. Como sempre, no combate

mão a mão existe um intervalo, enquanto até os homens mais fortes

recuperam o fôlego; mas, nesta pausa, os Iorque lançam-se para a frente,

encabeçados pelo rei, com Ricardo ao lado. E começam a empurrar os

Lencastre para trás, para o cimo da colina, onde está o seu refúgio.

Ouve-se um grito, um grito frio e aterrorizador de homens

determinados, vindo do bosque à esquerda da batalha, onde ninguém sabia

que havia soldados escondidos. E duzentos, ainda que pareçam ser dois

mil, lanceiros, mortalmente armados, mas de pés ágeis, surgem a correr

rapidamente em direcção aos Lencastre, o melhor cavaleiro da Inglaterra,

António Woodville, muito à frente, na liderança. As suas lanças estão

estendidas à sua frente, ansiosas pelo golpe, e os soldados de Lencastre

Page 151: Philippa gregory - a rainha branca

erguem os olhos da batalha indolente e vêem-nos voar, como um homem

poderia ver uma tempestade de relâmpagos: a morte a surgir demasiado

rápido para poder ser evitada.

Correm, não conseguem fazer mais nada. As lanças alcançam-nos

como duzentas lâminas numa única arma letal. Conseguem ouvir o uivo

delas atravessar o ar, antes dos gritos, quando estas atingem os seus alvos.

Os soldados vão uns de encontro aos outros, numa tentativa de fugirem,

subindo a colina, e os homens de Ricardo seguem-nos e ceifam-nos, sem

um momento de misericórdia, os homens de António aproximando-se deles

com celeridade, desembainhando espadas e punhais. Os soldados de

Lencastre correm para o rio e atravessam com dificuldade, ou nadam, ou,

empurrados para o

192

fundo pelo peso da armadura, afogam-se num frenesim, debatendo-

se no meio dos juncos. Correm para o parque, e os homens de Hastings

cerram fileiras em redor deles e retalham-nos como se fossem lebres no

final de uma colheita, quando os segadores formam um círculo em volta do

último pé de trigo e ceifam os animais assustados. Viram-se para correr

para a cidade, e as tropas do próprio Eduardo, com ele à cabeça,

perseguem-nos como veados exaustos e apanham-nos para a carnificina. O

rapaz a quem chamam Príncipe Eduardo, Eduardo de Lencastre, Príncipe

de Gales, está entre eles, do lado de fora das muralhas da cidade, e eles

abatem-nos a todos no ataque, com espadas cintilantes e lâminas

ensanguentadas, entre gritos clamando por misericórdia, sem piedade.

- Poupai-me! Poupai-me! Sou Eduardo de Lencastre, nasci para ser

rei, a minha mãe... - o resto perde-se num gorgolejar de sangue real,

quando um soldado de infantaria, um homem comum, espeta a faca na

garganta do jovem príncipe, acabando assim com as esperanças de

Margarida de Anjou, a vida do seu filho e a linha dos Lencastre, pelo lucro

de um belo cinto e uma espada gravada.

Não é um divertimento para o rei; é uma actividade tremendamente

desagradável, e Eduardo repousa apoiado na sua espada, limpa o punhal, e

assiste, enquanto os seus homens rasgam gargantas, cortam intestinos,

esmagam crânios e partem pernas, até o exército de Lencastre estar a gritar

no chão, ou ter fugido para bem longe, e a batalha, pelo menos esta batalha,

estar vencida.

Mas há sempre um rescaldo, e é sempre confuso. A alegria de

Eduardo na batalha não se estende a matar prisioneiros nem a torturar

cativos. Nem sequer lhe agrada uma decapitação judicial, ao contrário da

maioria dos senhores da guerra do seu tempo. Mas os lordes de Lencastre

procuraram refúgio na Abadia de Tewkesbury e não podem ser autorizados

Page 152: Philippa gregory - a rainha branca

a permanecer nesse lugar, nem a receber salvos-condutos para regressarem

a casa.

- Trazei-os para fora - diz Eduardo secamente a Ricardo, o seu

irmão, os dois unidos num desejo de acabar com tudo. Volta-se para os

rapazes Grey, os seus enteados. - Vós, ide, e

193

procurai os lordes de Lencastre sobreviventes do campo de batalha,

retirai-lhes as armas e prendei-os.

- Eles alegam que pediram refúgio num sítio sagrado - lembra

Hastings. - Estão na Abadia, agarrados ao altar-mor. A vossa própria

mulher só sobrevive porque um lugar sagrado foi respeitado. O vosso único

filho nasceu em segurança nesse mesmo lugar.

- Uma mulher. Um bebé - diz Eduardo bruscamente. - Esse tipo de

protecção é para os indefesos. O Duque Edmundo de Somerset não é

indefeso. É um traidor que negoceia com a morte e Ricardo vai retirá-lo da

Abadia e levá-lo para o cadafalso da praça do mercado de Tewkesbury.

Não é verdade, Ricardo?

- Sim - responde Ricardo brevemente. - Tenho maior respeito pela

vitória do que por qualquer santuário - leva a mão ao cabo da espada e

dirige-se para arrombar a porta da Abadia, ainda que o superior do

convento se agarre ao seu braço que segura a espada e lhe suplique que

tema a vontade de Deus e que mostre misericórdia. O exército de Iorque

não lhe dá ouvidos. Não existe perdão. Os homens de Ricardo arrastam os

suplicantes aos gritos, e Ricardo e Eduardo ficam a ver os seus homens

esfaquearem os prisioneiros que lhes suplicam que exijam um resgate, no

cemitério, onde se agarram às lápides, pedindo aos mortos que os salvem,

até os degraus da abadia ficarem escorregadios de sangue e o solo sagrado

cheirar como um açougue, como se nada fosse sagrado. Porque já nada é

sagrado na Inglaterra.

194

14 DE MAIO DE 1471

Aguardamos notícias na Torre, quando o som das ovações me diz

que o meu marido chegou a casa. Desço a correr as escadas de pedra, os

meus tacões a baterem, as minhas filhas atrás de mim; no entanto, quando o

portão se abre e os cavalos entram ruidosamente, não é o meu marido, mas

o meu irmão António que lidera as tropas, sorrindo-me.

- Irmã, trago-vos boas notícias, o vosso marido está bem e venceu

uma grande batalha. Mãe, dai-me a vossa bênção, preciso dela.

Page 153: Philippa gregory - a rainha branca

Salta do cavalo e faz-me uma vénia, a seguir, vira-se para a nossa

mãe, tira a boina e ajoelha-se, enquanto ela pousa a mão na sua cabeça. Há

um momento de tranquilidade quando ela lhe toca. Esta é uma verdadeira

bênção, não o gesto vazio que a maior parte das famílias faz. Os

pensamentos dela estão com ele, o seu filho mais talentoso, e ele inclina a

cabeça loira diante dela. Depois, ergue-se e volta-se para mim.

- Contar-vos-ei tudo mais tarde, mas podeis estar certa de que ele

obteve uma grande vitória. Margarida de Anjou está sob a nossa guarda, é

nossa prisioneira. O filho está morto: não tem herdeiro. As esperanças de

Lencastre acabaram no meio do sangue e da lama. Eduardo gostaria de

estar convosco, mas marchou para norte, onde há mais rebeliões por

Neville e pelos Lencastre. Os vossos filhos estão com ele e encontram-se

bem, têm sido corajosos. A mim, ele enviou-me para vos proteger, bem

como a Londres. Os homens de Kent sublevaram-se contra nós, e Tomás

Neville apoia-os. Metade

195

deles é composta por bons homens, mal orientados, mas a outra

metade não passa de ladrões à procura de saques. A parte mais pequena e

mais insignificante é constituída por aqueles que pensam que conseguem

libertar o Rei Henrique e capturar-vos, e juraram fazê-lo. Neville vem a

caminho de Londres com uma pequena frota de navios. Tenho de ir falar

com o presidente da Câmara e os líderes da cidade, e de organizar a defesa.

- Vamos ser atacados aqui?

Ele assente.

- Eles foram derrotados, o herdeiro deles está morto, mas, mesmo

assim, querem continuar com a guerra. Irão escolher outro herdeiro para a

Casa de Lencastre: Henrique Tudor. Devem estar a jurar que obterão

vingança. Eduardo mandou-me para vos defender. No pior dos cenários,

tenho de organizar a vossa retirada.

- Corremos perigo real?

Ele anui.

- Lamento, irmã. Eles têm navios e o apoio da França, e Eduardo

levou todo o exército para norte - faz-me uma vénia e vira-se, dirigindo-se

à Torre, gritando para o governador que o presidente da Câmara deve ser

admitido imediatamente e que pretende um relatório sobre a prontidão da

Torre para um cerco.

Os homens entram e confirmam que Tomás Neville tem navios no

mar, ao largo de Kent, e que jurou apoiar uma marcha dos homens de Kent,

navegando Tamisa acima e ocupando Londres. Acabámos de vencer uma

batalha dramática, e matámos um rapaz, o herdeiro do trono, e deveríamos

estar em segurança; mas continuamos a correr perigo.

Page 154: Philippa gregory - a rainha branca

- Porque é que ele o faria? - pergunto. - Acabou. Eduardo de

Lencastre morreu, o primo dele, Warwick, está morto, Margarida de Anjou

foi feita cativa, Henrique é nosso prisioneiro e está detido nesta mesma

Torre. Porque é que Neville enviaria navios de Gravesend e teria

esperanças de ocupar Londres?

- Porque não acabou - comenta a minha mãe. Andamos a passear nas

muralhas da Torre, tenho o bebé nos braços para apanhar ar, as meninas

acompanham-nos. Eu e a minha mãe,

196

olhando lá para baixo, conseguimos avistar António a supervisionar

o estender do canhão para que aponte para jusante, e a ordenar que sejam

empilhados sacos com areia do rio atrás das portas e janelas da Torre

Branca. Olhando para jusante, conseguimos ver os homens trabalharem nas

docas, empilhando sacos com areia e enchendo baldes com água, deixando-

os preparados, com receio de um incêndio nos armazéns, quando Neville

subir o rio com os seus navios.

- Se Neville tomar a Torre, e se Eduardo for derrotado a norte,

começa tudo de novo - assinala a minha mãe. - Neville pode libertar o Rei

Henrique. Margarida pode reunir-se com o marido, talvez possam fazer

mais um filho. A única forma de acabar com a linhagem deles de vez, a

única forma de acabar com estas guerras para sempre, é a morte. A morte

de Henrique. Acabámos com o herdeiro; agora temos de matar o pai.

- Mas Henrique tem outros herdeiros - digo. - Ainda que tenha

perdido o filho. Margarida Beaufort, por exemplo. A Casa de Beaufort

continua com o seu filho, Henrique Tudor.

A minha mãe encolhe os ombros.

- Uma mulher - diz ela. - Ninguém vai partir para a batalha para

colocar uma rainha neste trono. Quem conseguiria manter a Inglaterra se

não um soldado?

- Ela tem um filho, o rapaz Tudor.

A minha mãe encolhe os ombros.

- Ninguém vai combater por um adolescente. Henrique Tudor não é

importante. Henrique Tudor nunca poderia ser Rei da Inglaterra. Ninguém

combateria por um Tudor contra um rei Plantageneta. Os Tudor são apenas

metade reais, e isso tem origem na família real francesa. Ele não constitui

uma ameaça para vós - olha pelo canto do olho da muralha branca para a

janela com barras, onde o esquecido Rei Henrique está, de novo, entregue

às orações. - Não, depois de ele estar morto, a linha dos Lencastre está

terminada e todos estaremos em segurança.

- Mas quem seria capaz de o matar? Ele é um homem indefeso, meio

louco. Quem teria um coração tão duro ao ponto de conseguir matá-lo,

Page 155: Philippa gregory - a rainha branca

quando ele é nosso prisioneiro? - baixo a voz. Os aposentos dele são

mesmo por baixo de onde nos

197

encontramos. - Ele passa os dias ajoelhado num genuflexório a olhar

fixamente, sem falar, para fora da janela. Matá-lo seria como massacrar um

louco. E há aqueles que dizem que ele é um louco sagrado. Há aqueles que

dizem que é um santo. Quem se atreveria a matar um santo?

- Espero que o vosso marido o faça - diz a minha mãe sem rodeios. -

Porque a única forma de tornar o trono da Inglaterra seguro é segurar uma

almofada sobre o seu rosto e ajudá-lo a dormir um sono prolongado.

Uma sombra atravessa o sol e eu puxo o meu bebé para mim, como

se para o impedir de ouvir um conselho tão amargo. Arrepio-me como se

fosse a minha própria morte, a que a minha mãe está a prever.

- O que se passa? - pergunta-me ela. - Estais com frio? Quereis que

voltemos para dentro?

- É a Torre - digo eu, irritada. - Sempre detestei a Torre. E vós, a

fazerdes essas afirmações tão vis, como matar um prisioneiro na Torre, que

não se pode defender! Nem sequer devíeis falar dessas coisas, sobretudo

em frente do bebé. Quem me dera que tudo isto estivesse terminado e que

pudéssemos voltar para o Palácio de Westminster.

Ao longe, lá em baixo, o meu irmão António olha para cima e acena-

me, para me fazer sinal de que os canhões se encontram posicionados e que

estamos preparados.

- Em breve, poderemos partir - diz a minha mãe num tom

reconfortante. - Eduardo regressará a casa e vós ficareis novamente em

segurança com o bebé.

Mas, nessa noite, o alarme soa, todos saltamos das nossas camas, eu

agarro o bebé e as minhas filhas vêm a correr para junto de mim, António

abre a porta do meu quarto e diz:

- Sede corajosas, eles estão a subir o rio e vai haver disparos.

Mantende-vos longe das janelas.

Fecho e tranco as portadas das janelas, corro as cortinas em volta da

enorme cama, salto lá para dentro com as meninas e o bebé, e ponho-me à

escuta. Conseguimos ouvir a explosão dos canhões a dispararem e o

assobio das balas no ar, e, em seguida ouvimos um baque, quando eles

atingem as muralhas da Torre; Isabel, a minha filha mais velha, olha para

mim, de rosto pálido, o lábio inferior a tremer, e sussurra:

198

- É a rainha má?

Page 156: Philippa gregory - a rainha branca

- O vosso pai derrotou a rainha má e ela é nossa prisioneira, assim

como o rei - digo, pensando em Henrique, que se encontra nos aposentos

por baixo dos nossos e perguntando-me se alguém se terá lembrado de

fechar as suas portadas e de o manter longe das janelas. Seria bem feito

para Neville, e poupar-nos-ia muitos problemas, se ele matasse o seu

próprio rei com um disparo de canhão, esta noite.

Ouve-se o estrondo dos nossos canhões, nos seus suportes diante da

Torre, e as janelas iluminam-se brevemente com uma rajada de disparos.

Isabel encolhe-se contra mim.

- Aquilo é o nosso canhão, que está a disparar contra os navios dos

homens maus - digo alegremente. - É um primo de Warwick, Tomás

Neville, que é demasiado estúpido para saber que a guerra terminou e que

vencemos.

- O que é que ele quer? - pergunta Isabel.

- Ele quer começar tudo de novo - respondo amargamente.

- Mas o vosso tio António está preparado para o enfrentar, e tem os

grupos treinados em Londres a postos, nas muralhas de Londres, e todos os

rapazes aprendizes, que gostam de uma briga, estão prontos a defender a

cidade. E depois o vosso pai regressará a casa.

Ela olha para mim com os seus enormes olhos cinzentos. Pensa

sempre mais do que diz, a minha pequena Isabel. Tem estado em guerra

desde criança; neste preciso momento, sabe que é uma peça no tabuleiro de

xadrez da Inglaterra. Sabe que vai ser usada como moeda de troca, sabe que

tem um valor, sabe que tem estado em perigo toda a sua vida.

- E, nessa altura, isto vai acabar? - pergunta-me.

- Sim - prometo ao seu rostinho incerto. - Então, tudo irá acabar.

Passamos três dias debaixo de cerco, três dias de bombardeamentos,

e, depois, os assaltos dos homens de Kent e os navios de Neville, com

António e os nossos parentes, Henrique Bourchier, o Conde de Essex, a

organizarem a defesa. Cada dia, mais membros da minha família confluem

199

para a Torre, as minhas irmãs e os seus maridos, a mulher de

António, as minhas antigas damas de companhia, todos a pensarem que é o

lugar mais seguro, numa cidade sob cerco, até António decretar que já

temos oficiais e homens suficientes para um contra-ataque.

- A que distância se encontra Eduardo? - pergunto nervosamente.

- Da última vez que recebemos notícias suas, estava a quatro dias de

distância - afirma. - Demasiado longe. Não nos atrevemos a esperar que ele

chegue. E eu penso que conseguimos derrotá-los com as forças que tenho.

- E se perderdes? - pergunto ansiosamente.

Ele ri-se.

Page 157: Philippa gregory - a rainha branca

- Nesse caso, irmã Rainha, tendes de ser uma rainha militante e de

serdes vós mesma a comandar a defesa da Torre. Podeis aguentar-vos

durante dias. O que temos de fazer é expulsá-los agora, antes de

começarem a aproximar-se. Se eles apertarem o cerco à Torre, ou

aumentarem o fogo dos canhões, ou se, Deus não permita, conseguirem

entrar, de algum modo, poderíeis morrer antes de Eduardo chegar a casa.

Assinto.

- Prossegui, então - afirmo severamente. - Atacai-os.

Ele faz-me uma vénia.

- Haveis falado como uma verdadeira Iorquista - afirma ele. - Toda a

família de Iorque é composta por pessoas sedentas de sangue, nascidas e

educadas no campo de batalha. Esperemos que, quando, por fim,

alcançarmos a paz, não se matem uns aos outros, por puro hábito.

- Primeiro, vamos conseguir a paz, e depois preocupamo-nos com o

facto de os irmãos Iorque poderem destruir tudo - afirmo.

Ao amanhecer, António está pronto. Os grupos treinados em Londres

estão bem armados e instruídos. Esta é uma cidade que se encontra em

guerra há dezasseis anos, e todos os aprendizes têm uma arma e sabem usá-

la. Os homens de Kent, sob o comando das forças de Neville, estão

acampados a toda a volta da Torre e das muralhas da cidade, mas estão a

dormir, quando a porta da galeria subterrânea para a Torre se

200

abre e António e os seus homens saem em fila, silenciosamente.

Seguro na porta para eles saírem; Henrique Bourchier é o último a sair.

- Vossa Graça, minha prima, trancai-a atrás de nós e refugiai-vos

num lugar seguro - diz-me ele.

- Não, esperarei aqui - afirmo. - Se correr mal para vós, estarei aqui

para deixar o meu irmão entrar e todos vós com ele.

Ele sorri ao ouvir aquelas palavras.

- Bem, espero que regressemos com uma vitória - afirma ele.

- Desejo-vos felicidades - respondo.

Deveria fechar e trancar a porta atrás deles, mas não o faço. Fico à

entrada do portão para observar. Imagino-me uma heroína de uma história,

a bela rainha que envia os seus cavaleiros para a batalha e que depois fica a

velá-los, como um anjo.

A princípio, é o que parece. O meu irmão, de cabeça desprotegida,

com a sua couraça belamente gravada, avança tranquilamente para o

campo, o seu sabre na mão, seguido pelos seus homens, os nossos amigos

leais e aqueles que são nossos parentes. Sob o luar, parecem cavaleiros

numa busca, o rio a cintilar por trás deles, o céu nocturno escuro por cima

deles. Os rebeldes estão acampados no campo, à beira-rio; existem mais,

Page 158: Philippa gregory - a rainha branca

aquartelados nas ruas sujas e estreitas em redor. São homens pobres; há

alguns em tendas e abrigos, mas a maioria dorme no chão, junto de

fogueiras. Nas ruas, fora das muralhas da cidade, existem inúmeras

tabernas e prostíbulos, e metade dos homens está embriagada. As tropas de

António formam em três linhas, e depois, ao ouvirem a palavra murmurada,

tudo muda. Colocam os elmos nas cabeças, baixam as viseiras sobre os

seus olhos bondosos, desembainham as espadas, soltam a bola pesada das

suas maças, transformam-se de mortais em homens de metal.

De algum modo, sinto a mudança que se apodera deles, enquanto me

mantenho à porta, a observá-los, e, apesar de os ter enviado para a batalha e

de ser a mim que estão a defender, tenho a sensação de que algo de mau e

sangrento está para acontecer.

201

- Não - sussurro, como se pudesse detê-los, no preciso momento em

que começam a correr em frente, de espadas empunhadas, os machados a

baloiçarem nas suas mãos.

Os homens que estavam a dormir levantam-se, aos tropeções, com

um grito de pavor e são atingidos por uma lâmina no coração ou por um

machado na cabeça. Não há aviso: saem dos sonhos de vitória, ou dos

sonhos com as suas casas, para uma lâmina fria e uma morte agonizante.

As sentinelas sonolentas despertam com um salto e gritam o alarme,

silenciadas por um punhal que lhes atravessa a garganta. Debatem-se. Um

homem cai sobre as chamas da fogueira e grita em agonia, mas ninguém

pára para o ajudar. Os nossos homens pontapeiam as brasas da fogueira do

acampamento e algumas das tendas e dos cobertores incendeiam-se, os

cavalos fazem cabriolas e relincham de medo, quando a forragem irrompe

em chamas diante deles. De imediato, o campo está acordado e a fugir

apavorado, enquanto os homens de António avançam pelo meio deles,

como assassinos silenciosos, apunhalando homens no chão, quando estes

rebolam e tentam acordar, empurrando os homens para o chão, quando

estes se põem de pé, abrindo o ventre de um homem que não tem armadura,

agredindo à mocada um homem, quando ele estende a mão para pegar na

espada. O exército de Kent sai do sono e começa a correr. Aqueles que não

são abatidos agarram no que podem e saem a correr. Despertam os homens

nas ruas ao lado da Torre, e alguns vêm a correr para o campo. Os homens

de António viram-se contra eles com um estrondo e lançam um ataque, as

suas espadas já vermelhas de sangue, e os rebeldes, na maioria rapazes do

campo, voltam costas e fogem.

Os homens de António perseguem-nos, mas ele chama-os de volta:

não quer deixar a Torre desprotegida. Envia um grupo para o cais, para

capturar os navios de Neville; os restantes regressam à Torre, as suas vozes

Page 159: Philippa gregory - a rainha branca

altas e entusiasmadas na friagem da manhã. Gritam uns para os outros

acerca de um homem que foi apunhalado enquanto dormia, de uma mulher

que rebolou para o lado para acabar por ser decapitada, de um cavalo que

partiu o pescoço ao fugir do fogo.

Abro-lhes o portão da porta falsa. Não quero saudá-los, não quero

ver mais nada, não quero ouvir mais nada. Dirijo-me

202

para cima, para os meus aposentos, reúno a minha mãe, as minhas

filhas, o meu bebé, e tranco a porta do nosso quarto de dormir em silêncio,

como se receasse o meu próprio exército. Já ouvi homens contarem

histórias de muitas batalhas, nesta guerra entre primos, e falavam sempre

de heroísmo, da coragem dos homens, do poder do seu companheirismo, da

raiva feroz da batalha e da irmandade da sobrevivência. Ouvi baladas

acerca de grandes batalhas, e poemas sobre a beleza de um ataque e a

graciosidade do líder. Mas não sabia que a guerra não era mais do que uma

carnificina, tão selvagem e desajeitada como enfiar um espeto na garganta

de um porco e deixá-lo sangrar, para que a carne fique mais tenra.

Desconhecia que o estilo e a nobreza da arena das justas não tinha nada que

ver com esta sequência de estocadas e punhaladas. Tal como a matança de

um leitão para fazer toucinho, que grita, depois de ter sido perseguido no

chiqueiro. E ignorava que a guerra entusiasmasse assim tanto os homens:

regressam a casa como meninos da escola, a rirem-se, cheios de

entusiasmo, depois de terem pregado uma partida; mas têm sangue nas

mãos, manchas de alguma coisa nas suas capas, o cheiro a fumo no cabelo

e um entusiasmo terrivelmente repulsivo nos rostos.

Agora compreendo porque invadem conventos, porque forçam as

mulheres contra a sua vontade, desafiam o refúgio em locais sagrados para

terminarem a perseguição mortal. Despertam em si mesmos uma fome

selvagem e cruel que os faz assemelharem-se mais a animais do que a

homens. Não sabia que a guerra era assim. Sinto que tenho sido uma tonta

por não o saber, visto ter sido criada num reino em guerra e ser filha de um

homem capturado na batalha, viúva de um cavaleiro e mulher de um

soldado implacável. Mas agora sei.

203

21 DE MAIO DE 1471

Eduardo chega a cavalo à frente dos seus homens, parecendo um rei

que regressa a casa em glória, sem rastos da batalha nas suas feições, no

seu cavalo, ou nos seus arreios reluzentes. Ricardo está de um dos lados

Page 160: Philippa gregory - a rainha branca

dele, Jorge, do outro, os meus filhos, entusiasmados, atrás deles. Os rapazes

de Iorque voltaram de novo para junto dos seus, os três como um, e

Londres enlouquece de alegria ao vê-los. Três duques, seis condes e

dezasseis barões acompanham-nos, todos eles Iorquistas sinceros, que

juraram fidelidade. Quem iria imaginar que tínhamos tantos amigos? Eu

não, quando estive refugiada no santuário que era mais uma prisão,

trazendo ao mundo a criança que é herdeira desta glória, no meio da

escuridão, do medo, e praticamente sozinha.

Atrás da comitiva deles, vem Margarida de Anjou, de rosto pálido e

deprimido, sentada numa liteira puxada por mulas. Não lhe amarram

propriamente as mãos e os pés, nem colocam uma corrente prateada em

volta da garganta, mas todos percebem bastante bem que esta mulher foi

derrotada e que não se erguerá da sua derrota. Levo Isabel comigo, quando

recebo Eduardo no portão da Torre, porque quero que a minha filha

pequena veja esta mulher que tem sido o terror dela durante a totalidade

dos seus cinco anos, que a veja derrotada e que saiba que estamos todos a

salvo daquela a quem chama rainha má.

Eduardo cumprimenta-me formalmente diante da multidão que grita

vivas, mas murmura ao meu ouvido:

- Mal posso esperar para estar convosco a sós.

204

Mas tem de esperar. Armou como cavaleiros metade da cidade de

Londres, em agradecimento pela fidelidade demonstrada, e há um banquete

para celebrar a ascensão deles à grandeza. Na verdade, todos temos muito

por que agradecer. Eduardo combateu novamente pela sua coroa, e venceu

outra vez, e eu continuo a ser mulher de um rei que nunca foi derrotado em

batalha. Encosto a boca ao seu ouvido e respondo com um sussurro:

- Eu também não, marido.

Vamos para a cama tarde, nos seus aposentos, e metade dos

convidados está embriagada e a outra fora de si com a felicidade de estar,

mais uma vez, na corte de Iorque. Eduardo puxa-me para junto de si e

possui-me como se tivéssemos acabado de nos casar, na pequena cabana de

caça junto ao rio; abraço-o de novo como o homem que me salvou da

pobreza, o homem que salvou a Inglaterra do estado de guerra constante, e

fico contente por ele me chamar:

- Esposa, minha querida esposa.

Diz-me, com a boca encostada ao meu cabelo:

- Haveis-me apoiado quando eu senti medo, meu amor. Agradeço-

vos por isso. Foi a primeira vez que tive de partir, sabendo que poderia

perder. Estava apavorado.

Page 161: Philippa gregory - a rainha branca

- Eu vi uma batalha. Nem sequer foi uma batalha, foi um

massacre - digo, com a testa encostada ao seu peito. - É algo terrível,

Eduardo. Não sabia.

Ele deita-se de costas com uma expressão triste no rosto.

- É uma coisa terrível - afirma. - E não há ninguém que ame mais a

paz do que um soldado. Trarei a paz a este país e farei com que nos seja

leal. Juro-o. Seja o que for que tiver de fazer para que isso aconteça. Temos

de acabar com estas batalhas intermináveis. Temos de pôr um fim a esta

guerra.

- É vil - digo. - Não há qualquer honra na guerra.

- Tem de terminar - retorque ele. - Tenho de lhe pôr um fim.

Ambos ficamos em silêncio, e espero que ele adormeça,

mas, em vez disso, permanece deitado, a pensar, de braços cruzados

atrás da cabeça, olhando fixamente para o dossel dourado por cima da

cama:

- O que se passa, Eduardo? Há algo que vos perturbe? - pergunto.

205

Ele fala devagar.

- Não, mas há uma coisa que tenho de fazer antes de poder dormir

em paz, esta noite.

- Quereis que vos acompanhe?

- Não, amor, é uma tarefa de homens.

- O que é?

- Nada. Nada com que devais preocupar-vos. Nada. Ide dormir.

Voltarei para junto de vós mais tarde.

Agora fico alarmada. Sento-me na cama.

- O que é, Eduardo? Pareceis... não sei... qual é o problema? Estais

indisposto?

Ele sai da cama repentinamente e veste as roupas.

- Calma, amor. Tenho de ir fazer uma coisa e, quando estiver feita,

conseguirei descansar. Voltarei daqui a uma hora. Ide dormir e eu acordar-

vos-ei e possuir-vos-ei de novo.

Rio-me ao ouvir aquelas palavras, e deito-me para trás, mas, depois

de ele estar vestido e de sair silenciosamente do quarto, levanto-me da

cama e visto a minha camisa de noite. Descalça, sem fazer qualquer ruído,

atravesso a nossa câmara privada e entro na sala de audiências. Os guardas

estão em silêncio, à porta, aceno-lhes com a cabeça sem dizer uma palavra,

eles levantam as suas alabardas e deixam-me passar. Detenho-me no cimo

das escadas e olho lá para baixo. O lanço de escadas avança em caracol no

interior do poço do edifício e consigo ver a mão de Eduardo seguir até ao

andar por baixo do nosso, onde o velho rei tem os seus aposentos. Vejo a

Page 162: Philippa gregory - a rainha branca

cabeça escura de Ricardo bastante abaixo de mim, à entrada da porta do

velho rei, como se estivesse à espera para entrar; e ouço a voz de Jorge

flutuar pela caixa das escadas acima.

- Pensávamos que havíeis mudado de ideias!

- Não. Isto tem de ser feito.

Sei o que se prepararam para fazer, os três irmãos dourados de

Iorque que venceram a sua primeira batalha sob três sóis no céu, que são

tão abençoados por Deus que nunca perdem. Mas não grito para os

impedir. Não corro pelas escadas abaixo para arrancar a arma de Eduardo

das suas mãos, nem juro que ele não o fará. Sei que ele tem duas mentes;

mas não posiciono a minha opinião do lado da compaixão, de viver

206

com o inimigo, de confiar em Deus para nos manter em segurança.

Não penso: se eles o fizerem, o que pode alguém fazer-nos a nós? Vejo a

chave na mão de Eduardo, ouço o voltear do trinco, ouço a porta abrir-se

para os aposentos do rei e deixo os três entrarem, sem dizer uma palavra.

Henrique, louco ou santo, é um rei consagrado: o seu corpo é

sagrado. Está no centro do seu próprio reino, na sua própria cidade, na sua

própria torre: tem de estar seguro aqui. Está protegido por homens bons. É

um prisioneiro de honra da Casa de Iorque. Devia estar tão seguro como se

estivesse na sua própria corte; confia em nós para o mantermos em

segurança.

É um homem frágil contra três jovens guerreiros. Como podem eles

não ser misericordiosos? Ele é seu primo, parente, e os três juraram, em

tempos, amá-lo e ser-lhe leal. Ele está a dormir como uma criança quando

os três entram no quarto. O que vai acontecer a todos nós, se são capazes de

assassinar um homem tão inocente e indefeso como um rapaz adormecido?

Sei que é por isto que sempre odiei a Torre. Sei que este é o motivo

por que o palácio negro, na margem do Tamisa, sempre me encheu de maus

presságios. Esta morte tem estado na minha consciência, mesmo antes de a

praticarmos. Quanto pesará isto em mim, daqui em diante, só Deus e a

minha consciência saberão. E que preço terei de pagar pela minha

participação, por ter ouvido em silêncio, sem uma palavra de protesto?

Não volto para a cama de Eduardo. Não quero estar na sua cama

quando ele voltar para mim com o cheiro a morte nas mãos. Não quero

estar aqui, na Torre. Não quero que o meu filho durma aqui, na Torre de

Londres, supostamente o lugar mais seguro da Inglaterra, onde homens

armados podem entrar no quarto de um inocente e pressionar uma almofada

sobre a sua face. Dirijo-me para os meus aposentos, avivo o fogo, fico

sentada junto à lareira o resto da noite, e sei, sem margem para dúvidas,

Page 163: Philippa gregory - a rainha branca

que a Casa de Iorque deu um passo num caminho que nos vai conduzir ao

Inferno.

207

VERÃO DE 1471

Estou sentada com a minha mãe num canteiro de camomila, o odor

morno da erva a toda a nossa volta, no jardim da herdade real de

Greenwich, uma das casas que faziam parte do meu dote, que me foi

entregue como rainha, e que continua a ser uma das minhas casas de campo

preferidas. Estou a escolher cores para os bordados dela. As crianças

encontram-se lá em baixo, junto ao rio, a alimentar os patos, com a ama.

Consigo ouvir as suas vozes intensas ao longe, chamando os patos pelos

nomes que lhes atribuíram, repreendendo-os quando eles não respondem.

De vez em quando, consigo ouvir o gritinho de alegria característico do

meu filho. Sempre que ouço a sua voz, o meu coração alegra-se por ter um

filho, e um príncipe, e por ele ser um bebé feliz; e a minha mãe, que pensa

do mesmo modo, acena ligeiramente com a cabeça exprimindo a sua

satisfação.

O país está tão estável e pacífico que seria de pensar que nunca

existiu um rei rival, nem exércitos a marcharem em passo rápido, para se

defrontarem. O país acolheu bem o regresso do meu marido; todos nos

apressámos a fazer a paz. Mais do que qualquer outra coisa, todos

queríamos seguir com as nossas vidas sob um governo justo, e esquecer as

perdas e o sofrimento dos últimos dezasseis anos. Oh, ainda há alguns que

resistem: o filho de Margarida de Beaufort, que é agora o mais improvável

herdeiro da linha de Lencastre, está refugiado no Castelo de Pembroke, em

Gales, com o tio, Jasper Tudor, mas não aguentarão muito tempo. O mundo

mudou, e eles terão de implorar a paz. O próprio marido de Margarida de

208

Beaufort, Henrique Stafford, é agora um Iorquista e combateu do

nosso lado, em Barnet. Talvez só ela, obstinada como uma mártir, e o

pateta do seu filho sejam os últimos membros da Casa de Lencastre que

restam no mundo.

Tenho uma dúzia de tonalidades de verde dispostas sobre o meu

joelho coberto por um vestido branco, e a minha mãe está a enfiar a sua

agulha, erguendo-a contra o céu para ver melhor, aproximando-a dos olhos

e depois afastando-a. Creio que é a primeira vez na minha vida que

vislumbro nela um sinal de fraqueza.

Page 164: Philippa gregory - a rainha branca

- Não conseguis ver bem para enfiar a linha na agulha? - pergunto-

lhe, meio divertida.

Ela volta-se, sorri-me e diz, bastante descontraída:

- Os meus olhos não são a única coisa que me está a falhar, e a minha

linha não é a única coisa que está turva. Não chegarei aos sessenta, minha

filha. Deveis preparar-vos.

É como se subitamente o dia tivesse esfriado e escurecido.

- Não chegareis aos sessenta! - exclamo. - Porque não? Estais

doente? Não me haveis dito nada! Quereis consultar um médico? Temos de

voltar para Londres?

Ela abana a cabeça e suspira.

- Não, não há nada para nenhum médico ver e, graças a Deus, nada

que um idiota com uma faca pudesse achar que poderia cortar. É o meu

coração, Isabel. Consigo ouvi-lo. Está a bater descompassadamente...

consigo perceber que salta uma batida, e que depois começa a bater mais

devagar. Não me parece que volte a bater com vigor. Não espero viver

muitos mais Verões.

Fico tão aterrada que nem consigo sentir pena.

- Mas o que vou eu fazer? - pergunto, com a mão apoiada no meu

ventre, onde outra vida está a começar. - Màe, o que vou fazer? Não podeis

pensar nisso! Como vou conseguir?

- Não podeis dizer que não vos ensinei tudo - afirma ela com um

sorriso. - Ensinei-vos tudo o que sei e tudo em que acredito. E uma boa

parte até pode ser verdade. Estou certa de que estais, por fim, segura no

vosso trono. Eduardo tem a Inglaterra na mão, um filho para lhe suceder e

tendes outro bebé a caminho - coloca a mão em concha sobre um dos

ouvidos como se estivesse a ouvir um murmúrio longínquo. -

209

Não posso adivinhar. Não me parece que este seja o vosso segundo

filho; mas sei que tereis mais um rapaz, Isabel, tenho a certeza disso. E que

rapaz ele vai ser! Disso, também tenho a certeza.

- Tendes de estar comigo para o nascimento de outro príncipe. De

certeza que quereríeis ver um Príncipe de Iorque ser baptizado como deve

ser - digo num queixume, como se lhe prometesse um doce, só por ela

ficar. - Seríeis a sua madrinha. Eu permitiria que tomásseis conta dele.

Poderíeis escolher o seu nome.

- Ricardo - diz ela de imediato. - Chamai-lhe Ricardo.

- Então, ponde-vos boa e permanecei comigo, para verdes Ricardo

nascer - peço-lhe insistentemente.

Ela sorri e eu vejo os sinais reveladores que não tinha visto antes. O

cansaço, mesmo quando ela se senta direita na sua cadeira, o tom creme do

Page 165: Philippa gregory - a rainha branca

seu rosto, e as sombras castanhas sob os seus olhos. Como pude não os ter

visto antes? Eu que a amo tanto, que lhe dou um beijo nas bochechas todos

os dias e me ajoelho para lhe pedir a bênção - como posso não ter reparado

que ela emagreceu tanto?

Ponho as sedas de parte e ajoelho-me diante dos seus pés, agarro-lhe

as mãos e, de repente, sinto que se tornaram ossudas, de súbito, apercebo-

me de que estão cobertas de manchas da idade. Olho para o seu rosto

fatigado.

- Mãe, haveis estado sempre do meu lado. Não seríeis capaz de me

deixar agora?

- Não, se eu puder optar por ficar - afirma ela. - Mas há vários anos

que sinto esta dor, e sei que está a chegar ao fim.

- Desde quando? - pergunto ferozmente. - Há quanto tempo sentis

essa dor?

- Desde a morte do vosso pai - responde ela com firmeza.

- No dia em que me disseram que ele estava morto, que o tinham

decapitado por traição, senti algo mover-se lá bem no fundo, no meu

íntimo, como se o meu coração estivesse a destroçar-se; e queria estar com

ele, até na morte.

- Mas não para me deixardes! - grito egoisticamente. E, depois,

acrescento, de modo inteligente. - E, seguramente, não suportais deixar

António?

Ela ri-se das minhas palavras.

210

- Sois os dois crescidos - afirma ela. - Ambos podeis viver sem mim.

Tendes os dois de aprender a viver sem mim. António vai partir em

peregrinação para Jerusalém, como deseja fazer. Vós vereis o vosso filho

crescer e tornar-se um homem. Vereis a vossa pequena Isabel casar com

um rei e ter a sua própria casa.

- Não estou preparada! - grito como uma criança desolada.

- Não consigo viver sem vós!

Ela sorri gentilmente, toca na minha bochecha com a sua mão magra.

- Nunca ninguém está preparado - diz ela com ternura. - Mas ireis

conseguir viver sem mim, e, através de vós, e dos vossos filhos, terei

fundado uma linhagem de reis da Inglaterra. E também de rainhas, creio eu.

211

PRIMAVERA DE 1472

Page 166: Philippa gregory - a rainha branca

Vivo os últimos meses da minha gravidez, e a corte encontra-se no

belo Palácio em Sheen, um palácio de Primavera, quando todos somos

abalados pelo enorme e delicioso escândalo do casamento de Ricardo, o

irmão de Eduardo. Tanto mais maravilhoso porque quem iria imaginar que

Ricardo seria escandaloso? Jorge, sim, com a sua procura incessante de

defender os seus interesses. Jorge forneceria sempre aos coscuvilheiros

sacadas de assuntos, uma vez que não se preocupa com ninguém, além de

si próprio. Não existe honra, lealdade nem afecto que impeça Jorge de fazer

o que lhe interessa.

Eduardo, também, segue a sua opinião sem querer saber o que as

pessoas dirão a seu respeito. Mas Ricardo! Ricardo é o menino bem-

comportado da família, o que trabalha mais arduamente para ser forte, que

estuda para ser inteligente, que reza com devoção para ser favorecido por

Deus, que se esforça tanto para merecer o amor da mãe e sabe sempre que é

eclipsado. Ricardo a causar um escândalo é como se o meu cão de caça

preferido declarasse subitamente que não vai caçar mais. É algo

verdadeiramente inimaginável.

Deus sabe que eu tento amar Ricardo, uma vez que ele tem sido um

amigo verdadeiro do meu marido e um bom irmão. Devia amá-lo: ele ficou

do lado do meu marido sem hesitar, quando tiveram de fugir da Inglaterra

num diminuto barco de pesca; suportou o exílio com ele e regressou a casa

com ele, para arriscar a vida meia dúzia de vezes. E Eduardo dizia sempre

que, se Ricardo ocupasse o flanco esquerdo, podia estar

212

seguro de que este resistiria. Se as tropas de Ricardo ocupassem a

última posição, ele sabia que não haveria qualquer ataque surpresa vindo da

estrada atrás de si. Eduardo confia em Ricardo como irmão e como vassalo,

e tem-lhe muito afecto - porque é que eu não consigo ter? O que é que o

jovem tem que me faz querer semicerrar os olhos quando olho para ele,

como se houvesse uma falha que me escapa? Mas, agora, este jovem

cachorrinho, que ainda não tem vinte anos, tornou-se um herói, o herói de

uma balada.

- Quem iria pensar que o pequeno e apagado Ricardo teria tanta

paixão dentro de si? - pergunto a António, que está sentado aos meus pés,

nuns aposentos interiores que têm vista para o rio. As minhas damas estão à

minha volta, com meia dezena de homens da corte de Eduardo, a cantarem

e a jogarem com uma bola e, em geral, sem fazerem nada e a

namoriscarem. Eu estou a entrançar prímulas para uma coroa que será dada

ao vencedor de uma corrida que vão fazer mais tarde.

Page 167: Philippa gregory - a rainha branca

- Ele é profundo - declara António, fazendo o meu filho de dezasseis

anos, Ricardo Grey, engasgar-se de riso.

- Chiu - digo-lhe. - Respeito pelo vosso tio, por favor. E passai-me

algumas folhas.

- Profundo e apaixonado - continua António. - E todos nós

pensávamos que ele era completamente apagado. Espantoso.

- Na verdade, ele é apaixonado - opina o meu filho. - Vós

subestimai-lo porque ele não é orgulhoso e estridente como os outros

irmãos da casa de Iorque.

O meu filho Tomás Grey assente com a cabeça, ao lado dele.

- É verdade.

António ergue uma sobrancelha, pela crítica implícita ao rei.

- Vós dois, ide e preparai-vos para a corrida - digo, dispensando-os.

A corte ficou petrificada com a história da pobre e pequena Ana

Neville, a jovem viúva daquele rapaz, o Príncipe Eduardo de Lencastre.

Trazida para Londres, como parte da nossa exibição de vitória, após a

batalha de Tewkesbury, a rapariga e a sua fortuna tornaram-se, de imediato,

alvo de Jorge, Duque de Clarence, como forma de se apoderar de toda a

fortuna dos Warwick. Uma vez que a mãe das raparigas Neville, a pobre

213

Condessa de Warwick, se encerrou num convento, em completo

desespero, Jorge fez planos para ganhar tudo. Já era detentor de metade da

fortuna dos Warwick, através do seu casamento com Isabel Neville, e,

depois, fez uma grande exibição do facto de a irmã mais nova dela ter sido

confiada à sua guarda. Levou a pequena Ana Neville, apresentou-lhe as

condolências pela morte do pai e a ausência da mãe, felicitou-a por ter

escapado de um casamento de pesadelo com o pequeno monstro, o Príncipe

Eduardo de Lencastre, e pensou em mantê-la sob a sua protecção, a viver

com a sua mulher, irmã dela, e apoderar-se da fortuna dela nas suas mãos

gananciosas.

- Foi cavalheiresco - diz António, para me irritar.

- Foi uma oportunidade, e quem me dera ter-me apercebido dela

antes - respondo.

Ana, um peão na jogada do seu pai pelo poder, viúva de um monstro,

filha de um traidor, tinha apenas quinze anos quando foi viver com a irmã e

o seu marido, Jorge, Duque de Clarence. Não fazia ideia, não mais do que o

meu gatinho, de como sobreviver neste reino dominado pelos seus

inimigos. Deve ter pensado que Jorge era o seu salvador.

Mas não por muito tempo.

Ninguém sabe muito bem o que aconteceu depois disso; mas algo

correu mal com o plano agradável de Jorge para ser o detentor de ambas as

Page 168: Philippa gregory - a rainha branca

filhas dos Neville e de ficar com a enorme fortuna delas só para si. Alguns

dizem que Ricardo, ao visitar a esplêndida casa de Jorge, encontrou

novamente Ana - que conhecera na infância -, que se apaixonaram, e que

ele a resgatou, como um cavaleiro de uma fábula, de uma visita que não

passava de um encarceramento. Dizem que Jorge ordenou que se

disfarçasse de criada de cozinha, para a manter afastada do irmão. Dizem

que ele mandou trancá-la no quarto. Mas o amor verdadeiro prevaleceu, e o

jovem Duque e a jovem princesa viúva caíram nos braços um do outro. De

qualquer forma, esta versão da história é desesperadamente romântica e

maravilhosa. Tontos de todas as idades gostam muito de a ouvir.

- Gosto da história contada assim - afirma o meu irmão António. -

Estou a pensar em compor um rondó.

214

Mas existe outra versão. Outras pessoas, que admiram Ricardo,

Duque de Gloucester, tanto quanto eu, afirmam que ele viu, na solitária

rapariga que acabara de enviuvar, uma mulher que lhe poderia trazer, no

Norte da Inglaterra, a popularidade que o seu nome de solteira inspira, que

poderia trazer-lhe uma grande extensão de terras contíguas às que já

recebera de Eduardo, bem como uma fortuna, no seu dote, se conseguisse

roubá-lo à mãe dela. Uma jovem que estava tão sozinha e tão desprotegida

que não podia repudiá-lo. Uma rapariga tão habituada a receber ordens que

podia ser coagida a trair a própria mãe. Esta versão sugere que Ana,

encarcerada por um dos irmãos Iorque, foi raptada por outro e forçada a

casar com ele.

- É menos bonita - comento com António.

- Poderíeis tê-lo impedido - diz-me ele, num dos seus súbitos

momentos de seriedade. - Se tivésseis ficado com ela à vossa guarda, se

tivésseis feito com que Eduardo ordenasse a Ricardo e a Jorge que não a

disputassem como cães que disputam um osso.

- Devia tê-lo feito - afirmo. - Porque agora Ricardo tem uma rapariga

Neville, a fortuna dos Warwick, e o apoio do Norte, e Jorge tem a outra. É

uma combinação perigosa.

António ergue uma sobrancelha.

- Devíeis tê-lo feito, porque era a atitude certa a tomar - diz-me ele

com toda a pompa de um irmão mais velho. - Mas vejo que continuais a

pensar apenas em poder e em lucro.

215

ABRIL DE 1472

Page 169: Philippa gregory - a rainha branca

Comprovou-se que a aptidão da minha mãe para prever o futuro era

verdadeira. Menos de um ano depois de me ter avisado de que o seu

coração não duraria muito mais tempo, queixa-se de fadiga e mantém-se

nos seus aposentos. O bebé de que eu estava à espera, no jardim, no dia da

corrida das prímulas, nasceu antes do tempo e, pela primeira vez, entro em

retiro sem a companhia da minha mãe. Envio-lhe mensagens do meu quarto

escurecido e ela responde alegremente do seu. Mas, quando saio, com uma

frágil menina recém-nascida, encontro a minha mãe no seu quarto,

demasiado cansada para se levantar. Pego na bebé, leve como uma pequena

avezinha, e ponho-lha nos braços, todas as tardes. Durante uma ou duas

semanas, as duas vêem o Sol mergulhar abaixo do nível da janela, e depois,

como o dourado do pôr do Sol, escapam-se para longe de mim ao mesmo

tempo.

Ao anoitecer, no último dia de Abril, ouço o ruído de um

chamamento, como uma coruja-dos-celeiros de asa branca, dirijo-me à

minha janela, abro as portadas e espreito lá para fora. Vejo uma lua em

quarto minguante erguer-se no horizonte, branca contra um céu branco;

também ela se está a desvanecer e, à sua luz fria, consigo ouvir um

chamamento, semelhante a um coro, e sei que não é a música das corujas,

nem de cantores, nem dos rouxinóis, mas de Melusina. A deusa que é nossa

antepassada está a gritar, em volta do telhado da casa, porque a sua filha

Jaquetta, da Casa da Borgonha, está a morrer.

Ponho-me de pé e fico a ouvir o sinistro assobio durante algum

tempo e, em seguida, fecho as portadas e dirijo-me ao

216

quarto da minha mãe. Não me apresso. Sei que já não há necessidade

de correr para junto dela. A bebé recém-nascida está nos seus braços,

enquanto permanece deitada na cama, a cabecinha encostada à bochecha da

minha mãe. Ambas estão pálidas como mármore, ambas estão deitadas, de

olhos fechados, ambas parecem estar a dormir placidamente, enquanto as

sombras da noite escurecem o quarto. O luar a incidir na água, do lado de

fora da janela do quarto, projecta o reflexo da pequena ondulação no tecto

caiado, de modo que elas parecem estar debaixo de água, flutuando com

Melusina, na fonte. Mas sei que ambas partiram para longe de mim, e que a

nossa mãe água está a embalá-las na sua viagem ao longo do doce rio, até

às fontes profundas que são a sua casa.

217

VERÃO DE 1472

Page 170: Philippa gregory - a rainha branca

A dor pela morte da minha mãe não desaparece com o seu funeral;

não sara com os meses que vão passando lentamente. Todas as manhãs, ao

acordar, sinto a sua falta, tanto como no primeiro dia. Tenho de me

lembrar, diariamente, de que já não lhe posso pedir uma opinião ou

questionar os seus conselhos, rir-me dos seus sarcasmos ou procurar ajuda

na sua magia. E todos os dias percebo que cada vez culpo mais Jorge,

Duque de Clarence, pelo assassínio do meu pai e do meu irmão. Creio que

foi ao receber a notícia de que eles tinham morrido às mãos dele, sob as

ordens de Warwick, que o terno coração da minha mãe cedeu e que, se eles

não tivessem sido perfidamente assassinados por ele, ela ainda hoje estaria

viva.

Estamos no Verão, o tempo do prazer descuidado, mas eu carrego

comigo o meu sofrimento, no meio dos piqueniques e nos dias em que

viajamos pelas zonas rurais, nos longos percursos a cavalo e nas noites de

lua cheia. Eduardo nomeia o meu filho Tomás Conde de Huntingdon, mas

isso não me alegra. Não falo com ninguém sobre a minha tristeza, a não ser

com António, que também perdeu a mãe. E quase nunca falamos sobre ela.

Parece que não somos capazes de falar dela como já falecida, mas também

não podemos mentir a nós próprios, pensando que ela ainda vive. Mas

culpo Jorge, Duque de Clarence, pelo desgosto e pela morte dela.

- Odeio Jorge de Clarence mais do que nunca - digo a António,

enquanto cavalgamos juntos pela estrada que desce para Kent, com um

banquete à nossa espera depois de uma

218

semana passada entre veredas verdejantes e pomares de macieiras. O

meu coração deveria estar alegre, da mesma forma que a corte está feliz.

Mas a minha sensação de perda vem comigo, como se fosse um falcão

pousado no meu pulso.

- Porque sois ciumenta - diz-me provocadoramente o meu irmão

António, uma mão a segurar as rédeas do seu cavalo, a outra conduzindo o

meu jovem filho, Príncipe Eduardo, no seu pequeno pónei. - Tendes ciúmes

de qualquer pessoa de quem Eduardo goste. Tendes ciúmes de mim, de

Guilherme Hastings e tendes ciúmes de qualquer um que divirta o rei, que

o leve às prostitutas, que o traga para casa embriagado e que o faça rir.

Encolho os ombros, indiferente à provocação de António. Há muito

que sei que o gosto do rei por beber imoderadamente com os seus amigos e

frequentar outras mulheres faz parte da sua natureza. Acabei por ter de o

tolerar, especialmente porque isso nunca o afastou da minha cama e,

quando lá estamos, juntos, é como se tivéssemos casado em segredo nessa

mesma manhã. Ele tem sido um soldado em campanha, longe de casa, com

uma centena de amantes às suas ordens; foi um exilado, em cidades onde as

Page 171: Philippa gregory - a rainha branca

mulheres se apressavam a vir consolá-lo, e agora é o Rei da Inglaterra e

todas as mulheres de Londres gostariam de o ter - acredito sinceramente

que metade delas já o conseguiu. É o rei. Nunca julguei que me estivesse a

casar com um homem normal, com apetites moderados. Nunca contei ter

um casamento em que ele se sentasse calmamente aos meus pés. Ele é o

rei; é natural que faça o que lhe apetece.

- Não, estais enganado. O facto de Eduardo ter amantes não me

preocupa. Ele é o rei, pode ir procurar o prazer aonde lhe aprouver. E eu

sou a rainha e ele voltará sempre para mim. Toda a gente sabe disso.

António acena com a cabeça, dando-me razão.

- Mas não entendo a razão pela qual concentrais o vosso ódio em

Jorge. Todos os membros da família do rei são tão maus quanto os outros.

A sua mãe tem-vos detestado, e a todos nós, desde a primeira vez que

aparecemos em Reading, e Ricardo está cada dia mais estranho e intratável.

De certeza que a paz não é coisa que lhe agrade.

219

- Nada que nos diga respeito lhe agrada - digo eu. - Ele é tão

diferente dos irmãos como o giz do queijo; baixo e moreno, e tão ansioso

em relação à sua saúde, à sua posição e à sua alma, sempre à espera de

ganhar uma fortuna, enquanto reza uma oração.

- Eduardo vive como se não houvesse amanhã, Ricardo, como se não

quisesse que o amanhã chegasse, e Jorge, como se estivesse convencido de

que alguém lho deveria oferecer de graça.

Rio-me.

- Bem, eu gostaria mais de Ricardo se ele fosse tão mauzinho como

vocês todos - afirmo. - E, desde que se casou, ainda se tornou mais

virtuoso. Sempre olhou para nós Rivers com desdém; agora faz o mesmo

em relação a Jorge. É aquela santidade pomposa que não consigo engolir.

Por vezes, olha para mim como se eu fosse uma espécie de...

- Uma espécie de quê?

- Como se eu fosse uma peixeira gorda.

- Bom - diz o meu irmão. - Para ser honesto, não estais a ficar mais

nova, e, em certos aspectos, vós sabeis...

Dou-lhe uma pancada no joelho com o meu pingalim, e ele ri-se e

pisca o olho ao pequeno Eduardo, que segue no seu pónei.

- Não me agrada a forma como ele tomou todo o Norte sob a sua

alçada. Eduardo deu-lhe demasiado poder. Transformou-o num príncipe,

dentro do seu próprio principado. É um perigo para nós e para os nossos

herdeiros. Só serve para dividir o reino.

Page 172: Philippa gregory - a rainha branca

- Ele tinha de o recompensar com alguma coisa. Ricardo arriscou a

sua vida nas jogadas de Eduardo, vezes e vezes sem conta. Foi Ricardo

quem conquistou o reino para Eduardo: tinha de receber a sua parte.

- Mas isso faz com que Ricardo seja tudo menos rei nos seus

domínios - protesto. - É como se lhe tivesse oferecido o reino do Norte.

- Ninguém, a não ser vós, duvida da sua lealdade.

- Ele é leal a Eduardo, e à sua própria casa, mas não gosta de

mim nem dos meus. Tem inveja de tudo o que eu tenho e não aprecia a

minha corte. E o que é que isso significa,

220

quando ele pensa nos nossos filhos? Será que ele vai ser leal ao meu

filho, uma vez que também é filho de Eduardo?

António encolhe os ombros.

- Nós subimos muito, sabeis. Vós haveis-nos feito ascender a uma

posição muito elevada. Há muitas pessoas que pensam que estamos acima

do nosso nível e por nada mais do que os vossos encantos de berma de

estrada.

- Não gostei da forma como Ricardo casou com Ana Neville.

António desata imediatamente a rir.

- Oh, minha irmã, ninguém gostou de ver Ricardo, o homem mais

rico da Inglaterra, casar com a jovem mais rica da Inglaterra, mas nunca

pensei que tomásseis o partido de Jorge, Duque de Clarence.

Rio-me sem querer. O ultraje de Jorge ao ver a sua cunhada herdeira

ser levada de sua própria casa, pelo seu próprio irmão, deu-nos matéria

para conversas durante metade do ano.

- De qualquer das formas, foi o vosso marido quem fez o favor a

Ricardo - frisa António. - Se Ricardo quisesse casar com Ana por amor,

poderia tê-lo feito, e seria recompensado com o seu amor. Mas foi preciso o

rei declarar que a fortuna da mãe delas devia ser dividida pelas duas

raparigas. Foi necessário o vosso honrado esposo declarar a mãe delas

legalmente morta, embora eu acredite que a velha senhora ainda continue

ferozmente a protestar que ainda está viva e a exigir o direito de poder

reclamar as suas propriedades, e foi o vosso marido quem tirou toda a

fortuna à velha senhora para a dar às duas filhas e assim,

convenientemente, aos seus próprios irmãos.

- Eu disse-lhe que não o fizesse - digo eu, irritada. - Mas ele não me

prestou atenção em relação a esse assunto. Ele favorece sempre os irmãos e

Ricardo muito mais do que Jorge.

- Ele tem razão em preferir Ricardo, mas não deveria infringir as leis

que criou no seu próprio reino - afirma António com súbita seriedade. -

Não é assim que se deve governar. É ilegal roubar uma viúva e foi isso

Page 173: Philippa gregory - a rainha branca

mesmo que ele fez. E ela é a viúva de um inimigo seu e estava refugiada

num convento. Deveria ser cortês com ela, deveria ser misericordioso. Se

ele

221

fosse um rei verdadeiramente cavalheiresco, encorajá-la-ia a

abandonar o seu refúgio em Beaulieu Abbey para retomar as suas terras,

protegeria as suas filhas e refrearia a ganância dos seus próprios irmãos.

- A lei é aquilo que os homens poderosos escolhem que seja -

digo, irritada. - E o santuário não é impossível de violar. Se não fôsseis um

sonhador, a viver lá longe, em Camelot, por esta altura, já o teríeis

aprendido. Haveis estado em Tewkesbury, não é verdade? Haveis visto a

santidade do chão sagrado, quando eles arrastaram os lordes para fora da

abadia e os apunhalaram no adro da igreja? Nessa altura, haveis defendido

o santuário? Porque ouvi dizer que todos desembainharam as espadas e

cortaram aos pedaços os homens que saíam cá para fora com a espada na

mão.

António abana a cabeça.

- Sou um sonhador - concorda. - Não o nego, mas já vi o

suficiente para conhecer o mundo. Talvez sonhe com um mundo melhor.

Este reinado Iorque, por vezes, é demasiado para mim, vós sabeis, Isabel.

Não consigo suportar o que Eduardo faz, quando o vejo favorecer uma

pessoa e esquecer outra, sem qualquer outro motivo a não ser tornar-se a si

mesmo mais forte ou tornar o seu reinado mais seguro. E vós haveis

transformado o vosso trono num feudo: distribuís favores e riqueza pelos

vossos favoritos, não por aqueles que merecem. E vós ambos estais a criar

inimigos. As pessoas dizem que nós não nos importamos com nada, para

além do nosso sucesso pessoal. Quando reparo no que andamos a fazer,

agora que estamos no poder, por vezes, arrependo-me de ter lutado pela

rosa branca. De vez em quando, penso que os Lencastre teriam feito o

mesmo ou, pelo menos, não teriam feito pior.

- Nesse caso, estais a esquecer-vos de Margarida de Anjou e do seu

marido louco - digo friamente. - A minha própria mãe disse-me, no dia em

que nos dirigimos para Reading, que eu nunca poderia fazer pior do que

Margarida de Anjou e eu não o fiz.

Ele dá-me razão.

- Tudo bem. Vós e o vosso marido não sois piores do que um

louco e uma harpia. Óptimo.

A sua gravidade surpreende-me.

222

Page 174: Philippa gregory - a rainha branca

- O mundo é assim, meu irmão - recordo-lhe. - E vós também haveis

recebido alguns favores, do rei e de mim. E agora sois o Conde Rivers,

cunhado do rei e tio do futuro rei.

- Acreditei que faríamos mais do que forrar os nossos próprios bolsos

- diz ele. - Acreditei que estávamos a fazer mais do que colocar um rei e

uma rainha no trono, que eram apenas melhores do que o pior possível.

Sabeis, por vezes, preferiria envergar um tabardo branco com uma cruz

vermelha e lutar por Deus, no deserto.

Recordo a predição da minha mãe de que a espiritualidade de

António haveria, um dia, de triunfar sobre a sua mundanidade típica dos

Rivers e que me haveria de abandonar.

- Ah, não digais isso - peço-lhe. - Eu preciso de vós. E, quando o

bebé crescer e tiver o seu próprio conselho principesco, irá precisar de vós.

Não consigo pensar em ninguém mais qualificado do que vós para o guiar e

ensinar. Não existe na Inglaterra nenhum cavaleiro mais erudito. Não há

nenhum poeta, na Inglaterra que saiba também lutar. Não me digais que

ides embora, António. Vós sabeis que tendes de ficar. Não sei ser rainha

sem vós. Não consigo viver sem vós.

Ele faz-me uma vénia, com um sorriso travesso, pega na minha mão

e beija-a.

- Não vos abandonarei enquanto precisardes de mim - promete ele. -

Por minha vontade, jamais partirei, enquanto precisardes de mim. E de

certeza que bons tempos virão, em breve.

Sorrio, mas ele faz com que as palavras de optimismo soem como

um lamento.

223

SETEMBRO DE 1472

Eduardo faz-me sinal para que me dirija a um canto da sala, uma

noite, depois do jantar, no Castelo de Windsor e eu vou ter com ele a sorrir.

