Philip Ardagh - Mitos E Lendas Chinesa

download Philip Ardagh - Mitos E Lendas Chinesa

of 32

description

Mitos e Lendas Chinesas

Transcript of Philip Ardagh - Mitos E Lendas Chinesa

  • Editorial ESTAMPA, LDA.Rua Escola do Exrcito, 9, r/c- Dto.

    Tel.: 355 56 63 - Fax: 314 19 11 - 1150 LISBOA [email protected]

    MITOS e LENDAS CHINESASCONTADAS POR PHILIP ARDAGH

    ILUSTRADAS POR MICHAELFiSHERMITO ou LENDA?

    CONTOS DA CHINA

    A RAPARIGA E o RAPAZ DA CABAA

    O ARQUEIRO E OS SIS

    A PRINCESA E O CO

    A VIAGEM AO MUNDO INFERIOR

    A ESTRADA DE ARROZ

    o FEIOSO

    As AVENTURAS DE MACACONDICE REMISSIVO

    EDITORIAL ESTAMPA

    MITO ou LENDA?

    Muito antes de as pessoas saberem ler ou escrever, as histrias eram traduzidasoralmente. De cada vez que eram contadas, mudavam um pouco, acrescentando-seuma nova personagem aqui e uma mudana na traMA acol.

    Os mitos e as lendas nasceram dessas histrias em constante mutao.

    O QUE UM MITO? Um mito uma histria tradicional que no se

  • baseia em algo que realmente aconteceu e fala,normalmente, de seres sobrenaturais.

    Os mitosso inventados, mas ajudam a explicar oscostumes locais ou os fenmenos naturais.O QUE UMA LENDA? A lenda assemelha-se muito ao mito. A diferena est no facto de a lendapoder basear-se numacontecimento que realmente ocorreu ou numapessoa que realmente existiu,o que no significa que a histria no tenha mudado ao longo dos anos.

    Quem so os chineses?

    hoje em dia, os povos chineses constituemum quarto da populao mundial. H maisgente a falar mandarim do que qualquer outra lngua, mas so muitos os diferentes povos e grupostnicos chineses, cada umdeles com as suas prprias culturas e tradies.

    Povos ANTIGOS

    H j 500 000 anos que o territrio ocupado pela actual China era habitado, mas o primeiro estadochins digno desse nome no apareceu seno em1650 a. C., mais de um milnio aps o nascimentoda civilizao no antigo Egipto. Este estado desenvolveu-se ao longo dos vales frteis do rioAmarelo ou Huang He.

    UM PAS ISOLADO

    A China um vasto pas com uma extenso totalde 9 572 900 kM2 . No passado esteve praticamente separado do resto do mundo, ficando aspopulaes chinesas retidas no seu interior pelas mesmas razesque os estranhos l no entravam: o mar, a leste, eas montanhas e estepes, a norte, sul e oeste.o SEGREDO DA SEDAApesar de estar to isolada, a China deve desde cedo ter tido comrcio com outros pases. Por voltade1200 a. C. j os povos chineses produziam tecido de seda, mas o bicho-da-seda originrio da ndiae noda China. Os mercadores devem ter trazido alguns ovos da ndia, tendo ento os Chinesesaprendido a fabricar fio de seda a partir dos casulos.

    CONTOS DA CHINAOs mitos e lendas chinesas resultam da combinao das velhas crenas e das histrias dastrs principais religiesdeste pas: o confucianismo, o tauismo e o budismo.A CHINA COMUNISTA Actualmente, a China um pas comunista. Isso quer dizer quetoda a terra e todos os bens sopertena do Estado em vez de serem propriedade dos indivduos. A religio no tem

  • qualquer relevncia para o comunismo, mas ainda assimmuitos chineses consideram-na importante-VELHAS CRENAS A primitiva religio chinesa abrangia a crena navida aps a morte, a venerao dos antepassados e anatureza divina dos primeiros doze imperadores. Criou-se assim todo um perodo lendrioda histria chinesa, tendo um homem chamado Yu sido o primeiro governante humano. Oshistoriadores e osarquelogos ainda hoje tentam apurar se muito do que se conta acerca deste perodo verdade.CONFUCIANISMOO confucianismo mais um modo de vida (uma filosofia) do que uma religio. Trata-se deumacrena que atribui importncia paz e harmoniae que se baseia nos ensinamentos de Confilcio (551-479 a. C.), cujo nome chins eraKonfuzio. Ensinava princpios de bem governar, e os seusseguidores (os chamados confucianistas) tomavam-se administradores exmios e poderosos.A OBRA DE CONFCIOOs ensinamentos de Confcio incluam histriasdas vidas dos primeiros deuses. Foram construdos templos em sua honra e houvequem quisesse proclam-lo deus. Cr-se que Confucio tenha escrito um grande nmero delivros, entre os quais o I Ching (Livro das Mutaes). Infelizmente, boa parte da sua obrafoi destruda em 213 a. C., na sequncia de umaordem nesse sentido pronunciada pelo primeiro imperador da China.TAUISMOA influncia de Confcio levava as pessoas a pensar acerca da vida e dos modos devida. Mais tarde, os pensadores desenvolveram a ideia da unidade detodas as coisas: se tudo estava de algum modo ligado, deveria ser possvel encontrar umamaneira de conseguir a harmonia perfeita no Universo. Tau uma palavra chinesa que querdizer caminho. Um livro chamado To Te-King, que significa o caminho e o poder, o centro de todaa crena tauista. Diz-se ter sido escrito por um homem chamado Laozi, que mais tardepassou a ser venerado como uma figura divina, central para o tauismo."I~NI1,---