- O que desejais, esposo? Quereis dançar comigo?

- Quero - diz ele. - E depois vou ficar completamente embriagado.

- Por algum motivo?

- Nenhum. Apenas por prazer. Mas, antes de tudo isso, tenho de vos

fazer um pedido. Podeis aceitar mais uma dama nos vossos aposentos,

como dama de companhia?

- Tendes alguém em mente?

Fico imediatamente alerta para o perigo de Eduardo ter arranjado

uma nova paixoneta que me queira impingir, e que pense que vou fazer

dela minha dama de companhia para que o processo de sedução lhe seja

Page 175: Philippa gregory - a rainha branca

mais conveniente. Isto deve ter transparecido no meu rosto, porque ele dá

uma risada e diz:

- Não fiqueis tão furiosa. Eu nunca vos impingiria as minhas

amantes. Eu mesmo lhes dou guarida. Não, trata-se de uma dama de uma

família sem mácula. A própria Margarida Beaufort, a última da família dos

Lencastre.

- Quereis que ela me sirva? - pergunto-lhe, incrédula. - Quereis que

ela seja uma das minhas damas?

Ele diz que sim.

- Tenho as minhas razões. Recordais-vos de que ela casou

recentemente com Lorde Tomás Stanley?

Assinto.

224

- Ele declarou-se nosso amigo, jurou apoiar-nos, e o seu exército

colocou-se nas linhas laterais e salvou-nos na batalha de Blore Heath,

apesar de ter jurado fidelidade a Margarida de Anjou. Com a fortuna e a

influência que ele tem no país, preciso de o manter do nosso lado. Ele teve

a nossa permissão para se casar com ela, com bastantes vantagens, e, agora

que o fez, está a tentar trazê-la para a corte. Pensei que lhe poderíamos

oferecer uma posição digna. Tenho de o ter no meu conselho.

- Ela não é cansativamente religiosa? - pergunto, sem grandes

esperanças.

- É uma senhora. Irá adequar o seu comportamento ao vosso - diz ele

num tom uniforme. - E eu preciso do marido dela junto de mim, Isabel. É

um aliado que terá muita importância, tanto agora como no futuro.

- Se o pedis assim tão docemente, que posso eu fazer senão dizer que

sim? - sorrio-lhe. - Mas não me culpeis se ela for aborrecida.

- Eu não olharei para ela nem para qualquer outra mulher se vós

estiverdes à minha frente - sussurra ele. - Portanto, não vos deveis

preocupar com a forma como ela se comporta. E, dentro de pouco tempo,

quando ela pedir que deixemos o seu filho, Henrique Tudor, voltar para

casa, permitiremos, desde que ela nos seja leal e ele possa ser convencido a

esquecer os sonhos de ser o herdeiro dos Lencastre. Virão ambos para a

corte para nos servir e toda a gente irá esquecer que alguma vez existiu

algo denominado Casa de Lencastre. Casá-lo-emos com uma bonita

rapariga da Casa de Iorque, que lhe podereis escolher, e a Casa de

Lencastre deixará de existir.

- Vou convidá-la - prometo-lhe.

- Então, dizei aos músicos que toquem qualquer coisa alegre e

dançarei convosco.

Page 176: Philippa gregory - a rainha branca

Volto-me e aceno para os músicos, eles conferenciam por momentos

e, a seguir, tocam a melodia mais recente vinda da corte da Borgonha, onde

Margarida, a irmã de Eduardo, mantém a tradição Iorque de que haja

bastante alegria, aliada à tradição da Borgonha de se vestir bem. Até

chamam àquela música “A Giga da Duquesa Margarida” e Eduardo arrasta-

me

225

para o palco e faz-me rodar nos passos rápidos da dança, até toda a

gente estar a rir e a bater palmas, em círculo, à nossa volta, experimentando

também dançar, por sua vez.

A música acaba e eu deslizo para um canto mais tranquilo; António,

o meu irmão, oferece-me um copo de cerveja fraca. Bebo-a, sequiosa.

- Então, ainda pareço uma peixeira gorda? - pergunto-lhe.

- Oh, isso doeu-vos, não? - ri-se. Coloca o braço em volta de mim e

abraça-me com suavidade. - Não, pareceis a beldade que sois, e vós bem o

sabeis. Tendes esse dom, que a nossa mãe tinha, de envelhecer e ficar cada

vez mais encantadora. Os vossos traços mudaram, passando dos de uma

rapariguinha bonita para os de uma mulher bela, cujo rosto parece uma

escultura. Quando vós estais a rir e a dançar com Eduardo, poderíeis passar

por uma rapariga de vinte anos, mas, quando estais calma e pensativa, sois

tão bela como as estátuas que esculpem agora na Itália. Não admira que as

mulheres vos detestem.

- Desde que os homens não o façam - digo com um sorriso.

226

JANEIRO DE 1473

Nos dias frios de Janeiro, Eduardo vem aos meus aposentos, onde me

encontro sentada junto da lareira, com um banquinho à minha frente para

poder pousar os pés. Quando me vê ali sentada, anormalmente quieta, vai

até à porta e acena para os homens que vêm atrás dele, e para as minhas

damas, dizendo:

- Deixai-nos.

Elas saem, com um ligeiro alarido, a recém-chegada Margarida

Stanley no meio delas, pavoneando-se todas, como sempre acontece com as

mulheres, quando Eduardo está por perto - até mesmo a santa Margarida

Stanley.

Ele faz um gesto na direcção delas, quando viram as costas e fecham

a porta.

- E Lady Margarida? É alegre e uma companhia agradável para vós?

Page 177: Philippa gregory - a rainha branca

- Não está mal - digo-lhe, sorrindo. - Ela sabe, e eu sei, que ela

passou pela minha janela, na barca dos Tudor, quando eu estava no refúgio,

e que, nessa altura, gozou o seu momento de triunfo. E sabe, como eu sei,

que agora sou eu quem tem as melhores cartas na mão. Nenhuma de nós o

esquece. Não somos homens, para darmos palmadas nas costas um do outro

e dizermos: “Sem ressentimentos”, depois de uma batalha. Mas também

sabemos que o mundo mudou e que nós também temos de mudar, e ela

nunca diz uma palavra que possa sugerir que gostaria que o filho fosse

reconhecido como herdeiro dos Lencastre ao trono, em vez do nosso bebé,

o herdeiro de Iorque.

227

- Eu vim falar-vos acerca do bebé - diz Eduardo. - Mas parece-me

que sois vós quem deveria falar comigo.

Abro muito os olhos e sorrio-lhe.

- Oh! Acerca de quê?

Ele solta uma pequena gargalhada, puxa uma almofada de um dos

cadeirões e deixa-a cair no chão, para se poder sentar junto de mim. As

ervas recentemente colhidas e espalhadas no chão, por baixo do seu

almofadão, libertam um aroma a hortelã.

- Credes que sou cego? Ou apenas estúpido?

- Nem uma coisa nem outra, meu senhor - digo com ar namoradeiro.

- Deveria pensar?

- Em todos estes anos que vos conheço, sempre vos haveis sentado

como a vossa mãe vos ensinou. Costas muito direitas, numa cadeira, os pés

juntos, mãos pousadas no regaço ou nos braços da cadeira. Não foi assim

que ela vos ensinou a sentar? Como uma rainha? Como se sempre tivesse

sabido que haveríeis de ocupar um trono?

Sorrio.

- Provavelmente sabia, de facto.

- E, então, agora encontro-vos a preguiçar, à tarde, com os pés em

cima de um banco - ele inclina-se para trás e levanta a orla do meu vestido,

para poder ver os meus pés, apenas com as meias calçadas. - Sem sapatos!

Estou escandalizado. Estais nitidamente a transformar-vos numa mulher

desleixada e a minha corte real está a ser gerida por uma rameira de beira

de estrada, tal como a minha mãe me avisou.

- E então? - pergunto, inabalável.

- E então, sei que estais grávida. Porque a única altura em que vos

sentais com os pés erguidos é quando esperais uma criança. E é por isso

que pergunto se credes que sou cego ou apenas estúpido?

Page 178: Philippa gregory - a rainha branca

- Penso que sois tão fértil como um touro no prado junto ao rio, se

quereis saber o que penso! - exclamo. - De dois em dois anos, tenho um

filho vosso.

- Para além de todos os outros - diz ele sem qualquer

arrependimento. - Não vos esqueçais deles. Então, para quando é este filho

precioso?

- Para o Verão - digo eu. - E mais do que isso...

228

- Sim?

Puxo a sua cabeça loira para mim e sussurro-lhe ao ouvido.

- Creio que vai ser um rapaz.

A sua cabeça ergue-se bruscamente e o seu rosto está cheio de

alegria.

- De verdade? Tendes sinais?

- Fantasias de mulher - digo, pensando na minha mãe, com a cabeça

inclinada para um lado, como se estivesse a tentar ouvir o som de pezinhos

pequenos com botas de montar, a ressoarem pelo céu. - Mas penso que sim.

Espero que sim.

- Um rapaz Iorque nascido em tempos de paz - diz ele

sonhadoramente. - Ah, minha querida, sois uma boa esposa. Sois a minha

beldade. O meu único amor.

- E então, todas as outras?

Ele desvaloriza as amantes e os seus filhos com um gesto.

- Esquecei-as. Eu já esqueci. Para mim, a única mulher no mundo

sois vós. Agora, como sempre foi.

Beija-me carinhosamente, controlando a sua habitual e rápida

excitação. Não voltaremos a amar-nos até que o bebé nasça, e eu já fui

benzida.

- Minha querida - murmura ele.

Por algum tempo, ficamos ali sentados em silêncio, a olhar para o

fogo.

- Mas por que motivo haveis vindo ter comigo? - pergunto-lhe.

- Ah, sim. Isso não faz nenhuma diferença, creio eu. Quero mandar o

bebé para Gales, para dar início ao seu pequeno reino. Para o Castelo de

Ludlow.

Concordo. É assim que deve ser. É o que significa ter tido um

príncipe e não uma rapariga. A minha adorada filha mais velha, Isabel,

poderá ficar comigo até casar, mas o meu filho tem de partir e começar a

sua aprendizagem para vir a ser rei. Tem de ir para Gales, uma vez que é

Príncipe de Gales, e tem de governar essa região com o seu próprio

conselho.

Page 179: Philippa gregory - a rainha branca

- Mas ele ainda nem sequer tem três anos - digo, queixosa.

- Já tem idade suficiente - diz o meu marido. - E vós ireis

viajar para Ludlow com ele, se considerardes que estais

suficientemente forte, e devereis organizar tudo como vos aprouver,

certificando-vos de que ele tem os companheiros

229

e tutores que quiserdes. Irei nomear-vos para o seu conselho e

podereis escolher os outros membros, podereis guiá-lo e decidir que

estudos deverá fazer, bem como decidir sobre a sua vida, até ele cumprir os

catorze anos.

Volto a puxar o rosto de Eduardo para mim e beijo-o na boca.

- Obrigada - digo-lhe. Ele vai deixar o meu filho sob os meus

cuidados, quando a maior parte dos reis diria que um rapaz deve viver

apenas com homens, longe dos conselhos das mulheres. Mas Eduardo faz-

me guardiã do meu filho, honrando o amor que sinto por ele, respeitando as

minhas decisões. Vou conseguir suportar a separação do bebé se tiver de

nomear o seu conselho, pois isso significa que o visitarei com frequência e

que a sua vida continuará a estar sob a minha responsabilidade.

- E ele poderá vir a casa nas datas festivas e nos dias santos - diz

Eduardo. - Também vou sentir a sua falta, bem sabeis. Mas ele tem de estar

no seu principado. Tem de se iniciar como governante. Gales tem de

conhecer o seu príncipe e aprender a amá-lo. Ele tem de conhecer a sua

terra desde a infância, e é assim que manteremos a lealdade deles.

- Eu sei - digo. - Eu sei.

- E Gales sempre foi fiel aos Tudor - acrescenta Eduardo, quase num

aparte. - E quero que se esqueçam dele.

Reflicto cuidadosamente sobre quem terá a seu cargo a educação do

meu filho em Gales, e quem chefiará o seu conselho e governará Gales por

ele, até que ele atinja a idade legal, e acabo por me decidir pela pessoa que

teria escolhido, se escolhesse o primeiro nome que me viesse à cabeça, sem

pensar. Obviamente. A quem mais confiaria eu a coisa mais valiosa que

possuo neste mundo?

Dirijo-me aos aposentos do meu irmão António, que ficam afastados

da escadaria principal, dando para os jardins privados. A porta está

guardada pelo seu aio, que a abre de par em par, anunciando-me com um

murmúrio respeitoso. Atravesso a sua sala de audiências, bato à porta do

seu quarto e entro.

230

Page 180: Philippa gregory - a rainha branca

Ele está sentado a uma mesa, junto da lareira, um copo de vinho na

mão, uma dúzia de penas bem afiadas à sua frente, folhas de papel caro,

atravessadas por linhas. Está a escrever, como faz em muitas tardes,

quando começa a escurecer mais cedo, no Inverno, levando a que as

pessoas se refugiem dentro de casa. Agora, escreve todos os dias e já não

afixa os seus poemas durante os torneios: são demasiado importantes para

ele.

Sorri e coloca uma cadeira junto da lareira para eu me sentar. Põe um

banquinho debaixo dos meus pés, sem fazer comentários. Deve ter

percebido que estou grávida. António tem olhos de poeta, para além das

palavras. Pouca coisa lhe escapa.

- Que honra para mim - diz ele com um sorriso. - Tendes alguma

ordem para me dar, Vossa Graça, ou trata-se de uma visita privada?

- É um pedido - digo eu. - Porque Eduardo vai mandar o bebé para

Gales, para organizar a sua corte, e queria que fôsseis com ele, como seu

principal conselheiro.

- Eduardo não vai mandar Hastings? - pergunta ele.

- Não, sou eu quem vai nomear o conselho do bebé. António, há

muito a ganhar, em Gales. É preciso uma mão forte, e gostaria que a região

ficasse sob as ordens da nossa família. Não pode ser Hastings nem Ricardo.

Não gosto de Hastings, e nunca hei-de gostar, e Ricardo tem as terras dos

Neville, no Norte, não o podemos deixar ficar com o Oeste também.

António encolhe os ombros.

- Já temos riqueza e influência suficientes, não é verdade?

- Nunca será de mais - afirmo aquilo que é óbvio. - E, de qualquer

modo, o que é mais importante é que quero que fiqueis com a guarda do

bebé.

- Seria melhor que deixásseis de lhe chamar bebé, se ele vai passar a

ser o Príncipe de Gales e a ter a sua corte - lembra-me o meu irmão. - Vai

mudar-se para a sua propriedade, com o seu próprio governo, a sua corte, o

seu país. Daqui a pouco, ireis andar à procura de uma princesa para se casar

com ele.

Rio-me para as chamas quentes.

231

- Eu sei, eu sei. Já andamos a pensar no assunto. Quase nem consigo

acreditar. Chamo-lhe bebé porque gosto de me lembrar do ar que ele tinha,

com os seus vestidos, mas agora já usa calções e tem o seu próprio pónei, e

está a crescer de dia para dia. Tenho de lhe mudar as botas de montar,

quatro vezes ao ano.

Page 181: Philippa gregory - a rainha branca

- Ele é um óptimo rapazinho - diz António. - E, embora seja parecido

com o pai, por vezes, parece que revejo nele o seu avô. Pode ver-se que ele

é um Woodville, um dos nossos.

- Não aceitarei outra pessoa a não ser vós, para guardião dele - digo

eu. - Ele deve ser educado como um Rivers, numa corte Rivers. Hastings é

um brutamontes, e eu nem o meu gato confiaria a qualquer um dos irmãos

de Eduardo: Jorge não pensa em mais nada a não ser em si e Ricardo é

demasiado jovem. Quero que o meu Príncipe Eduardo aprenda convosco,

António. Vós não gostaríeis que outra pessoa o influenciasse, pois não?

Ele abana a cabeça.

- Não gostaria que ele fosse educado por nenhum deles. Não tinha

percebido que o rei queria instalá-lo em Gales tão cedo.

- Nesta Primavera - digo eu. - Não sei como vou aguentar deixá-lo

partir.

António faz uma pausa.

- Não poderei levar a minha esposa comigo - diz ele. - Se é que

haveis pensado nela como a senhora de Ludlow. Ela não é suficientemente

forte e, neste ano, está pior do que nunca, mais fraca.

- Eu sei. Se ela quiser viver na corte, certificar-me-ei de que será

bem cuidada. Mas não deixaríeis de ir, por sua causa?

Ele abana a cabeça.

- Que Deus a abençoe, não.

- Então, ireis?

- Irei, e vós podereis visitar-nos - diz António com ar importante. -

Na nossa nova corte. Para onde vamos? Ludlow?

Assinto com a cabeça.

- Podeis aprender galês e transformar-vos num bardo - digo eu.

- Bom, posso prometer que educarei o rapaz como vós e a nossa

família gostariam - diz ele. - Posso fazer com que se

232

interesse por aprender e que se dedique aos desportos. Posso ensinar-

lhe aquilo que precisa de saber para vir a ser um bom rei de Iorque. E não é

tarefa fácil, educar um rei. É um legado para o futuro, criar um rapaz que

vai ser rei.

- Suficiente para adiar por um ano a vossa peregrinação? - pergunto

eu.

- Sabeis bem que não vos consigo recusar nada. E o que dizeis é

como se fosse uma ordem do rei, e ninguém pode recusar uma ordem sua.

Mas, na verdade, eu nunca me recusaria a servir o jovem Príncipe Eduardo:

será uma tarefa importante, ser o guardião de um menino como ele. Teria

Page 182: Philippa gregory - a rainha branca

muito orgulho em ajudar a formar o próximo Rei da Inglaterra. E ficarei

muito feliz por viver na corte do Príncipe de Gales.

- Terei de o tratar sempre assim, daqui em diante? Já não pode

continuar a ser o bebé?

- Tereis.

233

PRIMAVERA DE 1473

O jovem Eduardo, Príncipe de Gales, o seu tio, Conde Rivers, o meu

filho Grey Ricardo, agora Sir Ricardo por ordem do seu padrasto, o rei e eu

fazemos uma grande viagem até Gales, para que o pequeno príncipe possa

conhecer o seu país e ser visto pelo maior número possível de pessoas. O

seu pai diz que é assim que tornamos o nosso governo seguro: mostramo-

nos ao povo e, ao demonstrar a nossa riqueza, a nossa fertilidade e a nossa

elegância, fazemos com que eles se sintam seguros da sua monarquia.

Seguimos em etapas curtas. Eduardo é forte, mas ainda não tem três

anos, e cavalgar durante um dia inteiro é demasiado cansativo para ele.

Determino que ele descanse todas as tardes e que se deite cedo, à noite, no

meu quarto. Estou contente com esta lenta progressão, por mim mesma, e

uso uma sela maior para me poder sentar de lado, uma vez que a curva do

meu ventre começa a tornar-se evidente. Chegamos à bonita cidade de

Ludlow sem incidentes e decido permanecer em Gales com o meu

primogénito durante meio ano, até ter a certeza de que a sua casa está

organizada para seu conforto e sua segurança, e que ele está adaptado e

feliz no seu novo lar.

Ele está deliciado; nunca se lamenta. Sente falta da companhia das

irmãs, mas adora ser o principezinho na sua própria corte e aprecia a

companhia do seu meio-irmão Ricardo, e do tio. Começa a conhecer as

terras em volta do castelo, os vales profundos e as belas montanhas. Tem os

mesmos criados que o acompanharam desde que nasceu. Fez novos amigos

entre as crianças da sua corte, que são trazidas para estudar e brincar

234

com ele, e está sob o vigilante cuidado do meu irmão. Eu é que não

consigo dormir, na semana anterior à data marcada para o deixar. António

sente-se à vontade, Ricardo está contente e o bebé sente-se felicíssimo na

sua nova casa.

É óbvio que me é quase insuportável deixá-lo, pois nós não temos

sido uma família real normal. Não temos mantido uma vida de

formalidades e distância. Esta criança nasceu em santuário, sob ameaças de

Page 183: Philippa gregory - a rainha branca

morte. Dormiu na minha cama durante os seus primeiros meses de vida -

nunca se tinha ouvido falar em algo semelhante, em relação a um príncipe

real. Não teve nenhuma ama-de-leite; eu mesma o amamentei, e foram os

meus dedos que a sua pequena mãozinha agarrou quando começou a dar os

primeiros passos. Nem ele, nem nenhum dos outros, foi afastado de mim

para ser criado por amas, ou foram enviados para um berçário de outro

palácio. Eduardo manteve os filhos perto de si, e este, o seu filho mais

velho, é o primeiro a deixar-nos para se ocupar das suas obrigações reais.

Amo-o apaixonadamente: é o meu menino de ouro, o menino que veio

finalmente assegurar a minha posição de rainha e dar ao pai, na altura nada

mais do que um pretendente da Casa de Iorque, uma razão mais forte para

aspirar ao trono. Ele é o meu príncipe, a coroa do nosso casamento, o nosso

futuro.

Eduardo junta-se a mim em Junho, durante o meu último mês em

Ludlow, trazendo a notícia de que a mulher de António, Lady Isabel,

morreu. Ela já estava doente há vários anos, com uma doença incurável.

António manda rezar missas pela sua alma, e eu, em segredo e com

vergonha de mim mesma, começo a imaginar quem poderá ser a nova

esposa do meu irmão.

- Há muito tempo para isso - diz Eduardo. - Mas António terá de

desempenhar o seu papel na segurança do reino. Poderá ter de casar com

uma princesa francesa. Preciso de aliados.

- Mas sem sair daqui - digo eu. - Terá de abandonar Eduardo?

- Não. Vejo que ele considera Ludlow como a sua terra. E Eduardo

vai precisar dele aqui, quando nos formos embora. E teremos de partir

dentro de pouco tempo. Dei ordens para partirmos ainda este mês.

235

Fico sem fala, embora soubesse, de facto, que esse dia teria de

chegar.

- Voltaremos para o visitar - promete-me ele. - E ele irá ter connosco.

Não vale a pena ficardes com esse ar tão trágico, meu amor. Ele está a

iniciar o seu trabalho como príncipe da Casa de Iorque. É este o seu futuro.

Deveis ficar feliz por ele.

- Estou feliz - digo, sem qualquer convicção.

Quando chega a hora de partir, tenho de beliscar as faces para lhes

dar alguma cor e de morder os lábios para evitar chorar. António sabe o que

me custa deixar os três para trás, mas o bebé está feliz, confiante de que nos

irá visitar à corte, em Londres, dentro de pouco tempo, gozando a sua nova

liberdade e a importância de ser um príncipe no seu próprio país. Permite-

me que o beije e abrace sem se retorcer. Até murmura ao meu ouvido:

Page 184: Philippa gregory - a rainha branca

“Amo-vos, Mamã”, ajoelhando-se depois para eu o abençoar; mas, quando

se levanta, está a sorrir.

António ajuda-me a subir para a sela secundária, colocada atrás da

do meu estribeiro-mor, e eu agarro-me com força ao seu cinto. Sinto-me

desajeitada, agora, no sétimo mês de gravidez. Uma súbita onda de negra

ansiedade derrama-se sobre mim, olho do meu irmão para os meus dois

filhos e um verdadeiro pavor apodera-se da minha pessoa.

- Tende cuidado - digo ao bebé.

- Tomai conta dele - digo a António. - Escrevei-me. Não permitais

que dê saltos com o pónei. Eu sei que ele quer fazê-lo, mas ainda é muito

pequeno. E não o deixeis apanhar frio. Não o deixeis ler com pouca luz, e

devereis mantê-lo afastado de pessoas doentes. Se houver peste nesta

cidade, levai-o imediatamente para longe - não consigo pensar em mais

avisos para lhe fazer; sinto-me inundada de ansiedade, enquanto vou

olhando de um rosto para outro. - A sério - digo, debilmente.

- A sério, António: guardai-o bem.

Ele dá um passo até junto do meu cavalo, segura a ponta da minha

bota e sacode-a com suavidade.

- Vossa Graça - diz simplesmente. - De verdade. Eu estou aqui para

tomar conta dele. Tomarei conta dele. Mantê-lo-ei em segurança.

- E vós - murrmro - deveis manter-vos também em segurança.

António, sinto tanto medo, mas não sei o que recear.

236

Não sei o que dizer. Gostaria de vos avisar, mas não sei de que

perigos - olho para o outro lado, para o sítio onde o meu filho, Ricardo

Grey, está encostado ao portão do castelo, um rapaz jovem, alto e bonito. -

E o meu filho Grey - digo. - O meu Ricardo, não vos sei dizer porquê, mas

sinto receio por todos vós.

Ele afasta-se para trás e encolhe os ombros.

- Minha irmã - diz ele com ternura. - Há sempre perigo. Os vossos

filhos e eu seremos homens, e enfrentá-lo-emos como homens. Não vos

atormenteis com ameaças imaginárias. E desejo-vos uma boa viagem e um

parto feliz. Estamos todos a contar com um novo príncipe, tão belo como

este!

Eduardo dá a ordem para avançarmos e segue à nossa frente, o seu

estandarte a flutuar lá adiante, a guarda pessoal à sua volta. O cortejo real

começa a mover-se como uma fita escarlate, passando pelos portões do

castelo, o vermelho-vivo das librés a condizer com os estandartes

ondulantes. Soam as trombetas, os pássaros levantam voo dos telhados do

castelo e voam em círculos, no céu, anunciando que o rei e a rainha vão

abandonar o seu querido filho. Não tenho possibilidade de impedir a

Page 185: Philippa gregory - a rainha branca

marcha, e não o devo fazer. Mas olho para trás, por cima do ombro, para o

meu filho mais pequeno, para o mais crescido, e para o meu irmão, até que

o declive da estrada que vai do pátio interior até à muralha exterior os

esconde, e deixo de os ver. E, quando já os não consigo ver mais, sou

invadida por uma tal tristeza que, por momentos, me parece que a noite

caiu e nunca mais voltará a haver luz do dia.

237

JULHO DE 1473

Paramos na cidade de Shrewsbury, no nosso regresso a Londres, nos

últimos dias de Julho, para que eu possa entrar em retiro de parto nos

aposentos de hóspedes da enorme abadia. Sinto-me feliz por ficar longe da

luminosidade e do calor do Verão, na frescura do quarto obscurecido.

Mandei colocar uma fonte num canto dos meus aposentos, que têm paredes

de pedra, e o ping, ping da água acalma-me, enquanto estou deitada na

minha cama de dia, à espera da minha hora.

Esta cidade foi construída à volta do poço sagrado de Santa Winifred

e, à medida que vou ouvindo o ruído da água da sua fonte a pingar e o

toque dos sinos a chamarem para as orações, penso nos espíritos que se

movem nas águas desta região húmida, tanto pagãos como sagrados,

Melusina e Winifred, e no modo como as nascentes, os ribeiros e os rios

falam com todos os homens, mas talvez, de uma forma especial, com as

mulheres, que conhecem no seu próprio corpo o movimento das águas da

terra. Todos os lugares sagrados da Inglaterra são fontes ou nascentes; as

pias baptismais são enchidas com água sagrada que regressa, abençoada, à

terra. É um país para Melusina, e o seu elemento está em toda a parte, por

vezes, a correr nos rios, outras vezes, escondido no subsolo, mas sempre

presente.

Em meados de Agosto, começam as dores e eu volto a cabeça para a

fonte e escuto o seu ruído, como se estivesse à procura da voz da minha

mãe na água. O bebé nasce com facilidade, como eu esperava que

acontecesse, e é um rapaz, como a minha mãe sabia que iria ser.

238

Eduardo entra no quarto, embora seja suposto que os homens estejam

impedidos de o fazer até eu ser abençoada na igreja.

- Tinha de vos vir visitar - diz ele. - Um filho. Outro filho. Que Deus

vos abençoe e vos proteja a ambos. Que Deus vos abençoe, meu amor, e

agradeço as dores que haveis sentido para me dardes outro rapaz.

Page 186: Philippa gregory - a rainha branca

- Pensava que não vos importava que fosse rapaz ou rapariga - digo

para o irritar.

- Adoro as minhas filhas - diz ele imediatamente. - Mas a Casa de

Iorque precisava de outro rapaz. Vai ser um companheiro para o seu irmão

Eduardo.

- Podemos dar-lhe o nome de Ricardo? - pergunto-lhe.

- Pensei em Henrique.

- Henrique será o próximo - digo eu. - Vamos chamar a este Ricardo.

Foi a minha própria mãe que lhe deu esse nome.

Eduardo inclina-se sobre o berço onde o rapazinho dorme e então

compreende as minhas palavras.

- A vossa mãe? Ela sabia que íamos ter um filho?

- Sim, sabia - digo a sorrir. - Ou, pelo menos, fingia que sabia. Estais

recordado da minha mãe. Havia sempre uma parte de magia e uma parte de

tolice.

- E este será o nosso último rapaz? Ela disse isso? Ou credes

que haverá mais um?

- Porque não outro? - digo preguiçosamente. - Se ainda me quiserdes

na vossa cama, quero dizer. Se ainda não estais farto de mim. Se não

estiverdes cansado de mim. Se não preferirdes as vossas outras mulheres.

Ele afasta-se do berço e vem para junto de mim. As suas mãos

deslizam por baixo das minhas omoplatas e erguem-me até à sua boca.

- Oh, eu ainda vos desejo - diz ele.

239

PRIMAVERA DE 1476

Ficou provado que eu tinha razão, este não foi, de forma alguma, o

meu último parto. O meu marido continuou a ser fértil, como eu o tinha

acusado de ser, como um touro no pasto junto ao rio. No segundo ano a

seguir ao nascimento de Ricardo, voltei a ficar grávida e, em Novembro,

tive outro bebé, uma menina, a quem demos o nome de Ana. Eduardo

recompensou-me pelos meus partos, fazendo o meu filho, Tomás Grey,

Marquês de Dorset, e eu casei-o com uma rapariga simpática - herdeira de

uma enorme fortuna. Eduardo gostaria que fosse um rapaz, e tínhamos

decidido que se chamaria Jorge, em homenagem ao outro Duque de Iorque,

e para que houvesse novamente três rapazes de Iorque chamados Eduardo,

Ricardo e Jorge; mas o Duque não mostra sinais de reconhecimento. Foi

um rapazinho mimado e ambicioso e transformou-se num homem

desapontado e mal-humorado. Está agora a meio da casa dos vinte, e o

botão de rosa que era a sua boca passou a ser um esgar de desdém.

Vangloriava-se de ser um dos rapazes de Iorque quando era um jovem

Page 187: Philippa gregory - a rainha branca

cheio de esperanças, uma vez que, nessa altura, era o primeiro na linha de

sucessão, o herdeiro escolhido por Warwick, mas depois viu-se afastado,

quando Warwick preferiu os Lencastre. Quando Eduardo voltou a

conquistar o trono, Jorge passou a ser o primeiro herdeiro da linha de

sucessão, mas foi empurrado para o segundo lugar com o nascimento do

meu bebé, o Príncipe Eduardo. Desde o nascimento do Príncipe Ricardo,

Jorge desceu para terceiro na linha de sucessão ao trono da Inglaterra. De

facto, cada vez que eu tenho um filho, o Duque

240

Jorge desce mais um degrau que o afasta do trono, afundando-se

cada vez mais na inveja. E, já que Eduardo é notoriamente activo

sexualmente e que eu sou reconhecidamente fértil, a possibilidade de Jorge

chegar ao trono tornou-se um acontecimento muito pouco provável, e agora

ele é o Duque do Desapontamento.

Ricardo, o outro irmão Iorque, parece não se preocupar com isto,

mas virou-se contra nós, depois de os Iorque terem voltado da França sem

terem travado uma batalha, mas tendo ganho a paz. O meu marido, o rei, e

todo o homem e toda a mulher de bom senso ao longo do país inteiro,

rejubilam por Eduardo ter conseguido a paz com a França que deverá durar

vários anos, e, por causa disso, eles irão pagar-nos uma fortuna, para não

reivindicarmos as nossas possessões na França. Toda a gente está

encantada por escapar a uma guerra no estrangeiro, custosa e difícil,

excepto o Duque Ricardo, o rapaz que foi educado num campo de batalha e

que agora cita os direitos dos ingleses sobre as terras da França e se agarra

à memória do pai, que passou a maior parte da sua vida a lutar com os

Franceses. Agora, praticamente chama ao irmão, o rei, cobarde e

preguiçoso, por não ordenar mais uma expedição cara e perigosa.

Eduardo ri-se, com o seu riso bem-humorado, e deixa passar o

insulto, mas Ricardo parte intempestivamente para as suas propriedades do

Norte, levando consigo a sua obediente esposa, Ana Neville, e instala-se

como um verdadeiro reizinho do Norte, recusando-se a vir para sul, para

junto de nós, acreditando ser o único verdadeiro Iorque de toda a Inglaterra,

o único herdeiro legítimo do seu pai, na sua inimizade contra a França.

Nada perturba Eduardo, e ele sorri, quando vem ter comigo aos

estábulos, na altura em que examino uma nova égua, um presente do rei da

França, e que marca a nova amizade entre os nossos países. É uma égua

linda, mas nervosa, por causa do novo ambiente que a rodeia, e nem se

aproxima de mim, apesar de eu ter uma tentadora maçã na mão.

- O vosso irmão veio ter comigo, hoje, a pedir autorização para partir

em peregrinação, e deixar Eduardo ao cuidado do seu meio-irmão, Sir

Ricardo, durante algum tempo.

Page 188: Philippa gregory - a rainha branca

241

Venho para fora do estábulo e fecho cuidadosamente a porta atrás de

mim, para manter o cavalo lá dentro, em segurança.

- Porquê? Aonde é que ele quer ir?

- Quer ir a Roma - diz Eduardo. - Disse-me que queria passar algum

tempo afastado do mundo - lança-me um sorriso trocista. - Parece que

Ludlow lhe despertou o gosto pela solidão. Quer ser santo. Disse-me que

queria descobrir o poeta que há dentro de si. Que precisa de silêncio e de

uma estrada deserta. Vai à procura do silêncio e da sabedoria.

- Oh, que disparate - digo, com o desdém típico de uma irmã. - Ele

sempre teve essa mania de ir para longe. Tem andado a fazer planos de ir a

Jerusalém desde que era pequeno. Adora viajar, e acha que os Gregos e os

Muçulmanos sabem tudo. Ele pode querer ir, mas a sua vida e o seu

trabalho estão aqui. Dizei-lhe apenas que não, e obrigai-o a ficar.

Eduardo hesita.

- Ele tem um grande desejo de o fazer, Isabel. E é um dos mais

notáveis cavaleiros da Cristandade. Parece-me que ninguém é capaz de o

derrotar numa justa, quando está num dia de sorte. E a sua poesia é tão boa

como a de outra pessoa qualquer. As suas leituras e os seus conhecimentos

são tão vastos e o domínio que tem sobre as línguas é maior do que o de

qualquer outra pessoa na Inglaterra. Ele não é um homem vulgar. Talvez

seja o seu destino ir para longe, para aprender mais. Tem-nos servido com

dedicação, melhor do que ninguém, e, se Deus o chamou para viajar, talvez

devêssemos deixá-lo ir.

A égua aproxima-se e pousa a cabeça sobre a meia porta para me

cheirar o ombro. Fico imóvel, para não a assustar. Sinto no pescoço o seu

bafo quente, que cheira a aveia.

- Estais muito comovido com os seus talentos - digo com suspeição. -

Porque haveis passado a admirá-lo tanto, assim de repente?

Ele encolhe os ombros e, com esse pequeno gesto, eu, como esposa

típica, ataco-o imediatamente. Dou um passo em frente e agarro-lhe ambas

as mãos, para que não possa fugir ao meu escrutínio.

- Então, dizei lá, quem é ela?

242

- O quê? De que falais?

- A mais recente. A nova amante. A que aprecia a poesia de António

- digo mordazmente. - Vós nunca a ledes. Nunca haveis tido os

conhecimentos, e o destino dele, em tão alta consideração, antes. Por isso,

alguém tem andado a ler para vós. Posso jurar que ela vos tem andado a ler

Page 189: Philippa gregory - a rainha branca

a poesia dele. E, se estiver certa, ela conhece-a, por ele lha ter lido. E,

provavelmente, Hastings também a conhece, e todos vós a achais

perfeitamente encantadora. Mas sois vós quem vai para a cama com ela; e

os outros andam à roda, a farejar como cães. Tendes uma nova e simpática

amante, e isso eu entendo. Mas se pensais que ides compartilhar comigo as

suas estúpidas opiniões, então, ela vai ter de se afastar.

Ele olha para o lado, para as botas, para o céu, para a nova égua.

- Como é que ela se chama? - pergunto. - Isso, pelo menos, podeis

dizer-me.

Ele puxa-me para si e aperta-me nos seus braços.

- Não vos zangueis, minha querida - sussurra ao meu ouvido. -

Sabeis que só vós contais. Sempre e apenas vós.

- Eu e uma vintena de outras - digo irritada, mas não me afasto dele.

- Passam pelo vosso quarto como um cortejo do Primeiro de Maio.

- Não - diz ele. - De verdade. Só vós existis. Só tenho uma esposa.

Tenho uma vintena de amantes, talvez centenas. Mas apenas uma esposa. E

isso é importante, não será?

- As vossas amantes têm idade para serem minhas filhas - digo,

zangada. - E vós ides à cidade atrás delas. E os comerciantes fazem-me

queixa de que as suas mulheres e filhas não estão a salvo de vós.

- Não - diz o meu marido, com a vaidade de um homem bonito. -

Não estão. Espero que nenhuma mulher me resista. Mas nunca tomei

nenhuma à força, Isabel. A única mulher que me resistiu fostes vós.

Lembrais-vos de me terdes ameaçado com aquele punhal?

Apesar de tudo, sorrio.

- Claro que me lembro. E vós a jurar que me havíeis de oferecer a

bainha, mas que seria a última coisa que me haveríeis de dar.

243

- Não há ninguém como vós - beija-me a testa, depois, as minhas

pálpebras fechadas e, a seguir, os lábios. - Não há ninguém, para além de

vós. Ninguém, a não ser a minha esposa, tem o meu coração nas suas lindas

mãos.

- Então, qual é o nome dela? - pergunto, enquanto ele tenta acalmar-

me com beijos. - Como se chama a nova amante?

- Isabel Shore - diz ele com os lábios encostados ao meu pescoço. -

Mas isso não tem qualquer importância.

António vem aos meus aposentos, mal chega à corte, depois de ter

feito a viagem desde Gales, e eu recebo-o com uma recusa absoluta de o

deixar partir para longe.

- Não, a sério, minha querida - diz ele. - Tendes de me deixar ir. Eu

não vou a Jerusalém, este ano, mas quero ir a Roma e confessar os meus

Page 190: Philippa gregory - a rainha branca

pecados. Quero afastar-me da corte, durante algum tempo, e pensar nas

coisas que são importantes e não nas coisas do dia-a-dia. Quero ir de

mosteiro em mosteiro e levantar-me de madrugada para rezar e, onde não

houver uma casa religiosa onde eu possa passar a noite, dormirei sob as

estrelas, e procurarei Deus no meio do silêncio.

- Não tereis saudades minhas? - pergunto-lhe infantilmente.

- Não ireis sentir a falta do bebé? E das meninas?

- Vou, e é por isso que nem penso numa cruzada. Não suportaria

estar longe tantos meses. Mas Eduardo está bem instalado em Ludlow, com

os seus companheiros de brincadeira e os seus tutores e o jovem Ricardo

Grey é um óptimo companheiro e um modelo para ele. Não há problema

em deixá-lo lá durante algum tempo. Sinto uma ânsia enorme de viajar por

estradas desertas, e tenho de segui-la.

- Sois um filho de Melusina - digo eu, tentando sorrir. - Falais como

ela, quando dizia que tinha de ter a liberdade de mergulhar na água.

- É isso - concorda ele. - Pensai em mim como se estivesse a nadar

para longe e depois a maré trar-me-á de volta.

- Já haveis tomado essa decisão?

244

Ele assente com a cabeça.

- Preciso de ter silêncio, para ouvir a voz de Deus - diz ele.

- E silêncio para escrever a minha poesia. E silêncio para poder ser

eu próprio.

- Mas voltareis?

- Daqui a alguns meses - promete ele.

Estendo-lhe as mãos e ele beija ambas.

- Tendes de voltar - digo-lhe.

- Voltarei - diz ele. - Dei a minha palavra de que apenas a morte me

afastaria de vós e dos vossos.

245

JULHO DE 1476

Ele cumpre a sua palavra e regressa da viagem a Roma a tempo de se

encontrar connosco em Fotheringhay, em Julho. Ricardo planeou e

organizou uma cerimónia solene para um novo funeral do pai e do irmão

Edmundo que foram mortos em batalha, desrespeitados e quase não foram

sepultados. A Casa de Iorque junta-se para o funeral e para a cerimónia

religiosa, e sinto-me feliz por António voltar para casa a tempo de trazer o

Príncipe Eduardo para a homenagem ao avô.

Page 191: Philippa gregory - a rainha branca

António tem a pele escura como a de um mouro e muitas histórias

para contar. Escapulimo-nos os dois para dar um passeio pelos jardins de

Fotheringhay. Foi assaltado no caminho; pensou que não conseguiria

escapar com vida. Passou uma noite junto de uma fonte, numa floresta, e

não conseguiu dormir, certo de que Melusina se iria erguer das águas.

- E o que é que eu ia dizer-lhe? - pergunta ele, queixoso.

- Seria muito complicado para todos nós se eu me apaixonasse

pela minha própria bisavó.

Foi recebido pelo Santo Padre, jejuou durante uma semana e teve

uma visão, e agora está decidido a partir de novo, um dia, mas desta vez

quer ir até bem mais longe. Quer conduzir uma peregrinação a Jerusalém.

- Quando Eduardo atingir a maioridade e receber aquilo a que tem

direito, quando fizer dezasseis anos, eu vou - diz ele.

Eu sorrio.

- Está bem - concordo calmamente. - Isso é daqui a muitos anos.

Ainda faltam dez.

246

- Parece muito tempo, agora - avisa-me António. - Mas os anos vão

passar depressa.

- Isso é a sabedoria de um velho peregrino? - pergunto, trocista.

- É — concorda ele. - Antes de darmos por isso, ele vai ficar um

rapaz mais alto do que vós e vamos ter de avaliar o género de rei que

educámos. Ele vai ser Eduardo V e irá herdar um trono, de forma pacífica,

assim queira Deus, e dar continuidade à Casa Real de Iorque, sem

confrontos.

Sem qualquer razão, estremeço.

- O que se passa?

- Nada, não sei. Um arrepio de frio: nada. Sei que ele vai ser um

fantástico rei. Ele é um verdadeiro Iorque e um verdadeiro filho da Casa de

Rivers. Não poderia haver melhor começo para um rapazinho.

247

DEZEMBRO DE 1476

O Natal aproxima-se, e o meu querido filho, o Príncipe Eduardo,

vem para casa, para Westminster, para as celebrações. Todos ficam

admirados ao ver como ele cresceu. Vai fazer sete anos no próximo ano, e é

um rapazinho com uma postura altiva, bonito e com cabelo loiro, com uma

rapidez de raciocínio e uma educação que é completamente da

Page 192: Philippa gregory - a rainha branca

responsabilidade de António, e parece que vai ser belo e encantador como o

pai.

António traz os meus dois filhos à minha presença, Ricardo Grey e o

Príncipe Eduardo, para que eu os abençoe, e depois liberta-os para que

possam ir ao encontro dos irmãos e irmãs.

- Sinto tanto a falta dos três. Tanto - digo eu.

- E eu a vossa - diz-me ele a sorrir. - Mas vós estais com bom

aspecto, Isabel.

Faço um beicinho.

- Para uma mulher que se sente enjoada todas as manhãs.

Ele fica encantado.

- Estais de novo à espera de uma criança?

- Novamente e, dado o tipo de enjoos, todos pensam que vai ser um

rapaz.

- Eduardo deve estar muito contente.

- Penso que sim. Ele mostra o seu contentamento namoriscando com

todas as mulheres que estejam num raio de cem quilómetros.

António ri-se.

- É típico de Eduardo.

248

O meu irmão está feliz. Consigo adivinhá-lo de imediato, pela

posição relaxada dos seus ombros e das linhas em volta dos seus olhos.

- E quanto a vós? Ainda gostais de Ludlow?

- O jovem Eduardo, Ricardo e eu temos as coisas tal qual desejamos

- diz ele. - Somos uma corte devotada à erudição, à cavalaria, à luta e à

caça. É uma vida perfeita para nós os três.

- Ele estuda?

- Como vos tenho relatado. É um rapaz inteligente e sensato.

- E não o deixais correr riscos, na caça?

Ele sorri.

- É claro que deixo! Queríeis que educasse um cobarde, para ocupar

o trono de Eduardo? Ele tem de pôr a sua coragem à prova nas caçadas e na

arena das justas. Tem de conhecer o que é o medo, de o olhar de frente e

cavalgar na sua direcção. Tem de ser um rei valente, não um medroso. Eu

estaria a prestar-vos, a ambos, um mau serviço, se o afastasse de qualquer

risco e o ensinasse a recear o perigo.

- Eu sei, eu sei - digo. - É só porque ele é tão precioso...

- Todos nós somos preciosos - declara António. - E temos de

conviver com o risco, na nossa vida. Estou a ensiná-lo a montar qualquer

cavalo que exista na cavalariça e a enfrentar qualquer luta, sem um tremor.

Isso irá dar-lhe mais segurança do que tentar que utilize apenas cavalos

Page 193: Philippa gregory - a rainha branca

mansos e que não se aproxime da arena das justas. Mas vamos tratar de

coisas bem mais importantes. Que me ides oferecer como presente de

Natal? E ireis dar o meu nome ao vosso filho, se for um rapaz?

A corte prepara-se para as celebrações do Natal com a sua habitual

extravagância, e Eduardo manda fazer fatos novos para todas as crianças e

para nós próprios, enquanto participantes na representação a que o mundo

espera assistir por parte da bela família real da Inglaterra. Todos os dias

passo algum tempo com o pequeno Príncipe Eduardo. Adoro sentar-me

junto dele quando está a dormir e de ouvir as suas

249

orações, antes de se deitar, e chamo-o todos os dias aos meus

aposentos para tomarmos o pequeno-almoço. É um rapazinho sério,

sensato, e oferece-se para me ler em latim, grego ou francês, até acabar por

confessar que os seus conhecimentos ultrapassam, de longe, os meus.

Tem muita paciência com o irmão mais novo, Ricardo, que o

idolatra, seguindo-o para todo o lado com um passo determinado, e é muito

carinhoso com a bebé Ana, debruçando-se sobre o seu berço, maravilhado

com as suas mãos pequeninas. Todos os dias inventamos uma peça de

teatro ou uma mascarada, vamos à caça e organizamos um grande jantar de

cerimónia com danças e entretenimentos. As pessoas dizem que os Iorque

têm uma corte de encantar, uma vida encantada, e eu não o posso negar.

Há apenas uma coisa a projectar uma sombra sobre estes dias

anteriores ao Natal: Jorge, o Duque do Descontentamento.

- Creio realmente que o vosso irmão está a ficar mais estranho a cada

dia que passa - queixo-me a Eduardo, quando ele se dirige aos meus

aposentos, no Palácio de Westminster, para me acompanhar ao jantar.

- Qual deles? - pergunta ele preguiçosamente. - Porque sabeis que,

aos olhos deles, eu não faço nada bem feito. Seria de esperar que eles se

sentissem felizes por ter um Iorque no trono, paz na Cristandade, e uma das

mais bonitas festas de Natal que alguma vez organizámos; mas não:

Ricardo vai abandonar a corte e voltar para o Norte, logo que acabem as

comemorações, como manifestação do seu ultraje pelo facto de não

andarmos a lutar arduamente, numa batalha com os Franceses, e Jorge tem

apenas mau feitio.

- É precisamente o mau feitio de Jorge que me preocupa.

- Porquê, o que foi que ele fez agora? - pergunta-me.

- Disse ao seu criado que não iria comer nada que lhe fosse enviado

da nossa mesa. - digo. - Disse-lhe que só comeria em privado, no seu

quarto, quando todos nós tivéssemos acabado de jantar. Se, num gesto de

cortesia, lhe mandarmos servir um prato para provar, tenciona recusá-lo.

Page 194: Philippa gregory - a rainha branca

Ouvi dizer que irá devolvê-lo, como forma de insulto público. Vai sentar-se

com as outras pessoas à mesa do jantar, mas com um prato vazio à

250

sua frente. Também não vai beber. Eduardo, tendes de conversar

com ele.

- Se ele recusar a bebida, é mais do que um insulto, é um milagre! -

diz Eduardo a sorrir. - Jorge é incapaz de recusar um copo de vinho, nem

que seja o próprio diabo a oferecer-lho.

- Não é um assunto de que nos possamos rir, se ele vai usar a nossa

mesa para nos insultar.

- Sim, eu sei. Já falei com ele - vira-se para o grupo de cavalheiros e

damas que formam uma fila atrás de nós. - Dêem-nos um momento - diz

ele, levando-me para perto de uma janela, onde pode falar sem ser ouvido. -

Na verdade, as coisas são piores do que aquilo que já sabeis, Isabel. Penso

que ele anda a espalhar rumores sobre nós.

- E a dizer o quê? - pergunto eu. A inveja que Jorge sente pelo irmão

mais velho não se satisfez com a sua revolta falhada e por ter sido

perdoado. Eu tinha tido esperança de que ele acalmasse e se transformasse

num dos mais importantes duques da Inglaterra. Achei que ele iria ser feliz

com a esposa, a pálida Isabel, e a sua enorme fortuna, mesmo tendo

perdido o controlo sobre a cunhada, Ana, quando ela se casou com Ricardo.

Mas, como todos os homens maldosos e ambiciosos, preocupa-se mais com

o que perdeu do que com o que ganhou. Sentiu inveja de Ricardo, por

causa da esposa dele, a pequena Ana Neville. Invejou Ricardo pela fortuna

que ela lhe trouxe. Não consegue perdoar Eduardo pelo facto de ter

autorizado Ricardo a casar com ela, e vigia qualquer concessão que

Eduardo faça à minha família e parentes, qualquer pedaço de terra que

Eduardo ofereça a Ricardo. Parece que a Inglaterra é um pequeno campo

onde não se pode perder nem uma fileira de ervilhas, tal é a sua ansiosa

suspeição. - O que pode ele dizer contra nós? Tendes sido imensamente

generoso para com ele.

- Ele anda a dizer, de novo, que a minha mãe traiu o meu pai e que

eu sou um bastardo - diz-me ele, encostando a boca ao meu ouvido.

- Que tenha vergonha! Essa velha história! - exclamo eu.

- E alega que fez um acordo com Warwick e Margarida de Anjou

que diz que, quando Henrique morresse, ele deveria

251

ser o rei. Por isso, agora, ele é que é o rei por direito, como sucessor

de Henrique.

Page 195: Philippa gregory - a rainha branca

- Mas foi ele mesmo quem matou Henrique! - exclamo eu.

- Calai-vos, calai-vos. Não se pode falar disso.

Abano a cabeça e o véu do meu toucado dança, com a minha

agitação.

- Não. Não deveis usar de palavras doces acerca desse caso, agora,

não entre nós os dois, e em privado. Na altura, haveis dito que o seu

coração tinha falhado, e isso foi suficiente para convencer toda a gente.

Mas Jorge não pode fingir que foi escolhido e nomeado herdeiro por

Henrique, quando foi o seu assassino.

- Ele ainda diz coisas piores - avisa-me o meu marido.

- Sobre mim? - tento adivinhar.

Ele concorda com um aceno de cabeça.

- Ele diz que vós... - interrompe e olha em volta para verificar se

alguém pode ouvir - Diz que vós sois uma b... - a voz dele torna-se

demasiado baixa, não consegue pronunciar a palavra.

Encolho os ombros.

- Uma bruxa?

Ele anui.

- Não é o primeiro a dizer isso e presumo que não será o último.

Enquanto fordes Rei da Inglaterra, ele não me poderá atingir.

- Não me agrada que digam essas coisas acerca de vós. Não apenas

por causa da vossa reputação, mas pela vossa segurança. É um nome

perigoso para se ligar a uma mulher, não importa quem seja o seu marido.

E, para além do mais, toda a gente continua a dizer que o nosso casamento

foi resultante de um feitiço. E isso leva-os a declarar que, na verdade, não

houve qualquer casamento.

Solto um pequeno assobio, como um gato furioso. Preocupo-me

pouco com a minha reputação: a minha mãe ensinou-me que uma mulher

poderosa irá sempre atrair calúnias; mas aqueles que dizem que eu não

estou verdadeiramente casada transformariam os meus filhos em bastardos.

Isto significaria deserdá-los.

- Tereis de o silenciar.

252

- Já falei com ele, e já o avisei. Mas creio que, apesar de tudo isso,

ele anda a criar uma facção contra mim. Já tem seguidores, cada dia mais, e

penso que deve estar em contacto com Luís da França.

- Nós temos um tratado de paz com o Rei Luís.

- Que não irá deter a sua ingerência. Creio que nada irá impedir a sua

ingerência. E Jorge é suficientemente louco para aceitar o seu dinheiro,

para me criar problemas.

Olho em volta. A corte está à nossa espera.

Page 196: Philippa gregory - a rainha branca

- Temos de seguir para o jantar - digo. - Que ides fazer?

- Voltarei a falar com ele. Mas, entretanto, não lhe deveis enviar

qualquer prato da nossa mesa. Não quero que ele transforme o acto de os

recusar num espectáculo.

Abano a cabeça.

- Os pratos especiais vão para os favoritos - digo eu. - Ele não é um

dos meus favoritos.

O rei solta uma gargalhada e beija-me a mão.

- Tende cuidado para não o transformardes num sapo, minha

bruxinha - diz ele num sussurro.

- Não é preciso. Por dentro, no seu coração, já o é.

Eduardo não me conta o que disse a este irmão, o mais difícil de

todos eles, e não é a primeira vez que sinto que gostaria que a minha mãe

ainda estivesse comigo: tenho necessidade dos seus conselhos. Depois de

algumas semanas de amuos e de se recusar a jantar connosco, de andar a

esconder-se pelo palácio como se tivesse receio de se sentar, afas- tando-se

de mim como se o meu olhar pudesse transformá-lo em pedra, Jorge

anuncia que Isabel, nos últimos meses de gravidez, está doente; doente por

causa do mau ar, anuncia ele de forma subtil, e que vai levá-la para longe

da corte.

- Talvez seja melhor assim - diz-me uma manhã o meu irmão

António, cheio de esperança, enquanto caminhamos de regresso aos nossos

aposentos, depois da missa. As minhas damas seguem-me, com excepção

de Lady Margarida Stanley, que ainda continua de joelhos, na capela, que

Deus a abençoe. Reza como uma mulher que pecou contra o próprio

253

Espírito Santo, mas eu sei que ela está completamente inocente. Ela

nem sequer se deita na mesma cama que o marido; creio que não sente

qualquer desejo. Na minha opinião, nada faz vibrar aquele celibatário

coração Lencastre, a não ser a ambição.

- Ele faz com que toda a gente pergunte o que foi que Eduardo fez

para o fazer zangar desta maneira, e é insultuoso para com vós os dois.

Leva as pessoas a discutir se o príncipe Eduardo se parece com o pai, e

como é que alguém pode ter a certeza que ele é mesmo vosso filho, uma

vez que nasceu em retiro, sem uma testemunha credível. Pedi autorização a

Eduardo para o desafiar para uma justa. Não lhe podem permitir que fale de

vós da maneira que o faz. Quero defender o vosso nome.

- Que disse Eduardo?

- Disse que era melhor ignorá-lo do que dar credibilidade às suas

mentiras, desafiando-o. Mas a situação não me agrada. E ele insulta-vos e à

nossa família, e também a nossa mãe.

Page 197: Philippa gregory - a rainha branca

- Isso não é nada, comparado com o que faz à dele - faço notar. - À

nossa mãe, ele chama bruxa, mas, à dele, chama prostituta. É um homem

que não tem medo de caluniar as pessoas. Admira-me que a sua própria

mãe não ordene o seu silêncio.

- Penso que ela já o fez, e Eduardo já o repreendeu em privado, mas

nada o fará parar. Está fora de si, com tanto despeito.

- Pelo menos, longe da corte, não poderá andar a murmurar pelos

cantos e a recusar-se a dançar.

- Desde que não conspire contra nós. Mal se encontre em sua casa,

longe daqui, rodeado dos seus servidores, Eduardo não vai saber nada sobre

quem ele anda a arregimentar até ele ter, novamente, homens em campo, e,

aí, Eduardo terá de enfrentar uma nova rebelião.

- Oh, Eduardo vai saber - digo eu com astúcia. - Ele vai ter homens a

vigiar Jorge. Até eu tenho um criado pago, dentro da sua casa. Eduardo terá

dúzias deles. Eu vou saber o que ele faz, mesmo antes de ele o fazer.

- Quem é o vosso homem? - pergunta António.

Sorrio.

254

- Não tem de ser um homem para vigiar, perceber e relatar. Tenho

uma mulher dentro do seu séquito, e ela conta-me tudo.

A minha espia, Ankarette, envia-me relatórios todas as semanas, e

diz-me que Jorge está realmente a receber cartas da França, a nossa

inimiga. Depois, mesmo na véspera do Dia de Natal, escreve-me sobre a

saúde decadente da sua esposa, Isabel. A pequena duquesa dá à luz mais

uma criança, a quarta, mas não recupera as forças e, apenas algumas

semanas depois de se ter retirado para o parto, desiste de lutar pela vida,

volta o rosto ao mundo e morre.

Rezo pela sua alma com uma emoção genuína. Ela foi uma rapariga

terrivelmente infeliz. O pai, Warwick, adorava-a e achou que poderia fazer

dela uma duquesa, e depois acreditou que conseguiria fazer do marido dela

um rei. Mas, em vez de um belo rei Iorque, o marido era um rabugento

filho mais novo, que virou a casaca não uma, mas duas vezes. Depois de ter

perdido o primeiro filho, nos mares agitados e no vento enfeitiçado, ao

largo de Calais, ela teve mais duas crianças, Margarida e Eduardo. Agora,

terão de sobreviver sem ela. Margarida é uma rapariguinha muito

inteligente, mas Eduardo é lento de entendimento, talvez até um pouco

simplório. Que Deus os ajude a ambos, com Jorge como único responsável.

Envio uma carta, exprimindo o meu pesar, e a corte faz luto por ela - filha

de um importante conde e esposa de um duque da família real.

255

Page 198: Philippa gregory - a rainha branca

JANEIRO DE 1477

Estamos de luto por causa dela, mas Jorge, que mal acabou de a

enterrar, quase não teve tempo para apagar as velas antes de regressar à

corte, como um pavão, cheio de planos para encontrar uma nova esposa e,

desta vez, com grandes aspirações. Carlos da Borgonha, o marido da nossa

Margarida de Iorque, morreu em batalha, e a sua filha, Maria, passou a ser

duquesa e herdeira de um dos mais ricos ducados da Cristandade.

Margarida, uma apoiante incondicional dos Iorque, e fatalmente cega

em relação aos defeitos da sua família, sugere que o seu irmão Jorge, tão

afortunadamente livre, case com a enteada dela - mostrando preocupar-se

mais com as necessidades do seu irmão Iorque do que com a rapariga da

Borgonha que ficou a seu cargo; pelo menos, é o que eu penso.

Obviamente, Jorge fica logo a arder de ambição. Anuncia a Eduardo que

quer casar com a Duquesa da Borgonha ou com a Princesa da Escócia.

- Impossível - diz Eduardo. - Ele já é suficientemente traidor sendo

eu quem lhe pago o seu rendimento de duque. Se fosse rico como um

príncipe, com uma fortuna independente, nenhum de nós estaria em

segurança. Pensai nos problemas que ele nos iria criar na Escócia! Deus

meu, imaginai como ele iria comportar-se em relação à nossa irmã

Margarida, na Borgonha! Ela acabou de ficar viúva, e a enteada dela

acabou de ficar órfã. Mais depressa lhes enviaria um lobo do que Jorge.

256

PRIMAVERA DE 1477

Jorge fica a remoer a recusa do irmão e, depois, chegam-nos notícias

de factos incríveis, novidades tão extraordinárias que começamos por

pensar que deve ser um rumor exagerado: não pode ser verdade. Jorge

declara subitamente que Isabel não morreu de febre de parto, mas por

envenenamento, e atira com o envenenador para a prisão.

- Não acredito! - exclamo diante de Eduardo. - Será que ele

enlouqueceu? Quem iria fazer mal a Isabel? Quem é que ele prendeu?

Porquê?

- Ainda foi pior do que a prisão - diz ele. Parece completamente

siderado pela carta que tem na mão. - Ele deve ter enlouquecido. Obrigou

aquela mulher que era criada dele a comparecer diante de um tribunal,

ordenou-lhes que a considerassem culpada de homicídio e mandou-a

decapitar. Ela já morreu. Morta por ordem de Jorge, como se não houvesse

lei neste país. Como se ele estivesse acima da lei e fosse mais importante

Page 199: Philippa gregory - a rainha branca

do que um rei. Anda a governar o meu reino como se eu tivesse permitido a

tirania.

- Quem é ela? Quem era? - pergunto. - A pobre criada?

- Ankarette Twynho - diz ele, lendo o nome na carta de reclamação. -

O tribunal diz que ele os ameaçou com violência e os obrigou a deliberar a

culpa, embora não houvesse provas contra ela, para além do juramento

dele. Dizem que não se atreveram a recusar o pedido dele, e que ele os

obrigou a condenar uma mulher inocente à morte. Acusou-a de

envenenamento e bruxaria, e de servir uma importante bruxa - Eduardo

ergue os olhos da carta e repara na palidez do meu

257

rosto. - Uma importante bruxa? Sabeis alguma coisa sobre este

assunto, Isabel?

- Ela era a minha espia, dentro da casa dele - confesso

imediatamente. - Mas era só isso. Eu não tinha qualquer necessidade de

envenenar a pobre da pequena Isabel. O que é que eu ganharia com isso? E

falar em bruxaria é um disparate. Por que havia eu de lhe lançar um feitiço?

Eu não gostava dela nem da irmã, mas nunca lhes desejaria mal.

Ele acenou com a cabeça.

- Eu sei. É óbvio que não haveis mandado envenenar Isabel. Mas

será que Jorge soube que a mulher que ele acusou trabalhava para vós?

- Talvez. Talvez. Por que outra razão iria acusá-la? Que mais poderia

ela ter feito para o ofender? A intenção dele é enviar-me um aviso?

Ameaçar-nos?

Eduardo pousa a carta em cima da mesa.

- Só Deus sabe! Que espera ele ganhar ao assassinar uma criada, a

não ser criar mais confusão e maledicência? Tenho de agir em relação a

isto, Isabel. Não posso deixar passar.

- Que pensais fazer?

- Ele tem um pequeno grupo de conselheiros: homens perigosos,

descontentes. Um deles é, certamente, um adivinho praticante, se não for

pior. Vou prendê-los. Vou levá-los a tribunal. Farei aos homens dele o que

ele fez à vossa serva. Vai servir-lhe de aviso. Ele não pode desafiar-nos, ou

aos nossos criados, sem correr qualquer risco pessoal. Só espero que tenha

o bom senso de o perceber.

Assinto.

- Eles não nos podem fazer mal? - pergunto. - Esses homens?

- Só se vós acreditardes, como parece suceder com Jorge, que eles

têm capacidade para lançar um feitiço contra nós.

Page 200: Philippa gregory - a rainha branca

Sorrio, na esperança de conseguir esconder o meu receio. É óbvio

que acredito que eles podem lançar um feitiço contra nós. É óbvio que

temo que já o tenham feito.

Tinha razão em estar preocupada. Eduardo manda prender o famoso

feiticeiro Tomás Burdett, e mais outros dois, eles são

258

interrogados e começa a surgir um manancial de histórias

inacreditáveis sobre magia negra, ameaças e feitiços.

O meu irmão António encontra-me, com a minha enorme barriga

encostada ao muro do rio, a olhar fixamente para a água, no Palácio de

Westminster, numa tarde soalheira de Maio. Por trás de mim, no jardim, as

crianças estão a jogar com um taco e uma bola. Pelos gritos ultrajados de

“batota”, percebo que o meu filho Eduardo está a perder e a tirar partido do

seu estatuto de Príncipe de Gales para modificar o resultado.

- O que fazeis aqui? - pergunta-me António.

- Estava a desejar que este rio fosse um fosso que conseguisse

manter-me, e aos meus, a salvo dos inimigos.

- A Melusina aparece-vos, quando a convocais das águas do

Tamisa? - pergunta ele com um sorriso céptico.

- Se isso acontecesse, faria com que ela enforcasse Jorge, Duque de

Clarence, juntamente com aquele feiticeiro dele. E ordenar-lhe-ia que o

fizesse a ambos, imediatamente, sem mais palavras.

- Não acreditais que o homem pode fazer-vos mal através de mau-

olhado? - pergunta ele. - Ele não é nenhum feiticeiro. Isso não existe. É

apenas um conto de fadas para assustar as crianças, Isabel - olha lá para

trás, para os meus filhos, que apelam a Isabel para que decida num caso de

bola perdida.

- Jorge acredita nele. Pagou-lhe bom dinheiro para ele prever a morte

do rei e depois, mais algum, para que se encarregasse de que isso viria a

acontecer. Jorge contratou esse feiticeiro para nos destruir. As suas pragas

já andam no ar, na terra e até mesmo na água.

- Oh, que disparate. Ele é tão feiticeiro como vós sois bruxa.

- Eu não digo que sou bruxa - digo baixinho. - Mas recebi a herança

de Melusina. Sou sua herdeira. Vós sabeis de que falo: tenho os seus dons,

como a nossa mãe tinha. Como tem a minha filha Isabel. O mundo canta

para mim e eu ouço a sua canção. Isto acontece-me; os meus desejos

tornam-se realidade. Os sonhos falam comigo. Consigo ver sinais e

portentos. E, por vezes, consigo ver o que vai acontecer no futuro. Tenho o

dom da Visão.

259

Page 201: Philippa gregory - a rainha branca

- Tudo isso podem ser revelações de Deus - diz ele com firmeza. - É

esse o poder da oração. Tudo o mais é imaginação. E tolices de mulher.

Sorrio.

- Creio que isto me vem de Deus. Nunca duvidei disso. Mas Deus

fala comigo através do rio.

- Sois uma herege e uma pagã - diz ele, com o escárnio típico de um

irmão. - Melusina é um conto de fadas, mas Deus e o Seu Filho são a vossa

fé jurada. Por amor de Deus, haveis fundado casas religiosas, mandado

dizer missas, criado escolas, em nome Dele. O vosso amor pelos rios e

ribeiros é uma superstição aprendida com a nossa mãe, semelhante à dos

antigos pagãos. Não podeis transformá-lo numa religião privada e depois

ficar aterrorizada com demónios que vós mesma haveis imaginado.

- É óbvio, meu irmão - digo com os olhos postos no chão.

- Sois um senhor, no que diz respeito a conhecimentos. Tenho a

certeza de que tendes toda a razão.

- Parai! - ergue uma mão, rindo-se. - Parai! Não vos merece a pena

pensar que eu vou sequer tentar debater o assunto convosco. Vós tendes a

vossa própria teologia, já sei. Em parte, conto de fadas, em parte, Bíblia, e

mais esses disparates todos. Por favor, para bem de todos nós, transformai-

a numa religião secreta. Guardai-a só para vós. E não vos aterrorizeis a vós

mesma com inimigos imaginários.

- Mas o que eu sonho é verdade.

- Se o dizeis.

- António, toda a minha vida tem sido uma prova da magia, o facto

de conseguir prever as coisas.

- Dai-me um exemplo.

- Eu não casei com o Rei da Inglaterra?

- E eu não vos vi ali parada na estrada, como a prostituta que sois?

Tentando fazer face às suas risadas, exclamo:

- Não foi nada disso! Não foi nada assim! E, para além do mais, o

meu anel foi-me dado pelo rio!

Ele pega nas minhas mãos e beija-as.

- Isso é tudo uma tolice - diz ele suavemente. - A Melusina não

existe, é apenas uma história antiga, há muito esquecida,

260

que a mãe costumava contar-nos ao deitar. Não existe qualquer poder

mágico, era apenas a Mãe a encorajar-vos. Vós não possuís quaisquer

poderes. Nada disso existe, apenas aquilo que podemos fazer, como

pecadores, de acordo com a vontade de Deus. E Tomás Burnett não tem

qualquer poder, apenas maldade e a promessa de um bufarinheiro.

Page 202: Philippa gregory - a rainha branca

Sorrio-lhe e não discuto com ele. Mas, no meu coração, sei que

existem outras coisas.

- Como acabou a história de Melusina? - pergunta-me o meu

pequeno Eduardo nessa noite, quando estou a ouvir as suas orações. Ele

partilha o quarto com o irmão de três anos, Ricardo, e ambos os rapazes

olham para mim, esperançosos, à espera de uma história que atrase a sua

hora de dormir.

- Porque me fazeis essa pergunta? - sento-me numa cadeira junto à

lareira do quarto deles e puxo um banquinho para perto de mim, para poder

descansar os meus pés. Consigo sentir o novo bebé mover-se dentro do

meu corpo. Estou grávida de seis meses, e parece que ainda falta uma

eternidade.

- Ouvi o senhor meu tio António falar convosco acerca dela, hoje -

diz Eduardo. - O que aconteceu depois de ela sair da água e de ter casado

com o cavaleiro?

- Acaba de forma triste - digo eu. Faço-lhes sinal de que devem

meter-se na cama e eles obedecem, mas dois pares de olhos que nem sequer

pestanejam ficam a observar-me, por cima dos cobertores. - As histórias

não são todas iguais. Algumas pessoas dizem que um viajante curioso foi

até à casa deles espreitá-la e viu-a transformar-se num peixe, enquanto ela

tomava banho. Outros dizem que o marido quebrou a promessa de que a

deixaria ir nadar sozinha, foi espiá-la e viu-a transformar-se novamente

num peixe.

- Mas porque é que ele se importava com isso? - pergunta

sensatamente Eduardo. - Se ela já era metade peixe, quando ele a

conheceu?

- Ah, porque pensou que poderia transformá-la na mulher que ele

desejava - digo eu. - Às vezes, um homem gosta de

261

uma mulher, mas depois fica com esperança de poder modificá-la.

Talvez ele fosse um deles.

- Há alguma luta nessa história? - pergunta Ricardo, ensonado, a

cabeça a descair para o travesseiro.

- Não, nenhuma - digo eu. Beijo a testa de Eduardo e depois dirijo-

me à outra cama, para beijar Ricardo. Ainda cheiram ambos a bebé, a sabão

e a pele quente. Os seus cabelos são macios e cheiram a ar puro.

- Então, o que é que acontece quando ele descobre que ela é metade

peixe? - murmura Eduardo, quando me dirijo para a porta.

- Ela pega nos filhos e abandona-o - digo. - E nunca mais se voltam a

encontrar.

Page 203: Philippa gregory - a rainha branca

Apago um dos castiçais com velas, mas deixo o outro aceso. O lume

aceso na pequena lareira torna o quarto quente e confortável.

- É mesmo triste - diz Eduardo, pesaroso. - Pobre homem, nunca

mais poder voltar a ver os seus filhos e a sua esposa.

- É triste - digo eu mas é apenas uma história. Talvez exista outro fim

que as pessoas se tenham esquecido de contar. É possível que ela lhe tenha

perdoado e tenha voltado para junto dele. Pode ser que, por amor, ele se

tenha transformado em peixe e tenha nadado ao encontro dela.

- Pois é - um rapazinho feliz, é fácil confortá-lo. - Boa-noite, Mamã.

- Boa-noite, e que Deus vos abençoe aos dois.

Quando ele a viu, com a água a bater-lhe nas escamas, a cabeça

mergulhada na banheira que ele tinha construído especialmente para ela,

pensando que ela gostaria de se banhar - não de se transformar em peixe -,

sentiu aquela repulsa imediata que alguns homens sentem quando

compreendem, talvez pela primeira vez, que uma mulher é, na realidade,

“um ser diferente”. Não é um rapazinho, embora seja fraca como um

rapazinho, nem uma tonta, embora ele já a tenha visto tremer como uma

tonta, por causa do que está a sentir. Não é uma vilã, na sua capacidade de

manter

262

o ressentimento por muito tempo, nem uma santa, nos seus acessos

de generosidade. Ela não possui nenhuma destas características masculinas.

É uma mulher. Algo completamente diferente de um homem. O que ele viu

foi um meio peixe, mas o que mais o aterrorizou foi a parte do seu ser que

era mulher.

A maldade de Jorge para com o irmão torna-se horrivelmente

evidente nos dias que dura o julgamento de Burdett e dos seus

conspiradores. Quando procuram provas, o ardil desvenda-se, revelando

um novelo de promessas atrozes e ameaças, receitas para envenenar capas,

um saquinho com vidro moído e claras maldições. Nos papéis de Burdett

encontram não apenas um diagrama dos dias, desenhado para prever a

morte de Eduardo, mas um conjunto de feitiços para o matar. Quando

Eduardo mos apresenta, não consigo parar de tremer. Tremo como se

estivesse com sezões. Quer isto consiga provocar-lhe a morte quer não, eu

sei que estes antigos desenhos feitos em papel escuro têm um poder

malévolo.

- Isto faz-me ficar gelada - digo eu. - Parecem tão frios e húmidos.

Dão a sensação de ser qualquer coisa má.

- São certamente provas do mal - diz Eduardo, com ar sério. - Nunca

imaginei que Jorge pudesse ir tão longe contra mim. Eu seria capaz de lhe

dar o mundo, para que vivesse em paz connosco ou, pelo menos, para

Page 204: Philippa gregory - a rainha branca

abafar este assunto. Mas ele contratou homens tão incompetentes que agora

toda a gente sabe que o meu próprio irmão andava a conspirar contra mim.

Burdett vai ser considerado culpado e enforcado pelo seu crime. Mas de

certeza que se vai ficar a saber que foi Jorge quem o encarregou disso,

directamente. Jorge também é culpado de traição. Mas eu não posso levar o

meu próprio irmão a julgamento!

- E porque não? - pergunto agrestemente. Estou sentada num banco

baixo e almofadado, junto da lareira do meu quarto, apenas vestida com o

meu roupão forrado a pele. Estamos a dirigir-nos para as nossas camas,

mas Eduardo já não consegue guardar os problemas só para si. Os nojentos

263

feitiços de Burdett podem não ter arruinado a sua saúde, mas

ensombraram o seu espírito. - Porque não podeis levar Jorge a tribunal e

destinar-lhe uma morte de traidor? Ele merece-o.

- Porque o amo - diz ele com simplicidade. - Tanto quanto vós amais

o vosso irmão António. Não o posso mandar para o cadafalso. É o meu

irmão mais novo. Esteve ao meu lado durante a batalha. Faz parte da minha

família. É o preferido da minha mãe. É o nosso Jorge.

- Ele também tem estado do outro lado, na guerra - recordo-lhe. -

Tem sido um traidor em relação a vós e à vossa família, em mais do que

uma ocasião. Teria feito com que tivésseis sido morto, se ele e Warwick

vos tivessem apanhado, se não tivésseis conseguido escapar. Acusou-me de

ser bruxa, mandou prender a minha mãe, e ficou a assistir, enquanto

matavam o meu pai e o meu irmão João. Ele não permite que a justiça ou

os sentimentos familiares sejam um impedimento para conseguir o que

pretende. Porque haveríeis vós de o permitir?

Eduardo, sentado numa cadeira, do outro lado da lareira, inclina-se

para a frente. À luz tremeluzente do fogo, o seu rosto parece envelhecido.

Pela primeira vez, reparo nas marcas que o passar dos anos e as

preocupações do reinado lhe deixaram.

- Eu sei, eu sei. Devia ser mais duro com ele, mas não sou capaz. Ele

é o bichinho de estimação da minha mãe; é o nosso menino de ouro. Não

consigo acreditar que ele seja tão...

- Maldoso - escolho eu a palavra. - O vosso bichinho de estimação

tornou-se maldoso. Agora já é um cão adulto, não é um cachorrinho

amoroso. E tem uma natureza malévola, que foi alimentada desde que

nasceu. Ides ter de lidar com ele, Eduardo, prestai bem atenção às minhas

palavras. Se o tratardes com bondade, ele pagar-vos-á com conspirações.

- Talvez - diz ele, com um suspiro. - Pode ser que ele aprenda.

Page 205: Philippa gregory - a rainha branca

- Ele não vai aprender nada - afianço eu. - Só vos vereis livre dele

quando ele morrer. Ireis ter de o fazer, Eduardo. O único aspecto que

podeis escolher é quando e onde.

Ele levanta-se, espreguiça-se e vai para a cama.

264

- Deixai-me acompanhar-vos à vossa cama, antes de me dirigir aos

meus aposentos. Ficarei feliz quando o bebé nascer e pudermos voltar a

dormir juntos.

- Daqui a um minuto - respondo-lhe. Inclino-me para a frente e olho

para as brasas. Sou descendente de uma deusa das águas e não consigo ver

bem nas chamas; mas, no meio do brilho das cinzas, consigo distinguir o

rosto petulante de Jorge, e algo por trás dele, um edifício alto, negro como

um poste: a Torre. Para mim, aquele é sempre um edifício sombrio, um

lugar de morte. Encolho os ombros. Pode ser que não queira dizer nada.

Ergo-me e vou para a cama, encolho-me debaixo dos cobertores, e

Eduardo pega-me nas mãos para me dar um beijo de boas-noites.

- Estais tão gelada - diz ele surpreendido. - Pareceu-me que a lareira

estava a aquecer bem.

- Detesto aquele lugar - digo eu ao acaso.

- Que lugar?

- A Torre de Londres. Odeio-a.

O cúmplice de Jorge, o traidor Burdett, proclama a sua inocência de

cima do cadafalso, em Tyburn, diante de uma multidão que o vilipendia,

mas é enforcado na mesma; e Jorge, não aprendendo nada com a morte

daquele homem, parte de Londres a cavalo, cheio de fúria, dirige-se à

reunião do Conselho do rei, no Castelo de Windsor, e repete o seu discurso,

em altos gritos, diante de Eduardo.

- Não acredito! - digo a António. Estou completamente

escandalizada.

- É verdade! Ele fê-lo! - António está morto de riso, a tentar

descrever-me a cena, nos meus aposentos do castelo, e, uma vez que as

minhas damas estão sentadas na sala de audiências, escapamo-nos para os

meus aposentos privados, para ele me poder contar aquelas notícias

escandalosas. - Ali estava Eduardo, de pé, parecendo ter mais de dois

metros de altura, de tanta raiva. Lá estava o Conselho Privado, com um ar

perfeitamente atónito. Deveríeis ter visto os rostos deles,

265

Tomás Stanley, de boca aberta, parecia um peixe! O nosso irmão

Leonel, apertando a sua cruz contra o peito, horrorizado. E lá estava Jorge,

Page 206: Philippa gregory - a rainha branca

a dirigir-se ao rei, gritando o seu discurso como um actor de pantominas.

Está claro que aquilo não fazia sentido para metade deles, pois não

perceberam que Jorge estava a debitar o discurso do cadafalso, de cor,

como um actor ambulante. Por isso, quando ele disse: “Sou um velho, um

sábio...”, ficaram todos completamente baralhados.

Solto uma pequena gargalhada.

- António! Não é possível!

- Juro-vos, nenhum de nós sabia o que estava a acontecer, excepto

Eduardo e Jorge. Depois, Jorge chamou-lhe tirano!

O meu riso desaparece abruptamente.

- Diante do conselho dele?

- Tirano e assassino.

- Ele chamou-lhe isso?

- Chamou. Cara a cara. De que estava ele a falar? Da morte de

Warwick?

- Não - digo em poucas palavras. - De algo pior.

- De Eduardo de Lencastre? O jovem Príncipe?

Abano a cabeça.

- Isso foi durante a batalha.

- Não é do antigo rei?

- Nós nunca falamos desse assunto - digo eu. - Nunca.

- Bom, Jorge vai falar nisso, agora. Tem o ar de alguém pronto a

dizer seja o que for. Sabeis que ele afirma que Eduardo nem sequer é um

descendente da Casa de Iorque? Que é um bastardo, filho de Blaybourne, o

arqueiro? E que, portanto, Jorge é que é o herdeiro legítimo?

Confirmo com um aceno de cabeça.

- Eduardo vai ter de o silenciar. Isto não pode continuar.

- Eduardo vai ter de o silenciar imediatamente - avisa-me ele. - Ou,

então, vai fazer com que vós e toda a Casa de Iorque caiam. É como vos

digo. O emblema da vossa casa não deveria ser a rosa branca, mas o antigo

símbolo da eternidade.

- Eternidade? - repito, à espera que ele diga qualquer coisa

reconfortante, nesta hora tremenda.

- Sim, a serpente que se engole a si mesma. Os filhos de Iorque irão

destruir-se um ao outro, cada irmão irá destruir um

266

outro, os tios devorarão os sobrinhos, os pais mandarão decapitar os

filhos. Fazem parte de uma família que tem de fazer sangue, e irão

derramar o seu, se não tiverem outros inimigos.

Coloco as mãos sobre o ventre, como se tentasse evitar que a criança

pudesse ouvir previsões tão negras.

Page 207: Philippa gregory - a rainha branca

- Por favor, António. Não deveis dizer essas coisas.

- Elas são verdadeiras - diz ele com ar sério. - A Casa de Iorque irá

cair, independentemente do que vós, ou eu, possamos fazer, pois eles irão

devorar-se uns aos outros.

Mudo-me para o meu quarto obscurecido, para passar as seis

semanas de retiro, deixando este assunto ainda por resolver. Eduardo não

consegue decidir o que deve ser feito. Um irmão desleal ao rei não é

nenhuma novidade na Inglaterra, nem uma novidade nesta família, mas é

um tormento para Eduardo.

- Deixai as coisas assim até eu voltar a sair - digo-lhe à entrada do

quarto. - Pode ser que ele ganhe juízo e peça perdão. Quando eu sair,

poderemos tomar uma decisão.

- E vós, tende coragem - ele olha para o quarto às escuras, por trás de

mim, aquecido por uma pequena lareira, as paredes nuas, uma vez que

retiram de lá todas as imagens que pudessem afectar a condição do bebé

que está à espera de nascer. Inclina-se para a frente. - Virei visitar-vos -

murmura ele.

Sorrio. Eduardo quebra sempre a regra que diz que o quarto de retiro

deve estar reservado a mulheres.

- Trazei-me vinho e doçarias - digo eu, referindo os alimentos

proibidos.

- Só se me beijardes com doçura.

- Eduardo, tende vergonha!

- Então, logo que possais sair daí.

Ele dá um passo atrás e deseja-me formalmente, diante da corte, que

tudo corra bem. Faz-me uma vénia, eu correspondo, depois dou um passo

atrás, eles fecham a porta na cara dos cortesãos sorridentes, e eu fico

sozinha com as aias, naquele pequeno conjunto de salas, sem nada para

fazer a não ser esperar que o novo bebé chegue.

267

Tenho um parto longo e difícil e, ao fim de tudo, recebo um tesouro,

um rapaz. É um amoroso rapazinho Iorque, com um fino cabelinho loiro e

olhos tão azuis como um ovo de pisco. É pequenino e pouco pesado, e,

quando o colocam nos meus braços, sinto um ligeiro tremor de receio, por

ele parecer tão pequenino.

- Ele há-de crescer - diz-me a parteira para me reconfortar. - Os

bebés pequeninos crescem depressa.

Sorrio e toco-lhe na mãozinha, que parece uma miniatura, e reparo

que ele volta a cabeça e faz um biquinho com a boca.

Sou eu mesma que o alimento durante os primeiros dez dias, mas,

depois disso, temos uma ama-de-leite bastante encorpada que o vem buscar

Page 208: Philippa gregory - a rainha branca

e que, com gentileza, o leva para longe de mim. Quando olho para ela,

sentada numa cadeira baixa, e vejo a forma eficaz como o coloca ao peito,

fico com a certeza de que ela irá tomar conta dele como deve ser. É

baptizado com o nome de Jorge, como tínhamos prometido ao seu infiel

tio, eu participo numa missa de acção de graças, e passo do meu escuro

retiro para o brilhante sol de meados de Agosto, para descobrir que, na

minha ausência, a nova amante, Isabel Shore, se tornou praticamente rainha

da minha corte. O rei abandonou a sua fase de bebedeiras e aventuras pelos

balneários de Londres. Comprou-lhe uma casa nas proximidades do Palácio

de Westminster. Janta com ela e dorme com ela. Aprecia a sua companhia,

e a corte sabe de tudo.

- Ela vai embora esta noite - digo agrestemente a Eduardo, quando,

resplandecente, vestido com um fato vermelho bordado a ouro, ele entra

nos meus aposentos.

- Quem? - pergunta ele calmamente, bebendo um copo de vinho

junto da minha lareira, o mais inocente dos maridos. Ele faz um gesto com

a mão e os criados desaparecem do quarto, percebendo perfeitamente que a

tempestade está para chegar.

- Aquela mulher, a Shore - digo simplesmente. - Haveis pensado que

ninguém me iria dar as boas-vindas sem me contar tudo, mal eu saísse do

retiro? Só me admiro que tenham conseguido suster a língua durante tanto

tempo. Mal dei um passo para fora da capela, elas atropelaram-se umas

268

às outras para me contar. Margarida Beaufort foi particularmente

compassiva.

Ele solta uma gargalhada.

- Perdoai-me. Não sabia que os meus actos despertavam assim tanto

interesse.

Não digo nada perante aquela inverdade. Limito-me a esperar.

- Ah, minha adorada, foi muito tempo - diz ele. - Eu sei que estáveis

em retiro e depois em trabalho de parto, e o meu coração estava convosco,

mas, apesar disso tudo, um homem sente necessidade de uma cama quente.

- Agora, já deixei o retiro - digo com malícia. - E vós ireis dormir

numa cama gelada, com um travesseiro de gelo e uma manta de neve, se

ela não tiver ido embora até amanhã de manhã.

Ele estende-me a mão e eu aproximo-me dele. O toque familiar e o

cheiro da sua pele, quando me inclino para o beijar no pescoço, invadem-

me imediatamente.

- Dizei que não estais zangada comigo, meu amor - sussurra, a sua

voz um arrulho inebriante.

- Vós sabeis que estou.

Page 209: Philippa gregory - a rainha branca

- Então, dizei que me perdoais.

- Sabeis que o faço sempre.

- Então, dizei que nos podemos ir deitar e ficar felizes por estarmos

novamente juntos. Haveis-vos portado tão bem, dando-nos mais um rapaz!

Sois a minha alegria, assim tão gordinha e recém-tornada para junto de

mim. Desejo-vos tanto. Dizei que podemos ser felizes.

- Não. Vós é que deveis dizer qualquer coisa.

A sua mão desliza pelo meu braço acima, desenhando círculos em

volta do meu cotovelo, por baixo da manga da minha camisa de noite.

Como sempre, o seu toque é tão íntimo como o acto de amor.

- Qualquer coisa? Que quereis que eu diga?

- Dizei que, amanhã, ela já terá partido.

- Partirá - diz ele com um suspiro. - Mas sabei que, se a pudésseis

conhecer, iríeis gostar dela. É uma jovem cheia de alegria, instruída e

divertida. É uma boa companhia. E uma das raparigas mais doces que já

conheci.

269

- Amanhã, ela vai embora - repito, ignorando os encantos de Isabel

Shore, como se me importasse alguma coisa que ela seja instruída ou não.

Como se Eduardo se importasse com isso. Como se ele tivesse a

capacidade de contar a verdade acerca de uma mulher. Ele corre atrás das

mulheres como um cão vadio atrás de uma fêmea com cio. Posso jurar que

ele não sabe absolutamente nada sobre as leituras que elas fizeram ou sobre

o seu temperamento.

- Logo de manhã cedo, minha querida, logo bem cedo.

270

VERÃO DE 1477

Em Junho, Eduardo manda prender Jorge, acusando-o de traição, e

fá-lo comparecer perante o Conselho. Só eu sei o que custou ao meu

marido ter de acusar o irmão de planear a sua morte. A dor e a vergonha,

escondeu-as de toda a gente. Na reunião do Conselho Privado não foram

apresentadas provas; nem era necessário. O próprio rei declarou que tinha

havido traição e ninguém poderia argumentar contra o rei, diante de tal

acusação. E, na verdade, não havia um único homem cuja manga do casaco

não tivesse alguma vez sido agarrada por Jorge, nalgum recanto escuro,

enquanto sussurrava as suas suspeitas insanas. Não existe nenhum homem

que não tenha escutado uma promessa de pagamento, se quisesse formar

uma facção contra Eduardo. Não há ninguém que não tenha visto Jorge

Page 210: Philippa gregory - a rainha branca

recusar todos os alimentos preparados numa cozinha dirigida por mim, ou

atirar sal por cima do ombro, antes de se sentar para jantar em qualquer

uma das nossas mesas, ou cerrar o punho, num sinal de protecção contra a

bruxaria, quando eu passo por ele. Não há ninguém que não saiba que Jorge

fez tudo, excepto escrever a sua própria acusação de traição e assinar a sua

própria confissão. Mas, mesmo neste momento, ninguém sabe o que

Eduardo tenciona fazer em relação ao assunto. Consideram-no culpado de

traição, mas não estabeleceram um castigo. Nenhum deles sabe até onde o

rei será capaz de ir contra um irmão que ainda ama.

271

INVERNO DE 1477

Celebramos o Natal em Westminster, mas é um Natal estranho com

Jorge, Duque de Clarence, ausente do seu lugar no salão, e a sua mãe com

cara de tempestade. Jorge está na Torre, acusado de traição, bem assistido e

alimentado, a beber bem - não tenho dúvidas - mas o seu homónimo está no

nosso berçário e o seu devido lugar é junto de nós. Tenho todos os meus

filhos comigo, o que me dá toda a felicidade que poderia desejar: Eduardo

veio de Ludlow e Ricardo veio com ele, Tomás regressou de uma visita à

corte da Borgonha e as outras crianças estão bem e fortes, o novo bebé,

Jorge, no berçário.

Em Janeiro, celebramos o mais importante casamento a que a

Inglaterra já assistiu, quando o meu pequeno Ricardo fica noivo da herdeira

Ana Mowbray. Durante a sua festa de casamento, o príncipe, de quatro

anos, e a menina são colocados em cima de uma mesa, vestidos com belos

fatos em miniatura, e dão as mãos, como um par de pequenas bonecas. Irão

viver separados até terem idade suficiente para se casar, mas é uma coisa

óptima, ter conseguido garantir ao meu filho uma fortuna como esta; ele vai

ser o príncipe mais rico que a Inglaterra alguma vez viu.

Mas, depois da véspera do Dia de Reis, Eduardo vem ter comigo e

diz-me que o Conselho Privado anda a pressioná-lo para que tome uma

decisão final sobre o futuro do seu irmão Jorge.

- O que pensais? - digo eu. Tenho uma sensação de mau presságio.

Penso nos meus três rapazes Iorque: mais um

272

Eduardo, um Ricardo e um Jorge. E se eles se virassem uns contra os

outros, como estes fizeram?

- Penso que devo ir em frente - diz ele com tristeza. - O castigo para

a traição é a morte. Não tenho outra escolha.

Page 211: Philippa gregory - a rainha branca

273

PRIMAVERA DE 1478

- Não deveis sequer sonhar em executá-lo - a sua mãe passa por mim

a correr em direcção aos aposentos privados de Eduardo, cheia de pressa

para falar com o filho.

Levanto-me e faço-lhe uma pequena vénia.

- Senhora minha Mãe - digo eu.

- Mãe, não sei o que posso fazer - Eduardo pousa um joelho no chão

para ela o abençoar e ela pousa a mão sobre a cabeça dele, distraída, apenas

por hábito. Não há nela qualquer carinho por Eduardo; não pensa em mais

ninguém, a não ser em Jorge. Faz-me uma ligeira vénia e vira-se

novamente para Eduardo.

- Ele é vosso irmão. Lembrai-vos disso.

Eduardo encolhe os ombros com um ar extremamente infeliz.

- Na realidade, é ele mesmo quem diz que não é - chamo eu à

atenção dela. - Jorge afirma que é apenas meio-irmão de Eduardo, já que

Eduardo é um filho bastardo, de um arqueiro inglês e vosso. Ele calunia-

vos, bem como a nós. É bastante pródigo nas suas difamações. Não hesita,

nas apreciações que faz de nós. Chama-me bruxa, mas a vós chama

prostituta.

- Não acredito que ele diga tais coisas - afirma ela rotundamente.

- Mãe, é o que ele faz - responde Eduardo. - E insulta-me, bem como

a Isabel.

Ela fica serena, como se aquilo não fosse uma coisa assim tão má.

274

- Ele está a minar a Casa de Iorque com as suas acusações - digo eu.

- E contratou um bruxo para lançar mau-olhado sobre o rei.

- Ele é vosso irmão, tendes de perdoá-lo - declara ela a Eduardo.

- Ele é um traidor; tem de morrer - digo simplesmente. - Que outra

coisa poderia acontecer? Pode perdoar-se o facto de planear a morte do rei?

Então, porque é que a Casa de Lencastre, que foi derrotada, não o poderia

fazer? Porque não o fazem os espiões da França? Porque é que não haveria

um qualquer assaltante de estrada de vir por aí, com uma faca, para atacar o

vosso melhor filho?

- Jorge ficou desapontado - diz ela com urgência a Eduardo,

ignorando-me. - Se tivésseis permitido que ele se casasse com a rapariga

Borgonha, como ele pretendia, ou com a princesa dos Escoceses, nada disto

teria acontecido.

Page 212: Philippa gregory - a rainha branca

- Eu não podia confiar nele - diz simplesmente Eduardo. - Mãe, não

há qualquer dúvida na minha mente de que, se ele tivesse o seu próprio

reino, iria invadir o meu. Se ele tivesse uma grande fortuna, iria usá-la para

formar um exército e tomar o meu trono.

- Ele nasceu para ser grande - diz ela.

- Ele é o terceiro filho - diz Eduardo, finalmente com coragem para

lhe dizer a verdade. - Só pode governar a Inglaterra se eu morrer, se o meu

filho e herdeiro também morrer, e depois o meu filho Ricardo, e depois o

meu filho mais novo, Jorge. Era isso que teríeis preferido, Mãe? Quereis

que eu morra, bem como os meus três queridos filhos? Tendes assim tanta

preferência por Jorge? Também me ides lançar um mau-olhado, como fez o

feiticeiro contratado por ele? Ireis mandar colocar vidro moído na minha

carne e pó de dedaleira no meu vinho?

- Não - diz ela. - Claro que não. Vós sois filho do vosso pai, e

herdeiro, e haveis merecido o vosso trono. O vosso filho deve suceder-vos.

Mas Jorge é meu filho. Amo-o.

Eduardo range os dentes para não dar uma resposta impensada,

volta-se para a lareira e fica em silêncio, de ombros curvados. Ficamos

todos à espera, silenciosos, até que o rei acaba por falar.

275

- O mais que posso fazer por vós e por ele é deixá-lo escolher a

forma como quer morrer. Ele tem de morrer, mas, se quiser um espadeiro

francês, mando chamar um. Não precisa de ser morto com um machado.

Pode ser por envenenamento, se ele quiser; poderá tomá-lo em privado.

Poderá ser através de um punhal colocado na sua mesa, ao jantar, e ele

mesmo poderá fazê-lo. E será tudo em privado: não haverá multidão, nem

testemunhas. Poderá ser no seu quarto, na Torre, se preferir. Pode deitar-se

na cama e cortar os pulsos. Ninguém poderá estar presente, para além do

padre, se ele assim o desejar.

Ela fica sem fala. Não esperava uma coisa destas. Eu fico muito

quieta a observar os dois. Nunca pensei que Eduardo fosse tão longe.

Ele olha para o rosto devastado dela.

- Mãe, tenho muita pena do vosso desgosto.

Ela está branca.

- Ireis perdoar-lhe.

- Podeis ver por vós mesma que tal não é possível.

- Sou eu que o ordeno. Sou a vossa mãe. Tendes de me obedecer.

- E eu sou o rei. Ele não pode opor-se a mim. Tem de morrer.

Ela volta-se para mim.

- Isto é tudo por culpa vossa!

Eu abro as mãos.

Page 213: Philippa gregory - a rainha branca

- Jorge matou-se a si mesmo, senhora minha Mãe. Não podeis pôr as

culpas em mim, nem em Eduardo. Ele não deixa qualquer alternativa ao rei.

É um traidor às nossas leis e um perigo para nós e para os nossos filhos.

Vós sabeis o que deve suceder àqueles que pretendem usurpar o trono. São

estas as regras da Casa de Iorque.

Ela emudece. Vai até à janela e encosta a testa ao vidro espesso.

Olho para as suas costas, e para a rígida posição dos seus ombros, e

pergunto-me o que se sente quando sabemos que um filho nosso vai

morrer. Uma vez, desejei-lhe a dor de uma mãe que sabe que perdeu um

filho. Estou a ver a confirmação, agora.

- Não consigo suportar uma coisa destas - diz ela, a voz carregada de

sofrimento. - É o meu filho, o meu filho mais

276

querido. Como podeis roubá-lo de mim? Preferiria ter sido eu própria

a morrer a presenciar um dia como este. Estamos a falar do meu Jorge, o

meu filho mais precioso. Não posso acreditar que sejais capaz de o mandar

para a morte!

- Lamento - diz Eduardo com ar grave. - Mas não vejo outra solução,

a não ser a sua morte.

- Ele pode escolher o processo? - confirma ela. - Não ireis expô-lo

diante do carrasco?

- Ele pode escolher o processo, mas tem de morrer - diz Eduardo. -

Ele é que transformou isto num caso de escolha entre ele ou eu. É óbvio

que vai ter de morrer.

Ela vira-se, sem mais palavras, e sai da sala. Por um momento,

apenas um momento, sinto pena dela.

Jorge, o grande idiota, escolhe uma morte de pantomineiro.

- Ele quer que o afoguem dentro de um barril de vinho - diz-me o

meu irmão António, que acaba de vir da reunião do Conselho Privado.

Encontra-se comigo no berçário, onde estou sentada numa cadeira de

baloiço, com o pequeno Jorge nos braços, desejando que tudo acabe

depressa e que o homónimo do meu pequeno príncipe morra e desapareça.

- Estais a brincar?

- Não, creio que ele é que está a querer parecer divertido.

- Que quer ele dizer com isso?

- Suponho que exactamente o que significa. Quer ser afogado dentro

de um barril de vinho.

- Ele disse mesmo isso? Estava a falar a sério?

- Acabei mesmo agora de vir do Conselho Privado. Ele quer morrer

afogado em vinho, já que tem de morrer.

- Uma morte de bêbado - digo eu, detestando a ideia.

Page 214: Philippa gregory - a rainha branca

- Suponho que seja uma piada contra o próprio irmão.

Ergo o meu bebé de encontro ao meu ombro e acaricio-lhe

as costas, como se, com isso, pudesse protegê-lo da crueldade do

mundo.

- Eu consigo imaginar formas piores de morrer - observa António.

277

- E eu outras melhores. Preferia que me enforcassem a ser afogada

em vinho.

Ele encolhe os ombros.

- Talvez ele pense que, assim, está a fazer troça de Eduardo e da

sentença de morte. É capaz de estar a pensar que isto vai obrigar Eduardo a

perdoá-lo, para não o deixar terminar como um bêbado. Deve estar a contar

que a igreja proteste, provocando um atraso que lhe dê uma hipótese de

escapar.

- Desta vez não - digo eu. - A sua sorte de bêbado já se esgotou; bem

pode morrer como tal. Onde é que vão fazê-lo?

- Nos seus aposentos, na Torre de Londres.

Estremeço.

- Que Deus lhe perdoe - digo baixinho. - Que maneira horrível de

morrer.

É o carrasco quem se encarrega do assunto, deixando de lado o

machado, mas cobrindo o rosto com a habitual máscara negra. É um

homem enorme, com mãos grandes e fortes, e leva um aprendiz com ele.

Juntos, vão rolando um barril de malvasia até ao quarto de Jorge, e aquele

idiota transforma tudo numa palhaçada, rindo às gargalhadas, com a boca

escancarada, como se já estivesse a lutar contra a falta de ar, enquanto o seu

rosto fica branco de medo.

Retiram a tampa e vão buscar uma caixa para onde Jorge deve subir,

de forma a poder inclinar-se por cima do topo do barril e ver a sua

expressão aterrorizada reflectida na superfície agitada do líquido. O cheiro

a vinho enche o quarto. Ele murmura: “Ámen”, em resposta às orações do

padre, como se não fizesse ideia daquilo que está a ouvir.

Inclina a cabeça para a superfície cor de rubi do vinho, como se

estivesse a pousar a cabeça no cepo, e bebe grandes goles, como se isso

fizesse espantar o perigo; depois, ergue as mãos em sinal de consentimento,

os dois homens seguram-lhe na cabeça, agarrando-o pelo cabelo e pela

gola, mergulham-no bem para o fundo, erguendo-o do chão, o que faz com

que as suas pernas se agitem como se estivesse a nadar e com que o vinho

se espalhe pelo chão, enquanto ele

278

Page 215: Philippa gregory - a rainha branca

se torce todo, tentando fugir. O vinho cai em cascata em volta dos

pés dos homens, enquanto ele vai expelindo bolhas de ar, no meio de

terríveis convulsões. O padre afasta-se daquela poça vermelha e continua a

ler os últimos rituais, com uma voz firme e reverente, enquanto os dois

executores empurram a agitada cabeça do mais estúpido dos filhos de

Iorque lá bem para o fundo do barril, até que os seus pés ficam inertes e já

não existem mais bolhas de ar e a sala fica impregnada com o cheiro de

uma antiga taverna.

Nessa noite, à meia-noite, levanto-me da cama, no Palácio de

WesLminster, e dirijo-me ao meu quarto de vestir. No cimo do armário

onde guardo as peles, está uma pequena caixa com as minhas coisas

pessoais. Abro-a. Lá dentro está um pequeno medalhão de prata, tão

manchado pela idade que ficou negro como o ébano. Abro o fecho e lá está

a pequena tira de papel, rasgada da parte inferior da carta do meu pai. Nela,

escrito a sangue, o meu sangue, está o nome de Jorge, Duque de Clarence.

Enrolo o papel entre os dedos e atiro-o para as brasas da lareira, ficando a

vê-lo retorcer-se no calor das cinzas, transformando-se subitamente numa

chama.

- Ide, então - digo eu, enquanto o nome de Jorge se transforma em

fumo e a minha maldição contra ele fica concluída.

- Mas que sejais o último Iorque a morrer na Torre de Londres. Fazei

com que tudo acabe aqui, como prometi à minha mãe que aconteceria. Que

tudo termine aqui.

Teria sido bom que me tivesse recordado, como ela me ensinou, que

é mais fácil soltar o mal do que voltar a prendê- -lo. Qualquer louco pode

criar um vendaval, mas quem é que sabe para onde é que ele se vai dirigir

ou quando irá parar?

279

VERÃO DE 1478

Dou ordens para que o meu filho Eduardo, o meu outro filho Sir

Ricardo Grey e o meu irmão António venham aos meus aposentos

privados, para me despedir deles. Não tenho coragem de os ver partir em

público. Não quero que me vejam chorar pela sua partida. Inclino-me para

abraçar Eduardo contra mim, como se nunca me pudessem separar dele, e

ele olha para mim com os seus meigos olhos castanhos, segura o meu rosto

entre as mãos pequeninas e diz:

- Não choreis, Mamã. Não há motivos para chorar. Eu volto no

próximo Natal. E vós podeis visitar-me em Ludlow, sabeis?

- Eu sei - digo eu.

Page 216: Philippa gregory - a rainha branca

- E, se levardes Jorge convosco, ensiná-lo-ei a montar - promete ele.

- E podeis deixar o jovem Ricardo à minha guarda, já o sabeis.

- Eu sei - tento falar com clareza, mas há lágrimas na minha voz.

Ricardo abraça-me pela cintura. Já está tão alto quanto eu, um

homenzinho.

- Eu tomarei conta dele - diz ele. - Deveis ir visitar-nos. Levai todos

os nossos irmãos e irmãs. Vinde passar o Verão.

- Irei, irei - digo eu, voltando-me para o meu irmão António.

- Confiai em nós, somos capazes de tomar conta de nós próprios - diz

ele, antes que eu comece a enumerar a lista de coisas que me dão medo. -

E, no próximo ano, trá-lo-ei para casa em segurança, para junto de vós. Não

o deixarei, nem sequer para ir a Jerusalém. Não me afastarei dele, a não ser

que ele mo ordene. Está bem assim?

280

Aceno com a cabeça, tentando engolir as lágrimas. Há algo que me

perturba na ideia de Eduardo poder vir a afastar António da sua companhia.

É como se uma sombra tivesse caído sobre nós.

- Não sei porquê, mas tenho sempre tanto receio por ele, quando

tenho de me despedir dos três. É-me quase insuportável deixá-lo partir.

- Protegê-lo-ei com a minha vida - promete António. - Ele é-me tão

caro como a própria vida. Nada de mal lhe acontecerá enquanto estiver à

minha guarda. Tendes a minha palavra.

Ele faz uma vénia e dirige-se para a porta. Eduardo, a seu lado, faz

uma fiel imitação do gracioso gesto. Ricardo, o meu filho, pousa a sua mão

fechada sobre o peito, numa saudação que significa: “Amo-vos.”

- Alegrai-vos - diz António. - Comigo, o vosso filho está em

segurança.

E, depois, vão-se embora.

281

PRIMAVERA DE 1479

O meu pequeno Jorge, um bebé sempre débil, começa a ter

problemas, antes de chegar ao seu segundo aniversário. Os médicos não

sabem nada, as senhoras do berçário só sabem sugerir que deve ser

alimentado, de hora a hora, com papas de aveia muito diluídas e leite.

Tentamos, mas ele não fica mais forte.

Isabel, a sua irmã de treze anos, brinca todos os dias com ele, pega-

lhe nas mãozinhas e ajuda-o a caminhar com as suas pernas magrinhas e

inventa uma história por cada bocado de comida que ele engole. Mas até

Page 217: Philippa gregory - a rainha branca

ela consegue perceber que ele não está a ficar melhor. Não cresce, e os seus

bracinhos e pernas parecem paus fininhos.

- Podemos mandar chamar um médico da Espanha? - pergunto a

Eduardo. - António diz sempre que os Mouros têm os médicos mais sábios.

O seu rosto está carregado de preocupação por causa dele, um filho

precioso.

- Podeis mandar vir quem quiserdes, venha de onde vier - diz ele. -

Mas, Isabel, meu amor, deveis procurar ser corajosa. Ele é um rapazinho

frágil, e já nasceu pequenino. Já haveis feito muito, ao conseguir que ele se

tenha mantido entre nós até agora.

- Não digais uma coisa dessas - digo muito depressa, sacudindo a

cabeça. - Ele vai melhorar. Vem aí a Primavera, e depois o Verão. No

Verão, ele vai ficar muito melhor, tenho a certeza.

Passo horas no berçário, com o meu bebé ao colo, deixando cair às

gotas papas de aveia na sua boquinha e encostando o

282

seu peito ao meu ouvido para tentar ouvir o leve bater do seu

coração.

Dizem que fomos abençoados com três rapazes fortes: a sucessão do

trono de Iorque está certamente assegurada. Eu nem respondo a estes

idiotas. Não estou a cuidar dele por causa dos Iorque, cuido dele por amor.

Não quero que ele sobreviva para ser um príncipe. Quero que melhore, para

ser um rapaz forte.

Este é o meu bebezinho. Não aguento perdê-lo, como perdi a sua

irmã. Não conseguirei suportar se ele me morrer nos braços, como ela

morreu nos da minha mãe, e acabaram por partir as duas juntas. Passo o dia

no berçário, como um fantasma, e mesmo de noite venho vigiar o seu sono,

e tenho a certeza de que não está a ficar mais forte.

Num dia de Maio, ele adormece no meu colo e eu embalo-o, sentada

na cadeira, cantarolando baixinho, sem dar por isso, uma canção - uma

canção de embalar da Borgonha, de que me recordava mais ou menos da

minha infância.

A canção chega ao fim e tudo fica em silêncio. Travo o movimento

da cadeira e tudo está em sossego. Encosto o ouvido ao seu pequenino

peito para ouvir as batidas do seu coração e não as ouço. Encosto o rosto ao

nariz dele, à boca, para sentir o calor da sua respiração. Não há qualquer

respiração. Ele ainda está quente e macio nos meus braços, quente e macio

como um passarinho. Mas o meu Jorge já partiu. Perdi o meu filho.

Ouço a melodia da mesma canção, de mansinho, tão suave como o

vento, e percebo que é Melusina que o embala agora, que o meu pequeno

Jorge se foi de vez. Perdi o meu filho.

Page 218: Philippa gregory - a rainha branca

Dizem-me que ainda tenho o meu filho Eduardo, que tenho sorte por

o meu lindo filho de oito anos ser tão forte e estar a crescer tanto. Dizem-

me que me alegre por Ricardo, o seu irmão de cinco anos. Eu sorrio, pois

estou feliz por ter estes dois filhos. Mas isso não altera o que sinto pela

perda de Jorge, o meu pequenino Jorge, com os seus olhinhos azuis e o seu

tufo de cabelinhos louros.

283

Cinco meses mais tarde encontro-me em retiro, à espera do

nascimento de mais uma criança. Não espero que seja um rapaz. Não creio

que uma criança possa substituir a outra. Mas a pequena Catarina chega

precisamente na altura certa, para nos confortar, e volta a haver uma

princesa Iorque no berço, e o berçário dos Iorque volta a estar ocupado,

como de costume. Passa um ano, e dou à luz mais uma rapariga, a minha

pequena Bridget.

- Penso que esta será a última - digo entristecida a Eduardo, quando

saio do período de retiro.

Receava que ele notasse que eu estava a envelhecer. Mas, em vez

disso, ele sorri como se ainda fôssemos um par de jovens enamorados, e

beija a minha mão.

- Homem nenhum vos poderia pedir mais - diz-me ele com doçura. -

E nenhuma rainha teve mais trabalho do que vós. Haveis-me dado uma

grande família, meu amor. E fico contente de que esta seja a nossa última

filha.

- Não quereis mais nenhum rapaz?

Ele abana a cabeça.

- Eu quero tomar-vos por prazer e ter-vos nos meus braços porque

vos desejo. Quero que saibais que é o vosso beijo o que eu procuro, não um

herdeiro para o trono. Ficareis a saber que vos amo por vós mesma, quando

for ter convosco ao vosso leito, e não como a parideira da Casa de Iorque.

Inclino a cabeça para trás e olho para ele por baixo das minhas

pestanas.

- Quereis deitar-vos comigo por amor e não para termos filhos? Mas

isso não é um pecado?

Os seus braços envolvem a minha cintura e coloca a sua mão em

volta do meu seio.

- Certificar-me-ei de que seja o mais pecaminoso possível - promete-

me ele.

284

ABRIL DE 1483

Page 219: Philippa gregory - a rainha branca

O tempo está frio para a época e os rios correm com grande caudal.

Estamos em Westminster para as celebrações da Páscoa e eu olho da minha

janela para a imensidão e para a forte corrente do rio, e penso no meu filho

Eduardo, para além das águas do rio Severn, tão longe de mim. É como se

a Inglaterra fosse um país de cursos de água que se entrecruzam através de

lagos, ribeiros e rios. Melusina deve estar em toda a parte; este país foi

erigido sobre o seu elemento.

O meu esposo Eduardo, um homem da terra, resolve ir pescar, e

passa o dia fora, regressando a casa completamente encharcado e feliz.

Insiste para que comamos ao jantar o salmão que ele pescou no rio, e o

peixe é trazido para a sala, transportado à altura dos ombros dos criados,

precedido por uma fanfarra: uma captura real.

Nessa noite, Eduardo fica com febre e eu repreendo-o por ter ficado

todo molhado e ao frio, como se ainda fosse um rapazinho e pudesse correr

tais riscos com a sua saúde. No dia seguinte, piora, levanta-se por algum

tempo, mas tem de voltar para o leito; sente-se demasiado cansado. No dia

seguinte, o médico diz-lhe que devia ser sangrado, mas Eduardo grita bem

alto que nem se atrevam a tocar-lhe. Digo aos médicos que se deve fazer

como o rei insiste, mas vou ao seu quarto enquanto dorme para observar o

seu rosto corado e ficar com a certeza de que aquilo não passa de uma

doença ligeira. Não se trata de peste ou de qualquer febre grave. Ele é um

homem forte e com boa saúde. Consegue aguentar um resfriado e livrar-se

dele numa semana.

285

Mas não melhora. E agora começou a queixar-se de fortes dores de

barriga e intensos acessos de calor. Ao fim de uma semana, a corte já está

cheia de medo e eu encontro-me num estado de terror silencioso. Os

médicos não servem para nada; nem sequer sabem o que se passa com ele;

não fazem ideia do que lhe terá provocado aquela febre; não sabem o que

poderá curá-lo. Ele não consegue manter nada no estômago. Vomita tudo o

que come e tem de lutar contra a dor de barriga, como se de uma nova

guerra se tratasse. Mantenho-me de vigília, no seu quarto, a minha filha

Isabel a meu lado, tratando dele juntamente com duas mulheres sábias em

quem confio. Hastings, o amigo dele de infância e seu parceiro em todas as

empresas, incluindo aquela estúpida, estúpida pescaria, mantém-se

vigilante na sala exterior. A prostituta da Shore vive agora de joelhos em

frente ao altar da Abadia de Westminster, pelo que me dizem, numa agonia

de temor pelo homem que ama.

- Permiti que o veja - implora-me Guilherme Hastings.

Olho-o com uma expressão fria.

Page 220: Philippa gregory - a rainha branca

- Não. Ele está doente. Não precisa de um companheiro para ir aos

prostíbulos, para beber ou jogar. Portanto, não precisa de vós. A sua saúde

ficou arruinada por vossa causa e de todos os outros como vós. Eu tratarei

dele até que fique bom e, se me for possível, farei com que não vos receba

mais, quando voltar a ficar são.

- Deixai-me visitá-lo - diz ele. Nem sequer se defende da minha

raiva. - Apenas quero vê-lo. Não suporto a ideia de não o poder visitar.

- Esperai lá fora, como um cão - digo cruelmente. - Ou voltai para

junto da prostituta da Shore e dizei-lhe que agora pode servir-vos a vós,

porque o rei já não quer nada com ambos.

- Eu fico à espera - diz ele. - Ele vai perguntar por mim. Vai querer

ver-me. Ele sabe que eu estou aqui para o visitar. Sabe que eu estou aqui

fora.

Afasto-me dele e dirijo-me para o quarto do rei, fechando a porta

para que ele não possa sequer vislumbrar o homem que adora, e que luta

contra a falta de ar, naquela enorme cama de quatro pilares.

286

Eduardo ergue o olhar quando eu entro no quarto.

- Isabel.

Aproximo-me dele e pego-lhe na mão.

- Sim, meu amor.

- Recordais-vos daquela vez que voltei para casa e vos disse que

tinha sentido medo?

- Sim, recordo.

- Estou com medo, agora.

- Ides ficar bom - sussurro-lhe imediatamente. - Ficareis bom, meu

esposo.

Ele acena com a cabeça e os seus olhos fecham-se, por momentos.

- Hastings está aí fora?

- Não - digo eu.

Ele sorri.

- Quero falar com ele.

- Agora, não - digo eu. Acaricio a sua cabeça. Está a arder em febre.

Pego numa toalha e molho-a com água de lavanda e passo-lha suavemente

pelo rosto. - Não estais suficientemente forte para receber visitas.

- Isabel, mandai chamá-lo e a todas as pessoas do meu Conselho

Privado que estiverem no palácio. Mandai chamar o meu irmão Ricardo.

Por segundos, creio ter sido contagiada pela sua doença, pois o meu

estômago começa a contorcer-se com uma dor terrível; mas compreendo

que é apenas medo.

Page 221: Philippa gregory - a rainha branca

- Vós não precisais de falar com eles, Eduardo. A única coisa de que

precisais é de descansar e ficar forte.

- Chamai-os - diz ele.

Volto-me, dou um berro à aia, ela corre para a porta e avisa o guarda.

Espalha-se imediatamente por toda a corte a mensagem de que o rei

mandou chamar os seus conselheiros, e toda a gente fica a saber que ele

deve estar para morrer. Vou até à janela e fico ali de pé, de costas voltadas

para o rio. Não quero olhar para a água; não quero ver o brilho de uma

cauda de sereia; não quero ouvir o cantar de Melusina, anunciando que

alguém vai morrer. Os lordes entram no quarto em fila, Stanley, Norfolk,

Hastings, o Cardeal Tomás Bourchier, os meus irmãos, os meus primos, os

meus cunhados e mais meia dúzia de outros; todos os homens importantes

do reino, homens que estiveram ao lado do meu marido desde as primeiras

horas das suas provações iniciais, ou homens como Stanley, que estão

sempre perfeitamente alinhados com o lado vencedor. Olho para eles,

petrificada, e eles fazem-me uma vénia; de rostos cerrados.

As mulheres recostaram Eduardo contra as almofadas para ele poder

ver o seu conselho. Hastings tem os olhos cheios de lágrimas e o rosto

contorcido de desgosto. Eduardo estende-lhe uma mão e abraçam-se um ao

outro como se Hastings tentasse prendê-lo à vida.

- Receio que não me reste muito tempo - diz Eduardo. A voz dele é

apenas um sussurro.

- Não - murmura Hastings. - Não digais uma coisa dessas. Não.

Eduardo vira a cabeça e dirige-se a todos.

- Deixo um filho jovem. Esperava poder vê-lo transformar-se num

homem. Tinha esperanças de vos deixar com um homem pronto a ser rei.

Em vez disso, tenho de vos confiar a guarda do meu filho.

Levo o punho à boca para me impedir de gritar.

- Não - digo eu.

- Hastings - diz Eduardo.

- Senhor.

- E todos vós, e Isabel, minha rainha.

Aproximo-me da beira da sua cama e ele prende a minha mão na sua

e junta-a à de Hastings, como se nos estivesse a obrigar a casar.

- Tereis de trabalhar juntos. Todos vós tereis de esquecer as vossas

inimizades, as rivalidades e os ódios. Todos têm contas para acertar; todos

sofreram humilhações que não conseguem esquecer. Mas terão de

esquecer. Terão de ser um só, para manterem o meu filho em segurança e

fazer com que suba ao trono. Peço-vos isso, ordeno-vos isso do meu leito

de morte. Sereis capazes de o fazer?

Penso em todos os anos em que odiei Hastings, o mais querido

amigo e companheiro de Eduardo, o parceiro de todas as bebedeiras e

Page 222: Philippa gregory - a rainha branca

visitas a prostíbulos, o amigo que estava sempre ao seu lado, na batalha.

Recordo como Sir Guilherme

288

Hastings, desde o primeiro momento, me desprezou e me olhou do

alto do seu enorme cavalo, quando me viu ali, ao lado da estrada, a forma

como se opôs à ascensão social da minha família e como, muitas e

repetidas vezes, tentou levar o rei a ouvir outros conselheiros e a dar

emprego a outros amigos. Vejo-o olhar para mim e, apesar de as lágrimas

lhe correrem pelo rosto, o seu olhar é duro. Ele pensa que eu fiquei ali, na

berma da estrada, para lançar um feitiço sobre um jovem rapaz, para o

desgraçar. Nunca irá compreender o que aconteceu naquele dia, entre um

rapaz e uma rapariga. Houve realmente magia: e o seu nome é amor.

- Trabalharei com Hastings para segurança do meu filho - digo eu. -

Trabalharei com todos vós e esquecerei todos os agravos, para que o meu

filho chegue ao trono em segurança.

- Eu também - diz Hastings, e, depois, todos repetem o mesmo, um a

seguir ao outro.

- E eu.

- E eu.

- E eu.

- O meu irmão Ricardo será o seu guardião - diz Eduardo. Eu

estremeço e teria retirado a mão se Hastings não ma tivesse segurado com

força.

- Como queirais, Senhor - diz ele, olhando para mim com firmeza.

Sabe que eu não gosto de Ricardo e temo o poder do Norte que ele poderá

reunir.

- António, o meu irmão - digo num murmúrio, tentando convencer o

rei.

- Não - diz teimosamente Eduardo. - Ricardo, Duque de Gloucester,

deverá ser o seu guardião e Protector do Reino, até o Príncipe Eduardo

subir ao trono.

- Não - sussurro eu. Se ao menos conseguisse ficar a sós com o rei,

poderia dizer-lhe que, com António como protector, nós, os Rivers,

seríamos capazes de manter o país em segurança. Não quero ver o meu

poder ameaçado por Ricardo. Quero o meu filho rodeado pela minha

família. Não quero ninguém relacionado com a família Iorque no novo

governo que irei formar, em volta do meu filho. Quero que seja um rapaz

Rivers a ocupar o trono da Inglaterra.

- Jurais que o fareis? - diz Eduardo.

289

Page 223: Philippa gregory - a rainha branca

- Eu juro - dizem todos.

Hastings olha para mim.

- Vós jurais? - pergunta ele. - Jurais que, assim como nós jurámos

pôr o vosso filho no trono, vós prometeis aceitar Ricardo, Duque de

Gloucester, como protector?

É óbvio que não. Ricardo não é meu amigo e já controla metade da

Inglaterra. Porque haveria de acreditar que ele iria deixar o meu filho subir

ao trono, quando ele próprio é um príncipe Iorque? Porque não haveria ele

de aproveitar a oportunidade para tomar o trono para si mesmo? E tem um

filho, um rapaz, filho da pequena Ana Neville, um rapaz que poderia vir a

ser Príncipe de Gales, tomando o lugar do meu príncipe. Por que razão não

iria Ricardo, que lutou em muitas batalhas por Eduardo, lutar em mais uma,

por si mesmo?

O rosto de Eduardo está cinzento, de fadiga.

- Jurai-o, Isabel - murmura ele. - Por mim. Para bem de Eduardo.

- Achais que isso irá deixar Eduardo em segurança?

Ele acena com a cabeça.

- É a única maneira. Ele ficará seguro se vós e os lordes

concordarem, se Ricardo concordar.

Não tenho outra saída.

- Juro - digo eu.

Eduardo alivia a forte pressão que fazia sobre as nossas mãos e

deixa-se cair para trás, sobre as almofadas. Hastings uiva como um cão e

pousa o rosto nas cobertas da cama; a mão de Eduardo procura, às cegas, o

seu caminho, até tocar na cabeça do seu velho amigo, como se fosse uma

bênção. Os outros formam uma fila para sair e só Hastings e eu ficamos,

um de cada lado da cama, com o rei a morrer no meio de nós.

Não tenho tempo para o chorar, nem tempo para avaliar o que perdi.

Cá por dentro, o meu coração está desfeito pelo homem que amo, o único

homem que amei em toda a minha vida, o único homem que sempre

amarei. Eduardo, o rapaz que veio ter comigo a cavalo, quando eu fiquei à

sua espera. Meu adorado. Não tenho tempo para pensar nisto quando o

290

futuro do meu filho e as expectativas da minha família dependem da

minha capacidade de ser forte e manter os olhos secos.

Nessa mesma noite, escrevo ao meu irmão António.

O rei morreu. Trazei o novo Rei Eduardo para Londres com a

máxima brevidade. Trazei todos os homens que puderdes juntar, como

guarda real - iremos precisar deles. Eduardo, ingenuamente, nomeou

Ricardo, Duque de Gloucester, como protector. Ricardo odeia-vos tanto

Page 224: Philippa gregory - a rainha branca

quanto a mim, por causa do amor do rei e do nosso próprio poder. Temos

de coroar Eduardo imediatamente e defendermo-nos do Duque, que nunca

irá desistir do protectorado sem luta. Deveis recrutar mais homens, à

medida que fordes marchando, e recolhei as armas que estão guardadas em

local secreto, ao longo do caminho. Preparai-vos para a batalha, para

defender o nosso herdeiro. Vou adiar o anúncio da morte pelo máximo

tempo que puder, para que Ricardo, que ainda está no Norte, não saiba,

para já, o que se está a passar. Por isso, apressai-vos.

Isabel

O que eu não sabia era que Hastings escreve a Ricardo, manchando a

carta com as suas lágrimas, mas deixando-a ainda legível, dizendo que a

família Rivers está a pegar em armas em volta do seu príncipe e que, se

Ricardo quiser assumir o seu papel de protector, se quiser proteger o

pequeno Príncipe Eduardo da sua ambiciosa família, faria melhor em vir

imediatamente, com todos os homens das terras do Norte que conseguir

reunir, antes que o príncipe seja raptado pelos seus próprios parentes.

Escreve:

O rei deixou tudo sob vossa protecção - bens, herdeiro e reino.

Colocai a pessoa do nosso soberano Lorde Eduardo V em segurança, e

vinde para Londres antes que os Rivers nos expulsem.

O que eu não sei, e o que não me permito pensar, é que, tendo

aprendido a recear as guerras constantes pelo trono da Inglaterra, eu mesma

estou a começar mais uma e que, desta vez, está em jogo a herança, e

mesmo a vida do meu querido filho.

Ele rapta-o.

Ricardo move-se mais depressa, está mais bem armado e mais

determinado do que qualquer um de nós poderia imaginar. Move-se tão

depressa e com a mesma decisão que Eduardo teria tido - e é igualmente

impiedoso. Arma uma cilada ao meu filho, durante a viagem dele para

Londres, despede os homens de Gales que lhe eram leais, e a mim, prende

o meu irmão António, o meu filho Ricardo Grey, o nosso primo Tomás

Vaughan e toma Eduardo à sua suposta guarda. O meu filho ainda nem fez

treze anos, por amor de Deus. Ainda é um rapazinho de apenas doze anos.

A sua voz ainda é aflautada, o seu queixo é suave como o de uma menina,

tem uma pelugem loira macia por cima do lábio superior, que só se

consegue ver quando ele está de lado, contra a luz. E, quando Ricardo

manda embora os seus leais servidores, o tio a quem idolatra, o meio-irmão

que adora, defende-os com um ligeiro tremor na voz. Diz que tem a certeza

de que o pai só teria colocado homens bons à sua volta, e que os quer

manter ao seu serviço.

É apenas um rapazinho. Tem de fazer frente a um homem

endurecido pelas batalhas e que está determinado em fazer mal. Quando

Ricardo lhe diz que o meu irmão António, que tem sido o amigo do meu

Page 225: Philippa gregory - a rainha branca

filho, guardião e protector durante toda a sua vida, bem como o meu filho

Grey mais novo, Ricardo, têm de se separar dele, o meu filhinho tenta

defendê-los. Diz que tem a certeza de que o seu tio António é um homem

bom e um fiel guardião. Diz-lhe que o seu meio-irmão Ricardo tem sido

um parceiro e um companheiro para ele, que sabe que o seu tio António

nunca fez nada que pudesse envergonhar um grande cavaleiro, o cortês

cavaleiro que ele é. Mas o Duque Ricardo responde-lhe que tudo se irá

resolver e que, entretanto, ele e o Duque de Buckingham, que esteve

anteriormente à minha guarda e que eu obriguei

292

a casar com a minha irmã Catarina, e que surge agora,

surpreendentemente, em tal companhia, serão os seus companheiros até

Londres.

Ele não é mais do que um rapazinho. Foi sempre tratado com

carinho. Não sabe como fazer frente ao seu tio Ricardo, todo vestido de

negro e com uma expressão temível, acompanhado por dois mil homens e

preparado para lutar. Por isso, deixa o seu tio António partir, deixa o irmão

ir embora. Como poderia salvá-los? Chora amargamente. Contaram-me.

Chora como uma criança a quem ninguém obedece, mas deixa-os ir

embora.

293

MAIO DE 1483

Isabel, a minha filha de dezassete anos, vem ter comigo a correr, no

meio da gritaria e do caos do Palácio de Westminster.

- Mãe! Senhora minha Mãe! O que se passa?

- Vamos para um refúgio - digo-lhe rapidamente. - Apressai-vos.

Trazei tudo o que quiserdes e todas as roupas das crianças. E assegurai-vos

de que os criados trazem as carpetes e as tapeçarias dos aposentos reais.

Fazei com que tudo isso seja levado para a Abadia de Westminster; vamos

voltar para o refúgio. E a vossa caixa das jóias, e as peles. E, depois, deveis

dar uma volta pelos aposentos reais e confirmar que eles estão a esvaziá-los

de todas as peças valiosas.

- Porquê? - a sua boca pálida está a tremer. - O que aconteceu agora?

E o bebé?

- O vosso irmão, o rei, foi levado pelo tio, o lorde protector -

digo eu. As minhas palavras são como facas e vejo como elas a atingem.

Ela admira o seu tio Ricardo; sempre o admirou. Ela tinha esperado que ele

tomasse conta de todos nós; que nos protegesse, na verdade. - A vontade do

Page 226: Philippa gregory - a rainha branca

vosso pai fez do meu inimigo guardião do meu filho. Vamos ver que

género de protector é ele. Mas será melhor que o vejamos a partir de um

local seguro. Vamos para o abrigo hoje mesmo, neste preciso momento.

- Mãe - ela parece dançar sem sair do sítio, com o medo. - Não

deveríamos esperar, não deveríamos consultar o Conselho Privado? Não

devíamos esperar aqui pelo bebé? E se o Duque Ricardo estiver apenas a

trazer o bebé até nós, em

294

segurança? E se ele estiver apenas a fazer o seu dever, como lorde

protector? A proteger o bebé?

- Para vós, ele é o Rei Eduardo, já não é o bebé - digo zangada. - E

até para mim. E deixai-me dizer-vos, criança, que só os loucos ficam à

espera quando os seus inimigos estão para chegar, para ver se, por acaso,

poderão ficar amigos. Ficaremos o mais seguras que eu conseguir arranjar.

Em refúgio num santuário. E levaremos connosco o vosso irmão Ricardo,

para também o mantermos em segurança. E, quando o lorde protector

chegar a Londres, com o seu exército privado, poderá convencer-nos de

que é seguro sair de lá.

Falo corajosamente com a minha corajosa filha, agora uma jovem

mulher com a própria vida afectada por esta súbita mudança, a ter de passar

de princesa da Inglaterra a uma simples rapariga escondida, mas, de facto,

encontramo-nos numa maré muito baixa, quando barricamos a porta da

cripta de Santa Margarida, em Westminster, e ficamos sozinhos - o meu

irmão Leonel, Bispo de Salisbury, o meu filho adulto, Tomás Grey, o meu

filho pequeno, Ricardo, e as minhas filhas, Isabel, Cecília, Ana, Catarina e

Bridget. Na última vez que aqui tínhamos estado, eu estava grávida do meu

primeiro filho, com todos os motivos para esperar que, um dia, ele pudesse

vir a reclamar o trono da Inglaterra. A minha mãe ainda estava viva e era a

minha companheira e a minha melhor amiga. E ninguém conseguia ficar

com medo durante muito tempo, quando a minha mãe urdia planos para

eles e lançava os seus feitiços, rindo da sua própria ambição. O meu marido

estava vivo, no exílio, planeando o seu regresso. Nunca duvidei que ele

conseguisse voltar. Nunca duvidei que conseguisse sair vitorioso. Sempre

soube que ele nunca perdia uma batalha. Sabia que ele havia de vir, que ia

ganhar, sabia que nos iria salvar. Sabia que os tempos eram maus, mas

tinha confiança de que melhores dias viriam.

Agora, estamos de novo aqui, mas, desta vez, é difícil ter esperança.

E nesta época de início de Verão, que sempre foi a minha preferida,

recheada de piqueniques, torneios e festas.

295

Page 227: Philippa gregory - a rainha branca

A sombra da cripta é opressiva. É como ser enterrada viva. Na

verdade, não há grandes motivos para ter esperança. O meu filho está em

mãos inimigas, a minha mãe já partiu há muito tempo e o meu marido está

morto. Nenhum homem belo e alto vai bater à porta com força, bloqueando

a luz com a sua entrada, chamando pelo meu nome. O meu filho, que na

altura era um bebé, é agora um rapazinho de doze anos, nas mãos do nosso

inimigo. A minha filha Isabel, que brincava tão docemente com as irmãs,

da última vez que estivemos recolhidas, já tem dezassete. Vira para mim o

seu rosto pálido e pergunta-me o que iremos fazer. Da última vez, ficámos

à espera, seguras, sabendo que, se conseguíssemos sobreviver, seríamos

salvas. Desta vez, não há certezas.

Durante quase uma semana, fico à escuta, na minúscula janela da

porta da frente. Desde a madrugada até ao escurecer, espreito pela grelha,

esforçando-me por escutar o que as pessoas estão a fazer, através do ruído

que vem das ruas. Quando me afasto da porta, vou até ao rio e fico a olhar

para os barcos que passam, à procura da barca real, tentando ouvir

Melusina.

Todos os dias envio mensageiros a pedir notícias do meu irmão e do

meu filho, e a pedir para falar com os lordes que deveriam estar a sublevar-

se para nos defender, e cujos exércitos se deveriam estar a armar, por nossa

causa. E, no quinto dia, ouço: um ruído que vai crescendo, uma ovação dos

aprendizes, e outro som, por trás daquele, um som mais profundo, o de

apupos. Consigo ouvir o som metálico das armaduras e o ruído de cascos

de muitos cavalos. É o exército de Ricardo, Duque de Gloucester, o irmão

do meu marido, o homem a quem ele confiou a nossa segurança, e que está

a entrar na cidade, a capital do meu marido, e a receber uma confusa

recepção. Quando olho pela janela para o rio, vejo uma fila de barcos seus

em volta do Palácio de Westminster: uma barricada flutuante, mantendo-

nos cativos. Ninguém pode entrar ou sair.

Ouço o retinir de uma carga de cavalaria e alguns gritos. Fico na

dúvida: se eu tivesse armado a cidade contra ele e lhe tivesse declarado

guerra logo no primeiro momento, será que agora lhe teria podido fazer

frente? Mas depois penso: e o que

296

aconteceria ao meu filho Eduardo, que faz parte do cortejo do seu

tio? E ao meu irmão António, e ao meu filho Ricardo Grey, mantidos

reféns, para me obrigarem a portar-me bem? E ainda: talvez não tenha

motivos para ter medo. Simplesmente, não sei. O meu filho ou é um jovem

rei, levado em procissão com todas as honras, para ser coroado, ou um

jovem raptado. Eu nem sequer sei, com certeza, qual das hipóteses é a real.

Page 228: Philippa gregory - a rainha branca

Vou deitar-me com essa pergunta a martelar-me a cabeça, como o

rufar de um tambor. Deito-me vestida e não consigo dormir. Sei que

algures, não muito longe de mim, nessa noite, o meu filho também está

deitado sem conseguir dormir. Estou impaciente, como qualquer mulher

atormentada, por poder estar com ele, por o ver, para lhe poder dizer que

está novamente em segurança, junto de mim. Não posso acreditar, filha de

Melusina como sou, que não sou capaz de passar por entre as barras das

janelas e simplesmente nadar até junto dele. Ele é o meu filho: talvez esteja

com medo, talvez corra perigo. Como é que posso não estar com ele?

Mas tenho de permanecer imóvel, à espera que o céu mude do negro

mais profundo para o cinzento, nos pequenos vitrais da janela, antes de me

permitir erguer-me, de atravessar a cripta até à porta e abrir a pequena vigia

e olhar lá para fora, para as ruas tranquilas. Nessa altura, percebo que

ninguém pegou em armas para proteger o meu filho Eduardo, ninguém irá

salvá-lo, ninguém irá libertá-lo. Eles podem ter apupado o lorde protector,

quando ele marchava à frente do seu exército com o meu filho atrás dele,

até pode ter havido uma ligeira escaramuça e alguma luta passageira; mas,

nesta manhã, ninguém está a pegar em armas e a atacar o seu castelo. Na

noite passada, eu fui a única pessoa acordada, em toda a cidade de Londres,

preocupada com o pequeno rei, por todas aquelas longas horas.

A cidade está à espera, para ver o que o lorde protector vai fazer.

Tudo gira em torno disso. Será que Ricardo, Duque de Gloucester, o

querido e leal irmão do anterior rei, vai acatar as ordens do seu irmão

moribundo e colocar o filho dele no trono? Será que ele, leal como sempre,

vai fazer o seu papel de lorde protector e tomar conta do sobrinho até ao dia

da coroação? Ou será que Ricardo, Duque de Gloucester, falso

297

como qualquer Iorquista, vai aproveitar o poder que o irmão lhe

concedeu para deserdar o sobrinho e colocar a coroa na sua própria cabeça,

nomeando o seu próprio filho Príncipe de Gales? Ninguém sabe o que o

Duque Ricardo pode fazer, e muitos - como sempre - só querem estar do

lado do vencedor. Toda a gente vai ter de esperar para ver. Apenas eu o

atacaria imediatamente se pudesse. Só por uma questão de segurança.

Aproximo-me das janelas baixas e fico a olhar para o rio que corre

ali tão perto e parece-me que, se me inclinasse para a frente, lhe poderia

tocar. Há uma embarcação com homens armados diante do portão da

Abadia que dá para o rio. Eles estão ali para me vigiar e manter os meus

aliados longe de mim. Qualquer amigo que tente aproximar-se será

mandado para trás.

- Ele vai usurpar a coroa - digo baixinho para o rio, para Melusina,

para a minha mãe. Elas ouvem-me, no fluir das águas. - Se tivesse de

Page 229: Philippa gregory - a rainha branca

apostar a minha fortuna nessa possibilidade, fá-lo-ia. Ele vai ficar com a

coroa. Todos os homens da Casa de Iorque são terrivelmente ambiciosos, e

Ricardo, Duque de Gloucester, não é diferente. Eduardo arriscou a vida,

ano após ano, lutando pelo seu trono. Jorge preferiu mergulhar a cabeça

num barril de vinho a ter de prometer que nunca iria reclamar o trono.

Agora é Ricardo quem marcha sobre a cidade, à frente de um exército com

milhares de homens armados. Ele não está a fazer isto em benefício do seu

sobrinho. Vai reclamar a coroa para si próprio. É um príncipe Iorque. Não

consegue resistir. Vai descobrir centenas de razões para a sua atitude e,

daqui a muitos anos, ainda haverá pessoas a discutirem acerca do que ele

está a fazer agora. Mas eu aposto que ele vai usurpar a coroa, porque não

consegue resistir à ideia, da mesma forma que Jorge não foi capaz de

deixar de se comportar como um idiota, ou que Eduardo não conseguiu

deixar de querer ser um herói. Ricardo vai apoderar-se da coroa e colocar-

me-á, e aos meus, de lado.

Detenho-me, num momento de honestidade.

- É da minha natureza lutar pelos meus - digo eu. - Estarei preparada

para o confrontar. Estarei preparada para o pior que ele possa fazer. Vou

preparar-me para ficar sem o meu filho

298

Ricardo Grey e o meu querido irmão António, da mesma forma que

já perdi o meu pai e o meu irmão João. Estes são tempos difíceis, por

vezes, demasiado duros para mim. Mas, nesta manhã, sinto-me preparada.

Lutarei pelo meu filho e pela sua herança.

Precisamente na altura em que fico com a certeza da minha

determinação, surge uma visita à porta do refúgio, uma batida ligeira,

ansiosa, depois outra. Aproximo-me muito lentamente da enorme porta

barricada, tentando espantar o medo a cada passada. Abro a vigia e ali está

a prostituta, Isabel Shore, um capuz puxado para cima, para esconder o seu

brilhante cabelo loiro e com os olhos vermelhos de chorar. Através da

grelha, ela consegue ver a minha cara, pálida como a de um prisioneiro, a

olhar lá para fora, para ela.

- O que quereis? - pergunto com frieza.

Ela estremece ao ouvir a minha voz. Talvez pensasse que eu ainda

tinha comigo algum estribeiro das cavalariças do palácio e uma dúzia de

lacaios, para me abrirem as portas.

- Vossa Majestade!

- Eu mesma. O que quereis, Shore?

Ela desaparece completamente da minha vista enquanto faz uma

profunda vénia, tão pronunciada que deixo de conseguir vê-la pelo ralo da

porta. Por momentos, apercebo-me do ridículo da situação, até que ela

Page 230: Philippa gregory - a rainha branca

volta a erguer-se e a surgir de novo no meu campo de visão, tal qual uma

lua branca que sobe no horizonte.

- Vim trazer algumas ofertas, Vossa Graça - diz ela com clareza.

Depois reduz o tom de voz. - E notícias. Por favor, deixai-me entrar, no

interesse do próprio rei.

O meu mau feitio dispara, quando ela se atreve a mencioná-lo:

depois reconsidero, creio que ela ainda se considera ao seu serviço e que eu

ainda continuo a ser a sua esposa; abro os ferrolhos da porta e volto

rapidamente a fechá-los com ruído, enquanto ela se escapa para dentro

como um gato assustado.

- O que quereis? - pergunto sem rodeios. - Qual é a vossa ideia, ao

virdes aqui? Sem serdes convidada?

Ela não dá nem mais um passo para o interior do meu refúgio,

limitando-se a permanecer ali, sobre a fria pedra da

299

soleira. Pousa no chão um cesto que ela mesma transportou, como se

fosse uma criada de cozinha. Reparo imediatamente que contém um

presunto fumado e um frango assado.

- Venho da parte de Sir Guilherme Hastings, com os seus

cumprimentos e a reafirmação da sua lealdade - diz ela muito depressa.

- Oh, haveis mudado de protector? Sois sua amante agora?

Ela olha-me directamente no rosto e eu tenho de fazer um

esforço para não ficar de boca aberta perante a sua impressionante

beleza. Tem olhos acinzentados e cabelo loiro. É parecida comigo, como eu

era há vinte anos. Parece a minha filha Isabel de Iorque: uma fresca beleza

inglesa, uma rosa da Inglaterra. Poderia odiá-la por isso, mas descubro que

tal não acontece. Penso que, vinte anos atrás, se Eduardo estivesse casado,

eu não teria sido melhor do que ela, ter-me-ia tornado sua amante se a

alternativa fosse nunca chegar a conhecê-lo de todo.

O meu filho, Tomás Grey, sai das sombras da cripta, por trás de

mim, e faz-lhe uma vénia, como se ela fosse uma dama. Ela dirige-lhe um

ligeiro sorriso, como se fossem dois bons amigos que não necessitam de

palavras.

- Sim, agora sou amante de Sir Guilherme Hastings - acrescenta ela

calmamente. - O falecido rei enviou o meu marido para o exílio e anulou o

nosso casamento. A minha família não me aceita de volta em casa. Fiquei

sem protecção, agora que o rei morreu. Sir Guilherme Hastings ofereceu-

me um lar, e sinto-me feliz por encontrar alguma segurança junto dele.

Assinto com a cabeça.

- E então?

Page 231: Philippa gregory - a rainha branca

- Ele pede-me que seja sua enviada junto de vós. Não pode vir

visitar-vos pessoalmente, receia os espiões do Duque Ricardo. Mas diz-vos

que tenhais esperança e que pensa que tudo irá correr bem.

- E porque haveria eu de confiar em vós?

Tomás dá um passo em frente.

- Ouvi o que ela tem para dizer, Senhora minha Mãe - diz ele com

gentileza - Ela amava verdadeiramente o vosso marido e é uma dama de

grande honorabilidade. Não seria capaz de vir aqui com falsos conselhos.

300

- Ide lá para dentro - digo-lhe com frieza. - Eu lidarei com esta

mulher.

Volto-me para ela.

- O vosso novo protector tem sido meu inimigo desde que me viu

pela primeira vez - digo com dureza. - Não sei porque haveríamos de ser

amigos agora. Foi ele que fez com que o Duque Ricardo se virasse contra

nós, e continua a apoiá-lo.

- Ele acreditou que estava a proteger o jovem rei - diz ela.

- Não pensou em mais nada, a não ser na segurança do jovem

rei. Ele quer que tenhais conhecimento disso, e que fiqueis a saber que ele

crê que tudo irá correr pelo melhor.

- Oh, é isso que ele pensa? - fico impressionada, apesar da

mensageira. Hastings continua a ser fiel ao meu marido, na morte, como o

foi em vida. Se ele pensa que as coisas vão correr bem, se está convencido

da segurança do meu filho, então, pode ser que tudo venha a correr bem. -

E por que razão está ele tão confiante?

Ela aproxima-se mais um pouco, para poder dizer muito baixinho:

- O jovem rei tem estado alojado no Palácio do Bispo - diz ela. -

Aqui mesmo ao lado. Mas o Conselho Privado determinou que ele deverá

mudar para os apartamentos reais da Torre e que tudo deverá ser preparado

para a sua coroação. Ele deverá ocupar imediatamente o seu lugar, como

Rei da Inglaterra.

- O Duque Ricardo vai coroá-lo?

Ela acena que sim.

- Os apartamentos reais estão a ser preparados para o receber; estão a

arranjar os seus fatos para a coroação. A abadia está a ser arranjada. Estão a

preparar os festejos e a angariar o dinheiro para as celebrações da sua

coroação. Já foram enviados os convites e o Parlamento foi convocado.

Tudo está a ser ultimado - ela hesita. - É tudo um pouco à pressa,

obviamente. Quem iria pensar que...?

Ela interrompe-se. É óbvio que tinha prometido a si mesma que não

iria mostrar o seu desgosto diante de mim. Como se poderia permitir uma

Page 232: Philippa gregory - a rainha branca

coisa dessas? A sua amante, atrever-se a chorar diante da sua rainha, por o

ter perdido? Por isso, não diz nada, mas as lágrimas inundam-lhe os olhos e

ela tenta

301

afastá-las. Eu não digo uma palavra, mas as lágrimas também sobem

aos meus olhos e afasto os olhos dela. Não sou mulher que se deixe abater

por um momento sentimental. Aquela é a amante dele; eu sou a rainha dele.

Mas Deus sabe como ambas sentimos a sua falta. Partilhamos essa dor,

como antes partilhávamos a alegria de o ter.

- Mas tendes a certeza? - pergunto-lhe muito baixinho. - O guarda-

roupa está a preparar os fatos para a sua coroação? Está tudo a ser

preparado?

- Já marcaram a data para a coroação, no dia vinte e cinco de Junho,

e os lordes do reino foram convocados para estarem presentes. Não há

qualquer dúvida - diz ela. - Sir Guilherme ordenou-me que vos dissesse que

tivésseis fé, e que não tem dúvidas de que ireis ver o vosso filho no trono

da Inglaterra. Disse-me que vos dissesse que, nesse dia, pela manhã, ele

mesmo vos virá buscar, para vos acompanhar até à abadia, e que vereis o

vosso filho ser coroado. Assistireis à coroação do vosso filho, ocupando o

primeiro lugar no seu séquito.

Respiro fundo perante esta nova esperança. Mas compreendo que ela

pode estar certa, que Hastings pode ter razão e que eu estou escondida, em

refúgio, como uma lebre assustada que corre quando não há cães por perto

e fica abaixada, as orelhas coladas ao dorso, enquanto os ceifeiros passam

perto de si, dirigindo-se para outro campo.

- E Eduardo, o jovem Conde de Warwick, foi enviado para o

Norte, para viver com a família de Ana Neville, a esposa do Duque de

Gloucester - continua ela.

Warwick é o rapazinho que ficou órfão por causa de um barril de

vinho. Tem apenas oito anos e é um rapazinho tonto e assustado, um

verdadeiro filho do tolo do pai, Jorge de Clarence. Mas o seu direito ao

trono vem a seguir ao dos meus filhos; os seus direitos são maiores do que

os do Duque Ricardo e, no entanto, Ricardo está a colocá-lo num lugar

seguro.

- Tendes a certeza? Ele enviou Warwick para casa da esposa?

- O meu senhor diz que Ricardo tem medo de vós e do vosso poder,

mas que nunca iria entrar em guerra com os

302

Page 233: Philippa gregory - a rainha branca

seus próprios sobrinhos. Todos os rapazes estão em segurança com

ele.

- Hastings tem notícias do meu irmão e do meu filho Ricardo Grey? -

pergunto num sussurro.

Ela acena com a cabeça.

- O Conselho Privado recusou-se a acusar o vosso irmão de traição.

Disseram que ele tem sido um bom e fiel servidor. O Duque Ricardo queria

acusá-lo de ter raptado o jovem rei, mas o Conselho Privado não

concordou, não quiseram aceitar essa acusação. Decidiram contra a vontade

do Duque Ricardo e ele aceitou a opinião deles. O meu senhor pensa que o

vosso irmão e o vosso filho serão libertos logo a seguir à coroação, Vossa

Graça.

- O Duque Ricardo irá fazer um acordo connosco?

- O meu senhor diz que o Duque se opõe bastante à vossa família,

Vossa Majestade, e à vossa influência. Mas é leal ao jovem rei, por respeito

ao Rei Eduardo. Ele disse que podereis ficar certa de que o jovem rei vai

ser coroado.

Concordo com a cabeça.

- Dizei-lhe que ficarei feliz por esse dia, mas que permanecerei aqui

até essa altura. Tenho outro filho, e cinco filhas, e prefiro mantê-los em

segurança, junto de mim. E não confio no Duque Ricardo.

- Ele diz que vós também não tendes sido muito digna de confiança -

ela faz uma profunda vénia e mantém a cabeça baixa, enquanto me insulta.

- Ordenou-me que vos dissesse que foi o vosso esposo quem nomeou o

Duque Lorde Protector e que o Conselho Privado prefere a influência dele

à vossa. Perdoai-me, Vossa Graça, ele ordenou-me que vos dissesse que há

muita gente que não gosta da vossa família e quer ver o jovem príncipe

livre da influência dos seus numerosos tios, e os Rivers fora dos muitos

lugares que ocupam. Foi notado que vós haveis roubado o tesouro real e

que o haveis trazido convosco para o refúgio, que também haveis trazido o

Selo Real e que o vosso irmão, o Lorde Almirante Eduardo Woodville,

levou toda a armada para alto mar.

Cerro os dentes com força. Isto pretende ser um insulto a mim e a

todas as pessoas da minha família, especialmente a

303

António, que influencia Eduardo mais do que qualquer outra pessoa,

que o ama como se fosse seu filho e que, neste mesmo dia, se encontra na

prisão, por causa dele.

- Podeis dizer a Sir Guilherme que o Duque Ricardo deve libertar o

meu irmão imediatamente, sem qualquer acusação - digo com desdém. -

Podeis dizer-lhe que o Conselho Privado deveria ser recordado dos direitos

Page 234: Philippa gregory - a rainha branca

da família Rivers e dos da viúva do rei. Ainda sou a rainha. O país já viu

antes uma rainha lutar pelos seus direitos; considerai-vos todos avisados. O

Duque raptou o meu filho e entrou em Londres completamente armado.

Quando tiver oportunidade, irei responsabilizá-lo por isso.

Ela fica assustada. Claramente, não tem qualquer desejo de se tornar

um mensageiro entre um cortesão carreirista e uma rainha vingativa. Mas é

esta a sua tarefa, neste momento, e terá de a desempenhar o melhor que lhe

for possível.

- Dir-lhe-ei, Vossa Graça - diz ela. Faz mais uma vénia prolongada e

começa a dirigir-se para a porta. - Permitis que expresse as minhas

condolências pela morte do vosso esposo? Ele era um grande homem. Foi

uma honra, ser-me permitido amá-lo.

- Ele não vos amava - digo com súbito desdém, e reparo que a sua

face empalidece.

- Não, ele nunca amou ninguém como a vós - responde ela de uma

forma tão doce que não consigo deixar de ficar emocionada com a sua

ternura. Há um ligeiro sorriso no seu rosto, mas os olhos estão molhados de

novo. - Nunca existiu qualquer dúvida no meu espírito, mas sempre houve

uma rainha no trono e a mesma rainha no seu coração. Ele certificou-se de

que eu sabia que era assim. Todos o sabiam. Para ele, nunca existiu outra

pessoa, para além de vós.

Ela faz deslizar o ferrolho e abre a pequena porta que fica do lado de

dentro do grande portão.

- Vós também lhe éreis muito querida - digo eu, levada, mesmo sem

querer, a ser justa com ela. - Eu tinha ciúmes de vós, porque sabia que ele

vos estimava muito. Ele dizia que vós haveis sido a mais alegre das suas

amantes.

O seu rosto ilumina-se, como se uma chama quente tivesse

despertado dentro de uma lanterna.

304

- Fico feliz por saber que ele pensava isso de mim, e que vós tenhais

sido suficientemente bondosa para mo dizer - diz ela. - Nunca o fiz por

motivos políticos ou para conseguir um lugar. Apenas adorava estar com

ele e, se me fosse possível, fazê-lo feliz.

- Sim, muito bem, muito bem - digo rapidamente, esgotada a minha

generosidade. - Então, que Deus vos acompanhe.

- E que Deus fique convosco, Vossa Graça - diz ela. - Podem pedir-

me que venha aqui outra vez, com mensagens para vós. Receber-me-eis?

- A vós e a qualquer uma das outras. Deus sabe que, se Hastings vai

utilizar as amantes de Eduardo como mensageiras, irei ter de receber

centenas delas - digo com irritação, reparando no seu débil sorriso,

Page 235: Philippa gregory - a rainha branca

enquanto passa pela porta entreaberta e eu a fecho com força nas suas

costas.

305

JUNHO DE 1483

As novas garantias de Hastings não me fazem perder tempo. Estou

decidida a declarar guerra a Ricardo. Destruí-lo-ei e libertarei o meu filho e

o meu irmão, bem como o jovem rei. Não vou esperar obedientemente,

como Hastings sugere, que Ricardo coroe Eduardo. Não confio nele, e não

confio no Conselho Privado nem nos cidadãos de Londres, que se limitam a

esperar, como vira-casacas, para se aliarem ao lado vencedor. Vamos ser

nós a atacá-lo e temos de o apanhar de surpresa.

- Enviai uma mensagem ao vosso tio Eduardo - digo a Tomás, o meu

filho Grey mais velho. - Dizei-lhe que traga a armada pronta para o ataque

e nós abandonaremos o refúgio e levantaremos o povo em armas. O Duque

dorme no Castelo de Baynard, com a sua mãe. Eduardo deverá bombardear

o castelo, enquanto nós invadimos a Torre e resgatamos Eduardo, o nosso

príncipe.

- E se Ricardo não tiver outra intenção a não ser coroá-lo? -

pergunta-me ele. Está a começar a escrever a mensagem em código. O

nosso mensageiro está à espera, escondido, pronto para cavalgar até à

armada que se encontra de prevenção nas águas profundas dos Downs.

- Nesse caso, Ricardo morre e nós coroamos Eduardo na mesma -

digo eu. - Poderemos estar a matar um amigo fiel e um príncipe de Iorque,

mas é um problema que teremos de resolver depois. Esta é a nossa hora.

Não podemos ficar à espera que ele reforce o seu controlo sobre Londres.

Metade do país ainda não deve saber que o rei Eduardo morreu.

306

Vamos acabar com o Duque Ricardo, antes que o seu governo dure

mais tempo.

- Eu gostaria de recrutar alguns dos lordes - diz ele.

- Fazei o que puderdes - digo com indiferença. - Lady Margarida

Stanley mandou avisar-me de que o marido está do nosso lado, embora

tente parecer amigo de Ricardo. Podeis perguntar-lhe se está interessado.

Mas aqueles que não pegaram em armas por nós, quando Ricardo entrou

em Londres, bem podem morrer com ele, não quero saber. Traíram-me e à

memória do meu marido. Aqueles que sobreviverem a esta batalha serão

julgados por traição e serão decapitados.

Tomás olha para mim.

Page 236: Philippa gregory - a rainha branca

- Então, estais novamente a declarar guerra - diz ele. - Nós, os

Rivers, e os nossos homens em posição de destaque, os nossos primos,

parentes e afins, contra os lordes da Inglaterra, comandados pelo Duque

Ricardo, o vosso cunhado. Isto significa que, desta vez, teremos Iorque a

combater contra Iorque. Será uma dura batalha, difícil de terminar, depois

de ter começado. E também difícil de vencer.

- Tem de ser começada - respondo-lhe com ar sério. - E eu tenho de

vencer.

A prostituta Isabel Shore não é a única que me vem trazer notícias

sussurradas. A minha irmã Catarina, mulher do orgulhoso Duque de

Buckingham, que esteve anteriormente sob a minha guarda, aparece numa

visita familiar, trazendo de Kent um bom vinho e alguns dos primeiros

morangos da época.

- Vossa Graça, minha irmã - diz-me ela, com uma pronunciada

vénia.

- Irmã Duquesa - respondo com frieza. Nós fizemos com que ela

casasse com o Duque de Buckingham quando ele era apenas um revoltado

órfão de nove anos. Conseguimos que ela ficasse com milhares de hectares

de terra e o título mais importante da Inglaterra, a seguir ao de um príncipe.

Provámos-lhe que, apesar de ele ser pedante como um pavão por causa do

seu nome, muito mais importante, de longe, do que o nosso, ainda assim,

tínhamos o poder de lhe escolher uma

307

esposa, e divertiu-me pegar no seu nome ancestral e atribuído à

minha irmã. Catarina teve sorte em ser nomeada duquesa, por meu

intermédio, enquanto eu era rainha. E, agora, a roda da fortuna gira, e volta

a girar, e ela encontra-se casada não com um rapazinho ressabiado, mas

com um homem de quase vinte anos que é, presentemente, o melhor amigo

do lorde protector da Inglaterra, e eu sou uma rainha viúva, refugiada, com

um inimigo no poder.

Ela enfia o braço no meu, como costumava fazer quando éramos

meninas, em Grafton, e dirigimo-nos para a janela, para olhar lá para fora,

para a água lamacenta.

- Andam a dizer que vos haveis casado através de bruxaria - diz ela,

quase sem mover os lábios. - E andam à procura de alguém que possa jurar

que Eduardo estava casado com outra mulher, antes de vós.

Olho-a nos olhos.

- Já é uma história antiga. Não estou preocupada com isso.

- Por favor. Prestai atenção. É possível que eu não possa voltar aqui

mais nenhuma vez. O meu marido está a crescer em poder e importância.

Creio que me vai mandar para longe, para a província, e não lhe posso

Page 237: Philippa gregory - a rainha branca

desobedecer. Ouvi o que tenho para vos dizer. Eles têm Robert Stillington,

o Bispo de Bath e Wells, do seu lado...

- Mas ele é um dos nossos - interrompo-a, esquecendo-me de que

este “nossos” já não existe.

- Ele era um dos vossos. Já não é. Era o chanceler de Eduardo, mas

agora é o grande amigo do Duque. Ele afiança-lhe, como disse a Jorge,

Duque de Clarence, que Eduardo era casado com a Dama Eleanor Butler,

antes de se casar convosco, e que ela teve dele um filho legítimo.

Viro o rosto para o lado. É este o preço a pagar por ter tido um

marido incontinente.

- De facto, creio que ele lhe prometeu casamento - digo num

sussurro. - Até é capaz de ter havido uma cerimónia qualquer. António

sempre pensou que sim.

- Não é tudo.

- O que há mais?

- Andam a dizer que Eduardo, o rei, nem sequer era filho do seu pai.

Que era um bastardo impingido ao pai.

308

- Outra vez essa maledicência?

- Precisamente.

- E quem é que anda a servir estes pratos requentados?

- O Duque Ricardo, e o meu marido, e dizem-no por toda a parte.

Mas há pior, creio que a rainha-mãe, Cecília, está pronta a confessar em

público que o vosso esposo era seu filho bastardo. Penso que o fará, para

conseguir colocar o filho, Ricardo, no trono -, e o vosso filho de lado. O

Duque Ricardo e o meu marido andam a proclamar por toda a parte que o

vosso marido era um bastardo, e o filho também. Isso transforma o Duque

Ricardo no próximo herdeiro legítimo.

Assinto com a cabeça. É óbvio. É óbvio. Nessa altura, seremos

mandados para o exílio, o Duque Ricardo passa a ser o Rei Ricardo, e o seu

filho esbranquiçado ocupará o lugar do meu belo filho.

- E pior do que tudo - sussurra ela. - O Duque suspeita que estejais a

armar o vosso próprio exército. Já avisou o conselho de que planeais

destruí-lo e a todos os velhos lordes da Inglaterra. E, por isso, mandou

trazer de Iorque homens que lhe são leais. Vai atacar-nos com um exército

composto por homens do Norte.

A minha mão aperta-lhe o braço com mais força.

- Estou a reunir os meus homens - confirmo. - Tenho os meus planos.

Quando chegam os homens do Norte?

Page 238: Philippa gregory - a rainha branca

- Ele acabou de os mandar chamar - diz ela. - Não devem cá chegar

nos próximos dias. Talvez dentro de uma semana, talvez mais. Estais

preparada para abrir as hostilidades?

- Não - digo com um suspiro. - Ainda não.

- Não sei o que podereis fazer a partir deste sítio. Não seria melhor

sairdes daqui e apresentar-vos pessoalmente diante do Conselho Privado?

Algum dos lordes do Conselho Privado vos vem visitar? Tendes um plano?

Assinto com a cabeça.

- Podeis ter a certeza de que temos planos. Vou fazer com que

libertem Eduardo e mandarei imediatamente o meu filho Ricardo para

longe, às escondidas, para um lugar seguro. Estou a subornar os guardas da

Torre para libertarem Eduardo. Ele tem homens bons à sua volta. Confio

neles para fazerem vista grossa. O meu filho Grey Tomás vai sair daqui

sem dar

309

nas vistas. Irá a Sheriff Hutton para libertar o seu irmão Ricardo

Grey e o seu tio António, depois irão reunir homens armados e regressarão

aqui, para nos libertar a todos. Eles farão com que os nossos se revoltem.

Vamos ganhar esta luta.

- Mandareis os rapazes para longe, primeiro?

- Eduardo planeou a nossa fuga já há muitos anos, mesmo antes de

eles terem nascido. Eu jurei-lhe que haveria de manter os rapazes em

segurança, acontecesse o que acontecesse. Recordai-vos de que só

conseguimos aceder ao trono depois de muitas batalhas; ele nunca

acreditou que estivéssemos seguros. Sempre estivemos preparados para o

perigo. Mesmo que Ricardo não lhes queira fazer mal, não posso admitir

que ele os tenha sob o seu controlo e que ande a dizer ao mundo que eles

são bastardos. O nosso irmão, Sir Eduardo, vai trazer a frota para atacar o

Duque Ricardo e um dos barcos levará os rapazes até junto de Margarida,

na Flandres, e, lá, estarão seguros.

Ela agarra-se ao meu cotovelo e o seu rosto está extremamente

pálido.

- Minha querida... Oh, Isabel! Meu Deus! Não sabeis?

- O quê? Que há mais, agora?

- O nosso irmão, Eduardo, está perdido. Todos os seus soldados se

amotinaram contra ele, a favor do lorde protector.

Por segundos, emudeço, com o choque.

- Eduardo? - volto-me para ela e agarro-lhe as mãos. - Ele morreu?

Eles mataram o nosso irmão Eduardo?

Ela abana a cabeça.

Page 239: Philippa gregory - a rainha branca

- De certeza, não sei. Creio que ninguém sabe. O que é um facto é

que ele não foi dado como morto. Não foi executado.

- Quem voltou os homens contra ele?

- Tomás Howard - ela nomeia o nobre em ascensão que se uniu a

Ricardo, em busca de proveitos e de um posto. - Ele meteu-se pelo meio da

armada. De qualquer forma, eles já não queriam ir para o mar. Revoltaram-

se contra o comando dos Rivers. A nossa família é odiada por muitos dos

homens do povo.

- Perdidos - digo eu. Ainda não consigo aceitar a enormidade da

nossa derrota. - Perdemos Eduardo, a armada e o tesouro que ele

transportava - murmuro. - Estava a contar

310

com ele para nos libertar. Deveria subir o rio para nos vir buscar e

levar-nos para um local seguro. E o tesouro faria com que conseguíssemos

formar um exército na Flandres e pudéssemos pagar aos nossos apoiantes

de cá. E a frota deveria bombardear Londres e tomar a cidade a partir do

rio.

Ela hesita e, então, como se o meu desespero a tivesse levado a

tomar uma decisão, mete a mão dentro da sua capa e tira para fora um

pedaço de tecido, o canto de um lenço. Entrega-mo.

- O que é isto?

- É um pedaço que rasguei do guardanapo do Duque Ricardo,

quando ele jantou com o meu marido - diz ela. - Ele segurou-o com a mão

direita: limpou a boca com ele - fala mais baixo e olha para o chão. Ela

sempre teve receio dos poderes da nossa mãe. Nunca quis aprender

nenhuma das nossas aptidões. - Achei que poderíeis usá-lo - hesita. -

Tendes de fazer parar o Duque de Gloucester. Cada dia está a ficar com

mais poder. Pensei que pudésseis fazer com que ele adoecesse.

- Haveis cortado isto do guardanapo do duque? - pergunto-lhe,

incrédula. Catarina sempre detestou qualquer tipo de artes mágicas; nem

sequer permitia que as ciganas, na feira, lhe lessem a sina.

- É pelo António - murmura ela com firmeza. - Sinto tanto receio

pelo nosso irmão António. Convosco, os rapazes estarão em segurança, eu

sei. Ides conseguir levá-los para longe. Mas o duque mantém António em

seu poder e tanto ele como o meu marido o odeiam tanto! Invejam-no pelos

seus conhecimentos e pela sua bravura, e por ser tão estimado. Por isso,

têm medo dele e eu gosto tanto dele! Tendes de impedir o duque, Isabel. A

sério que tendes. Tendes de salvar António.

Escondo o pano na minha manga, para que ninguém, nem sequer as

crianças, o veja.

Page 240: Philippa gregory - a rainha branca

- Deixai isto comigo - digo eu. - Não deveis pensar nisso, sequer.

Tendes um rosto demasiado honesto, Catarina. Todos irão saber o que eu

estou a fazer se não esquecerdes completamente este assunto.

Ela solta uma risada nervosa.

- Nunca fui capaz de mentir.

311

- Esquecei completamente o assunto.

Voltámos para junto da porta principal.

- Ide com Deus - digo-lhe. - E rezai por mim e pelos nossos filhos.

O sorriso desaparece-lhe do rosto.

- São tempos duros para nós, Rivers - diz ela. - Peço a Deus para que

consigais manter os vossos filhos em segurança, irmã, e a vós mesma.

- Ele irá arrepender-se de ter começado tudo isto - predigo. Por

momentos, detenho-me, pois, como numa visão, vejo Ricardo, com um ar

de rapazinho perdido, cambalear no meio de um campo de batalha, a sua

espada enorme pendurada na sua mão enfraquecida. Olha em volta, à

procura de amigos, e não vê nenhum. Tenta encontrar o seu cavalo, mas o

cavalo fugiu. Tenta recuperar as forças, mas já não as tem. O choque

estampado no seu rosto faria qualquer pessoa sentir pena dele.

O momento passa e Catarina toca na minha mão.

- O que se passa? Que estais a ver?

- Vejo que ele vai arrepender-se de ter começado isto - digo

baixinho. - Será o seu fim e o da sua casa.

- E nós? - pergunta ela, tentando decifrar o meu rosto, como se

pudesse ver o mesmo que eu tinha visto. - O António? E todos nós?

- Será também o nosso fim, receio-o.

Nessa mesma noite, quando já é meia-noite e está bem escuro,

levanto-me da cama e pego no pedaço de pano que Catarina me deu. Vejo a

nódoa de comida, no sítio onde o duque limpou os lábios, e levo o pano ao

nariz, cheirando-o. Carne, acho eu, embora ele coma pouco e não seja

grande bebedor. Torço o tecido, formando um cordão, e coloco-o em volta

do meu braço direito, tão apertado que sinto o braço doer. Volto para a

cama e, pela manhã, a pele branca do meu braço está azul, com uma

pisadura, e tenho os dedos entorpecidos, como se lá tivesse agulhas e

alfinetes espetados. Sinto o braço doer e, à medida que desaperto o pano,

gemo com

312

dores. Sinto fraqueza no braço, quando atiro o fragmento de pano

para o fogo.

Page 241: Philippa gregory - a rainha branca

- Enfraquece também - digo para a chama. - Perde a força. Que o teu

braço direito deixe de funcionar, que o teu braço que segura a espada fique

fraco, que a tua mão não consiga segurar nada. Respira fundo e sente como

o ar fica preso dentro do peito. Respira novamente e engasga-te. Doente e

sem forças. E arde desta forma.

O cordão de pano incendeia-se na lareira e eu fico a vê-lo arder até

ao fim.

O meu irmão Leonel vem ter comigo de manhã cedo.

- Recebi uma carta do Conselho. Pedem-nos que deixemos o refúgio

e enviemos o vosso filho, Príncipe Ricardo, para junto do irmão, nos

aposentos reais da Torre.

Viro-me para a janela e olho para o rio, como se ele me pudesse

aconselhar.

- Não sei - digo eu. - Não, não quero ambos os príncipes nas mãos do

tio.

- Não há qualquer dúvida de que a coroação vai ter lugar - diz ele. -

Todos os lordes estão em Londres, as roupas estão a ser feitas, a abadia está

pronta. Devíamos sair agora e ocupar o lugar a que temos direito. Aqui

escondidos, dá a impressão de que somos culpados de alguma coisa.

Mordo o lábio.

- O Duque Ricardo é um dos filhos de Iorque - digo eu. - Ele viu os

três sóis brilharem no céu, quando cavalgavam juntos para a vitória. Não

podemos acreditar que ele se afaste, quando tem a hipótese de governar a

Inglaterra. Não podeis acreditar que ele entregue todo o poder do reino nas

mãos de um rapazinho.

- Creio que ele irá governar a Inglaterra através do vosso filho se vós

não estiverdes lá para o impedir - diz ele com ardor. - Irá colocá-lo no trono

e tratá-lo como uma marioneta. Ele será outro Warwick, outro fazedor de

reis. Ele não quer o trono para si: quer ser o regente e o lorde protector.

Nomear-se-á regente e governará através do vosso filho.

313

- Eduardo vai ser o rei, a partir do momento em que for coroado -

digo eu. - Veremos a quem ele irá dar ouvidos.

- Ricardo pode recusar-se a entregar-lhe o poder, até Eduardo

completar vinte e um anos - diz ele. - Pode governar o reino, como regente,

durante os próximos oito anos. Temos de estar lá, representados no

Conselho Privado, para proteger os nossos interesses.

- Se eu pudesse ter a certeza de que o meu filho está em segurança.

- Se Ricardo fizesse tenções de o matar, tê-lo-ia feito em Stony

Stratford, quando prenderam António e não havia ninguém que o

protegesse, e nenhuma testemunha, para além de Buckingham - diz Leonel,

Page 242: Philippa gregory - a rainha branca

sem rodeios. - Mas não o fez. Em vez disso, ajoelhou-se, prestou-lhe

juramento de lealdade e trouxe-o para Londres com todas as honras. Fomos

nós que criámos a desconfiança. Lamento, minha irmã; fostes vós. Nunca

discuti convosco em toda a minha vida, sabei-lo. Mas, desta vez, estais

enganada.

- Oh, é fácil para vós dizê-lo - digo irritada. - Eu tenho sete filhos

para proteger e um país para governar.

- Então, governai-o - diz ele. - Ocupai os vossos aposentos na Torre e

assisti à coroação do vosso filho. Sentai-vos no vosso trono e dai ordens ao

duque, que não é mais do que vosso cunhado e o guardião do vosso filho.

Fico a remoer o assunto. Talvez Leonel tenha razão e eu devesse

estar no centro dos preparativos para a coroação, a conquistar homens para

o lado do novo rei, prometendo-lhes favores e honrarias na corte dele. Se

sair do refúgio neste momento, com os meus belos filhos, e reconstruir a

minha corte, poderei governar a Inglaterra através dele. Deveria estar a

reclamar o nosso lugar e não estar escondida, cheia de medo. Penso: sou

capaz de o fazer. Não preciso de entrar em guerra para reconquistar o meu

trono. Posso fazê-lo como rainha reinante, uma rainha amada. As pessoas

estão do meu lado; consigo cativá-las. Talvez devesse abandonar este

refúgio pelo sol de Verão e ocupar o meu lugar.

314

Ouve-se uma ligeira pancada na porta e uma voz de homem diz:

“Confessor para a rainha viúva.”

Abro a grelha. Está ali um padre dominicano, com o capuz puxado

para cima, escondendo-lhe o rosto.

- Mandaram-me vir ter convosco para ouvir a vossa confissão - diz

ele.

- Entrai, padre - digo eu, abrindo a porta para ele passar. Ele entra

rapidamente e as suas sandálias não fazem qualquer ruído sobre as lajes do

chão. Ele inclina-se e espera que a porta se feche atrás de si.

- Venho da parte do Bispo Morton - diz ele em voz baixa.

- Se alguém vos perguntar, vim para vos oferecer a hipótese de vos

confessardes e vós haveis-me falado de um pecado de tristeza e de

excessiva dor, e eu consolei-vos do desespero. Concordais?

- Sim, padre - digo eu.

Ele passa-me uma tira de papel.

- Esperarei dez minutos e depois partirei - diz ele. - Não estou

autorizado a levar qualquer resposta.

Dirige-se ao banco que está junto da porta e senta-se, à espera que o

tempo passe. Levo o bilhete para junto da janela, para ter mais luz, e,

enquanto o rio vai gorgolejando por baixo da janela, leio-o. Está selado

Page 243: Philippa gregory - a rainha branca

com o sinete dos Beaufort. Vem de Margarida Stanley, a minha antiga

dama de companhia. Apesar de ter sido nada e criada como uma Lencastre,

e de ser a mãe do herdeiro deles, ela e o marido, Tomás Stanley, têm-nos

sido leais nos últimos onze anos. Talvez ela continue leal. Pode ser que ela

tome o meu partido contra o Duque Ricardo. Os seus interesses dependem

de mim. Ela contava que Eduardo perdoasse ao seu filho o seu sangue

Lencastre e o deixasse voltar para casa, terminando o seu exílio na

Bretanha. Falou comigo sobre o amor de uma mãe pelo seu filho e de como

seria capaz de dar tudo para o ter junto de si. Eu prometi-lhe que iria

acontecer. Ela não tem motivos para gostar do Duque Ricardo. É possível

que pense que tem mais hipóteses de trazer o filho para casa se continuar a

ser minha amiga e apoiar o meu regresso ao poder.

Mas ela não escreveu nada sobre uma possível conspiração, nem

palavras de apoio. Limitou-se a escrever algumas linhas:

315

Ana Neville não está a viajar para Londres, para a coroação. Não

pediu cavalos nem guardas para a viagem. Não lhe fizeram provas para

vestidos novos, para a coroação. Achei que gostaríeis de o saber. M. S.

Seguro a carta na mão. Ana não é muito saudável e o seu filho é

fraco. É capaz de preferir ficar em casa. Mas Margarida, Lady Stanley, não

se deu a todo este trabalho e perigo para me dizer isto. Ela quer que eu

saiba que Ana Neville não está a deslocar-se a toda a pressa para Londres,

para a grandiosa coroação, porque não tem qualquer necessidade de se

apressar. Se ela não vem, será por ordem do marido, Ricardo. Ele sabe que

não vai haver nada a que assistir. Se Ricardo não mandou vir a mulher para

Londres a tempo para a coroação, o acontecimento mais importante do

novo reinado, então é porque ele sabe que não vai haver coroação

nenhuma.

Olho lá para fora, para o rio, durante muito tempo, a pensar no que

isto vai significar para mim e para os meus preciosos filhos reais. Depois,

aproximo-me do frade e ajoelho-me diante dele.

- Abençoai-me, Padre - digo eu, e sinto a sua mão pousar

gentilmente na minha cabeça.

A criada que vai todos os dias à rua para comprar o pão e a carne

volta para casa muito pálida e vai falar com a minha filha Isabel. A minha

filha vem ter comigo.

- Senhora minha Mãe, senhora minha Mãe, posso falar convosco?

Eu estou à janela, a olhar para a água, como se à espera de que

Melusina se erga daquela corrente preguiçosa de Verão para me aconselhar.

- Claro, minha querida. O que se passa?

Page 244: Philippa gregory - a rainha branca

Algo na sua crispada urgência me põe de sobreaviso.

- Não compreendo o que se está a passar, Mãe, mas a Jemma voltou

do mercado e diz que corre por aí uma história sobre uma disputa dentro do

Conselho Privado, uma prisão.

316

Uma luta, no Conselho Privado! E que Sir Guilherme... - cala-se,

sem fôlego.

- Sir Guilherme Hastings? - nomeio o mais querido amigo de

Eduardo, o defensor jurado do meu filho, o meu recém-descoberto aliado.

- Sim, ele. Mãe, estão a dizer no mercado que ele foi decapitado.

Agarro-me ao parapeito de pedra, enquanto a sala começa a rodar.

- Ele não pode... Ela deve ter entendido mal.

- Ela diz que o Duque Ricardo descobriu uma conspiração

contra ele e mandou prender dois homens importantes e decapitar Sir

Guilherme.

- Ela deve estar enganada. Ele é um dos homens mais

importantes da Inglaterra. Não pode ser decapitado sem julgamento.

- Mas ela diz que sim - diz num murmúrio. - Diz que o levaram lá

para fora e que lhe cortaram a cabeça em cima de um pedaço de madeira,

no Relvado da Torre (2), sem aviso, sem julgamento e sem acusação.

Nota 2:

Tower Green no original, zona da Torre de Londres onde se

procedia às execuções

públicas. (N. da T.)

Os meus joelhos cedem e ela tem de me agarrar, quando estou para

cair. A sala escurece completamente e depois volto a vê-la, o toucado

descaído para um lado e o cabelo a cair de lá de dentro, a minha linda filha

que olha para mim a sussurrar:

- Senhora minha Mãe, mamã, falai comigo. Estais bem?

- Sim, estou bem - digo eu. Sinto a garganta seca, e apercebo-me de

que estou deitada no chão e que o braço dela me está a segurar. - Estou

bem... meu amor. Mas pareceu-me que vos ouvi dizer... Penso que haveis

dito... Penso que haveis dito que Sir Guilherme Hastings tinha sido

decapitado?

- É o que Jemma diz, Mãe. Mas eu nem sabia que ele era vosso

amigo.

Sento-me, com a cabeça a doer.

- Filha, já não se trata de gostar ou não. Este senhor é o maior

defensor do vosso irmão, o seu único apoiante que me

Page 245: Philippa gregory - a rainha branca

317

contactou. Ele não gosta de mim, mas seria capaz de dar a própria

vida para colocar o vosso irmão no trono e manter a promessa que fez ao

vosso pai. Se ele morreu, perdemos o nosso maior aliado.

Ela abana a cabeça, não querendo acreditar.

- Será que ele fez algo de muito errado? Algo que tenha ofendido o

lorde protector?

Ouve-se uma leve batida na porta e todos ficamos paralisados. Uma

voz diz em francês: “C’est moi.”

- É uma mulher, abri a porta - digo eu. Por segundos, tive a certeza

de que seria o carrasco de Ricardo, que agora nos vinha buscar, o sangue de

Hastings ainda a pingar da lâmina do seu machado. Isabel corre a abrir a

porta da lanterna, no grande portão de madeira, e a prostituta Isabel Shore

esgueira-se cá para dentro, um capuz a cobrir-lhe o cabelo loiro, uma capa

bem embrulhada em volta do seu rico vestido de brocado. Faz-me uma

prolongada vénia, enquanto ainda me encontro caída no chão.

- Vejo que já sabeis - diz em poucas palavras.

- Hastings não morreu?

Os olhos enchem-se-lhe de lágrimas, mas vai direita ao assunto.

- Morreu, sim. Foi por isso que vim aqui. Foi acusado de traição

contra o Duque Ricardo.

A minha filha Isabel deixa-se cair de joelhos a meu lado e toma a

minha mão gelada nas suas.

- O Duque Ricardo acusou Sir Guilherme de conspirar a sua morte.

Disse que Guilherme tinha ido à procura de uma bruxa que agisse contra

ele. O duque diz que sente falta de ar, está a ficar doente e a perder as

forças. Diz que perdeu a força no braço com que segura a espada e despiu a

manga na câmara do conselho, mostrando-o a Sir Guilherme, desde o pulso

até ao ombro, dizendo que ele poderia certamente reparar que o braço

estava a definhar. Disse que tinha sido enfeitiçado pelos seus inimigos.

Os meus olhos fixam-se no seu rosto pálido. Nem sequer olho de

lado para a lareira, onde a torcida de pano vindo do guardanapo do duque

ardeu, depois de eu a ter amarrado em volta do meu braço e de o ter

amaldiçoado, para lhe retirar a

318

respiração e a força, para lhe tornar o braço da espada fraco como o

de um corcunda.

- Quem é que ele acusa de feitiçaria?

- Vós - diz ela. Sinto que Isabel estremece.

Page 246: Philippa gregory - a rainha branca

E depois acrescenta.

- E a mim.

- Nós as duas, a agir em conluio?

- Sim - diz ela. - Foi por isso que vim avisar-vos. Se ele conseguir

provar que sois uma bruxa, será que pode invadir o vosso refúgio e levar-

vos, bem como os vossos filhos, daqui para fora?

Aceno que sim. Pode.

E, em todo o caso, recordo a batalha de Tewkesbury, em que o meu

próprio marido entrou numa igreja, sem razão ou explicação, arrastou

homens feridos para fora da abadia e os massacrou no cemitério, voltando

depois a entrar na abadia para matar mais alguns nos degraus do altar.

Tiveram de esfregar o chão do coro para o limpar do sangue; tiveram de

voltar a santificar todo o local, tal era o cheiro a morte.

- Pode - digo eu. - Já se fizeram coisas bem piores, noutros tempos.

- Tenho de ir - diz ela, atemorizada. - Ele pode andar a vigiar-me.

Guilherme teria gostado que eu fizesse os possíveis para manter os vossos

filhos em segurança, mas não posso fazer mais. Devo dizer-vos que Lorde

Stanley fez o que podia para poupar Guilherme. Avisou-o de que o duque

iria agir contra ele. Teve um sonho, no qual ambos eram degolados por um

javali com as presas cobertas de sangue. Avisou Guilherme. Só que

Guilherme não acreditou que fosse assim tão depressa... - as lágrimas

correm-lhe agora pelo rosto e tem a voz entrecortada. - É tão injusto -

balbucia ela. - E contra um homem tão bom. Mandar os soldados levá-lo à

força para fora do Conselho! Mandar cortar-lhe a cabeça, sem sequer ter

um padre presente! Sem lhe dar tempo para rezar!

- Ele era um homem bom - reconheço.

- Agora que ele morreu haveis perdido um protector. Estais todos a

correr grave perigo - afirma ela. - Como eu estou.

Volta a cobrir o cabelo com o capuz e dirige-se para a porta.

319

- Desejo que tudo vos corra bem - diz ela. - E aos filhos de Eduardo.

Se puder fazer alguma coisa por vós, fá-lo-ei. Mas, entretanto, não devo ser

vista a vir ter convosco. Não me atrevo a voltar mais nenhuma vez.

- Esperai! - digo eu. - Haveis dito que Lorde Stanley se mantém fiel

ao jovem Rei Eduardo?

- Stanley, o Bispo Morton e o Arcebispo Rotherham foram todos

presos por ordem do duque, suspeitos de trabalharem para vós e para os

vossos. Ricardo está convencido de que eles têm andado a conspirar contra

ele. Os únicos homens do conselho que estão livres, neste momento, são

aqueles que fizerem o que o duque lhes ordenar.

- Mas ele enlouqueceu? - pergunto incrédula. - Ricardo ficou doido?

Page 247: Philippa gregory - a rainha branca

Ela abana a cabeça.

- Penso que ele decidiu reclamar o trono - diz simplesmente. -

Recordais-vos de como o rei costumava dizer que Ricardo fazia sempre o

que havia prometido? Que, se Ricardo jurasse que faria qualquer coisa,

fazia-o, custasse o que custasse?

Não me agrada ouvir esta mulher citar o meu marido, mas tenho de

concordar.

- Creio que Ricardo tomou a sua decisão, penso que o prometeu a si

próprio. Creio que chegou à conclusão de que a melhor coisa para ele, e

para a Inglaterra, é ter um rei jovem e forte, não um rapazinho de doze

anos. E, agora que já se convenceu, irá fazer o que for preciso para chegar

ao trono. Custe o que custar.

Abre uma nesga da porta e espreita lá para fora. Pega no cesto, para

parecer que nos veio entregar mercadorias. Volta a espreitar para mim, do

outro lado da porta.

- O rei dizia sempre que nada fazia parar Ricardo quando um plano

se lhe metia na cabeça - diz ela. - Se desta vez nada o fizer parar, vós não

estareis em segurança. Espero que consigais garantir a vossa segurança,

vossa Graça, vossa e dos vossos filhos... vossa e dos filhos de Eduardo.

Baixa-se numa pequena vénia e murmura:

- Que Deus vos abençoe, por ele - a porta fecha-se atrás dela e ela

vai-se embora.

320

Não hesito. É como se o ruído surdo do machado que atravessou o

pescoço de Hastings, no Relvado da Torre, fosse uma trombeta que assinala

o início de uma corrida. Mas esta corrida destina-se a levar o meu filho

para lugar seguro, longe da ameaça do tio, que segue agora pelos caminhos

da morte. Já não tenho qualquer dúvida de que o Duque Ricardo vai matar

os meus dois filhos para desimpedir o seu caminho para o trono. Eu

também não daria um cêntimo pela vida do filho de Jorge, seja lá onde for

que esteja a viver. Eu vi Ricardo entrar no quarto do Rei Henrique, que

estava a dormir, para assassinar um homem indefeso, porque o seu direito

ao trono era tão válido quanto o de Eduardo. No meu espírito não existem

dúvidas de que Ricardo irá seguir a mesma lógica que conduziu os três

irmãos naquela noite. Um rei sagrado e ordenado estava no caminho entre

os da sua linhagem e o trono

- e mataram-no. Agora, é o meu filho que está no caminho de

Ricardo para o trono. Vai matá-lo, se puder, e pode acontecer que eu não

seja capaz de o impedir. Mas juro que ele não irá apanhar o meu filho mais

novo, Ricardo.

Page 248: Philippa gregory - a rainha branca

Eu preparei-o para este momento, mas, quando lhe digo que tem de

partir imediatamente, nessa noite, fica assustado por tudo ter de ser assim

tão rápido. A cor desaparece-lhe das faces, mas a sua enorme bravura

juvenil faz com que erga a cabeça e morda o pequenino lábio, para não

chorar. Só tem nove anos, mas foi educado para ser um príncipe da Casa de

Iorque. Ensinaram-lhe a mostrar coragem. Beijo-o no alto da sua cabecinha

loira e peço-lhe que seja um bom menino, recordo-lhe tudo o que lhe foi

dito que fizesse e, quando começa a escurecer, levo-o ao longo da cripta,

descemos as escadas, cada vez mais para o fundo, até às catacumbas que

ficam por baixo do edifício; ali, temos de passar pelos caixões de pedra e as

salas em arco onde se encontram as câmaras funerárias, alumiando o

caminho com uma lanterna à nossa frente e outra, que ele segura na

pequena mão. A luz não vacila. Ele não treme, mesmo quando passamos

pelos sombrios túmulos. Caminha muito direito, a meu lado, de cabeça

erguida.

321

O caminho leva-nos até ao exterior, através de um portão de ferro

secreto, e, para lá dele, há um pontão de pedra que se estende ao longo do

rio e ao qual está encostado um barco a remos que baloiça silenciosamente

nas águas. É um pequeno bote que se aluga para atravessar o rio, um de

centenas deles. Eu tinha esperança de o poder mandar partir num barco de

guerra comandado pelo meu irmão Eduardo, com homens armados que

tivessem jurado protegê-lo; mas só Deus sabe onde Eduardo se encontra,

nessa noite, a tripulação virou-se contra nós e só navegará às ordens de

Ricardo, o Duque. Não tenho navios de guerra sob o meu comando.

Teremos de resolver o assunto com este. O meu filho vai ter de partir sem

outra protecção para além da dada por dois fiéis servidores e a bênção da

sua mãe. Um dos amigos de Eduardo, Sir Eduardo Brampton, que o

adorava, está à sua espera, em Greenwich. Pelo menos, é o que espero. Não

tenho meios de o saber. Não tenho certeza de nada.

Os dois homens esperam silenciosamente dentro do barco,

mantendo-o seguro contra a corrente por meio de uma corda amarrada

numa argola presa aos degraus de pedra; empurro o meu filho na direcção

dos homens e eles pegam nele e colocam-no a bordo, fazendo-o sentar-se à

popa. Não há tempo para despedidas e, de qualquer forma, não há nada que

eu possa dizer, apenas uma prece pela sua segurança, que me fica

atravessada na garganta, como se tivesse engolido um punhal. O barco

afasta-se para o largo e eu levanto a mão para lhe acenar e vejo a sua

carinha pálida, escondida por baixo de um grande chapéu, olhar para trás,

para mim.

Page 249: Philippa gregory - a rainha branca

Fecho o portão de ferro à chave e regresso pelas escadas de pedra,

sem fazer ruído, através das silenciosas catacumbas, e vou espreitar da

minha janela. O seu barco já se está a afastar, no meio do tráfego do rio, os

dois homens nos remos, o meu filho sentado à popa. Não há qualquer

motivo para alguém os fazer parar. Há dúzias de barcos como aquele,

centenas de barcos que atravessam o rio em várias direcções, cuidando dos

seus assuntos, dois homens que estão a trabalhar, e que cumprem a sua

tarefa, acompanhados por um rapazinho. Abro a janela de par em par, mas

não chamo por ele. Não

322

quero que olhe para trás. Só espero que me possa ver se levantar os

olhos. Quero que compreenda que não o deixei partir facilmente, que fiquei

a olhar para ele até ao fim, até ao derradeiro momento. Quero que me veja

olhar para ele no meio da bruma e que saiba que irei procurá-lo até ao fim

da minha vida, até à hora da minha morte, que irei à sua procura mesmo

depois da morte, e que o rio murmurará o seu nome.

Ele não ergue os olhos. Faz o que lhe mandaram. É um bom

rapazinho, corajoso. Não se esquece de manter a cabeça baixa e o capuz

puxado para a frente, para esconder o cabelo loiro. Tem de se lembrar que

deve responder pelo nome de Pedro e não esperar que o sirvam com um

joelho pousado no chão. Terá de se esquecer das festas e dos passeios reais,

dos leões da Torre e do bobo da corte, a fazer piruetas para o divertir. Terá

de se esquecer das multidões que gritavam o seu nome e das bonitas irmãs

que brincavam com ele e lhe ensinavam francês e latim, e até um pouco de

alemão. Terá de esquecer o irmão que adorava e que nasceu para ser rei.

Terá de ser como um passarinho, uma andorinha, que, no Inverno, voa por

baixo das águas dos rios e ali fica, congelada na quietude e no meio do

silêncio, e que não volta a voar até chegar de novo a Primavera para

desbloquear as águas e deixá-las correr. Ele tem de ficar como uma querida

e pequena andorinha, preso no rio, à guarda da sua antepassada Melusina.

Tem de confiar no rio, para se manter escondido e a salvo, porque eu já não

o posso fazer.

Observo o barco da minha janela e, a princípio, ainda consigo vê-lo

na popa, enquanto o pequeno bote desliza num movimento constante,

quando o barqueiro puxa os remos. Depois a corrente apanha-o e começam

a deslizar mais depressa e surgem outros barcos, barcaças, barcos de pesca,

barcos comerciais, cargueiros, botes, até um par de enormes jangadas de

toros de madeira, e já não consigo ver o meu filho; ele foi levado pelo rio e

tenho de o confiar a Melusina e à água, fiquei sem ele, abandonada sem o

meu último filho, desamparada na margem do rio.

Page 250: Philippa gregory - a rainha branca

323

O meu filho adulto, Tomás Grey, também parte nessa noite. Escapa-

se pela porta, vestido de lacaio, desaparecendo nas vielas de Londres.

Precisamos de ter alguém lá fora que saiba as notícias e que consiga juntar

forças. Há centenas de homens que nos são leais e milhares deles que

seriam capazes de lutar contra o duque. Mas têm de ser reunidos e

organizados, e é Tomás quem tem de o fazer. Não resta mais ninguém que

o faça. Ele tem vinte e sete anos. Sei que estou a enviá-lo para o perigo,

talvez até para a morte.

- Ide com Deus - digo-lhe. Ele ajoelha-se na minha frente e eu pouso

a mão sobre a sua cabeça, numa bênção. - Para onde ireis?

- Para o lugar mais seguro de Londres - diz ele com um sorriso

matreiro. - Um lugar que adorava o vosso marido e que nunca perdoará ao

Duque Ricardo por o ter traído. O único negócio honesto de Londres.

- A que lugar vos referis?

- O prostíbulo - diz ele com um sorriso.

Depois volta-se, no meio da escuridão, e desaparece.

Na manhã seguinte, bem cedo, Isabel traz-me o pequeno pajem. Ele

trabalhava para nós, em Windsor, e concordou em voltar a fazê-lo. Isabel

trá-lo pela mão, pois é uma rapariga bondosa, mas ele cheira a estábulo, já

que é lá que tem dormido.

- Ireis passar a responder pelo nome de Ricardo, Duque de Iorque -

digo-lhe. - As pessoas chamar-vos-ão meu senhor e majestade. Não

podereis corrigi-las. Não direis uma palavra que seja. Limitai-vos a acenar

com a cabeça.

- Sim, senhora - murmura ele.

- E deveis chamar-me senhora Mãe - digo eu.

- Sim, senhora.

- Sim, senhora Mãe.

- Sim, senhora Mãe - repete ele.

- E ides tomar um banho e vestir roupas lavadas.

O seu rostinho aterrorizado volta-se para mim imediatamente.

- Não! Não quero tomar banho! - protesta ele.

324

Isabel fica aflita.

- Toda a gente irá imediatamente perceber - diz ela.

- Bom, digam que ele está doente - digo eu. - Vamos dizer que está

constipado ou com a garganta inflamada. Vamos embrulhar-lhe o queixo

com um pano de flanela e passar-lhe um abafo por cima da boca. Dir-lhe-

emos que não fale. É apenas por alguns dias. Só para nos dar tempo.

Page 251: Philippa gregory - a rainha branca

Ela acena com a cabeça.

- Eu dou-lhe banho - diz ela.

- Dizei a Jemma que vos ajude - digo eu. - E a um dos homens que

terá provavelmente de o segurar dentro da água.

Ela consegue sorrir, mas os seus olhos estão cheios de sombras.

- Mãe, credes, de verdade, que o meu tio, o duque, seria capaz de

fazer mal ao seu próprio sobrinho?

- Não sei - digo eu. - E é por isso que mandei para longe o meu

querido filho real e a razão pela qual o meu filho Tomás Grey teve de sair

no meio da escuridão. Já não sei o que o duque será capaz de fazer.

A servente, Jemma, pede-me autorização para sair no domingo à

tarde, para ver a prostituta Shore cumprir a sua sentença.

- Para fazer o quê?

Ela faz uma vénia, de cabeça bem baixa, mas está tão desesperada

por ir que se arrisca a ofender-me.

- Peço perdão, minha senhora, Vossa Graça, mas ela vai ter de

caminhar pela cidade, de saiote, com uma candeia acesa, e toda a gente vai

vê-la. Tem de cumprir penitência pelo seu pecado, por ser uma prostituta.

Pensei que, se eu viesse todos os dias mais cedo, durante a próxima

semana, vós me poderíeis deixar...

- Isabel Shore?

O rosto dela ergue-se, como se movido por uma mola.

- A famosa prostituta - recita ela. - O lorde protector ordenou-lhe que

se penitenciasse em público pelos seus pecados da carne.

325

- Podeis ir ver - digo com rudeza. Mais um par de olhos, no meio da

multidão, não fará qualquer diferença. Imagino aquela jovem mulher que

Eduardo amava, que Hastings amava, a caminhar descalça, apenas vestida

com uma camisa interior, transportando uma candeia, tentando proteger

aquela chama tremeluzente para que não se apague, enquanto as pessoas

lhe lançam impropérios e lhe cospem. Eduardo não iria gostar de uma coisa

dessas e, por ele, se não fosse por ela, eu faria com que isso não

acontecesse se pudesse. Mas não há nada que eu possa fazer para a

proteger. O duque Ricardo tornou-se cruel e até mesmo uma mulher bonita

tem de sofrer por ser amada.

- Ela só está a ser castigada por ser bela - o meu irmão Leonel tem

estado na janela a ouvir o murmúrio de apreciação da multidão, enquanto

ela caminha pelas ruas da cidade.

- E porque agora Ricardo suspeita que ela está a esconder o vosso

irmão Tomás. Ele mandou inspeccionar a casa dela, mas não conseguiu

Page 252: Philippa gregory - a rainha branca

encontrar Tomás. Ela manteve-o em segurança, escondido dos homens de

Gloucester, e depois fez com que ele desaparecesse.

- Que Deus a abençoe por isso - digo eu.

Leonel sorri.

- Aparentemente, este castigo não está a correr lá muito bem para

Ricardo, de qualquer das formas. Ninguém a insulta pelo caminho - diz ele.

- Gritou-me um dos homens dos barcos quando eu estava à janela. Ele

conta que as mulheres só lhe dizem coitadinha, que pena, e os homens

limitam-se a admirá-la. Não é todos os dias que têm possibilidade de ver

uma mulher tão bonita apenas de combinação. Dizem que ela parece um

anjo despido, belo e caído em desgraça.

Sorrio.

- Bom, que Deus a abençoe na mesma, anjo ou prostituta.

O meu irmão bispo também sorri.

- Creio que os pecados dela eram pecados de amor, não de malícia -

diz ele. - E, nestes tempos difíceis, talvez seja aquilo que maior importância

tem.

326

17 DE JUNHO DE 1483

Enviam um parente meu, o Cardeal Tomás Bourchier, e meia dúzia

de lordes do Conselho Privado, para negociarem comigo, e eu recebo-os no

meu papel de rainha, carregada de diamantes desviados do tesouro real,

sentada num grande cadeirão que me serve de trono. Tenho um ar régio e

digno; na verdade, sinto-me capaz de matar alguém. Estes são os lordes do

meu Conselho Privado. Detêm as posições que o meu marido lhes ofereceu.

Fez deles aquilo que são hoje; e, agora, atrevem-se a vir dizer-me o que o

Duque Ricardo quer que eu faça. Isabel está de pé, por trás de mim, bem

como as minhas outras quatro filhas, todas em fila. Nenhum dos meus

filhos ou irmãos está presente. Eles não notam que o meu filho Tomás Grey

escapou do refúgio e anda à solta por Londres, e eu, obviamente, não

chamo a atenção deles para a sua ausência.

Dizem-me que proclamaram o Duque Ricardo protector do reino,

regente e governador do príncipe, e asseguram-me que estão a preparar a

coroação do meu filho, o Príncipe Eduardo. Querem que o meu filho mais

novo, Ricardo, se junte ao irmão, nos apartamentos reais da Torre.

- O Duque só será o protector durante alguns dias, apenas até à

coroação - explica-me Tomás Bourchier, com uma tal expressão de

honestidade que eu me sinto levada a acreditar. Este homem passou a sua

vida a tentar trazer paz ao seu país. Coroou Eduardo rei, e a mim rainha,

Page 253: Philippa gregory - a rainha branca

porque acreditava que nós iríamos trazer paz a este país. Eu sei que ele fala

do coração.

327

- Logo que o jovem rei seja coroado, todo o poder reverterá a ele, e

vós sois a rainha viúva e a mãe do rei - diz ele.

- Voltai para o vosso palácio, Vossa Graça, e assisti à coroação do

vosso filho. As pessoas estão intrigadas por não vos verem, e é uma

situação estranha para os embaixadores estrangeiros. Façamos o que todos

jurámos diante do rei, no seu leito de morte: colocar o vosso filho no trono

e trabalhar em conjunto, pondo as inimizades de lado. Permiti que a família

real fique alojada nos apartamentos reais da Torre, para que possam sair de

lá em pleno poder e beleza, para a coroação do rapaz.

Por momentos, fico persuadida. Mais do que isso, sinto-me tentada a

fazê-lo. É possível que tudo acabe em bem. Mas, nessa altura, penso no

meu irmão António e no meu filho Ricardo Grey, aprisionados juntos no

Castelo de Pontefract, e hesito. Tenho de parar para pensar. Tenho de lhes

garantir segurança. Enquanto eu estiver em refúgio, a minha segurança e a

do meu filho Ricardo equilibram a sua prisão, como os pesos de uma

balança. Eles foram feitos reféns para garantir o meu bom comportamento,

mas, ao mesmo tempo, o Duque Ricardo não se atreve a tocar-lhes, com

medo de me enfurecer. Se Ricardo pretender livrar-se dos Rivers, terá de

nos ter a todos em seu poder. Mantendo-me fora do seu alcance, protejo

aqueles de nós que estão em seu poder, bem como aqueles que estão livres.

Tenho de manter o meu irmão António a salvo dos seus inimigos. Tenho de

fazê-lo. Esta é a minha cruzada; como aquela que eu não o deixei

organizar. Tenho de o manter em segurança para que possa continuar a ser

uma luz para o mundo.

- Não vos posso entregar o Príncipe Ricardo - digo eu, a voz

enovelada de uma falsa pena. - Ele tem estado tão doente ultimamente que

não suporto que outra pessoa tome conta dele a não ser eu. Ele ainda não

está bem, ficou sem voz, e, se sofresse uma recaída, poderia ser pior do que

a sua doença inicial. Se quereis que ele e o seu irmão estejam juntos, então,

trazei Eduardo para aqui, junto de nós, onde posso cuidar de ambos e ter a

certeza de que não correm perigo. Estou ansiosa por ver o meu filho mais

velho, e do rei Eduardo, e assegurar-me de que está em segurança. Peço-

vos, mandai-o para junto

328

de mim, para um lugar seguro. Ele tanto pode ser coroado aqui como

na Torre.

Page 254: Philippa gregory - a rainha branca

- Por que razão, senhora? - diz Tomás Howard, entesando-se como o

arruaceiro que é. - Podeis nomear um motivo pelo qual eles possam correr

perigo?

Fico a olhar para ele por algum tempo. Será que pensa que me

consegue fazer cair na ratoeira de tornar pública a minha inimizade pelo

Duque Ricardo?

- O resto da minha família está no exílio, ou na prisão - digo

secamente. - Porque haveria eu de pensar que eu e os meus filhos nos

encontramos em segurança?

- Vamos lá, vamos lá - interrompe o cardeal, fazendo um gesto com a

cabeça na direcção de Howard, para o fazer calar.

- Qualquer pessoa que estiver presa será julgada perante uma corte

dos seus pares, como é de lei, e a verdade de qualquer acusação será

provada ou negada. Os lordes decidiram que nenhuma acusação por traição

poderá ser usada contra o vosso irmão António, o Conde Rivers. Deverá ser

suficiente para vós saber que viemos de boa fé. Conseguis imaginar que eu,

em pessoa, podia vir aqui de outra forma, a não ser de boa fé?

- Ah, meu senhor Cardeal - digo eu. - De vós não duvido.

- Então, confiai em mim, quando vos dou a minha palavra, a minha

palavra pessoal, de que, comigo, o vosso filho estará em segurança - diz

ele. - Levá-lo-ei para junto do irmão e nada de mal acontecerá aos dois.

Vós desconfiais do duque, e ele suspeita de vós... o que é uma lástima para

mim, mas ambos terão as suas razões... mas eu juro que nem o duque, nem

outra pessoa qualquer fará mal aos vossos filhos, que eles estarão em

segurança, juntos, e que Eduardo será coroado rei.

Dou um suspiro, como se tivesse ficado dominada pela sua lógica.

- E se eu recusar?

Ele aproxima-se mais e fala em voz baixa.

- Receio que ele irrompa pelo santuário e que vos leve, e a toda a

vossa família, daqui para fora - e continua, muito calmamente. - E todos os

lordes pensam que ele faria bem se o fizesse. Ninguém defende o vosso

direito de estardes aqui,

329

Vossa Graça. Isto, em volta de vós, é uma concha, não é um castelo.

Deixai sair o pequeno Príncipe Ricardo e eles permitirão que continueis

aqui se for esse o vosso desejo. Se o mantiverdes aqui, todos serão

retirados, como sanguessugas de um frasco de vidro. Ou poderão destruir o

frasco.

Isabel, que tinha estado a olhar lá para fora da janela, inclina-se para

a frente e sussurra:

Page 255: Philippa gregory - a rainha branca

- Senhora minha Mãe, há centenas de barcaças do Duque Ricardo no

rio. Estamos cercados.

Por instantes, não reparo no rosto preocupado do cardeal. Não noto a

expressão dura de Tomás Howard. Não reparo na meia dúzia de homens

que vieram com ele. Só vejo o meu marido violar o santuário, em

Tewkesbury, de espada em riste, e percebo que, desde esse momento, estar

em santuário deixou de ser seguro. Naquele dia, Eduardo destruiu a

segurança do seu próprio filho - e nunca chegou a percebê-lo. Mas agora eu

sei. E dou graças a Deus por me ter preparado para aquele momento.

Levo o meu lenço aos olhos.

- Perdoai as fraquezas de uma mulher - digo eu. - Não suporto ter de

me separar dele. Será que isso não se pode evitar?

O cardeal dá-me uma palmadinha na mão.

- Ele tem de vir connosco. Lamento.

Viro-me para Isabel e digo-lhe baixinho:

- Ide buscá-lo, trazei o meu menino.

Isabel vai em silêncio, de cabeça baixa.

- Ele não tem andado nada bem - digo ao cardeal. - Tendes de o

manter bem agasalhado, para não apanhar frio.

- Confiai em mim - diz ele. - Nada de mal lhe acontecerá, enquanto

estiver à minha guarda.

Isabel regressa com o pequeno pajem. Está vestido com as roupas do

meu filho Ricardo, com um cachecol enrolado em volta do pescoço,

escondendo a parte inferior do seu rosto. Quando o aperto contra mim, até

tem o mesmo cheiro do meu filho. Beijo-lhe o cabelo loiro. A sua

constituição física de rapazinho parece frágil, nos meus braços, mas ele

comporta-se com bravura, como é próprio de um príncipe. Isabel ensinou-o

bem.

330

- Ide com Deus, meu filho - digo-lhe. - Encontrar-me-ei de novo

convosco, daqui a alguns dias, na coroação do vosso irmão.

- Sim, Senhora minha Mãe - responde ele, como um pequeno

papagaio. A sua voz é pouco mais do que um sussurro, mas audível para

todos.

Pego-lhe na mão e conduzo-o até ao cardeal. Ele já tinha visto

Ricardo, na corte, à distância, e este rapazinho está camuflado debaixo de

um chapéu coberto de jóias e daquele cachecol que lhe tapa o pescoço e o

queixo.

- Aqui está o meu filho - digo com a voz a tremer de emoção. -

Entrego-o nas vossas mãos. Coloco-o, juntamente com o irmão, à vossa

guarda, neste momento.

Page 256: Philippa gregory - a rainha branca

Volto-me para o menino e digo-lhe:

- Adeus, meu querido filho, que o Senhor vos proteja.

Ele vira o seu rostinho para mim, todo embrulhado naquele

cachecol, e, por um segundo, sinto uma onda de verdadeira emoção e

beijo-lhe o rosto afogueado. Posso estar a colocar aquela criança em risco

de vida, na vez do meu próprio filho, mas ele ainda é uma criança, e

continua a haver perigo. Há lágrimas nos meus olhos quando coloco a sua

mãozinha na enorme mão macia do Cardeal Bourchier, e digo-lhe por cima

da cabecita dele:

- Tomai bem conta deste rapazinho, o meu filho, por favor, meu

senhor. Guardai-o em segurança.

Esperamos até que eles levem o menino e saiam da sala, em fila.

Depois de terem partido, o cheiro das suas roupas permanece. É o cheiro do

ar livre, a suor de cavalo, a carnes cozinhadas, de uma fresca brisa que

revolve a erva recém-cortada.

Isabel vira-se para mim com o rosto pálido.

- Haveis enviado o pequeno pajem, porque achais que não é seguro,

para o nosso menino, ir para a Torre - observa ela.

- Sim - digo eu.

- Portanto, também deveis pensar que o nosso Eduardo não se

encontra em segurança na Torre.

- Não sei. Mas sim, é esse o meu receio.

Ela dá um abrupto passo em direcção à janela e, por momentos, faz-

me lembrar a minha mãe, a avó dela. Tem a mesma determinação - consigo

perceber que tenta encontrar

331

a melhor solução. Pela primeira vez, percebo que Isabel se irá

transformar numa mulher com quem se pode contar. Já deixou de ser uma

menina.

- Penso que devíeis mandar um recado ao meu tio e propor-lhe um

acordo - diz ela. - Podíeis dizer-lhe que lhe deixamos o trono se ele nomear

Eduardo como seu sucessor.

Sacudo a cabeça.

- Podeis fazê-lo - insiste ela. - Ele é tio de Eduardo, um homem de

palavra. Deve estar a desejar encontrar uma saída para este caso, tanto

quanto nós.

- Eu não vou desistir do trono de Eduardo - digo secamente. - Se o

Duque Ricardo o quiser, vai ter de o tomar e envergonhar-se a si mesmo.

- E se ele fizer isso mesmo? - pergunta-me ela. - O que vai acontecer

a Eduardo nesse caso? O que acontece às minhas irmãs? E a mim?

Page 257: Philippa gregory - a rainha branca

- Não sei - digo cautelosamente. - Talvez tenhamos de lutar;

poderemos ter de discutir. Mas não desistiremos. Não nos vamos render.

- E aquele rapazinho? - diz ela acenando em direcção à porta por

onde o pequeno pajem saiu, com o queixo enrolado num pano, para não

poder falar. - Tirámo-lo ao seu pai, demos-lhe banho e vestimo-lo, dizendo-

lhe que não falasse, apenas para o enviar para a morte? É assim que vamos

travar esta guerra, usando uma criança como escudo? Enviando um

rapazinho para uma morte certa?

332

DOMINGO, 25 DE JUNHO DE 1483: DIA DA COROAÇÃO

- O quê? - exclamo para o calmo céu da madrugada, como uma gata

raivosa a quem tiraram os filhos, para os afogar. - Não há barcas reais? Não

há troar de canhões na Torre? Não há vinho a correr nas fontes da cidade?

Não se ouve o rufar de tambores, nem a voz dos aprendizes a cantarem bem

alto as canções das suas guildas? Não há música? Não se ouvem vivas?

Não há ovações ao longo do percurso da coroação? - abro de par em par a

janela que dá para o rio e apenas vejo o tráfego normal de barcas e botes,

de barcos a remos, e digo para a minha mãe e para Melusina:

- Obviamente, não vão coroá-lo hoje. Será que vai ser morto, em vez

disso? - penso no meu filho, como se estivesse a pintar o seu retrato. Na

linha direita do seu pequeno nariz, ainda redondinho na ponta, como o de

um bebé, nas suas faces rechonchudas e na límpida inocência dos seus

olhos. Recordo a curva da sua cabeça, que cabia na palma da minha mão,

quando o acariciava, e na bela linha da sua nuca, quando estava inclinado

sobre os livros, a estudar. Era um rapazinho valente, um menino que tinha

sido treinado pelo seu tio António e sabia saltar para a sela e cavalgar numa

justa. António dizia que ele não seria medroso se aprendesse a enfrentar o

medo. E era um rapazinho que adorava viver no campo. Adorava o Castelo

de Ludlow, porque podia cavalgar pelas montanhas e ver os falcões-

peregrinos pairarem lá no alto, por cima dos penedos, e podia nadar na fria

água do rio. António dizia que ele tinha a noção da paisagem; algo raro

333

nos jovens. Era um rapazinho com o futuro mais promissor. Nasceu

em tempo de guerra para ser uma criança de paz. E tê-lo-ia sido, não

duvido, um grande rei Plantageneta, e o seu pai e eu teríamos tido muito

orgulho nele.

Estou a falar dele como se já estivesse morto, restam-me poucas

dúvidas, pois, já que não vai ser coroado hoje, será assassinado em segredo,

Page 258: Philippa gregory - a rainha branca

exactamente como Guilherme Hastings, que foi arrastado para fora do

palácio e decapitado no Relvado da Torre, em cima de um tronco de

madeira, o carrasco a limpar apressadamente as mãos, porque estava a

tomar o pequeno-almoço. Santo Deus, quando penso na nuca do meu

menino e imagino o machado do carrasco, sinto-me tão mal que quase

morro.

Não fico à janela a ver o rio correr, indiferente, como se o meu filho

não corresse perigo de vida. Visto-me e prendo o cabelo e vagueio pelo

nosso santuário como uma das leoas da Torre. Tento animar-me,

conspirando: nós não estamos completamente sem amigos, ainda não perdi

toda a esperança. O meu filho Tomás Grey deve estar activo, eu sei,

encontrando-se em segredo, em lugares secretos, com aqueles que

poderemos convencer a apoiar-nos, e deve haver muitos no país, também

em Londres, que começam a duvidar do que o duque quer dizer

exactamente com protectorado. Margarida Stanley está nitidamente a

colaborar connosco; o seu marido, Lorde Tomás Stanley, avisou Hastings.

A minha cunhada, a duquesa Margarida de Iorque, deve estar a trabalhar

para nós na Borgonha. Até os Franceses serão capazes de se interessar pelo

perigo que corro, quanto mais não seja para criarem problemas a Ricardo.

Existe uma casa segura, na Flandres, onde uma família, bem paga, está a

receber um rapazinho e a ensiná-lo a passar despercebido entre a população

de Tournai. O Duque pode ter as cartas melhores por agora, mas há tantas

pessoas que irão odiá-lo como as que odeiam os Rivers, e muitos irão

pensar em mim com carinho, agora que estou em perigo. Acima de tudo, há

homens que vão querer ver o filho de Eduardo no trono, e não o seu irmão.

Ouço o ruído de passos apressados e viro o rosto, à espera de um

novo perigo, quando a minha filha Cecília aparece a

334

correr pela cripta e abre com força a porta da minha câmara. Está

branca de medo.

- Há ali qualquer coisa, à porta - diz ela. - Uma coisa horrorosa, à

porta.

- O que é que está à porta? - pergunto. Obviamente, penso logo no

carrasco.

- Uma coisa alta como um homem, mas que parece a Morte.

Ponho um lenço sobre a cabeça, corro para a porta e faço deslizar a

grelha. A própria Morte parece estar ali à minha espera. Ele traz um oleado

negro, um chapéu alto na cabeça e tem um nariz branco e comprido,

parecido com um tubo e que quase lhe cobre todo o rosto. É um médico,

com a sua comprida máscara para tapar o nariz, cheia de plantas

Page 259: Philippa gregory - a rainha branca

medicinais, para se proteger dos ares empestados. Olha-me através das

brilhantes fendas dos seus olhos e eu sinto um estremeção.

- Não há aqui ninguém com a peste - digo-lhe.

- Sou o doutor Lewis de Caerleon, o médico de Lady Margarida

Beaufort - diz ele, a sua voz a ecoar de forma estranha dentro do cone. - Ela

disse-me que estáveis a sofrer de uma doença de mulher e que precisáveis

de um médico.

Abro a porta.

- Entrai, não me sinto muito bem - digo eu. Mas, mal ele acaba de

entrar e a porta se fecha para o mundo exterior, ponho-o à prova. - Estou

perfeitamente bem. Porque estais aqui?

- Lady Beaufort... Lady Stanley, devo dizer... também se encontra

bem, que Deus seja louvado por isso. Mas precisava de encontrar um meio

para poder falar convosco e eu sou parente dela e sou-vos leal, Vossa

Graça.

Assinto com a cabeça.

- Retirai a vossa máscara.

Ele retira o cone do nariz e empurra o capuz para trás. É um homem

baixo com um rosto risonho e honesto. Faz-me uma profunda vénia.

- Ela precisa de saber se haveis pensado num plano para salvar os

dois príncipes da Torre. Quer que saibais que, tanto ela como o seu marido,

Lorde Stanley, estão às vossas ordens

335

e que o Duque de Buckingham já está cheio de dúvidas, sem saber

até onde a ambição do Duque Ricardo o poderá levar. Ela crê que o jovem

duque está prestes a mudar de ideias.

- Buckingham fez de tudo para colocar o duque na posição em que se

encontra agora - digo eu. - Por que razão iria agora mudar de ideias,

precisamente neste dia de vitória para ambos?

- Lady Margarida acredita que o Duque de Buckingham poderá ser

persuadido - ele inclina-se para a frente, para me falar ao ouvido. - Ela acha

que ele está a começar a ter dúvidas em relação ao seu chefe. Pensa que ele

se poderia interessar por outras recompensas, mais importantes do que

aquelas que o Duque Ricardo lhe pode oferecer; para além do mais, trata-se

de um homem jovem, ainda não tem trinta anos, e é fácil de manobrar. Ele

está com receio de que o duque esteja a planear ocupar o trono; está

receoso pela segurança dos vossos filhos. Vós sois sua cunhada, também

são seus sobrinhos. Está preocupado com o futuro dos príncipes, seus

jovens parentes. Lady Margarida pede-me que vos diga que pensa que os

criados da Torre se deixarão subornar e quer saber em que vos pode ser

Page 260: Philippa gregory - a rainha branca

útil, nos planos que tiverdes para devolver os Príncipes Eduardo e Ricardo

à liberdade...

- Não é Ricardo... - começo a dizer, quando, tal qual um fantasma,

entrando pela porta que dá para o rio, vejo Isabel subir as escadas, a bainha

do vestido completamente encharcada.

- Isabel! Por amor de Deus, o que estais a fazer?

- Fui sentar-me à beira do rio - diz ela. O seu rosto está estranho e

pálido. - Estava tudo tão calmo e belo, de manhã cedo, e depois foi ficando

com mais movimento. Fiquei a pensar porque haveria tanto movimento no

rio. Parecia que o próprio rio me queria dar a resposta - vira-se e olha para

o médico. - Quem é este?

- É um mensageiro de Lady Margarida Stanley - digo-lhe. Fico a

olhar para o vestido molhado, que vem a arrastar, atrás dela, como se

tivesse uma cauda. - Como é que haveis ficado tão molhada?

- Por causa das barcaças que passavam - diz ela. O seu rosto está

branco e tem um ar hostil -, de todas as barcaças

336

que desciam o rio, para o Castelo de Baynard, onde o Duque Ricardo

está a reunir a sua grande corte. As ondas que elas provocavam eram tão

grandes que subiam pelos degraus acima. O que está a acontecer por lá,

hoje? Metade de Londres está a deslocar-se de barco para a casa do Duque,

mas devia ser o dia da coroação do meu irmão.

O Dr. Lewis fica consternado.

- Ia mesmo agora contar à vossa real mãe - diz ele um pouco

hesitante.

- O próprio rio é uma testemunha - diz a minha filha em tom rude. -

Molhou-me os pés como se me quisesse contar tudo. Qualquer um poderia

prevê-lo.

- Prever o quê? - pergunto a ambos.

- O Parlamento reuniu-se e declarou que o Duque Ricardo é o

legítimo rei - diz ele em voz baixa, embora as suas palavras ecoem pelas

arcadas de pedra como se ele estivesse a ler uma proclamação. -

Declararam que o vosso casamento com o rei tinha sido realizado sem o

conhecimento dos lordes que o deveriam autorizar, conseguido através de

bruxedo, pela vossa mãe e por vós, e que, nessa altura, o rei já estava

casado com outra senhora.

- Nesse caso, há anos que sois uma prostituta, e nós somos bastardos

- termina Isabel com frieza. - Fomos derrotados e envergonhados. Acabou

tudo, acabou. Podemos ir buscar Eduardo e Ricardo, e ir embora,

finalmente?

Page 261: Philippa gregory - a rainha branca

- O que estais a dizer? - pergunto-lhe. Fico tão espantada com esta

minha filha, a cauda do vestido todo molhado, parecendo uma sereia saída

do rio, como com as notícias de que Ricardo reclamou o trono para si e de

que fomos depostos. - O que estais a dizer? Em que haveis pensado,

sentada junto ao rio? Isabel, estais tão estranha, hoje. Porque estais a agir

assim, agora?

- Porque penso que fomos amaldiçoados - atira-me com desdém. -

Acho que estamos amaldiçoados. O rio sussurrou-me uma maldição, e eu

culpo-vos, e ao meu pai, por nos terem posto no mundo e por nos terem

conduzido a esta situação, movidos pela ambição, sem se terem, no entanto,

assegurado suficientemente do vosso poder, para que nós não viéssemos a

ter problemas.

337

Agarro-lhe firmemente as mãos geladas e seguro-a, como se a

quisesse impedir de nadar para longe.

- Vós não estais amaldiçoada, filha. Sois a melhor e a mais especial

das minhas filhas, a mais bela, a mais amada, bem o sabeis. Que maldição

vos poderia atingir?

O olhar que me dirige está ensombrado de horror, como se tivesse

visto a sua própria morte.

- Vós nunca vos ireis render, não nos deixareis viver em paz. A vossa

ambição vai ser a morte dos meus irmãos e, quando eles morrerem, ireis

colocar-me, a mim, no trono. Preferis ter o trono a ter os vossos filhos, e,

quando estiverem os dois mortos, ireis colocar-me no trono do meu

falecido irmão. Tendes mais amor pela coroa do que pelos vossos filhos.

Abano a cabeça, tentando negar a força daquelas palavras. Esta é a

minha filhinha, a minha criança doce e amável, a minha preferida, a minha

Isabel. É carne da minha carne. Nunca teve uma ideia que não tivesse sido

induzida por mim.

- Vós não podeis dizer uma coisa dessas. Não é verdade. Não podeis

sabê-lo. O rio não vos podia ter dito uma coisa dessas, e vós não tendes

capacidade para o ouvir, não é verdade.

- Eu hei-de ocupar o trono do meu irmão - diz ela como se não me

pudesse ouvir. - E vós haveis de ficar feliz por isso, porque a ambição é a

vossa maldição, segundo diz o rio.

Olho de relance para o médico e fico a pensar se ela estará com

febre.

- Isabel, o rio não pode falar convosco.

- É óbvio que o rio fala comigo, e é óbvio que eu o consigo ouvir! -

exclama, impaciente.

- Não há nenhuma maldição...

Page 262: Philippa gregory - a rainha branca

Ela dá meia volta e desliza pela sala, o vestido a deixar uma mancha

molhada, semelhante a um rasto, e abre a janela de par em par. O Dr. Lewis

e eu seguimo-la, um pouco receosos de que ela tenha enlouquecido e

pretenda atirar-se lá para baixo; mas fico imediatamente paralisada por um

doce e agudo lamento que sobe do rio, um som de tristeza, uma canção

lamentosa, numa nota tão angustiante que tapo os ouvidos com as mãos

para a não ouvir, e olho para o médico, à procura de uma explicação. Ele

abana a cabeça, incrédulo,

338

pois não ouve mais nada para além do alegre ruído produzido pelas

barcaças que passam, dirigindo-se para a festa de coroação do rei, ao som

das trombetas e do rufar de tambores. Mas ele consegue ver as lágrimas nos

olhos dela e nota que eu me afasto da janela aberta, protegendo os ouvidos

daqueles sons perturbantes.

- Não é por vossa causa - digo-lhe. Quase não consigo respirar, com

a dor. - Ah, Isabel, meu amor, não é por vossa causa. É a canção de

Melusina, a canção que ouvimos quando vai haver uma morte na nossa

família. Não é uma canção de aviso destinada a vós. Deve ser por causa do

meu filho, Ricardo Grey; eu consigo ouvi-la. É por causa do meu filho, e

por causa do meu irmão António, o meu irmão António, a quem eu jurei

proteger.

O médico está branco de medo.

- Eu não ouço nada - diz ele. - Apenas o barulho das pessoas que

chamam pelo rei.

Isabel está ao meu lado, os olhos cinzentos, escuros como uma onda

de tempestade no mar.

- O vosso irmão? Que quereis dizer com isso?

- O meu irmão e o meu filho morreram às mãos de Ricardo, Duque

de Gloucester, tal como o meu pai e o meu irmão João, que morreram às

mãos de Jorge, Duque de Clarence - predigo.

- Os filhos de Iorque são feras assassinas, e Ricardo não é melhor do

que Jorge. Eles roubaram-me os melhores homens da minha família e

destruíram-me o coração. Eu estou a ouvir. Eu ouço-o. É isso que o rio está

a cantar. O rio está a cantar um lamento pelo meu filho e pelo meu irmão.

Ela aproxima-se de mim. Voltou a ser a minha terna filhinha,

desaparecida aquela fúria selvagem. Pousa a mão sobre o meu ombro.

- Mãe...

- Credes que ele vai ficar por aqui? - exclamo, histérica. - Ele tem o

meu filho em seu poder, o meu filho real. Se ele se atreveu a tirar-me

António, se teve a desfaçatez de também me roubar Ricardo Grey,

acreditais que alguma coisa o impedirá de me tirar igualmente Eduardo?

Page 263: Philippa gregory - a rainha branca

Um irmão e um filho que ele me roubou, num só dia. Nunca lhe perdoarei.

Nunca o irei esquecer. Para mim, ele é um homem morto. Hei-de vê-lo

339

definhar, verei falhar o braço com que segura a espada, irei vê-lo

olhar em roda, à procura dos amigos, como uma criança perdida, num

campo de batalha, e hei-de vê-lo tombar.

- Mãe, calai-vos - sussurra ela. - Calai-vos e ouvi o rio.

São as únicas palavras que me conseguem acalmar. Corro

por toda a sala e abro todas as janelas, e o ar quente de Verão respira

dentro da fria escuridão da cripta. A água bate, em ligeiras ondas, contra as

margens. Sente-se o fedor a maré baixa e a lama, mas o rio continua a

correr, como se quisesse fazer-me recordar que a vida continua, como que

para me dizer que António já partiu, que o meu filho Ricardo Gray partiu e

que o meu menino, o Príncipe Ricardo, desceu o rio com pessoas

desconhecidas, num pequeno bote. Mas que ainda poderemos voltar a

navegar em águas profundas.

Ouve-se música, vinda das barcaças que passam, nobres a festejarem

a ascensão do Duque Ricardo. Não consigo compreender como é que eles

podem não escutar a canção do rio, como podem não saber que uma luz se

apagou para sempre neste mundo, com a morte do meu irmão António e do

meu filho... meu querido filho.

- Ele não iria querer que sofrêsseis - diz ela calmamente. - O Tio

António gostava tanto de vós, não iria querer ver-vos a sofrer.

Pouso a minha mão sobre a sua.

- Ele iria querer que eu vivesse e que vos acompanhasse no perigo

para vos devolver à vida - digo eu. - Continuaremos aqui, em refúgio, por

enquanto, mas juro que havemos de regressar ao nosso verdadeiro lugar.

Podeis dizer que é a maldição da ambição, se vos aprouver, mas, sem ela,

eu não lutaria. E eu vou lutar. Ver-me-eis lutar, e assistireis à minha vitória.

Se tivermos de partir de barco para a Flandres, fá-lo-emos. Se tivermos de

fugir como cães encurralados, fá-lo-emos. Se tivermos de nos esconder em

Tournai, disfarçados de camponeses e viver de enguias do rio Scheldt, é o

que faremos. Mas Ricardo não conseguirá destruir-nos. Nenhum homem

neste mundo irá destruir-nos. Voltaremos a erguer-nos. Somos os

descendentes da deusa Melusina: poderemos estar em maré baixa, mas

voltaremos a fluir. E Ricardo ficará a

340

saber. Ele apanhou-nos agora num lugar baixo e seco, mas, por Deus,

o nosso rio voltará a encher.

Page 264: Philippa gregory - a rainha branca

Falo com grande coragem, mas, quando paro, caio novamente na

dor, por causa do meu filho Grey, e pelo meu irmão, o meu querido irmão

António. Penso de novo em Ricardo Grey, quando ainda era um rapazinho,

sentado lá no alto, no cavalo do rei, a segurar a minha mão, na berma da

estrada, enquanto esperávamos que o rei passasse por ali. Era o meu

menino, o meu lindo menino; o seu pai morreu na batalha contra um dos

irmãos Iorque e, agora, morreu ele, às mãos de outro. Lembro-me de a

minha mãe lamentar a morte do seu filho e dizer que, quando um filho

sobrevive à infância, pensamos que estamos a salvo. Mas uma mulher

nunca está segura. Não num mundo como este. Não neste mundo, onde

irmão luta contra irmão e ninguém consegue pousar de vez a espada, ou

confiar na lei. Recordo-o deitado no berço, e mais velhinho, a começar a

aprender a andar, agarrado ao meu dedo, para cima e para baixo, subindo e

descendo a galeria, em Grafton, até as costas me doerem, por estar tanto

tempo inclinada, e depois revejo-o, já como o homenzinho que era, o

homem bom que iria ser.

E António, meu irmão, tem sido o meu maior amigo, e aquele em

que mais confiava, desde que éramos ambos crianças. Eduardo tinha razão,

ao dizer que ele era o maior poeta e o melhor cavaleiro da corte. António,

que queria ir em peregrinação a Jerusalém, e que o teria feito, se eu não o

tivesse impedido. Ricardo jantou com os dois em Stony Stratford, quando

se encontraram na estrada para Londres, e conversaram amigavelmente

sobre a Inglaterra que pretendiam construir juntos, Rivers e Plantagenetas,

do seu herdeiro comum, o meu filho, que haveríamos de colocar no trono.

António não era tonto, mas confiava em Ricardo. E porque não haveria de

o fazer? Eram parentes. Tinham estado lado a lado na batalha, eram irmãos

de armas. Tinham partido juntos para o exílio e tinham regressado a

Inglaterra em triunfo. Eram ambos guardiões e tios do meu precioso

menino.

De manhã, quando António desceu para tomar o pequeno-almoço, na

hospedaria, descobriu que as portas estavam barradas e que os seus homens

tinham sido mandados

341

embora. Foi encontrar Ricardo e Henrique Stafford, o Duque de

Buckingham, armados para a luta, os seus homens à espera, no pátio, com

rostos de pedra. E levaram-no preso, juntamente com o meu filho, Ricardo

Grey, e Sir Tomás Vaughan, acusados de traição, embora fossem os três

fiéis servidores do meu filho, o novo rei.

Na prisão, António, que espera ser morto na manhã seguinte, fica à

janela durante algum tempo, para ver se ouve algo parecido com a forte e

doce canção de Melusina, embora não acredite que vá ouvir seja o que for,

Page 265: Philippa gregory - a rainha branca

e depois sorri, quando ouve um som semelhante a um sino a tocar. Abana a

cabeça para afastar aquele som dos seus ouvidos, mas ele persiste, uma voz

sobrenatural que o faz rir, irreverentemente. Nunca acreditou na lenda da

rapariga que é metade peixe e metade mulher, a antepassada da sua família;

mas, naquele momento, sente-se reconfortado por a ouvir cantar por causa

da sua morte. Deixa-se ficar à janela e encosta a testa à pedra fria. Ouvir

aquela voz, alta e distinta, em volta das muralhas do Castelo de Pontefract,

prova finalmente que os dons da sua mãe, os da irmã e os da filha dela são

reais: como elas sempre afirmaram, como ele apenas acreditou em parte.

Gostaria de poder dizer à irmã que, agora, sabe que é verdade. Elas poderão

ter necessidade de usar esses dons. Eles poderão ser o suficiente para as

manter a salvo. Talvez até para salvar toda a família, que escolheu o nome

de Rivers em honra da deusa das águas que foi a fundadora daquela

família. Talvez até para salvar os dois rapazes Plantageneta. Se Melusina

cantava até para ele, um descrente, então, talvez pudesse guiar aqueles que

escutavam os seus avisos. Sorri, porque aquele som forte e nítido da canção

lhe dá esperanças de que Melusina proteja a irmã e os filhos dela,

especialmente o rapaz que estava ao seu cuidado, o menino que ele adora:

Eduardo, o novo Rei da Inglaterra. E sorri, porque aquela voz é a da sua

mãe.

Passa a noite não em oração, não a chorar, mas a escrever. Nas suas

horas derradeiras, ele já não é um aventureiro, um cavaleiro, nem sequer

um irmão ou um tio, mas um poeta. Trazem-me os seus escritos e vejo que,

no fim, no preciso momento em que teve de enfrentar a sua própria morte e

a

342

morte de todas as suas esperanças, percebeu que tudo não passava de

vaidade. Ambição, poder, até mesmo o próprio trono, que tanto tinha

custado à nossa família; no final, percebeu que nada daquilo tinha sentido.

E não morreu dominado pela amargura, ao perceber isso, mas sorrindo da

loucura dos homens, da sua própria cegueira.

Escreveu:

Em parte meditando

Mas mais lamentando,

Ao recordar A inconstância;

Sendo este mundo

De tantas voltas Que me são adversas;

Que posso adivinhar?

Com desagrado,

Para meu agravo,

E sem hipótese

Page 266: Philippa gregory - a rainha branca

De remédio;

Reparai, neste transe,

Agora real,

Tal é a minha dança,

Desejando morrer

Penso realmente

Que estou fadado,

E fortemente,

A sentir-me feliz;

Ao ver claramente

Que a fortuna, de facto, teceu

O oposto

De tudo o que eu almejava.

É esta a última coisa que faz, de madrugada, e depois levam-no lá

para fora e decapitam-no, por ordem de Ricardo, Duque de Gloucester, o

novo lorde protector da Inglaterra, que é agora o responsável pela minha

segurança, a segurança

343

dos meus filhos e, especialmente, pela segurança e pelo futuro do

meu filho, o Príncipe Eduardo, o legítimo Rei da Inglaterra.

Leio mais tarde o poema de António e creio que aprecio

particularmente a parte em que diz: “A fortuna, de facto, teceu/O oposto/De

tudo o que eu almejava.”

A sorte voltou-se contra nós, os Rivers, nesta altura: nisso, ele tinha

razão.

E eu tenho de encontrar uma forma de viver sem ele.

Algo mudou entre a minha filha Isabel e eu. A minha menina, a

minha filhinha, o meu primeiro bebé, cresceu, de repente, e afastou-se. A

criança que acreditava que eu sabia tudo, que decidia tudo é agora uma

jovem mulher que perdeu o pai e não confia na mãe. Pensa que estou a agir

mal, mantendo-nos em refúgio. Culpa-me pela morte do tio António.

Acusa-me - embora nunca diga essa palavra - de ter falhado a tentativa de

salvar o seu irmão Eduardo e de ter mandado o irmãozinho Ricardo para

longe, desprotegido, para o sombrio silêncio do rio, a meio da noite.

Não acredita que eu tenha assegurado um esconderijo seguro para

Ricardo e que o nosso plano de o trocar pelo pequeno pajem possa resultar.

Sabe que, se estou a enviar um falso príncipe para fazer companhia a

Eduardo, é porque duvido da minha capacidade de trazer Eduardo de volta

a casa, em segurança. Não tem qualquer fé na insurreição que o meu filho

Grey Tomás está a organizar. Receia que nunca venhamos a ser libertos.

Page 267: Philippa gregory - a rainha branca

Desde aquela manhã em que ouvimos o canto do rio, e depois, nessa

tarde, quando nos trouxeram a notícia da morte de António e de Ricardo

Grey, ela não tem confiança no meu discernimento. Não repetiu a sua

convicção de que estamos amaldiçoados, mas há algo na tristeza dos seus

olhos e na palidez do seu rosto que me diz que ela se sente atormentada.

Deus é minha testemunha de que não a amaldiçoei, e não sei de ninguém

que pudesse fazer tal coisa a uma rapariga de ouro e prata, mas é a verdade:

parece que alguém colocou

344

uma dedada negra em cima dela, assinalando-a para um duro futuro.

O Dr. Lewis regressa e eu peço-lhe que a veja, e que me diga se

considera que ela está bem. Praticamente deixou de comer, e está pálida.

- Ela precisa de liberdade - diz ele simplesmente. - Digo-vos, como

médico, aquilo que espero poder dizer-vos em breve, como aliado. Nenhum

dos vossos filhos, e vós mesma, Vossa Graça, pode permanecer aqui.

Precisais de andar lá fora, ao ar livre, e aproveitar o Verão. Ela é uma

rapariga delicada, precisa de exercício e de sol. Precisa de ter companhia. É

uma jovem, deveria estar a dançar e a namorar. Sente necessidade de

planear o seu futuro, de sonhar com um noivado, não de estar aqui

engaiolada, com medo de morrer.

- Recebi um convite do rei - obrigo-me a mencionar esse título, como

se Ricardo alguma vez o merecesse, como se a coroa que tem na cabeça e

os óleos que tem no peito pudessem transformá-lo em algo diferente do

traidor e vira-casacas que é. - O rei está ansioso que eu leve as minhas

filhas para a minha casa de campo, neste Verão. Diz que os príncipes

poderão ser-me entregues, lá.

- E estais disposta a ir? - está interessado na minha resposta. Inclina-

se para a frente, para ouvir.

- Primeiro, têm de me entregar os meus filhos. Não tenho qualquer

garantia de segurança, para mim ou para as minhas filhas, a não ser que os

meus filhos me sejam devolvidos, como ele prometeu que seriam.

- Tende cuidado, Vossa Graça, tende cuidado. Lady Margarida receia

que ele vos esteja a tentar enganar - respira fundo. - Ela diz que o Duque de

Buckingham pensa que ele vai... - ele hesita, como se não suportasse

pronunciar aquelas palavras. - Condenar os vossos filhos à morte. Ela diz

que o Duque de Buckingham está tão horrorizado com isto que está

decidido a salvar os vossos filhos, por vós, trazê-los de volta a casa, se lhe

garantirdes segurança e prosperidade, quando voltardes a ocupar o poder.

Se lhe prometerdes a vossa amizade, a vossa inegável amizade, quando

retomardes aquilo que vos pertence. Lady Margarida diz que conseguirá

levá-lo a fazer uma aliança convosco e com os vossos.

Page 268: Philippa gregory - a rainha branca

345

As três famílias: Stafford, Rivers e a Casa de Lencastre, contra o

falso rei.

Aceno com a cabeça. Já estava à espera disto.

- O que é que ele pretende? - pergunto sem rodeios.

- Que a sua filha, quando a tiver, case com o vosso filho, o jovem

Rei Eduardo - diz ele. - Que ele próprio seja nomeado regente e lorde

protector até o jovem rei atingir a idade de reinar. Que lhe seja oferecido o

reino do Norte, como era o caso do Duque Ricardo. Se fizerdes dele um

duque tão importante como o vosso marido fez com o Duque Ricardo, ele

trairá o amigo e resgatará os vossos filhos.

- E o que é que ela pretende? - pergunto, como se não pudesse

adivinhar, como se não soubesse que ela tem passado cada dia dos últimos

doze anos, desde que o seu filho foi exilado, a tentar trazê-lo de volta à

Inglaterra, em segurança. Ele é o único filho que ela conseguiu conceber, o

único herdeiro da fortuna da sua família, do título do seu falecido marido.

Tudo o que ela conseguir fazer na vida não terá qualquer significado se não

for capaz de trazer o filho de volta à Inglaterra, para herdar.

- Ela pretende um acordo que diga que o seu filho pode usar o

seu devido título e herdar as propriedades dela, e que sejam restituídas, ao

seu cunhado Jasper, as propriedades que ele tinha em Gales. Quer que

ambos sejam livres de regressar à Inglaterra e quer que o seu filho,

Henrique Tudor, fique noivo da vossa filha Isabel, e que ele seja nomeado

herdeiro, a seguir aos vossos filhos - diz ele de um só fôlego.

Não fico a pensar nem por um momento. Apenas tenho estado à

espera de saber as suas condições, e estas são exactamente aquelas com que

eu estava a contar. E não porque as tivesse previsto através dos meus

poderes, mas por uma questão de senso comum, e do que eu própria

exigiria, se estivesse na posição de força de Lady Margarida. Casada com o

terceiro homem mais importante da Inglaterra, aliada com o segundo, e

com planos para trair o primeiro.

- Concordo - digo eu. - Dizei ao duque de Buckingham e a Lady

Margarida que eu concordo. E dizei-lhes o meu preço: quero que os meus

filhos me sejam restituídos imediatamente.

346

Na manhã seguinte, o meu irmão Leonel vem ter comigo a sorrir.

- Tendes ali uma visita, no portão que dá para o rio - diz ele. - Um

pescador. Recebei-o com calma, minha irmã. Lembrai-vos de que a

discrição é um dos maiores dons numa mulher.

Page 269: Philippa gregory - a rainha branca

Concordo e apresso-me em direcção à porta. Leonel coloca a mão no

meu braço, não tanto como bispo, mas mais como irmão.

- Não deveis gritar como uma rapariga - diz ele sem rodeios, e depois

solta-me.

Saio sorrateiramente pela porta e desço os degraus que conduzem ao

corredor de pedra. É um pouco obscuro, iluminado apenas pela luz do dia

que se consegue infiltrar pelo portão de ferro que dá para o rio. Diante da

porta, flutua um pequeno bote, uma pequena rede de pesca pousada à popa.

Um homem, com um oleado imundo e um chapéu enfiado pela cabeça

abaixo, espera à porta, mas nada consegue disfarçar a sua altura. Avisada

por Leonel, não solto qualquer grito e, dissuadida pelo cheiro horrível a

peixe podre, não me atiro para os seus braços. Apenas digo baixinho:

- Irmão, meu irmão, alegro-me de todo o coração por vos poder ver.

Uma espreitadela dos seus olhos negros, por baixo da pesada aba do

chapéu, prova-me que é a face risonha do meu irmão Ricardo Woodville,

maliciosamente escondida por uma barba e um bigode.

- Estais bem? - pergunto, bastante chocada com a sua aparência.

- Nunca estive melhor - diz ele, provocador.

- E já sabeis o que aconteceu ao nosso irmão António? - pergunto. -

E ao meu filho Ricardo Grey?

Ele acena com a cabeça, subitamente entristecido.

- Soube esta manhã. Foi, em parte, por isso que vim aqui hoje.

Lamento muito, Isabel, lamento a vossa perda.

- Agora sois o Conde Rivers - digo eu. - O terceiro Conde Rivers.

Sois o chefe da família. Parece que os chefes da nossa

347

família andam a mudar muito depressa. Por favor, tratai de

manter o título por mais algum tempo.

- Vou fazer os possíveis - prometeu ele. -Deus sabe que

herdei o título de dois bons homens.Espero mantê-lo por mais tempo,

mas duvido de que possa fazer melhor do que eles. De qualquer forma, está

quase a haver uma revolta. Prestai atenção. Ricardo sente-se seguro com a

coroa na cabeça, e vai partir em viagem, para se mostrar ao reino.

Tenho de me conter, para não cuspir na água.

- Imagino que os cavalos levem armadura, até para dar um passeio.

- Mal ele saia de Londres, levando a guarda com ele, invadiremos a

Torre e traremos Eduardo cá para fora. O Duque de Buckingham está do

nosso lado e eu confio nele. Ele tem de viajar com o Rei Ricardo e o rei vai

obrigar Stanley a ir com ele, também, ainda desconfia dele; mas Lady

Margarida vai ficar em Londres e ordenará aos homens de Stanley, e aos

Page 270: Philippa gregory - a rainha branca

seus próprios parentes, que se juntem a nós. Ela já tem homens seus

colocados dentro da Torre.

- Será que vamos ter homens suficientes?

- Perto de cem. O novo rei nomeou Sir Roberto Brackenbury

governador da Torre. Brackenbury nunca iria ferir um rapaz que está ao seu

cuidado, é um homem bom. Coloquei novos criados nos aposentos reais,

homens que me abrirão as portas, quando lhes der a senha.

- E depois?

- Levar-vos-emos, e às raparigas, para a Flandres, para um lugar

seguro. Os vossos filhos Eduardo e Ricardo podem ir ter convosco - diz ele.

- Haveis tido notícias dos homens que levaram o Príncipe Ricardo? Ele está

seguro, bem escondido?

- Ainda não - digo de mau humor. - Tenho estado à espera de uma

mensagem, todos os dias. Já devia saber, por esta altura, que ele está em

lugar seguro. Rezo por ele a toda a hora. Já devia ter tido notícias.

- A carta pode ter-se perdido, não quer dizer nada. Se algo tivesse

corrido mal, de certeza que já vos teriam dado notícias. E pensai nisto.

Podereis ir buscar Ricardo ao lugar onde está escondido, no caminho para a

corte de Margarida. Logo que vos encontreis em segurança, com os vossos

348

filhos, rebelar-nos-emos, com o nosso exército. Será Buckingham

que declarará a guerra por nós. Lorde Stanley e toda a sua família

prometeram-nos apoio, através da mulher dele, Margarida Beaufort.

Metade dos outros lordes de Ricardo está preparada para se virar contra ele,

segundo o Duque de Buckingham. O filho de Lady Margarida, Henrique

Tudor, irá arranjar armas e homens na Bretanha e invadirá Gales.

- Quando? - digo num suspiro.

Ele olha para trás. O rio está cheio de agitação, como é habitual,

barcos que vão e vêm, pequenos botes de comerciantes que se aproximam e

afastam dos barcos maiores.

- O Duque Ricardo - ele detém-se e faz um sorriso. - Perdão, “O Rei

Ricardo” deve sair de Londres no final de Julho, em viagem. Libertaremos

Eduardo imediatamente, e dar-vos-emos, e a ele, tempo suficiente para

chegarem a um local seguro, por exemplo, dois dias, e depois, enquanto o

rei está longe, sublevar-nos-emos.

- E o nosso irmão Eduardo?

- Eduardo anda a recrutar homens em Devon e na Cornualha. O

vosso filho Tomás está a trabalhar em Kent. Buckingham vai trazer homens

de Dorset e Hampshire, Stanley trará os seus parentes das Midlands, e

Margarida Beaufort e o filho poderão sublevar Gales, em nome dos Tudor.

Page 271: Philippa gregory - a rainha branca

Todos os homens da casa do vosso marido estão dispostos a salvar os filhos

dele.

Mordo o dedo, pensando como o meu marido planearia uma coisa

destas: homens, armas, dinheiro e o alastrar do apoio pelo Sul da Inglaterra.

- Já será bom se conseguirmos derrotar Ricardo, antes que ele traga

para cá os seus homens do Norte.

Ele sorri, aquele sorriso irreverente dos Rivers.

- Já é suficiente, e nós temos tudo a ganhar e nada a perder - diz. -

Ele roubou a coroa do nosso menino, não temos nada a temer. O pior já

aconteceu.

- O pior já aconteceu - repito eu, e o arrepio que me desce pela

espinha, atribuo-o à perda de António, meu irmão, o meu irmão mais

querido, e à morte do meu filho Grey. - O pior já aconteceu. Não pode

acontecer nada de pior, depois das perdas que já sofremos.

349

Ricardo pousa a mão suja sobre a minha.

- Deveis estar preparada para partir logo que eu vos avise - diz ele. -

Fá-lo-ei, mal tenha o Príncipe Eduardo em segurança.

- Estarei.

350

JULHO DE 1483

Espero à janela, vestida com a minha capa de viagem, com o cofre de

jóias na mão, as minhas filhas junto de mim, prontas para partir. Não

falamos, há mais de uma hora que estamos à espera, em silêncio.

Esforçamo-nos por ouvir qualquer coisa, seja o que for, mas só se ouve o

bater da água contra as paredes e um ocasional ruído de música ou risadas,

vindo das ruas. A meu lado, Isabel está tensa como a corda de um alaúde,

branca de ansiedade.

Então, ouve-se um súbito rumor, e o meu irmão Leonel entra a correr

pelo santuário, fechando a porta com força e aferrolhando-a atrás de si.

- Falhámos - diz ele, lutando contra a falta de ar. - Os nossos irmãos

estão a salvo, o vosso filho também. Conseguiram fugir pelo rio e Ricardo

atracou em Minories, mas não conseguimos tomar a Torre Branca.

- Haveis visto o meu filho? - pergunto.

Ele abana a cabeça.

- Eles tinham os dois rapazes lá dentro. Ouvi-os gritar as ordens.

Estivemos tão perto que conseguíamos ouvi-los dar ordens para levarem os

rapazes lá mais para dentro, para uma câmara mais segura. Deus meu, irmã,

Page 272: Philippa gregory - a rainha branca

perdoai-me. Estivemos separados deles apenas pela espessura de uma

porta, mas não conseguimos deitá-la abaixo.

Sento-me, pois as minhas pernas começam a ceder, e deixo cair o

cofre com as jóias. Isabel está branca como as cinzas. Volta-se e,

lentamente, começa a retirar as capas às meninas,

351

uma a uma, dobrando-as cuidadosamente, como se fosse importante

que elas não ficassem engelhadas.

- O meu filho - digo eu. - O meu filho.

- Entrámos pelo portão do rio e atravessámos a primeira vereda,

sem que eles nos tivessem visto. Estávamos a começar a subir os degraus,

quando alguém deu o alarme e, embora tenhamos subido as escadas a toda

a pressa até à porta da Torre Branca, eles conseguiram fechá-la. Estávamos

a alguns segundos de a atingir. Tomás disparou contra as fechaduras e nós

atirámo-nos contra ela, mas ouvi os ferrolhos serem corridos, no interior, e

depois eles saíram aos montes da sala da guarda. Ricardo e eu virámo-nos

para lhes dar luta, e conseguimos mantê-los à distância, enquanto Tomás e

os homens de Stanley tentavam arrombar a porta, ou, ao menos, tirá-la dos

gonzos, mas vós sabeis, é demasiado pesada.

- Os Stanley estavam lá, como prometeram?

- Estavam, bem como os homens de Buckingham. Nenhum fardado,

obviamente, mas todos traziam uma rosa branca. Foi estranho, voltar a ver

aquela rosa branca. E ainda mais estranho ter de lutar para conseguir entrar

num lugar que nos pertence. Gritei a Eduardo que tivesse coragem, que

haveríamos de voltar para ir buscá-lo, que não o abandonaríamos. Não sei

se ele ouviu. Não sei.

- Estais ferido - digo, ao reparar no corte que tem na testa.

Ele esfrega-o, como se o seu sangue fosse apenas sujidade.

- Não é nada. Isabel, eu preferia ter morrido a ter voltado sem ele.

- Não faleis em morte - digo baixinho. - Queira Deus que ele esteja a

salvo, esta noite, e que não tenha ficado assustado com tudo isto. Queira

Deus que apenas o mudem para um quarto mais seguro, no interior da

Torre, e não pensem em levá-lo para outro lado.

- E pode ser que seja apenas por mais um mês - diz-me ele. - Ricardo

disse-me que vos recordasse isso. Os vossos amigos estão a armar-se, o Rei

Ricardo está a dirigir-se para o Norte, apenas com a sua guarda pessoal.

Buckingham e Stanley fazem parte do seu séquito, irão persuadi-lo a não

voltar para trás. Irão encorajá-lo a prosseguir para Iorque. Jasper Tudor vai

trazer um exército da Bretanha. A nossa próxima

352

Page 273: Philippa gregory - a rainha branca

batalha chegará dentro de pouco tempo. Quando o usurpador Ricardo

estiver morto, teremos as chaves da Torre nas nossas mãos.

Isabel endireita-se, as capas das irmãs perfeitamente dobradas no

braço.

- E vós confiais em todos estes vossos novos amigos, Mãe? -

pergunta friamente. - Todos estes novos aliados que se puseram

subitamente do vosso lado, mas que não conseguem fazer nada? Todos

decididos a arriscar a vida para repor Eduardo no trono, depois de terem

comido bem, e bebido melhor, na coroação do Duque Ricardo, apenas há

algumas semanas? Ouvi dizer que foi Lady Margarida quem segurou a

cauda da nova Rainha Ana, como costumava fazer com a vossa. A nova

rainha beijou-a em ambas as faces. Ela esteve num lugar de destaque, na

coroação. E agora reúne os seus homens para lutarem por nós? Agora

passou a ser vossa leal aliada? O Duque de Buckingham era o menor sob a

vossa tutela que vos odiava por o terdes obrigado a casar com a minha tia

Catarina, e ainda vos detesta. São esses os vossos verdadeiros aliados? Ou

serão servidores leais ao novo rei, decididos a fazer-vos cair numa ratoeira?

Porque eles jogam em ambos os lados, e estão em viagem com ele neste

momento, a festejar em Oxford. Não se expuseram a qualquer perigo, ali na

Torre, para salvar o meu irmão.

Olho-a friamente.

- Não tenho hipótese de poder escolher os meus aliados - digo-lhe. -

Para salvar o meu filho, seria capaz de conspirar com o próprio diabo.

Ela dirige-me a sombra de um sorriso amargo.

- Provavelmente, já o haveis feito.

353

AGOSTO DE 1483

O Verão torna-se muito quente e Leonel escapa-se do refúgio,

fugindo de Londres para se juntar aos nossos irmãos e aos nossos aliados,

na rebelião que irá derrotar Ricardo. Sem ele, sinto-me muito só. Isabel

anda muito calada e distante, e não tenho ninguém com quem compartilhar

os meus receios. A jusante, o meu filho continua prisioneiro na Torre, e

Jemma conta-nos que já ninguém o vê, nem ao pequeno pajem que fizemos

passar pelo meu outro filho, brincar nos jardins da Torre. Eles costumavam

praticar tiro ao arco no relvado, mas agora ninguém os tem visto por perto

dos alvos. Desde a nossa tentativa para os libertar, os guardas têm-nos

mantido fechados lá dentro, e eu começo a temer o perigo de que haja peste

na cidade, com este calor, e imagino-os fechados naquelas divisões

pequenas e escuras.

Page 274: Philippa gregory - a rainha branca

Nos finais de Agosto, ouvimos o chamamento de um barqueiro, lá

em baixo, no rio, e eu abro a janela e olho lá para fora. Por vezes, eles

trazem-me oferendas, frequentemente apenas um cesto com peixe, mas este

homem tem uma bola na mão.

- Sereis capaz de a apanhar, Vossa Graça? - pergunta-me ele, vendo-

me à janela.

Sorrio.

- Claro que consigo - digo-lhe.

- Então tomai lá - diz ele, atirando-me uma bola branca. Ela passa a

voar pela janela dentro, por cima da minha cabeça, eu estico-me e apanho-a

com as duas mãos, rindo, com vontade de a poder atirar novamente. Reparo

que é uma bola

354

embrulhada em papel branco e volto para a janela; mas o homem já

tinha desaparecido.

Desembrulho-a e aliso o papel, e levo a mão ao coração e depois à

boca, para silenciar um grito, quando reconheço a letra redondinha e

infantil do meu pequeno Ricardo.

Minha muito querida Senhora Mãe,

Cumprimentos e bênçãos [começa ele cuidadosamente]. Não me

permitem que vos escreva com frequência, nem que vos diga exactamente

onde me encontro, para o caso de a carta ser roubada; apenas vos digo que

cheguei são e salvo e que aqui se está bastante bem. São pessoas muito

bondosas, já aprendi a remar um barco e eles dizem que sou bom e tenho

habilidade. Daqui a pouco vou ter de partir para uma escola, pois aqui eles

não têm possibilidade de me ensinar tudo o que preciso de aprender, mas

virei cá passar o Verão para ir pescar enguias, que são bastante boas, depois

de nos habituarmos a elas; a não ser que possa voltar para casa, para junto

de vós.

Dizei às minhas irmãs que as amo, apresentai o meu amor e

obediência ao meu irmão, o rei, e aceitai a minha homenagem e estima para

convosco.

Assinada pelo

vosso filho Ricardo, Duque de Iorque

Embora agora me chame Pedro, e responda sempre por Pedro. A

senhora aqui da casa, que é muito simpática comigo, chama-me o seu

pequeno Perkin, e eu não me importo que assim seja.

Leio as palavras por entre as lágrimas, depois enxugo os olhos e

volto a lê-las. Rio-me, ao pensar que lhe dizem que tem habilidade, e tenho

Page 275: Philippa gregory - a rainha branca

de respirar fundo para me impedir de desatar a chorar de novo, por saber

que agora lhe chamam Perkin. Só sinto vontade de chorar por ele ter sido

afastado de mim, tão jovem, um rapazinho tão pequeno; no entanto, está a

salvo, devia alegrar-me por isso; é o único dos meus filhos que está fora de

perigo por pertencer a esta família, neste país, com estas guerras que irão,

mais uma vez, começar. O rapazinho que dá agora pelo nome de Pedro irá

tranquilamente para a escola, e aprenderá línguas, música e a esperar. Se

355

ganharmos, voltará para casa como príncipe de sangue real; se

perdermos, ele será a arma que eles não sabem que temos, um rapazinho

escondido, um príncipe que espera, a némesis das ambições deles; e a

minha vingança. Como um fantasma, ele e a sua vontade hão-de assombrar

qualquer rei que venha depois de nós.

- Maria, Nossa Mãe, olhai por ele - murmuro com o rosto entre as

mãos, os olhos fechados repletos de lágrimas. - Melusina, guardai o nosso

menino.

356

SETEMBRO DE 1483

Recebo todos os dias notícias sobre a forma como os nossos homens

estão a ser armados e preparados, não apenas nas regiões onde os meus

irmãos andam activos, mas por todo o país. À medida que a notícia de que

Ricardo usurpou a coroa se vai espalhando lentamente, mais e mais homens

do povo, escudeiros e comerciantes, os seus superiores - os chefes das

guildas e os pequenos proprietários de terras, os homens mais importantes

do reino, perguntam: Como é que um irmão mais novo pode usurpar os

direitos do filho do seu falecido irmão? Como é que um homem pode ir

calmamente ter com o Criador se coisas destas acontecem, com toda a

impunidade? Que adianta a um homem lutar toda a vida para engrandecer a

sua família se o seu irmão mais novo, o mais fraco da matilha, consegue

apoderar-se de tudo, no minuto em que ele enfraquece?

E há muita gente, nos inúmeros locais que costumávamos visitar, que

recorda Eduardo como um belo homem e a mim como a sua linda esposa,

os que se lembram das minhas filhas, da sua formosura, e dos meus

rapazes, fortes e inteligentes. Aqueles que nos consideravam uma família

de ouro, a que tinha trazido paz à Inglaterra e um grande número de

herdeiros ao trono; e estas pessoas dizem que é um ultraje o facto de não

estarmos no nosso lugar, com o nosso menino no trono.

Page 276: Philippa gregory - a rainha branca

Escrevo ao meu filho, o jovem Rei Eduardo, e peço-lhe que não

perca a coragem, mas as minhas cartas começaram a vir para trás sem

serem abertas. Voltam intocadas, com os selos

357

de lacre intactos. Nem sequer se dão ao trabalho de as espiar. É como

se eles estivessem a negar que ele esteja nos aposentos reais da Torre.

Anseio pelo rebentar da guerra que há-de libertá-lo, e gostaria que

pudéssemos começá-la já, sem termos de esperar pelo lento avanço da

viagem de Ricardo em direcção ao Norte, através dos condados de Oxford

e Gloucester, e a seguir Pontefract e Iorque. Em Iorque, ele coroa o seu

filho, aquele rapazinho magro e enfermiço, Príncipe de Gales. Dá o título

de Eduardo ao seu filho, como se o meu filho já estivesse morto. Passo esse

dia de joelhos, pedindo a Deus que me dê oportunidade para vingar esta

afronta. Nem me atrevo a pensar que pode ser qualquer coisa pior do que

um insulto. Não suporto imaginar que possa suceder que o título esteja

vago, que o meu filho tenha morrido.

Isabel vem ter comigo, à hora do jantar, e ajuda-me a levantar.

- Sabeis o que o vosso tio fez hoje? - pergunto-lhe.

Ela volta o rosto para o outro lado.

- Sei - diz ela sem vacilar. - O pregoeiro andou a proclamar isso pela

praça inteira. Eu pude ouvi-lo da porta.

- Não haveis aberto a porta? - pergunto com ansiedade.

Ela suspira.

- Não abri a porta. Nunca a abro.

- O Duque Ricardo roubou a coroa do vosso pai e agora colocou o

filho no lugar do vosso irmão. Ele vai morrer por isto - predigo.

- Será que ainda não morreram pessoas suficientes?

Pego-lhe nas mãos e obrigo-a a olhar-me de frente.

- Estamos a falar do trono da Inglaterra, um direito do vosso irmão,

por nascença.

- Estamos a falar da morte de uma família - diz ela sem rodeios. -

Vós também tendes filhas, sabeis? Haveis pensado nos nossos direitos de

nascença? Temos estado aqui engaioladas, como ratazanas, o Verão inteiro,

enquanto vós passais os dias a rezar pela vingança. O vosso filho mais

precioso está preso ou morto, vós nem sequer sabeis qual das hipóteses é a

verdadeira. Haveis enviado o outro lá para fora, para a escuridão. Não

sabeis onde ele se encontra, nem sequer se ainda

358

Page 277: Philippa gregory - a rainha branca

está vivo. Ansiais por um trono, mas nem sequer sabeis se tendes

algum filho para lá colocar.

Fico sem fala e dou um passo atrás.

- Isabel!

- Gostaria que enviásseis uma mensagem ao meu tio, dizendo que

aceitais o seu poder - diz ela com enorme frieza, e a sua mão, presa na

minha, parece de gelo. - Seria bom que lhe dissésseis que estamos prontas

para chegar a um acordo; na realidade, qualquer acordo, nos termos que ele

quiser determinar. Gostaria que o persuadísseis a dar-nos autorização para

voltarmos a ser uma família normal, para vivermos em Grafton, longe de

Londres, longe das conspirações, das traições e das ameaças de morte. Se

vos renderdes agora, talvez possamos ter os meus irmãos de volta.

- Para mim, isso significaria voltar ao lugar de onde saí - exclamo.

- Não éreis feliz, em Grafton, com o vosso pai e a vossa mãe, e com

o vosso marido que vos deu Ricardo e Tomás? - pergunta ela tão depressa

que não tenho tempo para preparar cuidadosamente uma resposta.

- Era - digo eu desprevenida. - Sim, era.

- É apenas isso o que eu quero para mim - diz ela. - Tudo o que eu

quero para as minhas irmãs. E, no entanto, vós insistis em fazer de nós

herdeiras da vossa desgraça. Quero ser herdeira dos dias que haveis vivido

antes de serdes rainha. Não quero o trono: quero casar com um homem que

ame, que possa amar livremente.

Olho para ela.

- Nesse caso, estaríeis a renegar o vosso pai, a renegar-me, a renegar

tudo o que faz de vós uma Plantageneta, uma princesa de Iorque. Nesse

caso, poderíeis comparar-vos a Jemma, a criada, já que não desejais ser

mais importante do que aquilo que sois, se não quereis aproveitar as

oportunidades que se vos deparam.

Ela olha fixamente para mim.

- Eu preferia ser Jemma, a criada, a estar no vosso lugar - diz ela, e a

sua voz está carregada daquele áspero desprezo, próprio de uma rapariga. -

Jemma pode voltar para casa à noite, para a sua cama. Pode recusar-se a vir

trabalhar. Jemma

359

pode fugir e trabalhar para outro amo. Mas vós estais presa ao trono

da Inglaterra e haveis-nos transformado em escravos, também.

Recomponho-me.

- Não podeis falar comigo dessa maneira - digo-lhe com frieza.

- Estou a falar-vos com o coração - diz ela.

Page 278: Philippa gregory - a rainha branca

- Então, dizei ao vosso coração que seja verdadeiro, mas ordenai à

vossa boca que fique em silêncio. Não admito deslealdades vindas da

minha própria filha.

- Nós não somos um exército em guerra! Não me faleis de

deslealdade! O que fareis? Mandareis decapitar-me por traição?

- Nós somos um exército em guerra - digo simplesmente.

- E vós não me ireis trair, nem à vossa própria posição.

Falo mais verdadeiramente do que sei, pois nós somos um exército

em marcha e nessa noite lançaremos o nosso primeiro ataque. Os homens

de Kent rebelam-se em primeiro lugar e, quando se ouvem os gritos da

revolta, todo o Sussex se alia a eles. Mas o Duque de Norfolk, que se

mantém fiel a Ricardo, leva os seus homens para o Sul de Londres e não

deixa passar o nosso exército. Eles não conseguem juntar-se aos seus

camaradas, a ocidente; Norfolk bloqueou a única estrada que existe, em

Guildford. Um dos homens consegue passar e chegar a Londres, aluga um

pequeno barco e aproxima-se do portão do santuário que dá para o rio, a

coberto da neblina e da chuva.

- Sir João - digo eu, através da grelha. Nem sequer me atrevo a abrir

o portão, por causa do rangido que ele faz sobre a pedra molhada, e, além

do mais, não o conheço, nem confio em ninguém.

- Vim oferecer-vos o meu apoio, Vossa Graça - diz

desajeitadamente. - E saber... os meus irmãos, e eu, pretendemos saber... se

é da vossa vontade que apoiemos Henrique Tudor, agora.

- O quê? - pergunto. - O que quereis dizer com isso?

- Nós rezámos pelo príncipe, fizemo-lo todos os dias e acendemos

velas por ele, e todos nós em Reigate temos mais pena do que a que

conseguimos expressar, por já ser tarde de mais para ele. Nós...

360

- Esperai - digo apressadamente. - Esperai. O que estais a dizer?

O seu rosto enorme fica subitamente aflito.

- Oh, que Deus me perdoe, não me digais que ainda não sabíeis, e

que eu vos disse uma coisa destas como um completo imbecil? - torce o

chapéu de tal maneira entre as mãos que a pluma mergulha na água do rio

que bate contra os degraus. - Oh, gentil senhora, eu sou um louco. Devia

ter-me certificado... - olha ansiosamente para a passagem escura por trás de

mim. - Chamai uma dama de companhia - diz ele. - Por favor, não vos

deixeis desmaiar agora.

Seguro a grelha com as mãos apertadas, embora a minha cabeça

esteja a andar à roda.

- Não - prometo-lhe por entre os meus lábios secos. - Não vou

desmaiar. Estais a dizer-me que o jovem Rei Eduardo foi executado?

Page 279: Philippa gregory - a rainha branca

Ele abana a cabeça.

- Morreu, é só o que sei. Que Deus abençoe o vosso doce rosto e me

perdoe por ser o portador de notícias tão tristes. Notícias tão más, e ser eu a

trazê-las até vós! Quando o que queríamos saber era apenas o que

desejáveis fazer agora.

- Não foi executado?

Ele abana a cabeça.

- Nada em público. Pobres meninos. Nós não sabemos nada, ao

certo. Só nos disseram que os príncipes tinham sido mortos, que Deus os

abençoe, que a revolta contra o Rei Ricardo, que continua a ser um

usurpador, iria continuar, mas que deveríamos colocar Henrique Tudor no

trono, como herdeiro legítimo, e que isso seria a melhor coisa para o país.

Solto uma gargalhada, uma gargalhada de infelicidade.

- O filho de Margarida Beaufort? No lugar do meu?

Ele olha em volta à procura de ajuda, assustado pelo assomo de

loucura latente na minha gargalhada.

- Nós não sabíamos. Tínhamos jurado libertar os príncipes. Fomos

todos aliciados para a vossa causa, Vossa Graça. Por isso, não sabemos o

que havemos de fazer, agora que os príncipes desapareceram. E os homens

de Tomás Howard estão a guardar a estrada que conduz ao acampamento

do vosso irmão, por isso, não lhe pudemos perguntar. Pensámos que

361

seria melhor eu escapar-me silenciosamente e vir a Londres

perguntar-vos.

- Quem vos disse que eles tinham morrido?

Ele fica a pensar, por momentos.

- Foi um dos homens do Duque de Buckingham. Trouxe-nos algum

ouro, e armas, para aqueles que não tinham nenhuma. Disse que podíamos

confiar no seu amo, e que ele se tinha virado contra o falso Rei Ricardo por

ele ter matado os meninos. Disse que o duque tinha sido um leal servidor

do Rei Ricardo, considerando-o o protector dos rapazes, mas que, quando

descobriu que ele tinha matado os nossos príncipes, se tinha voltado contra

ele, horrorizado. Acrescentou que o duque sabia tudo o que o falso rei dizia

e fazia, mas que não tinha sido capaz de evitar os homicídios - ele volta a

olhar para mim, preocupado. - Que Deus proteja Vossa Graça. Não

deveríeis ter uma dama junto de vós?

- O homem do duque disse-vos tudo isso?

- Um bom homem, contou-nos isto tudo. E também pagou aos

homens para beberem um copo em honra do Duque de Buckingham. Ele

disse que o falso Rei Ricardo tinha dado ordens para os matarem em

segredo, antes de partir em viagem, e que, quando contou ao duque o que

Page 280: Philippa gregory - a rainha branca

tinha feito, o duque tinha jurado que já não podia suportar por mais tempo

este reinado de assassinos, que iria desafiar o Rei Ricardo e que nós nos

deveríamos revoltar contra este homem, capaz de matar crianças. Disse que

o próprio duque seria um rei muito melhor do que Ricardo, e que ele até

tem direito ao trono.

Se o meu filho já tivesse morrido, seguramente que eu o iria

pressentir. Ouvi a canção do rio, pelo meu irmão. Se o meu filho e

herdeiro, o herdeiro da minha casa, herdeiro do trono da Inglaterra,

estivesse morto, não o teria já percebido? Será que o meu filho poderia ter

sido morto, a poucos quilómetros de mim, sem eu dar por nada? Por isso,

não acredito. Nem vou acreditar, até que me mostrem o seu bendito corpo.

Ele não está morto. Não consigo acreditar que tenha morrido. Não

acreditarei nisso, até o ver deitado no caixão.

- Prestai atenção - aproximo-me mais das barras do portão e falo-lhe

com franqueza. - Deveis voltar para Kent e dizer aos vossos companheiros

que se devem revoltar por causa dos

362

príncipes, porque os meus filhos ainda estão vivos. O duque está

enganado e o rei não os matou. Eu sei; sou a mãe deles. Dizei-lhes também

que, mesmo que Eduardo tenha morrido, o seu irmão Ricardo não está com

ele, mas longe, em segurança. Está escondido num lugar seguro e voltará,

para ocupar o trono que lhe pertence. Regressai a Kent e, quando vos

chegar a ordem para se reunirem e marcharem, deveis fazê-lo com o

coração cheio de orgulho, pois deveis destruir este falso Rei Ricardo,

libertar os meus filhos e libertar-me.

- E o duque? - pergunta ele. - E Henrique Tudor?

Faço uma cara séria e afasto o pensamento acerca dos dois para

longe.

- São aliados leais à nossa causa, tenho a certeza - digo com uma

confiança que já não possuo. - Se me fordes fiel, Sir João, lembrar-me-ei de

vós e de cada um dos homens que lutarem por mim e pelos meus filhos,

quando voltar a ocupar o meu devido lugar.

Ele inclina-se numa vénia e, às escondidas, desce as escadas e os

degraus, entrando com grande cautela no barco que baloiça na água,

perdendo-se no meio do nevoeiro negro que cobre o rio. Fico ali mais um

pouco, à espera de que ele desapareça, até deixar de ouvir o ligeiro ruído do

chapinhar dos remos e, então, olho lá para baixo, para as águas negras.

- O Duque - sussurro para as águas. - O Duque de Buckingham anda

a dizer a toda a gente que os meus filhos estão mortos. Porque faria ele uma

coisa dessas? Se jurou que os salvaria? Quando está a contribuir para a

Page 281: Philippa gregory - a rainha branca

revolta, com ouro e armas? Por que motivo, na altura em que os manda

reunir, lhes estará a dizer que os príncipes morreram?

Janto com as minhas filhas e com os poucos criados que ficaram

connosco no santuário, mas não consigo prestar atenção à cuidadosa leitura

que Ana, a minha filha de sete anos, faz da Bíblia, nem juntar-me a Isabel,

que lhes faz perguntas sobre o que acabaram de ouvir. Estou tão distraída

como Catarina, que só tem quatro anos. Não consigo pensar em

363

mais nada, a não ser no motivo por trás do rumor de que os príncipes

estão mortos.

Mando as meninas para a cama cedo; não suporto ouvi-las jogar às

cartas ou cantar uma cantiga. Passo a noite de um lado para o outro, no meu

quarto, caminhando ao longo da única tábua do soalho que não range, até à

janela e para o lado contrário. Porque haveria Ricardo de matar os meus

filhos agora, quando conseguiu tudo o que queria sem precisar das suas

mortes? Conseguiu convencer o Conselho a considerá-los bastardos,

promulgou uma lei, no Parlamento, negando o meu casamento. Nomeou-se

a si próprio legítimo herdeiro e o arcebispo, em pessoa, colocou a coroa na

sua negra cabeça. A sua débil esposa, Ana, foi coroada Rainha da Inglaterra

e o filho deles foi investido como Príncipe de Gales. Tudo isto foi

conseguido, comigo aqui engaiolada, em refúgio, e o meu filho na prisão.

Ricardo triunfou: porque haveria de querer ver-nos mortos? Para que

precisaria de nos mandar matar, agora? E como é que ele poderia esperar

ser ilibado do crime, quando toda a gente sabe que os rapazes estão à sua

guarda? Todos sabem que ele levou o meu filho Eduardo contra a minha

vontade; não poderia ter sido mais notório, e o próprio arcebispo me jurou

que nenhum mal lhe haveria de acontecer.

E não é do género de Ricardo fugir ao trabalho que tem de ser feito.

Quando ele e os irmãos decidiram que o pobre Rei Henrique devia morrer,

encontraram-se os três à porta do seu quarto e entraram juntos, de rosto

grave, mas de espírito decidido. São assim os príncipes de Iorque: não

levantam objecções a actos criminosos; mas não os deixam para os outros,

fazem-nos eles mesmos. O risco de pedir a alguém que mate dois inocentes

príncipes de sangue real, de subornar os guardas e de esconder os corpos

seria insuportável para Ricardo. Eu já vi como ele mata; directamente, sem

aviso, mas abertamente, sem remorso. O homem que decapitou Sir

Guilherme Hastings em cima de um bocado de madeira para construção

nem pestanejaria se tivesse de segurar uma almofada sobre o rosto do meu

filhinho. Se isso tivesse de ser feito, posso jurar que ele mesmo o faria. No

mínimo dos mínimos, ordenaria a alguém que o fizesse, mas ficaria ali a

ver se a ordem era cumprida.

Page 282: Philippa gregory - a rainha branca

364

Tudo isto, para me tentar convencer de que Sir João de Reigate está

enganado e que o meu filho Eduardo ainda está vivo. Mas não consigo

deixar de pensar, quando chego à janela e olho para o rio, no meio da

escuridão e da névoa, que posso estar errada, enganada em tudo, mesmo na

minha fé em Melusina. Talvez Ricardo tenha encontrado alguém capaz de

matar os rapazes. É possível que Eduardo já esteja morto e eu tenha

perdido a Visão, sem me ter apercebido. Talvez eu já não saiba

absolutamente nada.

Às primeiras horas da madrugada, já não aguento estar sozinha por

mais tempo e envio um mensageiro para ir buscar o Dr. Lewis. Digo-lhes

que o acordem e o tirem da cama, porque estou mortalmente doente. Na

altura em que os guardas o deixam entrar, a minha mentira está a tornar-se

verdade, e estou a ficar febril de pura agonia.

- Vossa Graça? - pergunta ele cautelosamente.

Pareço um fantasma, à luz das velas, o meu cabelo preso numa

desajeitada trança, com o roupão amarrado em volta de mim.

- Vós tendes de conseguir meter criados vossos, de confiança, dentro

da Torre, para guardarem o meu filho Eduardo, já que não conseguimos

tirá-lo de lá - digo com arrojo. - Lady Margarida tem de usar a sua

influência, deverá usar o nome do marido, para termos a certeza de que os

meus filhos estão bem guardados. Eles correm perigo. Um perigo terrível.

- Haveis recebido notícias?

- Está a espalhar-se o rumor de que eles foram mortos - digo eu.

Ele não demonstra qualquer surpresa.

- Que Deus não o permita, Vossa Graça, mas receio que seja mais do

que um rumor. É aquilo de que o Duque de Buckingham nos avisou. Ele

tinha dito que este falso rei iria matar os sobrinhos para alcançar o trono.

Encolho-me, muito ligeiramente, como se tivesse estendido a mão e

deparasse com uma cobra a surgir, precisamente no sítio que eu ia tocar.

365

- Sim - digo eu, subitamente prudente. - Foi o que eu ouvi, e foi um

dos homens do Duque de Buckingham que o disse.

Ele benze-se.

- Que Deus nos salve.

- Mas tenho esperança de que esse acto ainda não tenha sido

cometido, espero poder evitá-lo.

Ele acena com a cabeça.

Page 283: Philippa gregory - a rainha branca

- No entanto, receio que já possa ser tarde de mais e que já os

tenhamos perdido. Vossa Graça, lamento por vós, de todo o coração.

- Agradeço a vossa compaixão - digo com firmeza. As minhas

têmporas estão a latejar, não consigo pensar. É como se eu estivesse a olhar

para uma serpente e ela a olhar para mim.

- Queira Deus que esta revolta destrua um tio que foi capaz de um

acto destes. Deus estará do nosso lado, contra um Herodes como este.

- Se é que foi Ricardo.

Ele olha para mim subitamente, como se isto o tivesse chocado,

embora pareça capaz de tolerar a ideia do assassinato das crianças.

- Quem mais poderia fazer algo assim? Quem mais é que poderia

tirar benefícios? Quem matou Sir Guilherme Hastings, o vosso irmão e o

vosso outro filho? Quem é o assassino da vossa família e o vosso pior

inimigo, Vossa Graça? Não podeis suspeitar de mais ninguém!

Sinto que estou a tremer e as lágrimas começam a surgir; queimam-

me os olhos.

- Não sei - digo sem firmeza. - Apenas tenho a sensação de que o

meu filho não está morto. Eu iria perceber se ele tivesse sido morto. Uma

mãe perceberia. Perguntai a Lady Margarida; ela iria perceber se Henrique

morresse. Uma mãe sabe. E, em todo o caso, o meu Ricardo, pelo menos,

está a salvo.

Ele morde o isco e reparo na sua resposta - vejo a sombra do espião

nos seus olhos derretidos.

- Oh, está? - pergunta ele, de forma convidativa.

Já disse o suficiente.

- Eles estão ambos a salvo, queira Deus - emendo. - Mas, dizei-me...

Por que razão estais tão seguro de que eles estão mortos?

366

Ele coloca gentilmente a sua mão sobre a minha.

- Eu não gostaria de agravar a vossa preocupação, mas eles não são

vistos desde que o falso rei saiu de Londres e tanto o duque como Lady

Margarida acham que ele mandou matá-los, antes de partir. Não havia nada

que qualquer um de nós pudesse ter feito para os salvar. Quando assaltámos

a Torre, eles já estavam mortos.

Retiro a minha mão do seu aperto reconfortante e levo-a à minha

cabeça, que estoura de dor. Quem me dera poder pensar com clareza.

Lembro-me de Leonel ter dito que ouvira os criados gritarem, para que

levassem os rapazes mais para o interior da Torre. Recordo-me de que ele

disse ter estado a apenas uma porta de distância de Eduardo. Mas por que

motivo iria o Dr. Lewis mentir-me?

Page 284: Philippa gregory - a rainha branca

- Não teria sido melhor para a nossa causa se o duque se tivesse

mantido calado? - pergunto eu. - Os meus amigos, a minha família e os

meus aliados andam a recrutar homens para libertar os príncipes, mas o

duque diz-lhes que eles já morreram. Porque haveriam os meus homens de

comparecer à chamada se o seu príncipe já morreu?

- É melhor que o saibam agora do que mais tarde - diz ele

suavemente, com demasiada suavidade.

- Porquê? - digo. - Por que motivo devem sabê-lo agora, antes da

batalha?

- Para que toda a gente saiba que foi o falso rei quem deu a ordem -

diz ele. - Para que o Duque Ricardo seja considerado culpado. Os vossos

homens irão à procura de vingança.

Não consigo pensar, não consigo ver qual a importância disto.

Detecto uma mentira, ali, algures, mas não consigo apontá-la com o dedo.

Há ali algo de errado, eu sei.

- Mas quem iria duvidar de que foi Ricardo que os mandou matar?

Como vós dizeis, o assassino dos meus parentes. Por que motivo devemos

publicitar os nossos receios, confundindo os nossos soldados?

- Porque ninguém duvidaria - assegura-me ele. - Ninguém, a não ser

Ricardo, faria uma coisa dessas. Mais ninguém tiraria benefícios de um tal

crime.

Levanto-me rapidamente, com uma súbita impaciência e dou um

encontrão à mesa, fazendo cair o castiçal.

367

- Não compreendo!

Ele agarra no castiçal e a chama estremece, lançando uma sombra

terrível sobre a sua face amigável. Por momentos, vejo-o como o vi da

primeira vez, quando Cecília me chamou para dizer que o Diabo estava ali

à porta. Fico de boca aberta, assustada, e afasto-me dele, enquanto ele volta

a colocar, cuidadosamente, a vela em cima da mesa e se põe de pé, como

deve ser, já que eu, a rainha viúva, me encontro de pé.

- Podeis retirar-vos - digo despropositadamente. - Perdoai-me,

estou muito preocupada. Não sei o que pensar. Podeis ir embora.

- Quereis que vos dê uma dose de medicamento para vos ajudar a

dormir? Lamento muito a vossa dor.

- Não, agora dormirei. Agradeço-vos a companhia - respiro fundo.

Afasto o cabelo da cara. - Vós haveis-me acalmado com o vosso bom

senso. Estou em paz, agora.

Ele parece admirado.

- Mas eu não disse nada.

Abano a cabeça. Estou ansiosa por que se vá embora.

Page 285: Philippa gregory - a rainha branca

- Haveis partilhado as minhas preocupações e isso é um acto de

amizade.

- Irei falar com Lady Margarida, logo pela manhã, e dar-lhe-ei

conhecimento dos vossos receios. Pedir-lhe-ei que coloque homens seus na

Torre para sabermos notícias dos vossos filhos. Se estiverem vivos,

arranjaremos homens para os proteger. Mantê-los-emos seguros.

- Pelo menos, Ricardo está em segurança - digo sem pensar.

- Mais seguro que o irmão?

Sorrio, como uma mulher que esconde um segredo.

- Doutor, se tivésseis duas jóias preciosas e raras e receásseis a vinda

dos ladrões, iríeis colocar esses dois tesouros na mesma caixa?

- Ricardo não estava na Torre? - a sua voz não é mais do que um

sopro, os seus olhos azuis ficam esbugalhados; todo ele treme.

Coloco um dedo sobre a boca.

- Calai-vos.

- Mas foram mortos dois rapazes, na cama...

368

Foram mesmo? Oh, foram mesmo? Como pode ele estar tão certo

disso? Mantenho um rosto impassível, como se fosse de mármore,

enquanto ele me vira as costas, faz uma vénia e se dirige para a porta.

- Dizei a Lady Margarida que lhe rogo que tome conta do meu filho,

na Torre, como se fosse seu - digo-lhe.

Ele faz nova vénia e vai-se embora.

Quando as crianças acordam, digo-lhes que estou doente e deixo-me

ficar no quarto. Não deixo Isabel passar da porta, dizendo-lhe que preciso

de dormir. Mas não preciso de dormir, preciso de entender. Seguro a

cabeça nas mãos e caminho para lá e para cá, descalça, para que elas não

percebam que estou acordada, a tentar pôr o meu cérebro a funcionar. Estou

sozinha, num mundo de conspiradores especializados. O Duque de

Buckingham e Lady Margarida estão a trabalhar juntos, ou talvez estejam a

trabalhar para si próprios. Fingem servir-me, ser meus aliados, ou será que

são leais, e eu estou errada, por duvidar deles? A minha mente dá voltas e

mais voltas, e puxo o cabelo das têmporas, como se a dor me pudesse fazer

pensar.

Desejei o mal de Ricardo, o tirano, mas a sua morte pode esperar.

Ele aprisionou os meus filhos, mas não é ele que anda a espalhar rumores

sobre a sua morte. Ele mantinha-os na prisão contra a vontade deles, contra

a minha vontade; mas não andava a preparar o povo para a morte deles.

Usurpou o trono e roubou o título de Príncipe de Gales através de mentiras

e de enganos. Não precisa de os matar para fazer o que lhe apetece. Já

triunfou, sem ter de assassinar o meu filho. Conseguiu tudo o que almejava

Page 286: Philippa gregory - a rainha branca

sem sujar as mãos de sangue, portanto não tem necessidade de matar

Eduardo, neste momento. Ricardo está seguro no trono, o conselho aceitou-

o, os lordes aceitaram-no, está em périplo real através de um país que o

recebe com alegria. Está a ser preparada uma revolta, preparada por mim;

mas ele pensa que Howard lhe pôs fim. Tanto quanto sabe, está seguro. Só

precisa de manter os meus filhos como prisioneiros, até eu estar pronta a

aceitar a derrota, como Isabel me insta a fazer.

369

Mas o Duque de Buckingham é um pretendente ao trono, e seria o

legítimo herdeiro, a seguir à linhagem de Ricardo - mas apenas se os meus

filhos estivessem mortos. A sua pretensão não tem qualquer peso, a não ser

que os meus filhos morram. Se o enfermiço filho de Ricardo morresse, se

Ricardo caísse em batalha, e se Buckingham, na revolta, liderasse a parte

vencedora, ficaria com a coroa. Ninguém poderia negar que ele era o

seguinte na linha de sucessão - especialmente se todos já soubessem que os

meus filhos tinham morrido. Nessa altura, Buckingham faria exactamente o

que o meu Eduardo fez, quando reclamou a coroa para si; mas havia um

pretendente rival, na Torre. Quando o meu Eduardo entrou em Londres, à

frente de um exército vitorioso, dirigiu-se imediatamente com os seus dois

irmãos para a Torre de Londres, onde o verdadeiro rei estava preso, e

mataram-no, apesar de Henrique não ter mais força do que um inocente

rapazinho. Quando o Duque de Buckingham derrotar Ricardo, marchará

para Londres, até à Torre, dizendo que vai descobrir a verdade acerca dos

dois rapazes. Depois, haverá um intervalo, suficientemente longo para as

pessoas se lembrarem dos rumores que correram e começarem a temer o

pior, e Buckingham voltará a sair cá para fora, com um ar trágico, dizendo

que encontrou os meus filhos mortos, enterrados debaixo de uma laje ou

escondidos dentro de um armário, assassinados pelo seu cruel tio Ricardo.

E esta será a verdade, consequência dos rumores que ele mesmo andou a

espalhar. Irá dizer que, já que eles estão mortos, ele irá ocupar o trono, e

não haverá ninguém vivo para o negar.

E, aliás, Buckingham é o Condestável da Inglaterra. Tem as chaves

da Torre nas suas mãos, neste preciso momento.

Mordo o dedo e fico parada junto da janela. Isto, quanto a

Buckingham. Agora, tenho de avaliar o caso da minha grande amiga Lady

Margarida Stanley e do seu filho, Henrique Tudor. Eles são os herdeiros da

Casa de Lencastre; ela pode pensar que já é tempo de a Inglaterra voltar

novamente para os Lencastre. Tem de se associar a Buckingham e aos

meus aliados; o rapaz Tudor não tem capacidade para arranjar um número

suficiente de recrutas estrangeiros para derrotar Ricardo por si só. Passou a

maior parte da sua vida no exílio:

Page 287: Philippa gregory - a rainha branca

370

esta é a sua oportunidade de regressar à Inglaterra como rei. Ela seria

louca se se revoltasse contra Ricardo por algum outro motivo que não fosse

o trono. O seu novo marido é um aliado essencial de Ricardo; eles estão

bem posicionados dentro desta nova corte. Já negociou com Ricardo o

perdão do filho e o seu regresso à Inglaterra, em segurança. Foi autorizada

a entregar ao filho as propriedades que lhe pertenciam por herança. Iria ela

deitar tudo isto a perder, só pelo prazer de colocar o meu filho no trono,

para me fazer um favor? Porque haveria de o fazer? Por que motivo haveria

de correr um tal risco? Não será muito mais provável que esteja a trabalhar

para que o seu próprio filho possa reclamar o trono? Tanto ela como

Buckingham andam a preparar o país para a notícia de que o meu filho foi

morto pelas mãos de Ricardo.

Será Henrique Tudor suficientemente cruel para invadir a Torre,

declarando que o seu objectivo é libertá-los, estrangular os rapazes e sair de

lá com a terrível notícia de que os príncipes, por quem ele tão valentemente

lutara, estavam mortos? Será que ele e o seu grande amigo e aliado

Buckingham vão dividir o reino entre si, ficando Henrique Tudor com o

seu feudo de Gales e Buckingham com o Norte? Ou então, se Buckingham

morresse na batalha, não passaria Henrique a ser o único e incontestado

herdeiro ao trono? Seria a sua mãe capaz de mandar criados seus à Torre

não para libertar o meu filho, mas para o sufocar enquanto dorme? Será que

tem coragem para cometer um acto desses, uma mulher tão religiosa como

ela? Seria capaz de apoiar qualquer coisa em favor do seu filho, nem que

fosse a morte do meu? Não sei. Não posso saber. A única coisa de que

tenho a certeza é de que o duque e Lady Margarida, mesmo estando em

marcha para lutar pelos meus filhos, andam a espalhar a notícia de que

acreditam que os príncipes já morreram, e que o seu aliado, sem querer,

deixou escapar que os dois rapazes tinham sido mortos na cama. O único

homem que não anda a preparar o mundo para lamentar a sorte deles, a

única pessoa que não vai beneficiar com as suas mortes, é aquele que eu

considerava mortal inimigo: Ricardo de Gloucester.

Passo a manhã inteira a tentar avaliar o perigo em que me encontro,

mas nem mesmo à hora do almoço consigo ter

371

qualquer certeza. A vida dos meus filhos pode depender de quem eu

detectar como inimigo e em quem eu confiar como amigo, mas não consigo

ter a certeza. A minha sugestão - de que o meu filho Ricardo, pelo menos,

Page 288: Philippa gregory - a rainha branca

estaria a salvo e longe da Torre - é capaz de obrigar qualquer possível

assassino a fazer uma pausa; espero ter conseguido ganhar algum tempo.

À tarde, escrevo aos meus irmãos, que andam a reunir homens nos

condados do Sul da Inglaterra, para os avisar desta conspiração que pode

estar a germinar, como uma serpente dentro de um ovo, no seio da nossa

própria conspiração. Digo-lhes que o nosso inimigo, Ricardo, continua a

ser nosso inimigo, mas que a sua má vontade pode não ser nada comparada

com o perigo que os nossos aliados representam. Envio mensageiros, sem

saber se eles alguma vez conseguirão alcançar os meus irmãos, ou se irão

chegar a tempo. Mas digo-lhes sem rodeios:

Acredito que, agora, a segurança dos meus filhos, e a minha própria,

depende do facto de o Duque de Buckingham e o seu aliado, Henrique

Tudor, não conseguirem chegar a Londres. Ricardo é nosso inimigo e um

usurpador, mas creio que, se Buckingham e Tudor entrarem vitoriosos em

Londres, virão como nossos assassinos. Tendes de deter a progressão de

Buckingham. Independentemente do que fizerdes, tereis de chegar à Torre

antes dele e de Henrique Tudor, para salvar o meu filho.

Nessa noite, deixo-me ficar na janela virada para o rio, à escuta.

Isabel abre a porta do quarto onde as meninas dormem e vem para junto de

mim, o seu jovem rosto sério.

- O que se passa agora, Mãe? - diz ela. - Dizei-me, por favor. Tendes

estado aqui fechada todo o dia. Haveis recebido más notícias?

- Sim - digo-lhe. - Dizei-me, haveis escutado o cantar do rio, como

sucedeu na noite em que o meu irmão António e o meu filho Ricardo Grey

morreram?

Os seus olhos afastam-se dos meus.

- Isabel?

- Não tem sido como naquela noite - explica ela.

372

- Mas tendes ouvido alguma coisa?

- Muito ao de leve - diz ela. - Um som muito suave, parecido com

uma canção de embalar, um lamento. Vós não conseguis ouvir nada?

Abano a cabeça.

- Não, mas estou cheia de receio por causa de Eduardo.

Ela aproxima-se e coloca a sua mão na minha.

- Há mais algum novo perigo para o meu pobre irmão, neste

momento?

- Acredito que sim. Parece-me que o Duque de Buckingham se

voltará contra nós se ganhar a batalha contra o falso Rei Ricardo. Já escrevi

aos vossos tios, mas não sei se eles o conseguirão deter. Ele tem um

exército enorme. Está a deslocar-se ao longo do rio Severn, em Gales, e

Page 289: Philippa gregory - a rainha branca

depois dirigir-se-á para a Inglaterra, e eu não sei o que posso fazer. Não sei

o que poderei fazer a partir daqui, para defender o meu filho dele, para nos

manter a todos longe dele. Temos de o manter longe de Londres. Se eu

conseguisse encurralá-lo em Gales, fá-lo-ia.

Ela fica a pensar e dirige-se para a janela. O ar húmido do rio entra

por aquelas salas abafadas.

- Gostaria que começasse a chover - diz ela despreocupadamente. -

Está tanto calor. Seria tão bom se chovesse.

Uma brisa fresca assobia pelo quarto dentro, como se em resposta ao

desejo dela, e depois ouve-se o ping, ping das gotas de chuva a baterem nos

painéis da janela que está aberta. Isabel abre a janela de par em par, para

poder olhar para o céu e para as nuvens negras que correm sobre o vale do

rio.

Junto-me a ela. Vejo a chuva cair nas escuras águas do rio, grossos

pingos de chuva que formam os primeiros círculos, semelhantes a bolhas

feitas por um peixe, e depois, cada vez mais, até a superfície sedosa do rio

ficar toda marcada com os pingos que caem; a seguir, a tempestade desaba

com tal intensidade que não conseguimos ver nada para além daquela

cortina de água, como se os céus se estivessem a romper por cima da

Inglaterra. Desatamos a rir e fechamos a janela por causa da tempestade,

ficando com o rosto e os braços completamente encharcados, antes de

conseguirmos correr os ferrolhos; depois, dirigimo-nos às outras salas para

373

fechar as janelas e prender as portadas, por causa do dilúvio que cai

lá fora, como se as minhas dores e preocupações se tivessem transformado

numa tempestade de lágrimas que inunda a Inglaterra.

- Esta chuva vai provocar inundações - prevejo eu, e a minha filha

concorda, em silêncio.

Chove durante toda a noite. Isabel dorme na minha cama, como

costumava fazer em pequena, e ficamos ali quentinhas e secas, a ouvir o

som dos pingos a caírem. Conseguimos ouvir a bátega constante contra os

vidros das janelas e o ruído provocado pelo bater da chuva no rio. As

caleiras começam a ficar cheias e a chuva corre pelo telhado, com o som de

uma fonte a jorrar água, e nós acabamos por adormecer como duas deusas

das águas, ao som de chuva a cair e de água a subir.

Pela manhã, quando acordamos, está quase tão escuro como de noite

e continua a chover. A maré está cheia e Isabel vai lá abaixo, ao portão que

dá para o rio, e diz que a água já cobre os degraus. Todas as embarcações

que andam no rio estão cobertas por causa do mau tempo e os poucos botes

que navegam por obrigação são remados por homens curvados contra o

vento, as cabeças tapadas com sacos que brilham, cobertos de gotas de

Page 290: Philippa gregory - a rainha branca

água. As raparigas passam a manhã à janela, a ver passar os barcos

completamente encharcados. Eles estão a passar a um nível mais elevado,

uma vez que o rio encheu e está a começar a transbordar, e, daí a pouco, os

pequenos botes começam a ser recolhidos e amarrados, ou tirados da água,

quando o rio começa a encher ainda mais e a corrente se torna demasiado

forte. Acendemos a lareira para nos reconfortarmos, naquele dia tão

tempestuoso; está tão escuro e húmido como se estivéssemos em

Novembro, e eu jogo às cartas com as minhas filhas, deixando-as ganhar.

Como adoro o som desta chuva.

Isabel e eu dormimos abraçadas uma à outra, a ouvir a água cair com

força no telhado da abadia, em cascata sobre o pavimento. Às primeiras

horas da madrugada, começo a ouvir o som de água a gotejar, pingando cá

dentro através do telhado de ardósia; levanto-me para acender novamente a

lareira e coloco um vaso debaixo dos pingos. Isabel abre a portada e

374

diz-me que continua a chover com grande intensidade; parece-me

que vai chover todo o dia.

As miúdas brincam à Arca de Noé, Isabel lê-lhes a história da Bíblia

e depois elas ensaiam uma representação com os seus brinquedos e os

almofadões meio desengonçados, que fazem a vez de casais de animais. A

arca é a minha mesa virada ao contrário, com lençóis amarrados de perna a

perna. Deixo-as jantar dentro da arca e, antes de irem para a cama, sossego-

as, dizendo-lhes que o grande Dilúvio de Noé já aconteceu há muito tempo

e que Deus não iria enviar outro, nem sequer para punir a crueldade.

Aquela chuvada não iria fazer mais nada a não ser obrigar os homens maus

a ficarem dentro de casa, onde não poderiam fazer mal a ninguém. A

inundação irá manter todos os homens malvados longe de Londres, e nós

estaremos a salvo.

Isabel olha para mim com um ligeiro sorriso e, depois de as meninas

terem ido para a cama, pega numa vela e desce às catacumbas para ver o

nível da água do rio.

Está a subir cada vez mais, a um nível a que nunca tinha chegado

antes, diz-me ela. Pensa que acabará por inundar o corredor que conduz aos

degraus, uma subida de vários metros. Se não parar dentro de pouco tempo,

ainda subirá mais. Mas nós não corremos qualquer risco - há dois lanços de

degraus de pedra, daqui até ao rio - mas as pobres pessoas que vivem nas

margens do rio devem estar já a embalar os seus humildes haveres e a

abandonar as suas casas, por causa da água.

Na manhã seguinte, Jemma chega até nós com o vestido todo puxado

para cima, com lama até aos joelhos. As ruas estão a ficar inundadas, nas

zonas mais baixas, e já se ouvem histórias sobre casas arrastadas pela

Page 291: Philippa gregory - a rainha branca

corrente e, a montante, há pontes destruídas e aldeias isoladas. Nunca se

viu tanta chuva em Setembro e ainda não dá sinais de querer parar. Jemma

diz que não há alimentos frescos nos mercados, uma vez que muitas

estradas ficaram alagadas e os camponeses não conseguem trazer as suas

mercadorias para a cidade. O pão está mais caro, porque há falta de farinha,

e alguns padeiros não conseguem acender os fornos, porque a sua lenha

está toda molhada. Ela diz que vai passar a noite connosco - tem medo de

atravessar as ruas alagadas.

375

Na manhã seguinte, ainda continua a chover, e as meninas, outra vez

à janela, vão relatando as coisas estranhas que estão a ver. Uma vaca

afogada assusta Bridget, pois passa a flutuar mesmo por baixo da janela;

uma carroça virada foi arrastada para as águas. Toros de madeira, de uma

obra qualquer, passam a rolar na corrente e ouvimos uma grande pancada

de qualquer coisa pesada que bate contra os degraus de pedra do portão do

rio. Esta manhã, o portão é mesmo um portão de água; o corredor está

inundado e só conseguimos ver a pontinha superior do portão de ferro e um

fiozinho de luz que passa por cima dele. O rio deve ter subido quase três

metros e a subida da maré irá empurrar a água para dentro das catacumbas,

alagando o sono dos mortos.

Não espero nenhum mensageiro dos meus irmãos. Não me parece

que alguém consiga passar das regiões ocidentais para Londres, com um

tempo destes. Mas não preciso de ter notícias deles para saber o que está a

suceder. Os rios voltaram-se contra Buckingham, a maré corre em desfavor

de Henrique Tudor, a chuva desaba sobre os seus exércitos, as águas da

Inglaterra ergueram-se para proteger o seu príncipe.

376

OUTUBRO DE 1483

Ricardo, o falso rei, chocado com a traição do seu grande amigo, o

homem que promoveu a Condestável da Inglaterra, demora pouco tempo a

chegar à conclusão de que as forças reunidas pelo Duque de Buckingham

são suficientes para, em número, ultrapassar duas vezes a guarda real. Tem

de formar um exército, ordenando a todos os homens capazes da Inglaterra

que se juntem à sua facção, exigindo-lhes lealdade, como rei que é. Na sua

maioria, juntam-se a ele, ainda que lentamente. O Duque de Norfolk

conseguiu controlar a revolta nos condados do Sul. Tem a certeza de que

Londres está segura, mas não tem dúvidas de que Buckingham anda a

reunir tropas em Gales, e de que Henrique Tudor irá partir de barco, da

Page 292: Philippa gregory - a rainha branca

Bretanha, para se juntar a ele. Se Henrique conseguir trazer mil homens, o

exército do rei e o dos rebeldes estarão em pé de igualdade e ninguém se

arriscaria a fazer apostas sobre o resultado. Se trouxer mais do que isso,

Ricardo estará a lutar pela sua sobrevivência, sem grandes probabilidades,

e contra um exército comandado por Jasper Tudor, um dos mais brilhantes

comandantes que a Casa de Lencastre já teve.

Ricardo marcha em direcção a Coventry e mantém Lorde Stanley,

marido de Lady Margarida e padrasto de Henrique Tudor, bem perto de si.

O filho de Stanley, Lorde Strange, não se encontra em casa. Os criados

dizem que ele reuniu um exército enorme, formado pelos seus rendeiros e

vassalos, e que vai a caminho, para servir o seu senhor. A preocupação de

Ricardo é: ninguém sabe quem poderá ser esse senhor.

377

Ricardo conduz as suas tropas para sul de Coventry, para cortar a

passagem ao seu amigo traidor Buckingham e isolá-lo das nossas forças

que se encontram nos condados mais a sul. O plano dele é esperar que

Buckingham atravesse o rio Severn para entrar na Inglaterra, e não encontre

os seus aliados, mas o exército real, de atalaia, à sua espera, debaixo

daquela chuva imensa.

As tropas movem-se com lentidão, ao longo de estradas

completamente enlameadas. As pontes foram levadas pela corrente e os

homens têm de fazer vários quilómetros a mais, até encontrarem uma

passagem. Os cavalos dos oficiais e as tropas montadas esforçam-se por

conseguir avançar, enterrados até ao peito numa lama glutinosa; os homens

marcham de cabeça baixa, encharcados até aos ossos, e, à noite, quando

param para descansar, não conseguem acender as fogueiras, porque tudo

está ensopado.

Com dureza, Ricardo obriga-os a prosseguir, sentindo um certo

prazer por saber que o homem que ele estimava e em quem confiava mais

do que em todos os outros, Henrique Stafford, Duque de Buckingham,

também está a tentar abrir caminho pelo meio da lama, através de rios que

transbordaram, debaixo daquela chuva incessante. O tempo não deve estar

muito bom para recrutar rebeldes, pensa Ricardo. Não deve estar um tempo

muito agradável para o jovem duque, que não é um combatente experiente

como Ricardo. Não está nada de feição para um homem que conta com

aliados que têm de vir por mar. Buckingham não está certamente à espera

de que Henrique Tudor se tenha aventurado no mar, com tempestades

como esta, e não vai ter possibilidade de contactar as forças dos Rivers, nos

condados do Sul.

Então, o rei recebe boas notícias. Buckingham não está apenas a ter

de enfrentar aquela chuva torrencial que não pára, está também a ser

Page 293: Philippa gregory - a rainha branca

constantemente atacado pelos Vaughan, de Gales. Eles são os chefes locais

naquele território e não nutrem grande amor pelo jovem duque. Ele tinha

tido a esperança de que eles o deixassem passar, para lutar contra Ricardo,

talvez até o apoiassem. Mas eles não esqueceram que foi ele quem raptou

Tomás Vaughan ao seu amo, o jovem rei, e que o executou. Em cada curva

da estrada aparecem meia dúzia deles,

378

de armas apontadas, prontos a disparar contra a primeira fileira de

homens, fugindo a cavalo logo a seguir. Em cada vale, há homens

escondidos atrás das árvores, a atirarem pedras, a dispararem flechas,

enviando, a coberto da chuva, uma saraivada de lanças contra as

desnorteadas forças de Buckingham, até que os homens começam a pensar

que chuva e lanças são a mesma coisa e que lutam contra um inimigo feito

de água ao qual não podem escapar, que ataca sem piedade e sem descanso.

Buckingham não consegue que os seus mensageiros cavalguem até

Gales para trazerem os galeses leais aos Tudor. Os seus batedores são

apanhados no momento em que ficam fora de vista da coluna principal, por

isso, o seu exército não pode ir engrossando com homens experientes na

luta, como Lady Margarida lhe prometera que aconteceria. Em vez disso,

todas as noites, a cada paragem e até em plena luz do dia, na estrada, os

seus homens começam a fugir. Já dizem que ele é um chefe azarado e que a

sua campanha não terá qualquer hipótese. Cada vez que se colocam em

formação de marcha, são menos: é-lhe possível notar que a coluna que se

estende ao longo da estrada alagada já não é tão longa. Quando ele passa a

cavalo, para cima e para baixo, para os animar, eles nem olham para ele.

Mantêm a cabeça baixa, como se o optimismo do seu discurso e o fustigar

da chuva fizessem parte do mesmo ruído sem sentido.

Buckingham não tem hipótese de saber, mas calcula que Henrique

Tudor, o aliado que ele planeia trair, também esteja a ser derrotado por

aquela muralha de água que nunca mais pára. Está imobilizado no porto

pela mesma tempestade que está a levar o exército de Buckingham pelos

ares. Henrique Tudor tem cinco mil mercenários, uma força maciça, uma

força imbatível, custeada e armada pelo Duque da Bretanha - o suficiente

para tomar a Inglaterra sozinho. Tem cavaleiros, cavalos, canhões e cinco

navios, uma expedição que não pode falhar - o problema é o vento e aquela

chuva intensa. Os barcos abanam e guinam; mesmo abrigados dentro do

porto, fazem ressoar as cordas de amarração. Os homens, apinhados lá

dentro para a curta viagem de travessia do Canal da Mancha, vomitam com

o enjoo, sentindo-se mal naquela

379

Page 294: Philippa gregory - a rainha branca

prisão. Henrique Tudor caminha pela doca como um leão enjaulado,

à espera de uma aberta nas nuvens, à espera de que o vento vire. Os céus

derramam-se sem piedade sobre a sua cabeça cor de cobre. O horizonte

apresenta-se negro, com mais chuva, o vento sopra em direcção a terra,

sempre para terra, mantendo os navios a abanarem contra as muralhas do

porto. Do outro lado do mar, ele sabe-o, o seu destino está a ser decidido.

Se Buckingham derrotar Ricardo sem ele, sabe que não terá qualquer

hipótese de chegar ao trono. Um usurpador será trocado pelo outro e ele

terá de continuar no exílio. Tem de estar presente na batalha e matar aquele

que sair vencedor. Sabe que tem de partir para o mar imediatamente, mas

não pode fazê-lo: a chuva cai a cântaros. Não pode ir para lado nenhum.

Buckingham não tem meios de saber disto, não sabe de nada. A sua

vida está resumida a uma longa marcha debaixo de uma chuva inclemente

e, cada vez que olha para trás, por cima do ombro, vê menos homens

seguirem-no. Eles estão exaustos, há dias que não ingerem comida quente,

seguem aos tropeções, enterrados na lama até aos joelhos, e, quando ele

lhes diz: “Daqui a pouco chegaremos ao local da travessia, à passagem para

a Inglaterra e a terra enxuta, graças a Deus”, eles acenam com a cabeça,

mas não acreditam nele.

A estrada por onde seguem faz uma curva que conduz à travessia

pelo rio Severn, num local onde as águas são baixas e suficientemente

largas para deixar passar o exército para a Inglaterra, onde irão enfrentar o

inimigo, em vez de andarem a lutar contra os elementos. Toda a gente

conhece aquele ponto de passagem - há vários quilómetros que

Buckingham vem a prometê-lo. O leito do rio é firme e empedrado e a água

nunca tem mais do que alguns centímetros de altura. Há séculos que os

homens passam para Gales, e no sentido contrário, atravessando neste

local; é a porta de entrada na Inglaterra. Existe uma estalagem do lado

galês e uma pequena aldeia no lado da Inglaterra. Eles já estão à espera de

que a passagem esteja inundada, que o rio esteja mais fundo. É possível que

haja sacos com areia à porta da estalagem, mas, quando ouvem o rugido

das águas, param todos como se fossem um só, horrorizados.

380

Não há forma de atravessar. Não há terra à vista. A estalagem, do

lado de Gales, está debaixo de água, a aldeia, do outro lado, desapareceu

completamente. Nem se pode dizer que existe um rio, saiu de tal modo para

fora das suas margens que se transformou num lago, um mar de água. Nem

conseguem avistar o outro lado: a Inglaterra. Nem conseguem sequer dizer

para que lado o rio corre. Aquilo já não é um rio, mas um mar interior, com

ondas e as suas próprias tempestades. A água invadiu a terra, engoliu-a,

Page 295: Philippa gregory - a rainha branca

como se ela nunca lá tivesse estado. Ali já não há Inglaterra nem Gales, é

água, água triunfante. A água tomou conta de tudo e nenhum homem irá

desafiá-la.

É óbvio que ninguém poderá atravessar. Eles olham em vão, à

procura de pontos de referência conhecidos, do caminho que existia pelo

meio das águas pouco profundas do rio, mas ele está lá muito para o fundo,

debaixo da água. Alguém pensa ter visto alguma coisa, no meio da

corrente, mas, com um estremeção, percebe que são as copas das árvores.

O rio afogou uma floresta inteira: até as árvores do lado de Gales se

esforçam desesperadamente para conseguir respirar. O mundo já não é

como era. Os exércitos não se podem juntar; a água interveio e conquistou

tudo. A revolta de Buckingham chegou ao fim.

Buckingham não consegue dizer uma palavra, não dá uma única

ordem. Limita-se a fazer um pequeno gesto com a mão, como se estivesse a

render-se, um aceno com a palma da mão virada para o ar: não para os seus

homens, mas para aquela inundação que o destruiu. É como se estivesse a

conceder a vitória à água, à força da água. Vira a cabeça ao cavalo e

cavalga dali para fora, afastando-se daquelas profundidades agitadas, e os

homens deixam-no partir. Já perceberam que acabou tudo. Sabem que a

rebelião chegou ao fim, derrotada pelas águas da Inglaterra que se

ergueram, como se tivessem sido convocadas pela própria deusa da água.

381

NOVEMBRO DE 1483

Está escuro, são quase onze horas. Encontro-me de joelhos, a rezar,

aos pés da minha cama, antes de me deitar, quando ouço uma ligeira

pancada na grande porta exterior. O meu coração dá um salto e lembro-me

imediatamente do meu filho Eduardo, do meu filho Ricardo e penso logo

que me vieram buscar a mim. Consigo pôr-me em pé, atiro uma capa por

cima da camisa de dormir, puxo o capuz para a frente para cobrir o cabelo e

corro para a porta.

Consigo perceber que as ruas estão calmas agora, embora tivessem

fervilhado durante o dia com o regresso a Londres do Rei Ricardo, e tem-se

falado muito sobre a vingança que ele vai escolher para os rebeldes, se irá

invadir o santuário para me atacar, já que tem provas de que fui eu quem

levantou o país contra ele. Ele sabe-o, e conhece os meus aliados: Lady

Margarida e o falso Duque de Buckingham.

Ninguém é capaz de me dizer se os meus parentes estão a salvo,

capturados ou mortos: os meus três queridos irmãos e o meu filho Tomás

Grey, que acompanhavam os revoltosos no Hampshire e em Kent. Ouço

todo o tipo de rumores; que eles fugiram para se juntarem a Henrique

Page 296: Philippa gregory - a rainha branca

Tudor, na Bretanha, que estão mortos, no meio de um campo, que foram

executados por Ricardo, que viraram a casaca e se juntaram a ele. Tenho de

esperar, como toda a gente no país, por notícias fiáveis.

As chuvadas fizeram desaparecer muitas estradas, destruíram pontes,

isolaram cidades inteiras. As novidades chegam a Londres em irrupções

agitadas e ninguém consegue ter a certeza do que é verdade. Mas a

tempestade esgotou-se; a chuva

382

parou. Quando os rios regressarem ao seu lugar, terei notícias da

minha família e das suas batalhas. Rezo para que tenham conseguido fugir

para longe da Inglaterra. Em caso de derrota, o seu plano era seguir para

casa da irmã de Eduardo, Margarida da Borgonha, ir buscar o meu filho

Ricardo ao local onde está escondido e continuar a guerra a partir de lá.

Tenho a certeza de que, agora, o rei Ricardo vai agarrar o país com a força

de um tirano.

Ouve-se uma pancada repetida, na porta, e alguém tenta abrir o

fecho. Não é um fugitivo assustado, não é o meu filho. Aproximo-me do

enorme portal de madeira e abro a grelha para olhar lá para fora. É um

homem da minha altura, o capuz puxado para a frente, escondendo-lhe o

rosto.

- Sim? - digo imediatamente.

- Preciso de falar com a rainha viúva - murmura ele. - É uma

mensagem de grande importância.

- Eu sou a rainha viúva - digo eu. - Dizei-me qual é a mensagem.

Ele olha para a esquerda e para a direita.

- Irmã, deixai-me entrar - diz ele.

Não me parece, nem um pouco, que seja um dos meus irmãos.

- Não sou vossa irmã. Quem achais vós que sois?

Ele puxa o capuz para trás e levanta a tocha que transporta consigo,

para que eu possa ver o seu belo rosto moreno. Não é um dos meus irmãos,

mas o meu cunhado, o meu inimigo, Ricardo.

- Creio que sou o rei - diz ele com um humor sarcástico.

- Pois eu não - digo sem sorrir; mas isto fá-lo rir.

- Não vale a pena - aconselha-me ele. - Acabou. Fui ordenado e

coroado, e a vossa revolta foi completamente esmagada. Eu sou o rei,

independentemente dos vossos desejos. Estou sozinho e desarmado.

Deixai-me entrar, irmã Isabel, para bem de todos nós.

Apesar de tudo o que se passou, é isso que faço. Corro os ferrolhos

da pequena porta da lanterna, abro-a e ele entra. Aferrolho-a imediatamente

a seguir.

Page 297: Philippa gregory - a rainha branca

- O que pretendeis? - pergunto-lhe. - Tenho um criado por perto que

me ouvirá se o chamar. Há sangue entre mim e vós,

383

Ricardo. Haveis matado o meu irmão e o meu filho. Nunca vos

perdoarei por isso. Roguei-vos uma praga pelo que haveis feito.

- Não estou à espera do vosso perdão - diz ele. - Nem sequer o quero.

Vós sabeis quão longe chegaram as vossas conspirações contra mim. Ter-

me-íeis matado se tivésseis tido oportunidade. Houve uma guerra entre nós

os dois. E sabei-lo tão bem quanto eu. E vós já vos haveis vingado. Bem

sabeis, e eu sei, os sofrimentos que me haveis causado. Haveis lançado um

feitiço contra mim, o peito dói-me e o meu braço perde a força, sem aviso.

O braço com que seguro a espada - lembra-me ele. - O que poderia ser pior

para mim? Haveis amaldiçoado o meu braço que prende a espada. Seria

bom rezardes para que eu nunca venha a ter de vos defender.

Olho-o com atenção. Tem apenas trinta e dois anos, mas as sombras

que tem debaixo dos olhos e as rugas do seu rosto são as de um homem

mais velho. Parece que está assombrado. Imagino o pavor que sente de que

o braço não lhe obedeça em batalha. Toda a vida se esforçou por ser tão

forte como os irmãos, mais altos e mais musculados. Agora, algo lhe está a

minar as forças. Estremeço.

- Se estais doente, deveríeis consultar um médico. Pareceis uma

criança, atribuindo as culpas da vossa fraqueza à magia. Talvez seja tudo

imaginação vossa.

Ele abana a cabeça.

- Não vim aqui para me lamentar. Vim por outro motivo - detém-se,

e olha para mim. Conserva aquele ar franco dos Iorque; tem o mesmo olhar

sincero do meu marido. - Dizei-me, tendes o vosso filho Eduardo em

segurança? - pergunta-me.

Sinto o coração encolher-se de dor.

- Porque perguntais? E logo vós? Vós, que mo haveis tirado?

- Será que sereis capaz de me responder? Tendes Eduardo e Ricardo

em local seguro?

- Não - digo eu. Sentia-me capaz de gritar, como uma mãe

desgostosa, mas não na frente daquele homem. - Porquê? Porque

perguntais?

Ele solta um suspiro e deixa-se cair na cadeira do porteiro, com a

cabeça entre as mãos.

- Vós não os tendes na Torre? - pergunto-lhe. - Os meus filhos? Não

os tendes lá presos?

384

Page 298: Philippa gregory - a rainha branca

Ele abana a cabeça.

- Havei-los perdido? Haveis perdido os meus filhos?

Continua em silêncio, apenas diz que sim, acenando a

cabeça.

- Eu rezei para que vós tivésseis conseguido tirá-los de lá para fora -

diz ele. - Em nome de Deus, dizei-me! Se o haveis feito, eu não os

perseguirei, não lhes farei qualquer mal. Podeis escolher uma relíquia sobre

a qual eu mesmo o jurarei. Jurarei que os deixarei em paz, seja para onde

for que os tenhais enviado. Nem sequer vos perguntarei para onde. Dizei-

me apenas que os tendes a salvo, preciso de o saber, tenho de saber. Estou a

enlouquecer, por não saber.

Sem palavras, limito-me a abanar a cabeça.

Ele esfrega o rosto e os olhos, como se estivessem cheios de areia

por não ter dormido.

- Fui directamente para a Torre - diz ele, falando por entre os dedos.

- Logo que entrei em Londres. Estava com receio. Toda a gente diz, na

Inglaterra, que eles estão mortos. O pessoal de Lady Margarida Beaufort

contou a toda a gente que os príncipes tinham morrido. O Duque de

Buckingham colocou o vosso exército ao seu serviço, para que lutassem

por ele, para conseguir o trono, dizendo-lhes que os príncipes tinham

morrido às minhas mãos e que se deviam vingar de mim. Convenceu-os de

que os iria conduzir à vingança pela morte dos príncipes.

- Vós não os haveis matado?

- Não, eu não! - diz ele. - Porque faria uma coisa dessas? Pensai!

Pensai bem! Para que haveria eu de os matar? Porquê, nesta altura? Quando

os vossos homens atacaram a Torre, ordenei que os mantivessem mais para

o interior da Torre. Eram vigiados de dia e de noite; não os podia ter morto

nessa altura, mesmo que o tivesse desejado. Estiveram sempre protegidos

pelos guardas, qualquer um deles teria desconfiado, e acabariam por dar o

alarme. Transformei-os em bastardos, e desonrei-vos. Os vossos filhos não

constituem uma ameaça para mim, tal qual como os vossos irmãos, homens

derrotados.

- Mas haveis matado o meu irmão António - digo com desdém.

385

- Ele constituía uma ameaça para mim - responde Ricardo.

- Ele poderia ter formado um exército e sabia comandar os homens.

Era melhor soldado do que eu. Os vossos filhos não. As vossas filhas

também não. Elas não são uma ameaça para mim. Não estou a ameaçá-las.

Nem vou matá-las.

Page 299: Philippa gregory - a rainha branca

- Então, onde é que eles estão? - grito eu. - Onde está o meu filho

Eduardo?

- Eu nem sequer sei se eles estão vivos ou mortos - diz ele cheio de

infelicidade. - Nem quem ordenou a sua morte ou captura. Pensava que vós

os tivésseis tirado de lá. Foi por isso que vim aqui. Se não fostes vós, então

quem foi? Haveis autorizado alguém a levá-los? Haverá alguém que os

possa ter consigo sem o vosso conhecimento? Que os mantenha como

reféns?

Abano a cabeça, não consigo pensar. É a pergunta mais difícil que

alguma vez vou ter de enfrentar na vida e estou embotada com a dor.

- Não consigo pensar - digo com desespero.

- Tentai - diz ele. - Vós sabeis quem são os vossos aliados, os vossos

amigos secretos. Os meus inimigos encobertos. Sabeis o que são capazes de

fazer. Sabeis aquilo que vos prometeram, o que haveis planeado com eles.

Pensai.

Levo as mãos à cabeça e dou alguns passos para trás e para a frente,

por algum tempo. Talvez Ricardo me esteja a mentir, talvez tenha matado

Eduardo e o pobre pequeno pajem e venha aqui para atirar as culpas para

cima de outras pessoas. Mas, por outro lado - como ele diz -, não tem

razões para o fazer, e, também, porque não iria admiti-lo e gabar-se disso?

Quem se atreveria sequer a queixar-se, agora que ele conseguiu acabar com

a revolta? Que razões teria ele para vir aqui falar comigo? Quando o meu

marido assassinou o Rei Henrique, fez com que o seu corpo fosse mostrado

ao povo. Fez-lhe um funeral condigno. O principal objectivo de o matar foi

mostrar ao mundo que a linhagem dele tinha acabado. Se Ricardo tivesse

mandado matar os meus filhos para acabar com a descendência de

Eduardo, tê-lo-ia anunciado, agora que regressou a Londres em triunfo, e

entregar-me-ia os corpos deles para eu os sepultar. Poderia sempre dizer

que tinham morrido de doença. Melhor ainda, poderia ter dito que

386

tinha sido Buckingham que os matara. Poderia atirar as culpas para

cima de Buckingham, far-lhes-ia um funeral de estado e ninguém poderia

fazer outra coisa a não ser lamentar a sorte deles.

Portanto, talvez o Duque de Buckingham os tenha mandado matar; a

verdade escondida por trás dos rumores da morte deles? Com o

desaparecimento dos dois rapazes, ele ficaria dois passos mais próximo do

trono. Ou teria Lady Margarida dado ordem para os matarem, abrindo

caminho para o seu filho, Henrique Tudor? Tudor e Buckingham são os

mais beneficiados com a morte dos meus filhos. Passam a ser os herdeiros

seguintes se os meus filhos morrerem. Será possível que Lady Margarida

tenha ordenado a morte deles, enquanto afirma ser minha amiga? Poderá

Page 300: Philippa gregory - a rainha branca

ter ajustado a sua consciência piedosa ao ponto de fazer uma coisa destas?

Será que Buckingham foi capaz de assassinar os próprios sobrinhos,

enquanto jurava que os queria libertar?

- Haveis procurado os corpos deles? - pergunto-lhe em voz baixa.

- Virei a Torre do avesso e mandei interrogar os criados que os

serviam. Eles dizem que os deitaram na cama. De manhã, tinham

desaparecido.

- Eles são criados vossos! - digo com agressividade. - Obedecem às

vossas ordens. Os meus filhos morreram à vossa guarda. Esperais

sinceramente que eu acredite que a vossa mão não está por trás da morte

deles? Esperais que eu acredite que eles simplesmente desapareceram?

Ele acena com a cabeça.

- Espero que acrediteis que eles morreram, ou foram levados, sem ser

por minha ordem, sem o meu conhecimento e sem o meu consentimento,

enquanto eu estava longe, preparando-me para a batalha. Para lutar contra

os vossos irmãos, na realidade. Numa noite.

- Que noite? - pergunto-lhe.

- A noite em que começou a chover.

Assinto com a cabeça, recordando a voz suave que cantou a canção

de embalar para Isabel, tão baixinho que eu não a consegui ouvir.

- Oh, nessa noite.

387

Ele hesita.

- Acreditais em mim, que estou inocente, que não tive nada que ver

com as suas mortes?

Olho-o de frente, o homem que o meu marido adorava; o seu irmão.

O homem que lutou ao lado do meu marido, pela minha família e pelos

meus filhos. O homem que matou o meu irmão e o meu filho Grey. O

homem que pode ter matado o meu filho real Eduardo.

- Não - digo com frieza. - Não acredito em vós. Não confio em vós.

Mas não tenho a certeza. Estou terrivelmente confusa com tudo isto.

Ele concorda, como se estivesse a aceitar um julgamento injusto.

- Comigo acontece o mesmo - refere ele, quase como um aparte. -

Não sei nada, não confio em ninguém. Matámos todas as certezas, nesta

guerra de primos, e a única coisa que sobrou foi a desconfiança.

-mO que ides fazer agora? - pergunto.

- Não vou fazer nada, não vou dizer nada - decide ele, com uma voz

débil e cansada. - Ninguém se atreverá a fazer-me perguntas directamente,

mesmo que suspeitem todos de mim. Não direi nada, e as pessoas que

pensem o que quiserem. Eu não sei o que aconteceu aos vossos rapazes,

mas ninguém vai acreditar em mim. Se os encontrasse vivos, mostrá-los-ia

Page 301: Philippa gregory - a rainha branca

a toda a gente, para provar a minha inocência. Se encontrasse os seus

corpos, mostrá-los-ia, e culparia Buckingham. Mas não os tenho, nem

vivos nem mortos, por isso, não me posso defender. Todos irão pensar que

mandei matar rapazes que estavam a meu cuidado, a sangue frio, sem um

bom motivo. Irão dizer que sou um monstro - faz uma pausa. - Faça o que

fizer na vida, daqui para a frente, terei sempre esta sombra negra a pairar

por cima de mim. A única coisa que as pessoas irão recordar sobre mim é

este crime - abana a cabeça. - E eu não o cometi, nem sei quem foi, nem

sequer sei se foi realmente cometido.

Cala-se.

- E vós, que pensais fazer? - pergunta, como se por acaso.

- Eu?

- Haveis-vos refugiado aqui para que as vossas filhas estivessem em

segurança, quando vos convencestes de que os

388

vossos filhos estavam em perigo, por minha causa - recorda-me ele. -

O pior já aconteceu. Os irmãos delas já não existem: o que ides fazer com

elas, com vós mesma? Não há qualquer razão para continuardes refugiadas,

neste momento; já não sois a família real, com um herdeiro que possa

reclamar o trono. Não sois mãe de nada mais que raparigas.

Quando ele o diz, a perda de Eduardo atinge-me subitamente, deixo

escapar um gemido e sinto uma dor nas entranhas, semelhante às que senti

quando ele nasceu. Caio de joelhos sobre o chão de pedra, e dobro-me,

cheia de dores. Consigo ouvir os meus gemidos e percebo que estou a

mover-me para trás e para a frente.

Ele não se move para me confortar, nem sequer me tenta erguer. Fica

sentado na cadeira, com a cabeça escura pousada na mão, a observar-me,

enquanto eu estou ali a gemer, como uma mulher do campo que lamenta a

morte do seu filho mais velho. Não diz nada que possa atenuar a minha dor

ou fazê-la estancar. Deixa-me chorar. Fica sentado junto de mim, durante

bastante tempo, e deixa-me chorar.

Ao fim de algum tempo, pego na orla da minha capa e limpo o rosto

molhado, sento-me nos calcanhares e olho para ele.

- Lamento a vossa perda - diz ele formalmente, como se eu nào

estivesse ajoelhada no chão de pedra, com o cabelo desgrenhado e o rosto

coberto de lágrimas. - Não fui eu quem o ordenou, não fui eu que o fiz.

Tomei o trono, sem fazer mal a qualquer um deles. Não iria fazê-lo depois.

Eram filhos de Eduardo. Eu amava-os, por ele. E Deus sabe como eu

gostava dele.

- Eu sei disso, apesar de tudo - digo de maneira formal, como ele.

Ele põe-se de pé.

Page 302: Philippa gregory - a rainha branca

- Ireis abandonar o refúgio agora? - pergunta-me. - Não tendes nada

a ganhar ficando aqui.

- Já não tenho nada - concordo com ele. - Nada.

- Farei um acordo entre nós os dois - diz ele. - Prometer-vos-ei

segurança e um tratamento condigno para as vossas filhas se sairdes daqui.

As mais velhas podem vir para a corte. Tratá-las-ei como minhas sobrinhas,

com dignidade. Vós podeis

389

vir com elas. Farei com que casem com homens bons, com a vossa

aprovação.

- Quero voltar para a minha casa - digo eu. - E levá-las comigo.

Ele sacode a cabeça.

- Lamento, mas não posso autorizar isso. Ficarei com as

vossas filhas na corte, e vós podereis viver em Heytesbury, ao

cuidado de Sir João Nesfield, por algum tempo. Lamento, mas não posso

confiar em vós se estiverdes entre os vossos rendeiros e parentes - hesita. -

Não vos posso deixar ficar num local onde possais reunir homens contra

mim. Não posso permitir que fiqueis num lugar onde poderíeis

encontrar homens com quem pudésseis conspirar. Não é que suspeite de

vós, compreendei: é apenas porque não consigo confiar em ninguém.

Nunca confio em ninguém, em parte nenhuma.

Ouvem-se passos por trás dele e ele vira-se de rompante,

desembainhando o punhal, pronto a atacar. Ponho-me de pé num salto e

agarro-lhe o braço direito, puxando-o para baixo com facilidade: ele está

terrivelmente fraco. Recordo a maldição que lhe lancei.

- Acalmai-vos - digo eu. - Deve ser uma das raparigas.

Ele dá um passo atrás e Isabel sai das sombras, colocando-

-se a meu lado. Está de camisa de noite, com uma capa colocada por

cima, o cabelo entrançado, por baixo da touca de dormir. Já está tão alta

quanto eu. Fica ali ao meu lado e olha para o tio com um ar sério.

- Vossa Graça - diz ela, com umapequena vénia.

Ele quase não se inclina; fica a olhar para ela, espantado.

- Estais crescida, Isabel - hesita. - Sois a Princesa Isabel? Quase não

seria capaz de vos reconhecer. A última vez que vos vi ainda éreis uma

menina, e aqui estais... vós.

Olho para ela e, para meu espanto, vejo o rubor subir-lhe ao rosto.

Ela fica corada perante o olhar espantado dele. Passa a mão pelo cabelo

como se desejasse estar devidamente vestida e não descalça, como uma

criança.

- Ide para o vosso quarto - digo-lhe abruptamente.

Page 303: Philippa gregory - a rainha branca

Ela faz uma vénia e volta-se, obedecendo imediatamente, mas

detém-se à porta.

- É por causa de Eduardo? - pergunta ela. - Ele está bem?

390

Ricardo olha para mim, para saber se lhe poderá contar a verdade. Eu

viro-me para ela.

- Ide para o vosso quarto. Falarei convosco mais tarde.

Ricardo endireita-se.

- Princesa Isabel - diz ele calmamente.

Ela detém-se, mais uma vez, embora lhe tenham dado ordem para

sair, e volta-se para ele.

- Sim, Vossa Graça?

- Lamento dizer-vos que os vossos irmãos desapareceram, mas

gostaria que soubésseis que não foi por minha culpa. Desapareceram dos

seus aposentos na Torre e ninguém me consegue dizer se estão vivos ou

mortos. Vim aqui falar com a vossa mãe, esta noite, para saber se ela tinha

conseguido tirá-los de lá.

O rápido olhar que ela me dirigiu não o informaria de nada. Eu sei

que ela está a pensar que, pelo menos, o nosso pequeno Ricardo está longe,

em segurança, na Flandres, mas a sua expressão não deixa transparecer

absolutamente nada.

- Os meus irmãos desapareceram? - pergunta ela, sem perceber.

- É provável que estejam mortos - digo eu, a minha voz áspera, por

causa do desgosto.

- Vós não sabeis onde eles se encontram? - pergunta ela ao rei.

- Juro perante Deus que gostaria de o saber - diz ele. - Não sabendo

onde eles estão, ou se estão em segurança, todos irão pensar que morreram

e culpar-me por isso.

- Vós éreis o responsável por eles - recordo-lhe. - E porque haveria

alguém de os tomar como reféns, sem dizer nada? No mínimo, haveis

permitido que o meu filho morresse, enquanto lutáveis para manter o trono

que era dele por direito.

Ele acena com a cabeça, como se concordasse em aceitar essa parte

da culpa, e depois prepara-se para ir embora. Isabel e eu ficamos a observá-

lo, enquanto ele abre os fechos da porta.

- Não vou perdoar este acto praticado contra mim e contra a minha

casa - aviso-o. - Seja quem for que tenha matado os meus filhos, irei lançar

uma maldição sobre a sua família e

391

Page 304: Philippa gregory - a rainha branca

nunca irão conseguir ter um filho primogénito para herdar. Quem

quer que tenha levado o meu filho, irá perder o seu. Passará a vida ansiando

por um herdeiro. Irá enterrar o seu primogénito, e sentir a sua falta, pois eu

nem sequer tenho possibilidade de enterrar os meus.

Ele encolhe os ombros.

- Amaldiçoai-o, seja quem for que o tenha feito - diz ele com

indiferença. - Destruí a casa dele. Porque ele destruiu a minha reputação e a

minha paz.

- Ambas o amaldiçoaremos - diz Isabel junto de mim, com um braço

em volta da minha cintura. - Irá pagar por ter levado o nosso menino. Irá

arrepender-se da perda que nos causou. Arrepender-se-á desta terrível

crueldade. Irá sentir remorsos. Mesmo que nunca cheguemos a saber quem

o fez.

- Oh, mas iremos saber - acrescento eu, fazendo coro. - Ficaremos a

saber quem foi, através da morte dos seus filhos. Quando o seu filho e

herdeiro morrer, saberemos quem foi. Saberemos que a maldição que lhe

lançámos continua a fazer efeito ao longo dos anos, geração atrás de

geração, até que a sua linhagem acabe. Quando tiver de colocar o seu

próprio filho no túmulo, será a nossa maldição que o enterrará. E, nessa

altura, saberemos quem levou o nosso menino, e ele irá ficar a saber que a

nossa maldição lhe tirou aquilo que ele nos roubou. Quando ele só tiver

filhas como herdeiras, ficaremos a saber quem foi.

Ele atravessa a porta e olha para trás, para nós as duas, um sorriso

estranho nos lábios.

- Ainda não haveis percebido que só há uma coisa pior do que não

conseguir aquilo que desejamos? - pergunta ele. - Como aconteceu

comigo? Desejei ser rei, agora sou rei e isso não me trouxe qualquer

felicidade. Isabel, a vossa mãe não vos preveniu para que tivésseis cuidado,

quando expressais algum desejo?

- Ela avisou-me, sim - diz ela com firmeza. - E, desde que vós vos

haveis apoderado do trono do meu pai e nos haveis tirado o meu tio e os

meus adorados irmãos, aprendi a não desejar nada.

- Então, ela faria bem em avisar-vos em relação aos resultados da

vossa maldição - volta-se para mim com um sorriso

392

amargo. - Recordais-vos do vento que haveis convocado para

destruir Warwick, que o empurrou para longe de Calais, fazendo com que a

sua filha perdesse o seu bebé em alto mar? Foi uma arma a nosso favor que

mais ninguém poderia ter convocado. Mas recordais-vos igualmente de que

a tempestade durou demasiado tempo e quase atirou o vosso marido para o

fundo do mar, e todos os que estávamos com ele?

Page 305: Philippa gregory - a rainha branca

Assinto com a cabeça.

- As vossas maldições prolongam-se por demasiado tempo e atingem

as pessoas erradas - diz ele. - Talvez um dia possais vir a desejar que o meu

braço fosse suficientemente forte para vos defender. Talvez chegue o dia

em que tenhais de lamentar a morte do filho e herdeiro de alguém, mesmo

que esse alguém tenha sido o culpado, mesmo que a vossa maldição se

torne realidade.

A vingança de Ricardo, o rei, cai de forma pesada sobre os lordes e

os chefes da rebelião. Perdoa aos homens menos importantes, pois

considera que foram enganados. Descobre que Margarida Beaufort, esposa

do seu aliado, Lorde Stanley, foi a cabecilha da conspiração entre o filho e

o Duque de Buckingham, e expulsa-a para a casa do marido e dá ordens

para que seja vigiada de perto. Os aliados dela - o Bispo Morton e o Dr.

Lewis - conseguem fugir para fora do país. O meu filho Tomás Grey saiu

do país sem dificuldade e encontra-se na corte de Henrique Tudor, na

Bretanha. É uma corte de homens jovens, rebeldes, cheios de esperança,

ambição e desejo.

O Rei Ricardo acusa o meu filho Tomás Grey de rebeldia e de

adultério, como se traição e amor fossem crimes semelhantes. Acusa-o de

traição e põe a cabeça dele a prémio. Tomás escreve-me da Bretanha e diz-

me que, se Henrique Tudor tivesse conseguido desembarcar, de certeza que

o resultado da revolução nos teria sido favorável. A frota deles foi

desbaratada pela tempestade que Isabel e eu fizemos cair sobre a cabeça de

Buckingham. O jovem rapaz que disse que

393

nos viria ajudar quase morreu afogado. Tomás não tem dúvidas de

que Henrique Tudor conseguirá reunir um exército suficientemente grande,

capaz de derrotar mesmo um príncipe de Iorque. Diz-me que Henrique vai

voltar à Inglaterra, mal as tempestades de Inverno amainem, e que, desta

vez, vai ganhar.

E colocar-se a si próprio no trono - escrevo eu ao meu filho. —Já não

há necessidade de fingir que está a lutar pela herança dos meus filhos.

O meu filho responde-me: “Não, Henrique Tudor não luta por

ninguém a não ser por si próprio, é provavelmente o que sempre fez e

continuará a fazer. Mas o príncipe, como ele se autodenomina, trará a coroa

para a casa de Iorque, uma vez que se casará com Isabel, fazendo dela

Rainha da Inglaterra, e o filho herdeiro que tiverem será Rei da Inglaterra.”

“O vosso filho deveria ter sido Rei da Inglaterra”, escreve Tomás,

“mas a vossa filha ainda pode vir a ser rainha. Posso dizer a Henrique que

Isabel o desposará se ele derrotar Ricardo? Isso levaria todos os nossos

parentes e afinidades para o seu lado, e eu não consigo ver que tipo de

Page 306: Philippa gregory - a rainha branca

futuro vós e as minhas meias-irmãs poderão ter, enquanto o usurpador

Ricardo estiver no trono, e enquanto estiverdes refugiadas, em santuário.”

Respondo-lhe:

Dizei-lhe que cumprirei a promessa feita à sua mãe, Lady Margarida.

Isabel será sua esposa, quando ele derrotar Ricardo e tomar o trono da

Inglaterra. Que Iorque e Lencastre se tornem uma casa só e que acabem as

guerras.

Detenho-me um pouco e acrescento uma nota:

Perguntai-lhe se a mãe sabe o que aconteceu ao meu filho Eduardo.

394

DEZEMBRO DE 1483

Espero até à passagem do ano, a noite mais escura do ano, e aguardo

pela hora mais sombria, entre a meia-noite e a uma da manhã; então, pego

numa vela, ponho uma capa quente por cima do meu vestido de Inverno e

bato à porta de Isabel.

- Vou agora - digo-lhe. - Quereis vir?

Ela está pronta. Traz a sua vela e a capa, com o capuz puxado para a

frente a tapar-lhe o cabelo claro.

- Claro que sim. A perda também foi minha - diz ela. - Também

quero vingança. Aqueles que mataram o meu irmão colocaram-me um

passo mais próxima do trono, a um passo mais longe da vida que poderia

ter tido, lançando-me para o meio do perigo. Também não lhes agradeço

por isso. E o meu irmão estava sozinho, sem protecção, afastado de nós.

Deveria ter sido alguém feito de pedra, para matar o nosso príncipe e

aquele pobre pequeno pajem. Quem quer que tenha sido merece uma

maldição. Amaldiçoá-lo-ei.

- Irá recair sobre o seu filho - aviso-a. - E o filho dele, a seguir.

Acabará com a sua linhagem.

Os seus olhos verdes brilham à luz da vela, parecem-se com os de

um gato.

- Que seja - diz ela, como a sua avó Jacquetta dizia, quando

amaldiçoava ou abençoava.

Sigo à frente e atravessamos a silenciosa cripta, descemos as escadas

para as catacumbas e mais um lanço de frios degraus de pedra, húmidos e

gelados, debaixo dos nossos pés, até ouvirmos a água do rio bater no

portão.

395

Page 307: Philippa gregory - a rainha branca

Isabel destranca o portão de ferro e, juntas, conseguimos abri-lo. O

rio vai alto, ao nível de uma enchente de Inverno, escuro e vítreo, passando

rapidamente por nós, no meio da escuridão da noite. Mas não é nada

comparado com a tempestade que Isabel e eu convocámos para mantermos

Buckingham e Henrique Tudor longe de Londres. Se eu ao menos tivesse

percebido que alguém iria em busca do meu filho, naquela noite, teria

arranjado um barco, mesmo no meio de tal inundação, e teria ido ao seu

encontro. Ter-me-ia metido naquelas águas agitadas, para o salvar.

- Como vamos fazer? - Isabel está a tremer de frio e medo.

- Nós não fazemos nada - digo eu. - Apenas diremos a Melusina. Ela

é nossa antepassada, a nossa guia, irá sentir a perda do meu filho e

herdeiro, tanto como nós. Irá à procura daqueles que o levaram e, por sua

vez, roubar-lhes-á os seus herdeiros.

Desdobro um pedaço de papel que trazia no bolso e entrego-o a

Isabel.

- Deveis lê-lo em voz alta - digo eu. Seguro nas duas velas para que

ela possa lê-lo às águas que se movem com rapidez.

- Ficai a saber que o nosso filho Eduardo foi indevidamente levado

para a Torre, como prisioneiro, pelo seu tio Ricardo, a quem agora chamam

rei. Ficai a saber que lhe enviámos um companheiro, um pobre rapazinho

que se fazia passar pelo meu filho mais novo, Ricardo, que nós

conseguimos enviar em segurança para a Flandres, onde vós o protegeis,

junto do rio Scheldt. Ficai a saber que alguém levou Eduardo, ou o matou,

enquanto ele dormia; mas, Melusina! Não conseguimos encontrá-lo e não

nos entregaram o seu corpo. Não temos forma de saber quem foram os seus

assassinos, não podemos levá-los diante da justiça nem, se é que o rapaz

está vivo, podemos trazê-lo de volta a casa - a voz dela treme por alguns

momentos, e eu tenho de enterrar as unhas na palma da mão para não

começar a chorar.

“Ficai a saber que não somos capazes de fazer justiça contra o mal

que alguém nos causou e, por isso, viemos ter convosco, Senhora nossa

Mãe, e depositamos esta maldição nas vossas profundezas: a quem quer

que seja que nos tenha roubado o nosso filho, devereis tirar o seu filho

primogénito.

396

O nosso menino foi-nos roubado quando ainda não era um homem,

nem ainda rei... embora tenha nascido fadado para ser ambas as coisas.

Assim, ao seu assassino, devereis tirar o filho, antes de este receber o que

lhe pertence por herança. E, depois, ao seu neto também e, quando isso

acontecer, ficaremos a saber, através dessa morte, que será o resultado da

Page 308: Philippa gregory - a rainha branca

nossa maldição e que tudo aconteceu como paga pela morte do nosso

filho.”

Ela termina a leitura e os seus olhos estão repletos de lágrimas.

- Dobrai-o como se fizésseis um barco de papel - digo eu.

Habilmente, ela pega no papel e faz uma miniatura perfeita de um

barco; as meninas têm andado a fazer barquinhos de papel desde que

ficámos aqui encurraladas, junto ao rio. Seguro a vela.

- Pegai-lhe fogo - digo num murmúrio, e ela encosta-o à chama da

vela e a proa começa imediatamente a arder. - Lançai-o ao rio - ordeno-lhe.

Ela segura no barco a arder e coloca-o com cuidado na água.

Este balouça e a chama estremece com o vento, mas depois

incendeia-se por completo. A rápida corrente leva-o, ele vira-se e afasta-se.

Por momentos, ainda conseguimos vê-lo, uma chama reflectida noutra

chama, a maldição e o seu reflexo, juntos naquela corrente negra, e, a

seguir, são levados para longe pela força do rio e apenas vemos a

escuridão; Melusina ouviu as nossas palavras e levou a nossa maldição para

o seu reino aquático.

- Está feito - digo eu, virando as costas ao rio, segurando o portão

para Isabel passar.

- É só isto? - pergunta ela, como se estivesse à espera de que eu

tivesse de navegar rio abaixo dentro de uma concha.

- É, é tudo o que podemos fazer neste momento, uma vez que já não

sou rainha de coisa nenhuma e os meus filhos estão desaparecidos. A única

coisa que posso fazer é lançar uma maldição. Mas Deus sabe que sou bem

capaz disso.

397

NATAL DE 1483

Faço uma festa para as minhas filhas. Mando Jemma à rua para lhes

comprar tecido de brocado, fazemos vestidos novos e elas colocam na

cabeça os últimos diamantes do Tesouro Real, a fazerem de coroas, no Dia

de Natal. O condado derrotado de Kent envia-nos um belo capão, vinho e

pão para a nossa festa de Natal. Entoamos nós mesmas os cânticos

tradicionais, fazemos de actores e erguemos brindes a nós próprias.

Quando, finalmente, coloco as meninas na cama, elas estão felizes, como se

já não se lembrassem de como era a corte de Iorque na altura do Natal,

quando todos os embaixadores diziam que nunca tinham visto uma corte

mais rica, o pai delas era o Rei da Inglaterra e a mãe a mais bela rainha que

o país alguma vez conhecera.

Page 309: Philippa gregory - a rainha branca

Isabel, a minha filha, senta-se junto de mim até mais tarde, à lareira,

a partir nozes e a atirar as cascas para as brasas vermelhas, para que se

incendeiem com estalidos.

- O vosso tio Tomás Grey escreveu-me a dizer que Henrique Tudor

iria declarar-se Rei da Inglaterra e que vai anunciar hoje o vosso noivado

na Catedral de Rennes. Deveria dar-vos os parabéns - digo eu.

Ela olha para mim com um sorriso feliz.

- Sou uma mulher muito pretendida - diz ela. - Fui prometida ao

sobrinho de Warwick e depois ao herdeiro da França, recordais-vos? Vós e

o meu pai chamavam-me A Delfina, tive aulas extras de francês e

considerava-me uma pessoa muito importante. Estava destinada a ser

Rainha da França, estava certa de que seria assim e, no entanto, olhai

398

para mim! Por isso, esperarei que Henrique Tudor desembarque,

trave a sua batalha, seja coroado rei e me peça em casamento,

pessoalmente, antes de me considerar uma mulher comprometida.

- Mesmo assim, já vai sendo altura de vos casardes - digo quase para

mim mesma, ao recordar o seu súbito rubor, quando o seu tio Ricardo lhe

disse que tinha crescido tanto que quase não a reconhecia.

- Nada poderá acontecer, enquanto estivermos aqui - diz ela.

- Henrique Tudor não tem experiência - penso em voz alta. - Passou

a vida a fugir dos nossos espiões, nunca se voltou para lutar. A única

batalha em que participou foi sob o comando do seu tutor, Guilherme

Herbert, e, dessa vez, lutou por nós! Quando desembarcar na Inglaterra,

tendo-vos como sua noiva oficial, todas as pessoas que gostam de nós

ficarão do seu lado. Os outros todos ficarão do seu lado por ódio a Ricardo,

embora mal conheçam Henrique. Todos os que perderam os seus postos

por causa dos homens do Norte que Ricardo trouxe consigo se juntarão a

ele. A revolução deixou um sabor amargo a muitas pessoas. Ricardo

ganhou essa batalha, mas perdeu a confiança das pessoas. Promete justiça e

liberdade, mas, desde a revolução, só tem escolhido homens do Norte e

governa com os seus amigos. Ninguém lhe irá perdoar isso. O vosso noivo

terá milhares de recrutas e vai trazer um exército da Bretanha. Mas tudo

depende do facto de ele ser tão valente em batalha quanto Ricardo. Ricardo

já está endurecido de tanta luta em que participou. Quando era um jovem,

lutou por toda a Europa, sob o comando do vosso pai. Henrique é um

estreante nesse campo.

- Se ele ganhar, e se honrar a sua promessa, então, serei Rainha da

Inglaterra. Eu tinha-vos dito que, um dia, iria ser Rainha da Inglaterra.

Sempre o soube. É o meu destino. Mas nunca foi o que ambicionei.

Page 310: Philippa gregory - a rainha branca

- Eu sei - digo com suavidade. - Mas, se é o vosso destino, tereis de

cumprir o vosso dever. Sereis uma boa rainha, eu sei. Eu estarei aqui, junto

de vós.

- Eu queria casar com um homem que amasse, como aconteceu

convosco em relação ao meu pai - diz ela. - Queria

399

casar com um homem por amor, não com um desconhecido, por

causa da palavra dada pela mãe dele e pela minha.

- Vós haveis nascido princesa, eu não - recordo-lhe. - E, mesmo

assim, tive de aceitar o meu primeiro marido por imposição do meu pai. Só

quando fiquei viúva pude escolher por mim mesma. Tereis de viver mais

do que Henrique Tudor e, aí, podereis fazer o que vos apetecer.

Ela dá uma gargalhada e o seu rosto ilumina-se, só de pensar nisso.

- A vossa avó casou com o jovem escudeiro do marido, mal ficou

viúva - recordo-lhe. - E pensai na mãe do Rei Henrique, que se casou em

segredo com um Tudor sem qualquer importância. Pelo menos eu, quando

fiquei viúva, tive o bom senso de me apaixonar pelo Rei da Inglaterra.

Ela encolhe os ombros.

- Vós sois ambiciosa, e eu não sou. Nunca vos apaixonaríeis por

alguém que não fosse rico ou importante. Mas eu não quero ser a Rainha da

Inglaterra. Não quero o trono do meu pobre irmão. Já sei qual é o preço que

se paga por uma coroa. O pai nunca parou de lutar, desde o dia em que a

conquistou, e aqui estamos nós... encurraladas, num local pouco melhor do

que uma prisão... porque vós ainda tendes esperança de chegarmos ao

trono. Tereis de o ter, mesmo que isso signifique que eu tenha de casar com

um fugitivo da casa de Lencastre.

Abano a cabeça.

- Quando Ricardo me enviar as suas propostas, sairemos daqui -

digo-lhe. - Prometo-vos. Já está na altura. Não havereis de passar outro

Natal escondida. Prometo-vos, Isabel.

- Não precisamos de voltar a sair em glória, sabeis - diz ela,

queixosa. - Podíamos ir apenas para uma casa confortável e sermos uma

família normal.

- Está bem - digo eu, como se pensasse que alguma vez pudéssemos

ser uma família normal. Somos membros dos Plantageneta. Como é que

poderíamos ser pessoas normais?

400

JANEIRO DE 1484

Page 311: Philippa gregory - a rainha branca

Recebo notícias do meu filho Tomás Grey através de uma carta toda

manchada da viagem que me chega da corte maltrapilha de Henrique

Tudor, na Bretanha, com a data do Dia de Natal de 1483.

Conforme prometeu, Henrique prestou juramento sobre o seu

compromisso nupcial com a vossa filha Isabel, na Catedral de Rennes.

Também reclamou o título de Rei da Inglaterra e foi aclamado por todos

nós. Recebeu as honras e os juramentos de lealdade, entre eles o meu. Ouvi

um homem perguntar-lhe como podia ele considerar-se herdeiro se o jovem

Rei Eduardo podia ainda estar vivo, pelo que se sabia.

Ele deu uma resposta interessante... disse que tinha provas seguras de

que o jovem Rei Eduardo estava morto, que o seu coração sofria imenso

com isso e que nós deveríamos vingar-nos do seu assassino - o usurpador

Ricardo. Perguntei-lhe quais eram as provas que tinha, e recordei-lhe a

vossa dor, por não terdes um filho para enterrar, nem saberdes do seu

paradeiro; e ele respondeu-me que sabia, de fonte segura, que os homens de

Ricardo tinham matado os nossos rapazes. Contou-me que os tinham

sufocado debaixo dos cobertores, enquanto dormiam, e que depois os

tinham enterrado debaixo da escada da Torre.

Puxei-o para o lado e disse-lhe que, no mínimo, nós poderíamos

introduzir homens na Torre, ou subornar os que lá estão, ordenando-lhes

que procurassem os corpos, se ele me dissesse onde é que eles estão, em

que escada da Torre. Disse-lhe

401

que, se encontrássemos os corpos, quando a sua invasão começasse,

poderíamos acusar Ricardo de assassinato, e todo o país ficaria do nosso

lado. “Em que escadas?”, perguntei-lhe. “Onde estão os corpos? Quem vos

falou do crime?”

Senhora minha Mãe, não possuo as vossas capacidades de ver o

negro interior dos corações dos homens, mas houve nele algo de que nunca

poderia vir a gostar. Ele olhou para o lado e disse-me que não adiantava

nada, que já tinha pensado nesse assunto, mas que um padre já tinha

desenterrado os seus corpos e os tinha levado numa arca, para lhes dar uma

sepultura cristã, e os tinha enterrado nas águas mais profundas do rio, para

que nunca fossem encontrados. Perguntei-lhe o nome do padre, mas ele não

sabia quem era. Perguntei-lhe como é que o padre tinha sabido onde eles

estavam enterrados e por que razão os tinha atirado ao rio, em vez de os

entregar a vós. Perguntei-lhe, já que era um enterro cristão, por que razão

haviam sido atirados para dentro da água? Perguntei-lhe em que parte do

rio, mas ele disse que não sabia. Quis saber quem lhe tinha contado tudo

isto, e ele disse-me que tinha sido a sua mãe, Lady Margarida, e que

Page 312: Philippa gregory - a rainha branca

confiava inteiramente nela. As coisas passaram-se como ela disse; para ele,

não há qualquer dúvida.

Não sei o que pensais deste assunto.

Para mim, a história está muito mal contada.

Pego na carta de Tomás e atiro-a para as chamas da lareira que está

acesa no vestíbulo. Vou buscar uma pena para lhe responder, corto-lhe a

ponta, mordo-a no topo e começo a escrever:

Concordo. Henrique Tudor e os seus aliados devem ter tido uma mão

na morte do vosso irmão. De que outra forma saberia que tinham morrido e

como isso foi feito? Ricardo vai libertar-nos este mês. Afastai-vos do

pretendente Tudor e voltai para casa. Ricardo perdoar-vos-á e poderemos

ficar juntos. Sejam quais forem os votos que Henrique tenha feito na igreja,

e independentemente dos homens que lhe prestaram vassalagem, Isabel

nunca se casará com o assassino dos seus irmãos e, se for ele, de facto, o

assassino, então, carrega consigo a

402

minha maldição em relação ao seu filho e ao seu neto. Nenhum rapaz

Tudor chegará vivo à idade adulta se Henrique teve alguma participação na

morte do meu filho.

O fim dos doze dias do Natal e o regresso do Parlamento a Londres

trazem-me as infaustas notícias de que o Parlamento, querendo agradar ao

Rei Ricardo, deliberou que o meu casamento tinha sido inválido, que os

meus filhos eram bastardos e que eu própria era uma prostituta. Ricardo já

o tinha declarado antes, e ninguém se atrevera a discutir. Agora era lei, e o

Parlamento, como tantos outros fantoches, tinha concordado com tudo

aquilo.

Eu não levanto qualquer objecção ao Parlamento, nem encarrego

nenhum amigo nosso de objectar a nosso favor. É o primeiro passo para a

libertação daquele local de refúgio que se transformou na nossa prisão. É o

primeiro passo para que nos possamos tornar, como diz Isabel, “pessoas

normais”. Se as leis do país dizem que eu não sou nada mais do que a viúva

de Sir Ricardo Grey, e a antiga amante do anterior rei da Inglaterra, se a lei

deste país diz que as minhas filhas não passam de raparigas nascidas fora

do casamento, então, não temos grande valor, vivas ou mortas, presas ou

em liberdade. Ninguém quer saber onde nos encontramos ou o que

fazemos. Isto, só por si, liberta-nos.

Mais importante ainda, penso eu sem o dizer, nem mesmo a Isabel;

se formos viver para uma casa afastada, sem dar nas vistas, talvez o meu

filho Ricardo possa vir para junto de nós. Ao sermos despojadas da nossa

realeza, o meu filho pode voltar a ficar comigo. Uma vez que ele já não é

Page 313: Philippa gregory - a rainha branca

um príncipe, posso mandá-lo regressar. Ele tem sido Pedro, um rapazinho

que vive com uma família pobre de Tournai. Ele poderia continuar a ser

Pedro, um convidado de visita à minha casa de Grafton, o meu pajem

preferido, o meu fiel companheiro, o meu amor, a minha alegria.

403

MARÇO DE 1484

Recebo uma mensagem de Lady Margarida. Perguntava-me quando

é que voltaria a receber notícias desta minha querida amiga e aliada. O

ataque à Torre, que ela tinha planeado, falhou miseravelmente. O seu filho

anda a dizer ao mundo que os meus filhos estão mortos e que apenas a mãe

conhece os detalhes das suas mortes e o local onde se encontram

sepultados. A revolta que ela engendrou terminou numa derrota e fez-me

suspeitar. Mesmo assim, o seu marido continua a ter o favor do Rei

Ricardo, embora o papel que ela desempenhou na revolução seja conhecido

por todos. É óbvio que é uma amiga em quem não se pode confiar e uma

aliada duvidosa. Parece que sabe de tudo, parece que não faz nada e nunca

é castigada.

Explica que não tem podido escrever-me e que não me pode vir

visitar, uma vez que está cruelmente aprisionada pelo marido, Lorde

Stanley, que era um verdadeiro amigo de Ricardo, ao lado de quem se

manteve durante a revolta recente. Agora diz-se que, afinal, o filho de

Stanley, Lorde Strange, armou um exército para apoiar o Rei Ricardo e que

todos os rumores de que ele apoiava Henrique Tudor eram falsos. A sua

lealdade nunca esteve em causa. Mas houve testemunhas suficientes a

afirmarem que os agentes de Lady Margarida tinham andado para lá e para

cá, até à Bretanha, aconselhando o filho dela, Henrique Tudor, a reclamar o

trono para si. Há espiões que podem confirmar que o grande conselheiro e

amigo dela, o Bispo Morton, convenceu o Duque de Buckingham a voltar-

se contra o seu senhor, Ricardo. E até

404

há homens que poderiam jurar que ela tinha feito um pacto comigo,

de que a minha filha casaria com o filho dela; e a prova disso é que, no Dia

de Natal, na Catedral de Rennes, quando Henrique Tudor declarou que iria

ser marido de Isabel e jurou que seria Rei da Inglaterra, todo o seu séquito,

incluindo o meu filho Tomás Grey, se ajoelhou diante dele, jurando-lhe

fidelidade, como Rei da Inglaterra.

Imagino que o marido de Margarida Beaufort, Stanley, tenha tido de

falar rapidamente e de ser muito persuasivo para convencer o seu ansioso

Page 314: Philippa gregory - a rainha branca

monarca de que, embora a mulher fosse uma rebelde e uma conspiradora,

ele mesmo nunca, nem por um momento, pensara nas vantagens que lhe

poderiam advir se o seu enteado subisse ao trono. Mas parece que

conseguiu. Stanley “Sans Changer' continua nas boas graças do usurpador,

e Margarida, a sua mulher, foi banida, obrigada a voltar para a sua casa,

proibida de contactar os seus criados habituais, proibida de escrever ou de

enviar mensagens seja a quem for - especialmente ao filho - e ficou sem as

suas propriedades, a sua riqueza e a sua herança. Mas foi tudo entregue ao

marido, na condição de ele a manter sob controlo.

Para uma mulher tão poderosa, ela não parece muito desencorajada

pelo facto de o marido ter tomado em mãos toda a sua fortuna e todas as

suas propriedades, aprisionando-a em casa, jurando que ela nunca mais

escreverá uma carta nem participará em qualquer outra conspiração. Tem

razão para não ficar desmoralizada, pois aqui está ela, a escrever-me e a

conspirar, mais uma vez. Por este motivo, posso presumir que Stanley

“Sans Changer’ está a defender, fiel e lealmente, os seus próprios

interesses, como é provável que sempre tenha feito - prometendo lealdade

ao rei, por um lado, permitindo que a mulher conspire com os rebeldes,

pelo outro.

Começa assim:

Vossa Graça, querida irmã - porque seria assim que consideraria a

mãe da rapariga que vai ser minha filha, e que será como uma mãe para o

meu filho

405

Ela tem um estilo cheio de floreados e é bastante emotiva. Há uma

mancha na carta, como se ela estivesse a transbordar de lágrimas de

felicidade, ao pensar no casamento dos nossos filhos. Olho para aquilo com

desagrado. Mesmo que não suspeitasse de que ela tinha sido capaz de uma

traição tão maldosa, não me deixaria afectar por isto.

Fiquei muito preocupada ao saber, pelo meu filho, que o vosso filho

Tomás Grey pensou em deixar a corte dele e que teve de ser persuadido a

regressar. Vossa Graça, caríssima irmã, o que poderá estar a passar-se com

o vosso filho? Será que podereis convencê-lo de que os interesses da vossa

família e os da minha são os mesmos e que ele é um amigo muito estimado

pelo meu filho Henrique? Por favor, rogo-vos, pedi-lhe, como mãe

extremosa que sois, que faça um esforço para suportar todos os problemas

que todos têm de enfrentar no exílio para que se possam assegurar das

recompensas, quando triunfarem. Se ele ouviu alguns rumores, ou se receia

qualquer coisa, deverá conversar com o meu filho Henrique Tudor, que lhe

poderá sossegar o espírito. O mundo está cheio de maledicência e,

Page 315: Philippa gregory - a rainha branca

seguramente, Tomás não irá querer ser considerado um vira-casaca nem um

cobarde, agora.

Eu não sei de nada, aqui fechada como me encontro, mas soube que

o tirano Ricardo tem planos para levar as vossas filhas mais velhas para a

sua corte. Rogo-vos que não as autorizeis a ir. Henrique não iria gostar que

a sua noiva vivesse na corte do seu inimigo, exposta a todas as tentações, e

sei que vós, como mãe, sentiríeis grande repulsa por ver a vossa filha nas

mãos do homem que assassinou os vossos dois filhos. Imaginai só, colocar

as vossas filhas às ordens do bomem que lhes matou os irmãos! Elas

próprias devem considerar insuportável estar na presença dele. É melhor

que fiquem em santuário do que obrigá-las a beijar-lhe a mão e a viver sob

as ordens da mulher dele. Sei que sentis o mesmo que eu; é impossível.

Pelo menos, para vosso próprio bem, ordenai às vossas filhas que

permaneçam convosco, em sossego, no campo se Ricardo autorizar, ou

então, calmamente, aí em santuário se ele não concordar, até ao Feliz Dia

em que Isabel se torne

406

Rainha da sua própria corte e minha filha adorada, bem

como vossa.

A vossa mais fiel amiga no mundo, feita prisioneira,

como vós.

Lady Margarida Stanley

Levo a carta a Isabel e vejo o seu sorriso transformar-se numa sonora

gargalhada.

- Oh, meu Deus, que bruxa! - exclama ela.

- Isabel! É a vossa futura sogra!

- Sim, nesse Dia Feliz. Porque será que ela não quer que nos

mudemos para a corte? Por que motivo temos de ser protegidas das

tentações?

Volto a pegar na carta e leio-a mais uma vez.

- Ricardo vai ficar a saber que estais prometida a Henrique

Tudor. Ele anunciou-o, para que toda a gente ficasse a saber. Ricardo sabe

que isso colocará a afinidade dos Rivers do lado dos Tudor. A Casa de

Iorque apoia-vos a vós, agora. Vós sois a nossa única herdeira. Tem todo o

interesse em levar-vos a todas para a corte e casar-vos bem, dentro da sua

própria família e amigos. Dessa forma, o Tudor ficaria novamente isolado e

vós, herdeiras Iorque, casaríeis com plebeus. A última coisa que Lady

Margarida quer é ver-vos andar por aí a dançar com algum belo plebeu e o

seu filho fazer figura de idiota, ao ficar sem a noiva e sem os vossos

apoiantes.

Page 316: Philippa gregory - a rainha branca

Ela encolhe os ombros.

- Desde que saiamos daqui para fora, já ficarei muito feliz se

viver convosco no campo, Senhora minha Mãe.

- Eu sei - digo-lhe. - Mas Ricardo quer-vos na corte, às mais velhas,

onde as pessoas possam ver que estais em segurança, à sua guarda. Vós,

Cecília e Ana irão, e Bridget e Catarina ficarão comigo. Ele vai querer que

as pessoas saibam que vos autorizei a ficar com ele, que considero que vos

encontrais em segurança, ao seu cuidado. E eu prefiro que vós conheçais o

mundo a que fiqueis trancada em casa.

- Porquê? - pergunta ela, olhando-me atentamente com os seus olhos

cinzentos. - Dizei-me. Não estou a gostar do caminho que isto está a levar.

Deveis estar a planear qualquer

407

coisa, Senhora minha Mãe, e eu não quero estar mais nenhuma vez

no centro de conspirações.

- Vós sois a herdeira da Casa de Iorque - digo simplesmente. - Ireis

estar sempre no centro de conspirações.

- Mas para onde ireis vós? Porque não quereis vir para a corte

connosco?

Abano a cabeça.

- Eu não iria suportar ver aquela magricela da Ana Neville no meu

lugar, com os meus vestidos, arranjados para o seu tamanho, com as

minhas jóias em volta do seu pescoço esquelético. Não seria capaz de lhe

fazer uma vénia, como Rainha da Inglaterra. Não iria ser capaz, Isabel, nem

que fosse para salvar a minha vida. E, para mim, Ricardo nunca será um

rei. Conheci um verdadeiro rei, e amei-o. Eu fui uma verdadeira rainha.

Estes são apenas impostores, para mim; não os suporto. Vou ficar a cargo

de João Nesfield, que nos tem guardado aqui. Irei viver na sua mansão de

Heytesbury, e creio que me serve perfeitamente. Vós podeis ir para a corte,

e vós, meninas, podereis adquirir algum treino. Já vai sendo altura de vos

separardes da vossa mãe e de tomardes contacto com o mundo exterior.

Ela aproxima-se de mim como uma menina pequena e dá-me um

beijo.

- Vai ser melhor do que estar prisioneira - diz ela. - Embora seja tão

estranho ficar longe de vós. Nunca estive longe de vós, em toda a minha

vida - cala-se por um momento. - Mas não ireis sentir-vos só? Não ireis

sentir muito a nossa falta?

Abano a cabeça e puxo-a para mim para lhe poder murmurar ao

ouvido:

- Não me sentirei só, pois tenho esperança de que Ricardo volte para

casa. Espero voltar a ter o meu filho.

Page 317: Philippa gregory - a rainha branca

- E Eduardo? - pergunta ela.

Enfrento o seu olhar esperançoso sem evasivas.

- Isabel, eu penso que ele está morto, pois não consigo imaginar

que alguém o tenha levado sem nos dizer. Creio que Buckingham e

Henrique Tudor mandaram matar ambos os nossos rapazes, sem saberem

que tínhamos Ricardo escondido em segurança, esperando, assim, abrir

caminho para o trono,

408

atirando as culpas para cima do Rei Ricardo. Se Eduardo estiver

vivo, então, Deus permita que ele encontre o caminho para chegar até mim.

E sempre haverá uma vela à janela, para iluminar o seu caminho até casa, a

minha porta nunca irá estar trancada, para o caso de, um dia, ser a sua a

mão que bata ao ferrolho.

Os seus olhos enchem-se de lágrimas.

- Mas vós já não o esperais?

- Eu já não o espero - digo.

409

ABRIL DE 1484

A minha nova casa de Heytesbury está situada numa bonita zona do

país, Wiltshire, na região ondulada e ampla da planície de Salisbury. João

Nesfield é um guardião simpático. Percebe quais são os benefícios de se

estar do lado do rei; na verdade, não tem qualquer intenção de fazer de ama

em relação a mim. Depois de se ter certificado da minha segurança e de ter

chegado à conclusão de que eu não tentaria fugir, partiu para ir ter com o

rei a Sheriff Hutton, onde Ricardo estabeleceu a sua grande corte no Norte.

Está lá a construir um palácio capaz de igualar o de Greenwich, no meio

das pessoas do Norte que o respeitam e que adoram a sua esposa, a última

dos Neville.

Nesfield decide que eu posso gerir a sua casa como bem entender e,

dentro de pouco tempo, já tenho à minha volta a mobília e objectos que

mandei vir dos palácios reais. Tenho um berçário adequado e uma sala de

aulas para as meninas. Estou a plantar as minhas frutas preferidas nos

jardins, e comprei alguns bons cavalos, para os estábulos.

Depois de tantos meses no refúgio, acordo todas as manhãs com uma

sensação de felicidade total, por poder abrir a porta e passear ao ar livre. A

Primavera traz consigo uma temperatura agradável e o facto de ouvir os

pássaros cantarem ou de poder mandar vir um cavalo da cavalariça e sair

para cavalgar produz em mim uma alegria tão intensa que me sinto

Page 318: Philippa gregory - a rainha branca

renascer. Ponho ovos de pata debaixo das galinhas que estão no choco e

fico à espera de ver os patinhos saírem dos ovos e andarem a correr pelo

pátio. Rio-me quando os vejo dirigir-se

410

para o lago e as galinhas ralharem com eles da margem, com medo

da água. Fico a observar os jovens potros no cercado e discuto com o

estribeiro-mor qual deles será capaz de se transformar num bom cavalo

para montar e qual será melhor para atrelar à carroça. Vou até aos pastos

com os pastores, para ver os cordeirinhos novos. Converso com o vaqueiro

acerca das vitelinhas e de quando deverão ser separadas das mães. Voltei a

ser o que era antes, uma senhora inglesa do campo que só pensa na terra.

As raparigas mais novas quase ficam loucas, quando se vêem livres

daquela prisão. Todos os dias as apanho a fazer algo proibido: a nadar no

rio, que é bastante fundo e tem uma corrente forte, a trepar às medas de

palha, estragando o feno, empoleiradas no alto das macieiras a cortar os

botões, correndo pelo campo junto ao touro e a fugir para o portão, aos

gritos, quando ele ergue a cabeça e olha para elas. Não podem ser

castigadas por uma tal exibição de felicidade. São como vitelinhas que

foram deixadas à solta num campo, pela primeira vez na vida. Têm de

saltar e correr, e não sabem mais o que fazer para exprimir o seu espanto

perante a altura do céu e o tamanho do mundo. Comem duas vezes mais do

que aquilo que comiam no refúgio. Andam sempre em volta da cozinha e

massacram a cozinheira para lhes dar bocadinhos de qualquer coisa e as

criadas da leitaria adoram dar-lhes manteiga acabada de bater, que elas

comem com pão quente. Voltaram a ser crianças alegres, já não são

prisioneiras, com medo da própria sombra.

Encontro-me no pátio dos estábulos, a desmontar do cavalo depois

de uma manhã de montaria, e sou surpreendida pela presença do próprio

Nesfield, que se aproxima a cavalo da porta principal. Vendo o meu cavalo,

vira e vem ter comigo ao pátio, desmonta, atirando as rédeas a um criado.

Pela maneira como desmonta, com um ar pesado e os ombros encurvados,

percebo imediatamente que algo de grave aconteceu. A minha mão dirige-

se ao pescoço do meu cavalo e agarro-lhe nas crinas, para me acalmar.

- O que se passa, Sir João? Tendes um ar tão sério.

- Achei que devia vir trazer-vos as notícias - limita-se ele a dizer.

411

- Isabel? Não a minha Isabel?

Page 319: Philippa gregory - a rainha branca

-,Ela está em segurança e encontra-se bem - assegura-me ele. - É o

filho do rei, Eduardo, que Deus o guarde, que Deus o abençoe. Que Deus o

receba no seu trono celeste.

Sinto uma veia latejar na minha testa, como um aviso.

- Ele morreu?

- Ele sempre foi fraquinho - diz Nesfield com a voz entrecortada. -

Nunca foi um rapazinho forte. Mas na investidura ele parecia tão bem que

nós aclamámo-lo Príncipe de Gales e esperávamos que ele viesse a herdar...

- cala-se, lembrando-se de que eu também tinha um filho que era Príncipe

de Gales e parecia não haver dúvidas de que viria a herdar. - Perdão - diz

ele. - Não tinha intenção... de qualquer forma, o rei decretou o luto na

corte, e pensei que deveríeis ter conhecimento imediatamente.

Aceno com ar grave, mas o meu espírito voa. Será esta uma morte

causada por Melusina? Será um efeito da maldição? Será que já é uma

prova do que eu disse que iríamos ver - que o filho e herdeiro do assassino

do meu filho haveria de morrer, e que eu ficaria a saber quem tinha sido?

Será este um sinal dela, para que eu saiba que Ricardo é o assassino do meu

filho?

- Enviarei os meus pêsames ao rei e as minhas condolências à

Rainha Ana - digo-lhe, e volto-me para entrar em casa.

- Ele não tem um herdeiro - repete João Nesfield, como se não

conseguisse acreditar na gravidade das notícias que me trouxe. - Tudo isto,

tudo o que ele fez, o que ele lutou pelo reino, a... a aceitação do trono, tudo

isto que ele tem feito, toda aquela luta... para agora não ter um herdeiro

que lhe possa suceder.

- Sim - concordo, as minhas palavras parecem pedras de gelo. - Ele

fez tudo isto para nada, e acabou por perder o filho e a sua linhagem não

terá continuidade.

Recebo notícias da minha filha Isabel, que me diz que a corte está de

luto, mais parecendo um túmulo aberto, e ninguém consegue suportar ter de

viver sem o seu príncipe.

412

Ricardo não quer ouvir ninguém rir, nem suporta a música; todos

têm de andar em bicos de pés, de olhos postos no chão, e não há jogos nem

desportos, apesar de o tempo estar a aquecer, de estarem no coração das

verdejantes colinas da Inglaterra e de os pequenos vales, à sua volta,

estarem a fervilhar de caça. Ricardo está inconsolável. O seu casamento de

doze anos com Ana Neville só lhe trouxe um filho e, agora, ficou sem ele.

Já não lhes é possível ter outro, nesta fase tão tardia, e, mesmo que o

conseguissem, um bebé no berço não é garantia de que venha a ser Príncipe

de Gales, nesta Inglaterra selvagem que nós, os Iorque, construímos. Quem

Page 320: Philippa gregory - a rainha branca

melhor que Ricardo sabe que um rapaz tem de ser crescido e forte para

poder lutar pelos seus direitos, para lutar pela sua vida se quiser ser rei de

Inglaterra?

Nomeia para seu herdeiro Eduardo, o filho do seu irmão Jorge de

Clarence, que se saiba, o único rapaz Iorque que resta neste mundo; mas,

ao fim de poucos meses, ouço rumores de que ele vai ser deserdado. Isto

não me surpreende nada. Ricardo acabou por perceber que o rapaz é

demasiado fraco para se aguentar no trono, como já todos sabíamos. Jorge,

Duque de Clarence, possuía uma mistura fatal de vaidade e ambição, aliada

a uma loucura total: nenhum filho seu poderia vir a ser rei. Ele era uma

criança amorosa, sempre a rir-se, mas atrasado de espírito, pobre menino.

Qualquer um que aspire ao trono da Inglaterra terá de ser rápido como uma

cobra e esperto como uma serpente. Terá de ser um rapaz nascido para ser

príncipe, criado na corte. Terá de ser um rapaz habituado ao perigo,

educado para ser valente. O pobre filho, meio atrasado, de Jorge nunca o

iria conseguir. Mas, se não for ele, então quem poderá ser? Porque Ricardo

tem de nomear um herdeiro e deixar um herdeiro e, neste momento, a Casa

de Iorque só tem mulheres, pelo que Ricardo sabe. Só eu sei que existe um

príncipe, como um príncipe de conto de fadas, à espera, em Tournai, a

viver como uma criança pobre, a estudar os seus livros e a sua música, a

aprender línguas, vigiado à distância pela tia. Uma flor de Iorque, a crescer

forte numa terra estrangeira, sem pressa. E, agora, ele é o único herdeiro

Iorque ao trono e, se o tio dele soubesse que estava vivo, talvez o nomeasse

seu herdeiro.

413

Escrevo a Isabel.

Tenho recebido notícias do que se passa na corte e estou preocupada

com uma coisa - credes que a morte do filho de Ricardo é um sinal de

Melusina, que nos está a avisar que Ricardo é o assassino dos rapazes? Vós

estais com ele todos os dias - julgais que ele está convencido de que é a

nossa maldição que o está a destruir? Comporta-se como alguém que tenha

trazido a dor à sua própria família? Ou pensais que a morte da criança foi

apenas um acaso, que foi outra pessoa que matou o nosso menino, e que

será o seu filho que terá de morrer para termos a nossa vingança?

414

JANEIRO DE 1485

Aguardo a chegada das minhas filhas, que vêm da corte, numa tarde

fria de meados de Janeiro. Esperava que chegassem a tempo para o jantar e

Page 321: Philippa gregory - a rainha branca

ando de um lado para o outro, na soleira da porta, soprando as pontas dos

dedos enluvados para manter as mãos quentes, enquanto o Sol se vai pondo

a ocidente, por trás das colinas, vermelho como uma rosa de Lencastre.

Ouço o barulho de cascos de cavalo, olho para o fundo da alameda e lá vêm

elas, acompanhadas por uma guarda enorme, as minhas três filhas, quase

uma guarda real, e vejo as três cabecinhas abanarem e os seus vestidos

esvoaçarem, lá no meio. Em poucos segundos, os seus cavalos são parados,

elas saltam para o chão e eu começo a beijar faces rosadas e narizes

gelados, indiscriminadamente, a segurar-lhes nas mãos, declarando-me

admirada com o que cresceram e como estão todas de igual modo bonitas.

Elas irrompem pela sala e atiram-se ao jantar como se estivessem a

morrer de fome, e eu fico a observá-las, enquanto comem. Isabel nunca

teve melhor aspecto. Floresceu, uma vez fora do refúgio, livre do medo,

como eu sabia que aconteceria. As suas faces estão bastante rosadas, os

seus olhos brilham, e as suas roupas! Olho-as mais uma vez, incrédula; os

bordados e o brocado, e recamadas de pedras preciosas! São roupas tão

boas como as que eu usava quando era rainha.

- Onde haveis arranjado essas roupas? São tão belas quanto as que eu

tinha quando era Rainha da Inglaterra.

415

Os seus olhos encontram os meus e o sorriso desaparece-lhe do

rosto. Cecília solta uma inesperada gargalhada. Isabel ameaça-a.

- Importais-vos de fechar a boca? Nós combinámos.

- Isabel!

- Mãe, não fazeis ideia de como ela se tem comportado. Não tem

categoria para ser dama de honor de uma rainha. A única coisa que sabe

fazer é coscuvilhar.

- Vamos lá a ver, meninas, eu mandei-vos para a corte para que

aprendêsseis a comportar-vos com elegância, não para discutirem como

mulheres de pescadores.

- Perguntai-lhe se ela tem andado a aprender o que é a elegância -

sussurra Cecília de forma bastante audível. - Perguntai a Isabel quão

elegante ela é.

- Obviamente que o farei, quando conversar com ela, depois de vós

ambas estarem deitadas - digo com firmeza. - O que vai acontecer não tarda

nada se não conseguirdes falar educadamente uma com a outra - volto-me

para Ana. - Então, Ana? - a minha pequena Ana olha para mim. - Tendes

estudado os vossos livros? E tendes praticado a vossa música?

- Sim, Senhora minha Mãe - diz Ana obedientemente. - Mas deram-

nos uma semana de férias, pelo Natal, e eu fui para a corte de Westminster,

com todas as outras.

Page 322: Philippa gregory - a rainha branca

- Aqui, comemos leitão - diz, solenemente, Bridget às irmãs mais

velhas. - E a Catarina comeu tanto maçapão que ficou mal disposta durante

a noite.

Isabel ri-se, e aquele ar ansioso desaparece-lhe do rosto.

- Tenho tido saudades vossas, seus monstrinhos - diz com ternura. -

Depois do jantar posso tocar para que danceis, se quiserdes.

- Ou podemos jogar às cartas - sugere Cecília. - Já se pode jogar

outra vez, na corte.

- O rei já recuperou do seu desgosto? - pergunto-lhe. - E a Rainha

Ana?

Cecília lança um olhar triunfante na direcção de Isabel, que cora

intensamente.

- Oh, ele já recuperou - diz Cecília com uma voz tremente de riso. -

Parece bastante recuperado. Estamos todos muito admirados. Não

concordais, Isabel?

416

A minha paciência, que nunca dura muito quando se trata de

maldade feminina, mesmo no caso das minhas filhas, esgota-se nesse

momento.

- Agora basta - digo. - Isabel, vinde comigo para os meus aposentos;

vós podeis acabar de jantar, e vós, Cecília, podeis ficar a pensar no

provérbio que diz que uma palavra simpática vale mais do que uma dúzia

de palavras más.

Levanto-me da mesa e saio da sala. Consigo sentir a relutância de

Isabel em seguir-me e, quando chego ao meu quarto, ela fecha as portas e

eu apenas lhe pergunto:

- Minha filha, o que significa tudo aquilo?

Por momentos, ela parece querer resistir, mas, então, estremece

como uma corça encurralada e diz:

- Eu queria tanto pedir-vos os vossos conselhos, mas não vos podia

escrever. Tive de esperar até poder estar convosco. Tencionava esperar até

depois do jantar. Não fiz nada que vos possa entristecer, Senhora minha

Mãe...

Sento-me e indico-lhe com um gesto que se pode sentar junto de

mim.

- É o meu tio Ricardo - diz ela baixinho. - Ele é... oh, Senhora minha

Mãe... ele é tudo para mim.

Apercebo-me de que fico muito quieta. Apenas as minhas mãos se

movem, e aperto-as uma na outra, para me conseguir manter em silêncio.

- Ele foi tão bondoso comigo, quando chegámos à corte, e depois fez

tudo o que lhe era possível para se certificar de que me sentia contente com

Page 323: Philippa gregory - a rainha branca

as minhas obrigações de dama de companhia. A rainha é muito bondosa,

uma ama fácil de agradar, mas ele vinha sempre ter comigo, para saber

como eu estava - cala-se. - Perguntava-me se tinha saudades vossas e dizia

que seríeis bem-vinda à corte, em qualquer altura, e que a corte vos

prestaria a sua homenagem. Falava muitas vezes do meu pai - diz ela. -

Dizia que ele se iria sentir muito orgulhoso de mim se me pudesse ver

agora. Dizia que, em muitos aspectos, sou muito parecida com ele. Oh

Mãe, ele é um homem tão encantador, não consigo acreditar que ele... que

ele...

- Que ele? - repito as suas palavras, a minha voz soa como um eco.

417

- Que ele goste de mim.

- Gosta? - sinto-me gelar, como se as águas do Inverno me corressem

pela espinha. - Ele gosta de vós?

Ela acena ansiosamente com a cabeça.

- Ele nunca amou a rainha - diz ela. - Sentiu-se obrigado a casar com

ela, para a salvar do irmão Jorge, Duque de Clarence. - Deveis lembrar-vos.

Vós haveis assistido, não é verdade? Eles queriam enganá-la e mandá-la

para um convento. Jorge preparava-se para lhe roubar a herança.

Concordo com a cabeça. Não é bem assim que recordo a história;

mas reconheço que esta versão é melhor, quando se quer impressionar uma

jovem sensível.

- Ele sabia que, se Jorge a tomasse à sua guarda, iria ficar com a sua

fortuna. Ela estava ansiosa por casar e ele julgou que era o melhor que

podia fazer. Casou com ela para lhe proteger a herança, para sua própria

segurança e para lhe acalmar o espírito.

- A sério? - digo eu. Segundo recordo, Jorge apanhou uma das

raparigas Neville e Ricardo a outra, e bulharam como cães vadios pela

herança delas. Mas vejo que Ricardo contou à minha filha a versão mais

cavalheiresca da história.

- A Rainha Ana não está muito bem de saúde - Isabel inclina a

cabeça para a frente e murmura. - Não pode ter mais filhos, ele está certo

disso. Já perguntou aos médicos e eles têm a certeza de que ela já não

conseguirá engravidar. Ele tem de ter um herdeiro para a Inglaterra.

Perguntou-me se eu considerava possível que um dos nossos rapazes

tivesse escapado.

A minha mente fica imediatamente afiada como uma espada que faz

faíscas ao bater numa pedra de amolar.

- E que lhe haveis respondido?

Ela olha para mim e sorri.

Page 324: Philippa gregory - a rainha branca

- Por mim, ter-lhe-ia dito a verdade, confio inteiramente nele; mas

sabia que vós queríeis que eu mentisse - diz ela com doçura. - Disse-lhe

que não sabíamos mais nada, para além daquilo que ele nos tinha contado.

E ele voltou a dizer que tinha o coração despedaçado, mas que não sabia

onde estavam os rapazes. Disse-me que, se soubesse, agora, os nomearia

seus herdeiros. Mãe, pensai no assunto. Ele disse

418

que, se soubesse onde estavam os rapazes, os iria buscar, para os

nomear seus herdeiros.

Será que ia? Fico a pensar. Mas que garantia tenho eu de que não

manda lá um assassino?

- São boas notícias - digo com firmeza. - Mas, mesmo assim, não lhe

deveis dizer nada sobre Ricardo. Ainda não consigo confiar nele, mesmo

que vós o façais.

- Eu sim! - exclama ela. - Eu confio nele. Era capaz de lhe confiar até

a minha própria vida. Nunca conheci um homem como ele.

Não respondo. Não vale a pena recordar-lhe que não conheceu outros

homens. Durante a maior parte da vida tem sido uma princesa, guardada

como uma estátua de porcelana dentro de uma caixa de ouro. Tornou-se

adulta enquanto prisioneira, vivendo com a mãe e as irmãs. Os únicos

homens com quem conviveu eram padres ou criados. Não teve qualquer

preparação para enfrentar um homem atraente que jogue com as suas

emoções, seduzindo-a, incitando-a a amar.

- Até onde chegou esta situação? - pergunto sem rodeios.

- Até onde já chegou esta relação entre vós os dois?

Ela vira a cabeça para o outro lado.

- É complicado - diz ela. - E eu sinto pena, pela Rainha Ana.

Aceno com a cabeça. A pena que a minha filha sente pela Rainha

Ana não irá impedi-la de lhe roubar o marido, calculo eu. Afinal, é minha

filha. E nada me deteve, quando decidi seguir o meu coração.

- Até que ponto é que isto chegou? - volto a perguntar-lhe.

- Pelo que disse Cecília, creio que já haja comentários.

Ela cora.

- A Cecília não sabe nada. Ela vê nisto o mesmo que as outras

pessoas, e tem inveja por eu ser o centro das atenções. Ela nota que a rainha

me prefere e me empresta as suas roupas e jóias. Trata-me como uma filha,

manda-me dançar com Ricardo, incita-o a passear comigo e diz-me que

saia com ele, a cavalo, quando se sente demasiado doente para o

acompanhar. De verdade, Mãe, é a própria rainha que me ordena que vá

com ele e que lhe faça companhia. Ela diz que ninguém o diverte nem o

anima tanto como eu, e é por isso que a corte

Page 325: Philippa gregory - a rainha branca

419

diz que ela tem demasiada preferência por mim. Que ele me presta

demasiada atenção. Dizem que não sou mais do que uma dama de

companhia, mas que sou tratada como...

- Como o quê?

Ela baixa a cabeça e murmura:

- A primeira dama da corte.

- Por causa das vossas roupas?

Ela anui.

- São mesmo vestidos da rainha; ela manda fazer os meus iguais aos

dela. Gosta que usemos as mesmas roupas.

- É ela que vos veste desta maneira?

Isabel diz que sim. Não faz ideia de como isto me enche de

preocupação.

- O que quereis dizer é que ela manda fazer os vossos vestidos

com tecidos iguais aos dos dela? Do mesmo estilo que os dela?

A minha filha hesita.

- E é óbvio que a ela não ficam lá muito bem - ela não diz mais nada,

mas consigo imaginar Ana Neville dominada pela dor, cansada, doente, ao

lado desta rapariga cheia de vida.

- E vós sois colocada na sala em primeiro lugar, logo a seguir a ela?

Tendes precedência?

- Ninguém menciona a lei que fez de nós bastardos. Toda a gente me

chama princesa. E, quando a rainha não vai jantar, o que acontece várias

vezes, eu participo na ceia como primeira dama, sentando-me ao lado do

rei.

- Nesse caso, é a Rainha Ana que vos coloca junto dele, mesmo no

seu próprio lugar, e é isso que todos vêem. Não é Ricardo? E depois, o que

acontece?

- Ele diz que me ama - diz ela baixinho. Tenta ser modesta, mas o

orgulho e a alegria brilham-lhe nos olhos. - Diz que eu sou o primeiro amor

da sua vida, e que serei o último.

Levanto-me da cadeira, aproximo-me da janela e puxo para o lado a

espessa cortina, para poder olhar lá para fora, para as brilhantes e frias

estrelas que pairam sobre a escuridão da planície do Wiltshire. Creio

perceber o que Ricardo está a fazer, e nem por um minuto acredito que ele

se tenha apaixonado pela minha filha ou que a rainha lhe mande fazer os

vestidos por gostar muito dela.

420

Page 326: Philippa gregory - a rainha branca

Ricardo está a fazer jogo duro, usando a minha filha como peão, para

a desonrar, e a mim, e para obrigar Henrique Tudor, que jurou tomá-la

como esposa, a fazer papel de idiota. Tudor irá ficar a saber - mal os

espiões da mãe consigam apanhar um barco - que a sua futura noiva está

apaixonada pelo seu inimigo, e é tida por toda a corte como sua amante,

enquanto a sua mulher faz de conta que não percebe, com um sorriso nos

lábios. Ricardo seria capaz de o fazer, só para prejudicar Henrique Tudor,

mesmo desonrando a própria sobrinha. A Rainha Ana prefere ser sua

cúmplice a ter de lhe fazer frente. As duas raparigas Neville sempre se

comportaram como capachos dos maridos: Ana tem sido uma serva

obediente desde o dia em que se casou. E, para além do mais, não lhe pode

recusar nada. Ele é Rei da Inglaterra, não tem um herdeiro, e ela é estéril. A

única coisa que pode fazer é rezar para que ele não a ponha de lado. Ela

não detém qualquer poder: não tem um filho herdeiro, nenhum bebé num

berço, nenhuma hipótese de engravidar; não tem cartas com que jogar. É

uma mulher estéril, sem fortuna pessoal - não tem quaisquer perspectivas a

não ser ir para um convento ou para o túmulo. Tem de se limitar a sorrir e a

obedecer; protestar não lhe servirá de nada. Nem mesmo o facto de estar a

ajudar a destruir a reputação da minha filha lhe trará grandes proveitos,

para além de uma possível anulação honrosa.

- Ele já vos propôs que quebrásseis o vosso compromisso

matrimonial com Henrique Tudor? - pergunto-lhe.

- Não! Não tem nada que ver com esse assunto!

- Oh - aceno com a cabeça. - Mas deveis compreender que isto será

uma grande humilhação para Henrique Tudor, quando receber a notícia.

- Eu também nunca me casaria com ele, de qualquer das formas -

exclama ela. - Odeio-o. Penso que foi ele quem mandou os seus homens

matarem os nossos rapazes. Ele teria vindo para Londres para ocupar o

trono. Nós sabíamos disso. Foi por esse motivo que convocámos a chuva.

Mas agora... agora...

- Agora, o quê?

- Ricardo diz que vai afastar a Rainha Ana, para se casar comigo -

respira fundo. O seu rosto ilumina-se de alegria. - Diz que me fará rainha e

que o nosso filho se sentará no trono

421

de meu pai. Fundaremos uma dinastia da Casa de Iorque e a rosa

branca será para sempre a flor da Inglaterra - hesita. - Sei que não confiais

nele, Senhora minha Mãe, mas é ele o homem que amo. Será que não

podereis gostar dele, por minha causa?

Penso que esta é a mais antiga e a mais difícil pergunta entre uma

mãe e uma filha. Será que posso vir a gostar dele, por amor a ela?

Page 327: Philippa gregory - a rainha branca

Não. Este é o homem que sentia inveja do meu marido, que matou o

meu irmão e o meu filho Ricardo Grey, que arrebatou o trono do meu filho

Eduardo e o expôs ao perigo, se é que não foi pior do que isso. Mas não

tenho de dizer a verdade a esta minha filha tão verdadeira. Não preciso de

me abrir em relação a esta menina tão transparente. Ela apaixonou-se pelo

meu inimigo e anseia por um final feliz.

Abro os braços.

- Tudo o que sempre quis foi a vossa felicidade - minto. - Se ele vos

ama e promete ser-vos fiel, e se o amais, então, não preciso de mais nada.

Ela atira-se para os meus braços e pousa a cabeça no meu ombro.

Mas não é nada tonta, a minha filha. Levanta a cabeça e sorri para mim:

- E serei Rainha da Inglaterra - diz ela. - Pelo menos isso será do

vosso agrado.

As minhas filhas ficam comigo durante quase um mês e levamos a

vida de uma família normal, como Isabel pretendera em tempos. Na

segunda semana, neva, e vamos à procura do trenó de Nesfield,

aparelhamos um dos cavalos de tiro e fazemos um passeio até à casa de um

dos nossos vizinhos; mas, entretanto, a neve derrete, e temos de lá passar a

noite. No dia seguinte, temos de enfrentar uma marcha longa e penosa de

volta a casa, pelo meio da lama e da neve derretida, uma vez que eles não

têm cavalos para nos emprestar e temos de montar à vez, em pêlo, o nosso

cavalo enorme. Levamos quase o dia inteiro para chegar a casa, e rimo-nos

e cantamos durante todo o percurso.

422

A meio da segunda semana, aparece um mensageiro da corte com

uma carta para mim e outra para Isabel. Levo-a para os meus aposentos

privados, longe das outras raparigas, que invadiram a cozinha e estão a

fazer bolinhos de maçapão para o jantar; abrimos as nossas cartas, sentadas

em cada um dos topos da mesinha de escrever.

A minha vem da parte do rei.

Imagino que Isabel deva ter falado convosco acerca do profundo

amor que sinto por ela, e gostaria de vos falar dos meus planos. Tenciono

fazer com que a minha esposa admita que já passou da idade em que

poderia conceber, que vá residir na Abadia de Bermondsey e me liberte dos

votos que lhe fiz. Procurarei obter a devida dispensa e, então, casarei com a

vossa filha, que será Rainha da Inglaterra. Vós recebereis o título de

Milady, a Mãe da Rainha, e devolver-vos-ei os palácios de Sheen e de

Greenwich, no dia do nosso casamento, bem como a vossa pensão real. As

vossas filhas viverão convosco, e na corte, e sereis vós quem fará as

diligências para os seus casamentos. Serão reconhecidas como irmãs da

Rainha da Inglaterra e pertencendo à família real de Iorque.

Page 328: Philippa gregory - a rainha branca

Se algum dos vossos filhos tem estado escondido e se sabeis onde se

encontra, podereis mandá-lo regressar em segurança. Farei dele meu

herdeiro, enquanto Isabel não der à luz o meu filho.

Casarei com Isabel por amor, mas sei que compreendereis que esta é

a solução para todas as nossas dificuldades. Conto com a vossa aprovação,

mas é o que vou fazer, em qualquer dos casos. Considerai-me como o

vosso respeitoso parente.

RR

Volto a ler a carta toda mais duas vezes e não consigo evitar um

sorriso amargo perante aquele frasear desonesto. “A solução para todas as

nossas dificuldades” é, creio eu, uma forma suave de descrever uma

vingança sangrenta que me roubou um irmão e o meu filho Ricardo Grey, e

que me levou a fomentar uma rebelião contra ele e a amaldiçoar o seu

braço que segura a espada. Mas Ricardo é um Iorque - consideram que a

vitória lhes é devida - e estas propostas

423

são convenientes, para mim e para os meus. Se o meu filho Ricardo

puder voltar para casa em segurança, e voltar a ser um príncipe na corte da

irmã, então, terei conseguido tudo o que jurei que haveria de recuperar, e o

meu irmão e o meu filho não terão morrido em vão.

Olho para o outro lado da mesa, para Isabel. Está muito corada e tem

os olhos cheios de lágrimas de alegria.

- Ele propõe-vos casamento? - pergunto-lhe.

- Ele diz que me ama, que sente a minha falta. Quer que eu regresse à

corte e pede-vos que regresseis comigo. Quer que todos fiquem a saber que

vou ser a sua nova esposa. Diz que a Rainha Ana está pronta a retirar-se.

Aceno com a cabeça.

- Eu não irei enquanto ela lá estiver - digo eu. - E vós deveis

regressar à corte, mas tereis de vos comportar com maior discrição. Mesmo

que seja a rainha a pedir-vos que o acompanheis, deveis levar uma

acompanhante. E não vos deveis sentar no lugar dela.

Ela prepara-se para me interromper, mas eu ergo a mão.

- Estou a falar a sério, Isabel. Não quero ouvir dizer que sois a sua

amante, especialmente se tendes esperanças de vir a ser sua esposa.

- Mas eu amo-o - diz ela simplesmente, como se isso tivesse alguma

importância.

Olho para ela e sei que a minha expressão é dura.

- Podeis amá-lo - digo eu - mas, se quereis que ele se case convosco

e faça de vós sua rainha, tereis de fazer muito mais do que simplesmente

amá-lo.

Ela aperta a sua carta contra o peito.

Page 329: Philippa gregory - a rainha branca

- Ele ama-me.

- Até pode ser verdade, mas não se casará convosco se cair qualquer

sombra de maledicência sobre vós. Ninguém chega a Rainha da Inglaterra

só por ser amada. Tereis de jogar bem as vossas cartas.

Ela respira fundo. Não tem nada de tola, a minha filha, e é uma

Iorque de gema.

- Dizei-me o que devo fazer - diz ela.

424

FEVEREIRO DE 1485

Despeço-me das minhas filhas num dia escuro de Fevereiro, e fico a

ver a sua escolta afastar-se por entre a neblina que tem pairado sobre nós

durante todo o dia. Pouco depois, deixo de os ver, como se tivessem

desaparecido numa nuvem, na água, o ruído dos cascos vai esmorecendo e,

logo, silêncio total.

A casa parece muito vazia sem as raparigas mais velhas. E, ao notar

a sua falta, os meus pensamentos e orações dirigem-se para os rapazes, o

meu bebé morto, Jorge, o filho que perdi, Eduardo, e o meu filho ausente,

Ricardo. Nunca mais soube nada de Eduardo, desde que ele foi levado para

a Torre, e nada sobre Ricardo, desde aquela primeira carta sua em que me

dizia que estava bem e que agora lhe chamavam Pedro.

Apesar de ser cautelosa, apesar dos meus receios, começo a ter

esperança. Começo a pensar que, se o Rei Ricardo casar com Isabel e a

fizer sua Rainha, eu serei novamente bem recebida na corte, tomarei o meu

lugar como Milady, a Mãe da Rainha. Tenho de me certificar, primeiro, de

que posso confiar em Ricardo, e, depois, mandarei vir o meu filho.

Se Ricardo cumprir a sua palavra e o nomear seu herdeiro, então,

voltaremos a ocupar o nosso devido lugar; o meu filho estará no lugar para

que nasceu e a minha filha será Rainha da Inglaterra. Não será bem como

Eduardo e eu tínhamos planeado, quando tivemos um Príncipe de Gales e

um Duque de Iorque e pensávamos, grandes tontos, que iríamos viver para

sempre. Mas o resultado já não será tão mau. Se Isabel puder

425

casar por amor e ser Rainha da Inglaterra, e se o meu filho vier a ser

rei, a seguir a Ricardo, já será um desfecho bastante bom.

Quando estiver na corte e recuperar o meu poder, arranjarei homens

para procurarem o corpo do meu filho, quer ele esteja debaixo da tal escada

- como afirma Henrique Tudor -, enterrado no fundo do rio, segundo a sua

nova versão, abandonado num escuro armazém da lenha quer escondido em

Page 330: Philippa gregory - a rainha branca

chão sagrado, na capela. Hei-de encontrar o seu corpo e descobrir quem o

matou. Ficarei a saber o que aconteceu: se foi raptado e morreu por

acidente durante a refrega, se foi levado para outro lado e morreu de

doença, se foi assassinado na Torre e enterrado lá, como Henrique Tudor

parece estar tão convencido. Ficarei a saber qual foi o seu fim, hei-de

sepultá-lo com todas as honras e mandarei rezar missas pela sua alma, que

deverão continuar até à eternidade.

426

MARÇO DE 1485

Isabel escreve-me uma breve carta, falando do estado de saúde da

rainha, que piorou. Não diz mais nada - nem precisa de o fazer - pois ambas

percebemos que, se a rainha morrer, não será necessária uma anulação ou o

envio da Rainha Ana para uma abadia; sairá do caminho, da maneira mais

fácil e mais conveniente possível. A rainha anda muito triste, chora sem

motivo durante horas, e o rei nem sequer se aproxima dela. A minha filha

observa isto tudo, no seu papel de dama de companhia leal à rainha, e não

me diz se, de vez em quando, se escapa do quarto da doente para ir passear

nos jardins com o rei; não me diz se os ranúnculos amarelos das sebes e as

margaridas do relvado a fazem recordar, e a ele, que a vida é fugaz e alegre,

da mesma forma que recordam à rainha que a vida é fugaz e dolorosa.

Então, numa manhã de meados de Março, acordo com um céu

anormalmente escuro, com o Sol quase obscurecido por um círculo de

escuridão. As galinhas não querem sair das suas capoeiras; os patos

escondem a cabeça debaixo das asas e grasnam, nas margens do rio. Levo

as minhas duas filhas mais pequenas lá para fora e vagueamos por ali,

inquietas, a olhar para os cavalos no prado, que se deitam, e logo a seguir

se levantam, como se não soubessem muito bem se é dia ou noite.

- Isto é um prenúncio? - pergunta-me Bridget, a única das minhas

filhas que tenta ver a vontade de Deus em todas as coisas que acontecem.

- É um movimento dos céus - digo-lhe. - Já vi acontecer o mesmo

com a Lua, antes, mas nunca com o Sol. Há-de passar.

427

- Mas será que é algum prenúncio para a Casa de Iorque? - repete

Catarina. - Como os três sóis de Towton?

- Não sei - digo eu. - Mas não creio que algum de nós esteja em

perigo. Seríeis capaz de o sentir, no vosso coração, se a vossa irmã

estivesse em perigo?

Page 331: Philippa gregory - a rainha branca

Bridget fica a pensar seriamente, por alguns segundos, e então,

criança prosaica, abana a cabeça.

- Só se Deus falasse comigo com uma voz muito alta - diz ela. - Só

se Ele me gritasse e o padre me dissesse que era Ele!

- Nesse caso, creio que não temos nada a temer - digo eu. Não tenho

qualquer tipo de premonição, embora o Sol obscurecido torne o mundo à

nossa volta fantasmagórico e estranho.

Na verdade, só daí a três dias é que João Nesfield aparece em

Heytesbury, um estandarte negro à sua frente, com a notícia de que a

rainha, depois de uma longa doença, tinha morrido. Veio para me avisar,

mas encarrega-se de espalhar a notícia por toda a parte e os outros criados

de Ricardo devem andar a fazer a mesma coisa. Deverão estar todos a

salientar que ela esteve doente durante muito tempo e que a rainha partiu,

finalmente, para receber a sua recompensa celestial, que a sua morte é um

grande desgosto para o seu devotado e amantíssimo esposo.

- Está claro que há quem diga que ela foi envenenada - diz-me

alegremente a cozinheira. - É o que corre no mercado de Salisbury, de

qualquer das formas. Foi o carreteiro que me disse.

- Que ridículo! Quem iria envenenar a rainha? - pergunto-lhe.

- Dizem que foi o próprio rei - diz a cozinheira, inclinando a cabeça

para um lado, como alguém que conhece os grandes segredos da corte.

- Assassinar a própria esposa? - pergunto. - Há quem pense que ele

seria capaz de assassinar a esposa com quem estava casado há doze anos?

Assim, de repente?

A cozinheira abana a cabeça.

- Não dizem lá muito bem dele em Salisbury - nota ela. - Gostavam

bastante dele, no princípio, e acreditavam que ele iria trazer justiça e

ordenados justos para as pessoas comuns, mas, desde que ele colocou os

lordes do Norte a mandar em

428

tudo... bom, não há nada que não sejam capazes de inventar acerca

dele.

- Podeis dizer-lhes que a rainha sempre foi débil e que nunca

recuperou da morte do seu filho - digo-lhe com firmeza.

A cozinheira lança-me um olhar perspicaz.

- E não devo dizer nada sobre quem ele tenciona tomar como sua

próxima rainha?

Calo-me. Não me tinha apercebido de que os rumores já tinham

chegado tão longe.

- E nada sobre esse assunto - digo sem rodeios.

Page 332: Philippa gregory - a rainha branca

Tenho estado à espera desta carta desde que recebi a notícia da morte

da Rainha Ana, desde que o mundo inteiro andava a dizer que Ricardo se ia

casar com a minha filha. Aqui está ela, manchada de lágrimas, como é

habitual, escrita pela mão de Lady Margarida.

Para Lady Isabel Grey

Vossa Senhoria,

Chegou ao meu conhecimento que a vossa filha Isabel, declarada

como bastarda do falecido Rei Eduardo, pecou contra Deus e contra os seus

próprios votos, desonrando-se com o seu tio, o usurpador Ricardo, uma

atitude tão errada e contranatura que os próprios anjos escondem o seu

olhar. Por esse motivo, aconselhei o meu filho Henrique Tudor, o legítimo

Rei da Inglaterra, a não entregar a sua mão em casamento a uma rapariga

como esta, desonrada, tanto através de uma Lei do Parlamento como pela

sua própria conduta, e combinei o seu casamento com uma jovem de classe

bastante superior e com um comportamento muito mais cristão.

Tenho muita pena de vós por, na vossa viuvez e humilhação, terdes

ainda de curvar a vossa cabeça com o peso de mais um desgosto, o

comportamento vergonhoso da vossa filha, e asseguro-vos que pensarei em

vós nas minhas orações, quando mencionar a loucura e a vaidade deste

mundo.

429

Continuo a ser a vossa amiga em Cristo,

A quem rezo por vós, para que, na vossa velhice, possais adquirir

uma verdadeira sabedoria e a dignidade própria de uma mulher,

Lady Margarida Stanley

Rio-me do tom pomposo da mulher mas, à medida que a vontade de

rir vai esmorecendo, sinto frio, um arrepio de frio, uma premonição. Lady

Margarida passou a sua vida à espera de um trono que foi meu. Tenho

todos os motivos para pensar que o seu filho, Henrique Tudor, também vai

ficar à espera de ocupar o trono da Inglaterra, considerando-se a si mesmo

rei, atraindo para si os escorraçados, os rebeldes, os que não estão ligados a

ninguém; homens que não podem viver na Inglaterra. Irá continuar a

perseguir o trono de Iorque até morrer, e talvez seja melhor que se veja

obrigado a lutar, e ser morto, já, do que mais tarde.

Ricardo, sobretudo se tiver a minha filha a seu lado, vai conseguir

enfrentar quaisquer críticas e será, naturalmente, capaz de ganhar a batalha

contra qualquer força que Henrique consiga trazer. Mas a fria picada que

sinto na nuca diz-me que não será bem assim. Volto a pegar na carta e

apercebo-me da férrea convicção desta herdeira Lencastre. É uma mulher

Page 333: Philippa gregory - a rainha branca

cujo ventre está impante de orgulho. Não se tem alimentado de mais nada,

há quase trinta anos, a não ser da sua própria ambição. Eu faria bem em ter

cuidado com ela, agora que chegou à conclusão de que eu tenho tão pouco

poder que ela nem precisa de continuar a fingir que é minha amiga.

Fico a imaginar quem pretenderá ela escolher agora para noiva de

Henrique? É óbvio que deve andar à caça de uma herdeira, talvez a rapariga

Herbert, mas ninguém, a não ser a minha filha, conseguirá trazer o amor da

Inglaterra e a lealdade da Casa de Iorque ao pretendente Tudor. Lady

Margarida bem pode proclamar o seu desprezo, mas isso não tem qualquer

importância. Se Henrique quiser governar a Inglaterra, terá de se aliar aos

Iorque; vão ter de lidar connosco, de uma maneira ou de outra. Pego na

minha pena.

430

Cara Lady Stanley,

De facto, lamento imenso saber que tendes dado ouvidos a tais

calúnias e maledicência e que isso vos tenha levado a duvidar da boa fé e

honra da minha filha Isabel, que estão, como sempre estiveram, acima de

qualquer crítica. Não tenho dúvidas de que uma reflexão mais séria, da

vossa parte e da dele, vos fará recordar, bem como ao vosso filho, que não

existe na Inglaterra nenhuma outra herdeira Iorque com tal importância.

Ela é estimada pelo seu tio, como o era pela sua tia, como deveria

ser; apenas murmúrios de sarjeta poderiam sugerir qualquer

comportamento impróprio.

Agradeço-vos as vossas orações, obviamente. Vou assumir que o

compromisso matrimonial se mantém, pelas suas manifestas vantagens; a

não ser que estejais a pensar seriamente em retirá-lo, o que eu considero tão

improvável que vos envio os meus melhores votos e os meus

agradecimentos pelas vossas orações que, sei-o, serão especialmente bem

aceites por Deus, vindas de um coração tão humilde e merecedor.

Isabel R

Assino “Isabel R”, o que já não costumo fazer nesta altura; mas,

enquanto dobro o papel, deixo cair o pingo de cera e aplico o meu selo, rio-

me da minha própria arrogância. “Isabel Regina”, digo para o pergaminho.

E hei-de voltar a ser Milady, a Mãe da Rainha, enquanto vós continuareis a

ser apenas Lady Stanley, com um filho morto no campo de batalha.

- Isabel R. Ora tomai lá! - digo para a carta. - Sua gárgula velha!

431

ABRIL DE 1485

Page 334: Philippa gregory - a rainha branca

“Mãe, tendes de vir para a corte”, escreve-me Isabel numa carta

esborratada com a pressa, dobrada duas vezes e com dois carimbos.

Está tudo a correr terrivelmente mal. Sua Graça, o Rei, crê que deve

regressar a Londres para dizer aos lordes que não irá casar comigo e que

nunca foi sua intenção fazê-lo, para abafar os rumores de que envenenou a

pobre da rainha. Pessoas maldosas andam a dizer que ele estava decidido a

casar comigo e não queria esperar pela morte dela, ou por um acordo, e

agora ele tem de anunciar que não me é absolutamente nada, a não ser meu

tio.

Eu disse-lhe que não havia necessidade de fazer tal declaração, que

poderíamos esperar em silêncio que os mexericos abrandassem, mas ele só

dá ouvidos a Ricardo Ratcliffe e a Guilherme Catesby, e eles afirmam que

o Norte se virará contra ele se ele insultar a memória da sua esposa, uma

Neville de Northumberland.

Pior ainda, ele diz que, para bem da minha reputação, tenho de

deixar a corte, mas não permite que vá para junto de vós. Vai mandar-me

para casa de Lady Margarida e Lorde Stanley, como visita, aquelas pessoas

horrorosas. Ele diz que Lorde Stanley é um dos poucos homens em quem

confia para me manter em segurança, aconteça o que acontecer;■ e

ninguém irá duvidar da minha reputação se Lady Margarida me aceitar em

sua casa.

Mãe, tendes de impedi-lo. Não posso ficar com eles; vou ser

atormentada por Lady Margarida, que deve pensar que eu

432

traí o meu compromisso com o seu filho, e que me deve odiar, por

sua causa. Tendes de escrever a Ricardo, ou mesmo vir à corte

pessoalmente, e dizer-lhe que todos seremos felizes, que vamos ficar todos

bem, que apenas teremos de esperar que passe esta onda de maledicência e

rumores e que, no fim disto tudo, poderemos casar. Ele não tem

conselheiros em quem possa confiar, não tem um Conselho Privado que lhe

diga a verdade. Está dependente daqueles homens, a quem chamam o Rato

e o Gato, que temem que eu o influencie contra eles, em vingança do que

eles fizeram à nossa família.

Mãe, eu amo-o. Ele é a minha única alegria neste mundo. Pertenço-

lhe de coração, em pensamento, fisicamente, e tudo o mais. Haveis dito que

seria preciso mais do que amor para que me tornasse Rainha da Inglaterra;

tendes de me dizer o que devo fazer. Não suporto ter de ir viver com os

Stanley.

O que devo fazer agora?

Page 335: Philippa gregory - a rainha branca

Para dizer a verdade, não sei o que deverá ela fazer, a minha pobre

menina. Está apaixonada por um homem cuja sobrevivência depende da

sua capacidade de exigir a lealdade da Inglaterra e, se disser à Inglaterra

que tem esperanças de casar com a própria sobrinha, antes de a sua mulher

ter arrefecido na sepultura, estará a oferecer de mão beijada todo o Norte a

Henrique Tudor, num segundo. Eles não iriam aceitar calmamente um

insulto a Ana Neville, viva ou morta, e é do Norte que Ricardo tem sempre

retirado a sua força. Não se atreverá a ofender os homens do Yorkshire ou

da Cúmbria, de Durham ou de Northumberland. Nem sequer pode arriscar

uma coisa dessas, enquanto Henrique Tudor andar a recrutar homens e a

formar um exército, à espera apenas das marés da Primavera.

Digo ao mensageiro que coma qualquer coisa, passe cá a noite e

esteja pronto para levar a minha resposta pela manhã; depois, vou dar um

passeio junto ao rio e escuto o som calmo da água a passar por cima das

pedras brancas. Tenho esperança de que Melusina fale comigo, ou de

encontrar algum fio torcido com um anel em forma de coroa, a deslizar

pela água; mas tenho de voltar para casa sem qualquer mensagem, e

433

tenho de escrever a Isabel sem nada que me guie, a não ser os meus

anos de corte e a minha própria percepção daquilo que Ricardo poderá

arriscar.

Filha,

Sei como deveis estar desgostosa - percebo-o em cada uma das

vossas linhas. Sede corajosa. Esta estação dir-nos-á tudo e tudo estará

mudado quando o Verão chegar. Ide para casa dos Stanley e fazei o

possível por agradar a ambos. Lady Margarida é uma mulher pia e

determinada; não poderíeis pedir uma guardiã mais capaz de abafar o

escândalo. A sua reputação tornar-vos-á imaculada como uma virgem e é

isso que deveis parecer - aconteça o que acontecer depois.

Se ficardes a gostar dela, se conseguirdes fazer com que ela goste de

vós, tanto melhor. É um truque que eu nunca consegui fazer; mas, no

mínimo, devereis viver em harmonia com ela, pois não ireis lá ficar por

muito tempo.

Ricardo está a colocar-vos num local seguro, longe dos escândalos,

fora do perigo, até que Henrique Tudor o desafie, para conseguir o trono, e

a batalha termine. Quando isso acontecer e Ricardo ganhar, como creio que

deverá acontecer, ele poderá ir buscar-vos, com todas as honras, a casa dos

Stanley e poderá casar convosco, como parte integrante das cerimónias de

celebração da vitória.

Page 336: Philippa gregory - a rainha branca

Minha queridíssima filha, não espero que aprecieis a vossa estada

com os Stanley, mas eles são a melhor família da Inglaterra para que

possais mostrar que respeitais o compromisso matrimonial com Henrique

Tudor, e que viveis castamente. Quando a batalha chegar ao fim e Henrique

Tudor estiver morto, já ninguém poderá dizer uma palavra que seja contra

vós e a discordância do Norte poderá ser ultrapassada. Entretanto, deixai

que Lady Margarida pense que vos sentis muito feliz com o vosso

compromisso com Henrique Tudor, e que estais esperançada na sua vitória.

Não irão ser tempos fáceis para vós, mas Ricardo tem de ter

liberdade para reunir os seus homens e travar a sua batalha.

Da mesma forma que os homens têm de lutar, as mulheres têm de

esperar e fazer planos. Esta é a vossa vez de esperar e planear, e devereis

ser constante e discreta.

434

A honestidade tem muito menos importância.

Recebei o meu amor e a minha bênção,

A vossa mãe

Qualquer coisa me acorda cedo, de madrugada. Cheiro o ar, como se

fosse uma lebre sentada sobre as patas de trás, no meio de um prado.

Alguma coisa está a acontecer, pressinto-o. Mesmo aqui, no interior do

Wiltshire, consigo perceber, pelo cheiro, que o vento mudou, quase consigo

sentir o odor a sal que vem do mar. O vento sopra de sul, na direcção do

Sul da Inglaterra; é um vento propício à invasão, um vento que sopra para

terra e, por um processo qualquer, consigo distinguir, tão claramente como

se estivesse a ver, os caixotes com armas a serem carregados para o convés,

os homens a recolherem as pranchas e a saltarem para os barcos, os

estandartes recolhidos e apoiados à proa, os soldados reunidos na doca. Sei

que Henrique já reuniu o seu exército, que os seus navios já estão na doca e

que os seus capitães estão a planear uma rota: ele está pronto para se fazer

ao mar.

Gostaria de saber onde irá ele atracar. Mas duvido que ele mesmo o

saiba. Irão desamarrar os barcos da proa à popa, puxarão as cordas para

bordo, armarão as velas e a meia dúzia de navios irá dirigir-se para fora do

abrigo do porto. À medida que forem entrando no mar, as velas erguer-se-

ão, com os panos a estalarem, e os barcos irão subir e descer nas águas

agitadas, mas lá hão-de controlá-los, o melhor que for possível. Poderão

dirigir-se à costa sul - os rebeldes são sempre bem recebidos na Cornualha

ou em Kent - ou poderão seguir para Gales, onde o nome Tudor conseguirá

juntar milhares. O vento vai apanhá-los e trazê-los, e eles vão ter de esperar

Page 337: Philippa gregory - a rainha branca

que tudo corra bem e, quando avistarem terra, calcularão o lugar onde se

encontram e baterão a costa, até encontrarem o porto mais seguro.

Ricardo não é tonto - sabia que isto iria acontecer, logo que as

tempestades de Inverno amainassem. Encontra-se no seu grandioso castelo

de Nottingham, no centro da Inglaterra, a convocar os reservistas, a nomear

os seus lordes, preparado para o desafio que ele sabia estar para chegar

naquele ano; já poderia ter vindo no ano anterior se não fosse a chuva que

435

Isabel e eu fizemos cair, para manter Buckingham afastado de

Londres, longe do meu menino.

Este ano, Henrique tem o vento a seu favor; a batalha tem de ser

travada. O rapaz Tudor pertence à Casa de Lencastre e esta será a batalha

final na guerra entre primos. Não há qualquer dúvida no meu espírito de

que Iorque irá ganhar, como acontece na maior parte das vezes. Warwick já

desapareceu - até mesmo as suas filhas, Ana e Isabel, já morreram -, não

lhes sobra nenhum grandioso general Lencastre. Só lhes resta Jasper Tudor

e o filho de Margarida Beaufort na luta contra Ricardo, que está em seu

pleno poder, com todos os soldados da Inglaterra. Nem Ricardo nem

Henrique têm herdeiros. Ambos sabem que representam a sua própria

causa. Ambos sabem que a guerra terminará com a morte do outro. Já

assisti a muitas batalhas na Inglaterra, durante a minha vida de casada e

depois de viúva, mas nenhuma era tão definitiva como esta. Prevejo uma

batalha curta e brutal e que, no final, haverá um homem morto, e a coroa da

Inglaterra e a minha filha Isabel serão entregues ao vencedor.

E espero poder ver Margarida Beaufort, inteiramente vestida de

negro, chorar a morte do seu filho.

O seu desgosto será o início de uma nova vida para mim e para os

meus. Finalmente, creio que posso mandar regressar o meu filho Ricardo.

Parece-me que está na altura certa.

Há dois anos que tenho estado a aguardar para colocar esta parte do

meu plano em acção, desde que mandei o meu filho para fora. Escrevo a

Sir Eduardo Brampton, um Iorquista leal, um importante mercador, homem

do mundo e, por vezes, pirata. Definitivamente, um homem que não tem

medo de correr algum risco e que aprecia uma boa aventura.

Ele chega precisamente no dia em que a cozinheira anda a espalhar a

notícia de que Henrique Tudor já desembarcou. Os navios de Tudor foram

trazidos para terra em Milford Haven, e ele já vem a marchar por Gales,

recrutando homens que sigam o seu estandarte. Ricardo está a reunir

soldados e

436

Page 338: Philippa gregory - a rainha branca

a partir, em marcha, de Nottingham. O país está uma vez mais em

guerra e tudo pode acontecer.

- Tempos conturbados, novamente - diz-me Sir Eduardo, como

se não fosse nada de mais. Encontro-me com ele longe de casa, nas

margens do rio, onde a copa de um salgueiro nos protege das pessoas que

passam no caminho. O seu cavalo e o meu vão tosando a relva curta, como

bons companheiros, enquanto nós, de pé, observamos o rio, à procura do

brilho de alguma truta castanha no meio da água cristalina. Tenho motivos

para querer ficar fora da vista dos passantes; Sir Eduardo é um homem

impressionante, muito bem vestido, com cabelo preto. Foi sempre um dos

meus preferidos, um dos afilhados de Eduardo, meu marido, que apoiou o

seu baptismo, quando ele deixou de ser judeu. Ele sempre gostou muito de

Eduardo, por ter sido seu padrinho; e eu confiar-lhe-ia a própria vida e até

qualquer outra coisa mais preciosa do que a minha vida. Confiei nele,

quando ele comandou o barco que levou Ricardo para longe, e confio nele

agora, quando tenho esperança de que mo traga de volta.

- São tempos que, creio, virão a ser proveitosos para mim e para os

meus - observo.

- Estou ao vosso dispor - diz ele. - E o país está tão distraído com os

recrutamentos que me será possível fazer seja o que for, por vós, sem que

dêem por nada.

- Eu sei - sorrio-lhe. - Não me esqueço de que já me haveis servido

antes, quando transportastes um rapazinho para a Flandres, no vosso barco.

- O que posso fazer por vós desta vez?

- Podeis ir à cidade de Tournai, na Flandres - digo eu. - À Ponte de

St. Jean. O homem que trata da comporta, nesse local, chama-se Jehan

Werbecque.

Ele acena com a cabeça, memorizando aquele nome.

- E o que irei lá encontrar? - pergunta baixinho.

Mal consigo pronunciar o segredo que mantive em silêncio durante

tanto tempo.

- Ireis encontrar o meu filho - digo. - O meu filho Ricardo. Devereis

procurá-lo e trazer-mo.

O seu rosto sério ergue-se e olha-me com os seus brilhantes olhos

castanhos.

437

- Será seguro que ele regresse? Será colocado no trono do pai? -

pergunta-me ele. - Haveis chegado a acordo com o Rei Ricardo, e o filho

de Eduardo será rei, em vez dele?

- Se Deus quiser - digo eu. - Sim.

Page 339: Philippa gregory - a rainha branca

Melusina, a mulher que não conseguia esquecer o seu elemento, a

água, deixou os filhos com o marido e foi embora com as filhas. Os rapazes

cresceram e transformaram-se em homens, Duques da Borgonha,

governantes da Cristandade. As raparigas herdaram a Visão da mãe e os

seus conhecimentos sobre as coisas do desconhecido. Ela nunca mais

voltou a ver o marido e nunca deixou de sentir a sua falta; mas, à hora da

sua morte, ele ouviu-a cantar para ele. Nessa altura, ficou a saber, como ela

sempre soubera, que não importa se uma esposa é metade peixe ou se o

marido é um mortal. Se houver amor suficiente, nada - nem a natureza,

nem a própria morte - se poderá intrometer entre duas pessoas que se

amam.

É meia-noite, a hora combinada, e ouço um leve toque na porta da

cozinha; desço as escadas, com uma vela protegida com a mão, para ir abrir

a porta. A lareira acesa lança um brilho caloroso pela cozinha; os criados já

estão a dormir sobre a palha, aos cantos da divisão. O cão levanta a cabeça,

quando passo por ele, mas mais ninguém me vê.

A noite está quente, calma, a chama da vela não oscila quando abro a

porta e me deparo com um homem alto e um rapaz, um rapaz de onze anos,

parados nos degraus.

- Entrai - digo em voz baixa. Levo-os para dentro de casa e subimos

as escadas que conduzem aos meus aposentos privados, iluminados pelos

candelabros, a lareira acesa e vinho à espera, já nos copos.

Então volto-me e, com as mãos a tremerem, pouso a minha vela e

olho para o rapaz que Sir Eduardo Brampton me trouxe.

- Sois vós? Sois mesmo vós? - murmuro.

438

Ele cresceu, a sua cabeça já me chega ao ombro, mas eu reconhecê-

lo-ia em qualquer parte pelo cabelo, cor de bronze, como o do pai, e pelos

olhos, cor de avelã. Ele tem aquele sorriso trocista, que me é tão familiar, e

uma forma arrapazada de inclinar a cabeça. Quando lhe estendo as mãos,

ele atira- -se para os meus braços, como se ainda fosse o meu menino

pequenino, o meu segundo filho, tão desejado, que nasceu em tempos de

paz e de fartura, e que sempre tinha pensado que o mundo era um lugar

aprazível.

Cheiro-o, como se fosse uma gata à procura de uma cria perdida. A

sua pele tem o mesmo cheiro. O seu cabelo tem um perfume de outra

pessoa qualquer, e as suas roupas têm aquele aroma a sal, da viagem, mas a

pele do pescoço e atrás das orelhas tem o cheiro do meu menino, o meu

bebé. Tê-lo- -ia reconhecido em qualquer parte como meu filho.

- Meu filho - digo-lhe e sinto no meu coração uma onda de ternura

por ele. - Meu menino - volto a dizer. - Meu Ricardo.

Page 340: Philippa gregory - a rainha branca

Ele põe os braços em volta da minha cintura e abraça-me com força.

- Tenho andado nos barcos, por todo o lado, e sei falar três línguas -

diz ele, com um som abafado, por ter o rosto encostado ao meu ombro.

- Meu filho.

- Agora já não custa tanto. Foi estranho, no princípio. Aprendi

música e retórica. E sei tocar alaúde, muito bem. Compus uma canção para

vós.

- Meu querido.

- Lá, chamam-me Piers, que equivale a Pedro. Também me chamam

Perkin, mas é uma alcunha - afasta a cabeça para trás e olha para mim. - E

vós, o que me ireis chamar?

Abano a cabeça. Não consigo falar.

- A Senhora Vossa Mãe irá chamar-vos Piers, para já - decide Sir

Eduardo, junto da lareira a que se aquece. - Ainda não haveis sido

reconhecido pelo que sois. Tereis de manter o vosso nome de Tournai, por

enquanto.

Ele assente com a cabeça. Vejo que a identidade se tornou para ele

uma espécie de casaco; já aprendeu a vesti-la e a despi-la. Penso no homem

que me obrigou a enviar este pequeno príncipe para o exílio, que o obrigou

a ficar escondido na casa

439

de um barqueiro que tinha de o mandar para a escola como um

rapazinho do povo, e creio que nunca lhe irei perdoar, seja ele quem for. A

minha maldição paira sobre ele, o seu filho primogénito morrerá, e eu não

sentirei qualquer remorso.

- Vou deixar-vos aos dois - diz Sir Eduardo com tacto.

Abandona a sala, dirigindo-se para o seu quarto, e eu sento-me na

minha cadeira, junto à lareira, e o meu filho puxa um banco baixinho e

senta-se junto de mim; de vez em quando, encosta-se às minhas pernas para

eu lhe acariciar o cabelo, outras vezes volta-se, para me explicar alguma

coisa. Falamos do que aconteceu na sua ausência e do que ele aprendeu

enquanto esteve longe de mim. A vida dele não tem sido a de um príncipe

real, mas deram-lhe uma boa educação - terei de agradecer por isso à irmã

de Eduardo, Margarida. Foi ela quem enviou dinheiro aos monges, como se

estivesse a pagar a aprendizagem de um rapazinho pobre; ela especificou

que ele deveria aprender Latim, Direito, História e as regras da governação.

Fez com que ele estudasse Geografia e aprendesse os limites do mundo

conhecido, e - recordando o meu irmão António - mandou ensinar-lhe

Aritmética, conhecimentos árabes e a filosofia dos Anciões.

- E, quando eu for mais velho, Sua Graça, Lady Margarida diz que

eu vou voltar para a Inglaterra para ocupar o trono do meu pai - diz-me o

Page 341: Philippa gregory - a rainha branca

meu menino. - Ela diz que há homens que esperaram mais tempo e com

menos hipóteses do que eu. Disse-me que olhasse para Henrique Tudor,

que pensa que agora tem uma hipótese, ele, que teve de fugir da Inglaterra

quando ainda era mais novo do que eu e que volta agora com um exército!

- Ele teve de passar toda a sua vida no exílio. Queira Deus que isso

não suceda convosco.

- Vamos assistir à batalha? - pergunta ele, ansioso.

Sorrio.

- Não, um campo de batalha não é um lugar próprio para meninos.

Mas, quando Ricardo ganhar e marchar para Londres, juntar-nos-emos a

ele e às vossas irmãs.

- E nessa altura poderei voltar para casa? Voltar para a corte? E ficar

convosco para sempre?

440

- Sim - digo-lhe. - Sim. Voltaremos a estar outra vez todos juntos,

como devíamos estar.

Estendo a mão e acaricio-lhe a franja de cabelo loiro, afastando-lha

dos olhos. Ele suspira e pousa a cabeça no meu regaço. Por momentos,

ficamos muito quietos. Consigo ouvir a velha casa dar estalos, à nossa

volta, preparando-se para a noite e algures, lá fora, no meio da escuridão,

ouve-se um mocho a piar.

- E o que aconteceu ao meu irmão Eduardo? - pergunta ele muito

baixinho. - Tive sempre esperança de que o tivésseis escondido, algures

num lugar seguro.

- Lady Margarida não vos contou nada? Nem Sir Eduardo?

- Eles dizem que não se sabe, que não há certeza de nada. Pensei que

vós soubésseis.

- Receio que tenha morrido - digo suavemente. - Foi assassinado por

homens pagos pelo Duque de Buckingham e por Henrique Tudor. Receio

que o tenhamos perdido para sempre.

- Quando for crescido, hei-de vingá-lo - diz ele com orgulho, como

um verdadeiro príncipe de Iorque.

Pouso delicadamente a mão sobre a sua cabeça.

- Quando fordes crescido, e se fordes rei, podereis viver em paz -

digo-lhe. - Eu já me terei vingado. Já não será vossa tarefa. Já terá tudo

terminado. Já mandei dizer missas pela sua alma.

- Mas pela minha não! - diz ele, com um sorriso de rapazinho

travesso.

- Pela vossa também, porque eu tenho de manter as aparências, como

vós fazeis, tenho de fingir que vos considero perdido para mim, como ele;

mas, quando rezo por vós, pelo menos, sei que estais vivo e a salvo, e que

Page 342: Philippa gregory - a rainha branca

ireis voltar para casa. E, para além do mais, não vos fará mal nenhum se as

boas mulheres da Abadia de Bermondsey rezarem por vós.

- Então, que rezem para eu poder voltar para casa sem correr perigo -

diz ele.

- E é isso que elas fazem - digo eu. - Todos nós o fazemos. Tenho

rezado por vós, três vezes ao dia, desde que haveis partido, e estou sempre

a pensar em vós.

441

Ele pousa a cabeça nos meus joelhos e eu passo os dedos pelo seu

cabelo loiro. Atrás, junto das orelhas, é encaracolado; consigo enrolar os

caracóis em volta dos meus dedos, como se fossem anéis de ouro. Só

quando ele ressona um pouco, como um cachorrinho, me apercebo de que

estamos ali sentados há horas e de que ele adormeceu profundamente. Só

ao sentir o peso da sua cabeça quente nos meus joelhos me convenço de

que ele está realmente em casa, um príncipe de volta ao seu reino; e de que,

quando a batalha se der e for ganha, a rosa branca de Iorque voltará

novamente a florir em todas as verdejantes sebes da Inglaterra.

NOTA DA AUTORA

Este novo romance, o primeiro de uma série sobre os Plantageneta,

teve origem na minha descoberta de umas das mais interessantes e

polémicas rainhas da Inglaterra: Isabel Woodville. A maior parte da

história que conto sobre ela aqui é factual, não ficção - ela viveu uma vida

bastante para além da minha imaginação! Era realmente a mais bonita

descendente dos Duques da Borgonha, que acreditavam na lenda

tradicional de que eram descendentes de Melusina, a deusa da água.

Quando descobri este facto, percebi que, com Isabel Woodville, uma rainha

bastante menosprezada e pouco amada, poderia reescrever a história de

uma rainha da Inglaterra que também era descendente de uma deusa e filha

de uma mulher julgada e condenada por bruxaria.

Dado o meu próprio interesse pela percepção medieval da magia, do

que nos revela acerca do poder das mulheres e dos preconceitos que as

mulheres poderosas têm de enfrentar, sabia que este iria ser um terreno rico

para mim, enquanto investigadora e escritora - e assim foi.

Sabemos que Isabel conheceu Eduardo a propósito de um pedido de

ajuda financeira e que se casou com ele em segredo, mas o encontro de

ambos na estrada, enquanto ela permanecia sob um carvalho (que ainda

existe em Grafton Regis, em Northamptonshire, actualmente), é uma lenda

popular e pode ou não ser verdade. O facto de ela puxar do punhal dele

para se salvar de ser violada foi um rumor da época; não sabemos se se

Page 343: Philippa gregory - a rainha branca

trata de um facto histórico. Mas uma grande parte da sua vida com Eduardo

está bem registada, e eu

443

apoiei-me nas histórias e baseei o meu romance nos factos, sempre

que estes existiam. É evidente que, por vezes, tive de optar entre versões

rivais e contraditórias, e, outras vezes, tive de preencher as lacunas da

História com explicações ou justificações que eu própria inventei.

Existe mais ficção neste romance do que nos que escrevi

anteriormente, uma vez que recuamos bastante mais no tempo do que com

os Tudor, e os registos são mais esparsos. Por outro lado, este era um país

em guerra e muitas decisões eram tomadas no momento, sem deixar

qualquer registo documental. Algumas das decisões mais importantes eram

planos secretos e, com frequência, tive de deduzir, das provas que

chegaram até nós, os motivos para determinadas acções, ou até o que

ocorreu. Por exemplo, não dispomos de provas fiáveis da apelidada

“conspiração de Buckingham”, mas sabemos que Lady Margarida Stanley,

o seu filho, Henrique Tudor, Isabel Woodville e o Duque de Buckingham

foram os principais líderes da rebelião contra Ricardo. Claramente, todos

tinham motivos bastante diferentes para correrem os riscos que correram.

Temos algumas provas dos mensageiros, e alguma ideia dos planos, mas a

estratégia exacta e a estrutura de comando eram secretas e assim

permanecem. Analisei as provas que ainda resistem, bem como as

consequências da conspiração, e sugiro aqui como podem ter sido

organizadas. O elemento sobrenatural da tempestade de chuva da vida real

é, claro, ficcional e foi uma alegria imaginá-lo.

De igual modo, desconhecemos, ainda hoje (após centenas de

teorias), exactamente o que aconteceu aos príncipes na Torre. Especulo que

Isabel Woodville teria preparado um refúgio para o seu segundo filho, o

Príncipe Ricardo, depois de o seu primeiro, o Príncipe Eduardo, lhe ter sido

tirado. Duvido sinceramente que ela tivesse entregado o segundo filho nas

mãos do homem que suspeitava que havia encarcerado o primeiro. A

sugestão provocadora, por parte de inúmeros historiadores, de que o

Príncipe Ricardo possa ter sobrevivido levou-me a especular que ela pode

não o ter mandado para a Torre, mas ter utilizado uma criança substituta

para ocupar o seu lugar. Mas devo avisar o leitor de que não existem provas

concretas deste ponto.

444

Mais uma vez, não existem provas definitivas de como os rapazes

perderam a vida, se é que foi o que aconteceu, nem de quem deu a ordem;

Page 344: Philippa gregory - a rainha branca

e, é claro, continuam a não existir corpos que possam ser identificados

como sendo os dos príncipes. Sugiro que o Rei Ricardo não teria ordenado

o homicídio dos rapazes, uma vez que tinha pouco a ganhar e bastante a

perder; e não acredito que Isabel Woodville tivesse deixado as filhas ao seu

cuidado se acreditasse que ele havia sido o assassino dos seus dois filhos.

Parece que ela também mandou o filho Tomás Grey regressar da corte de

Henrique Tudor, o que talvez possa indicar que estava desencantada com a

reivindicação do direito dos Tudor ao trono e que se aliou a Ricardo. Tudo

isto continua a ser um verdadeiro mistério e eu limito-me a acrescentar a

minha sugestão às muitas outras, propostas por historiadores, algumas das

quais podem encontrar nos livros listados na bibliografia.

Estou em dívida para com o académico Professor David Baldwin,

autor de Elizabeth Woodville: Mother of the Princes in the Tower, tanto

pelo seu retrato claro e simpático da rainha, no seu livro, como pelos seus

conselhos em relação ao presente romance, e também estou grata aos

inúmeros historiadores e entusiastas cujos estudos se baseiam no seu amor

por este período, que eu agora partilho, e espero que os leitores também.

Podem encontrar mais informações sobre a pesquisa e a redacção

deste livro no meu website: PhilippaGregory.com, onde também existem

detalhes de seminários sobre este livro, que dei numa viagem pelo Reino

Unido, pelos Estados Unidos e por todo o mundo, e em webcasts regulares.

445

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Fim