  • BUDISMOO budismo teve a sua origem na ndia mas chegou China cerca de duzentos anos antes deCristo, tendo-se tornado uma das trs grandes religies da China. O fundador do budismofoi o prprio Buda, nascido cerca de 560 a. C. 0 seu nome eraGautama Shakyamuni e chamavam-lhe Fo em chins. queles que obedecessem s suasrigorosas leis e que abandonassem os prazeres mundanos, o Buda prometia que deixariampara trs o mundoda vida e da morte e que teriam acesso a um estadode felicidade suprema chamado nirvana.NOTA Do AUTOROs mitos e as lendas so narrados de modosmuito diferentes de cultura para cultura.O objectivo deste livro contar novas versesdessas histrias antigas e no apenas reproduzir omodo como tradicionalmente elas podero ter sido contadas. As ilustraes queacompanham oscontos no so relativas a nenhum perodo histrico em particular; pretendem apenas daruma ideia de como seria a vida na antiga China.Espero que estas histrias vos agradem e que o livro vos leve a querer saber mais acerca daChina, dos seus povos, da sua histria e dos seusmitos e lendas.Esta estatueta de madeira apenas um pequeno exemplo do estilo fascinante da artechinesa. Representa um dos Oito Imortais, um grupo de antigos heris chineses.

    A RAPARIGAE o RAPAZ DA CABAAEste o velho mito de Nu Wa e Fu Xi. Fala da tontice do paidestes, de um irreflectido acto debondade e da destruio da humanidade. tambm um contoacerca da esperana e do recomeo.nUm belo dia estava um campons no campo quando ouviu oribombar de um trovo.Estou farto de ti, deus dos troves! - gritou ele. - Seiperfeitamente que envias troves e chuva apenas para meaborrecer. E amaldioou o deus. - Apanha-me se fores capaz! -desafiou. Estou pronto para te receber!o campons pendurou ento uma grande gaiola de ferro na partede fora de sua casa.- Deixem-se ficar a dentro at que eu vos diga para sarem -ordenou ele ao filho e filha. - Vai haver aqui um confrontomuito srio.o deus dos troves ouvira o campones a praguejar e ficarabastantezangado com ele, de modo que, com um poderoso trovo e umrelmpago com um brilhante claro, apareceu por sobre a casado campons.- Vem c abaixo e enfrenta-me, seu cobarde! - berrou o

  • furioso campons. - No te escondas a atrs das nuvens.E o deus dos troves lanou-se ento do cu aos trambolhes,empunhando um enorme machado de guerra. o campons mais notinha do que a forquilha de ferro com que trabalhava nocampo, mas ainda assim encontrava-se numa situao devantagem. Estava habituado a ter os seus dois ps bemassentes no cho e sentia-se preparado para receber aqueledeus que tremia de raiva.

    Com um s movimento rpido e gil, o campons apanhou o deusnos dentes da forquilha, antes mesmo de este se aperceber doque estava aacontecer, tinha j sido atirado para dentro da gaiola e aporta fora fechada. Ora a est! - exclamou o campons,triunfante. - Agora podes fazer barulho e enfurecer-te comoquiseres que ja no me incomodas. - No tardou que a chuvaacabasse e as nuvens se dissipassem, o deus fora derrotado.Na manh seguinte, o campons decidiu ir ao mercado comprarverduras. Acho que vou deixar o deus dos troves ali a secarpara depois o exibira toda a gente - disse ele ao filho e filha. - Mantenham-sebem longe da gaiola e no lhe dirijam a palavra, diga ele oque disser para vos assustar. Mais inPortante ainda -acrescentou ele, com uma expresso austera -, nodevero dar-lhe de beber.Dito isto, l partiu para o mercado, todo orgulhoso do seufeito.A uma distncia segura, o filho e a filha do camponsobservaram o deus preso na gaiola. Atrs das grades tinha umaspecto bastante inofensivo, para alm de parecer triste edesalentado.

    Ao longo de todo o diaO Sol brilhou, atQue as crianas sentiram sedeE l foram beber gua. O deus dos trovoes reparou numa gotaque escorria pelo queixo da rapariga.- Por favor, dem-me um pouco de gua - pediu. A sua voz sooufraca e em tom de lamria, nada que se parecesse com os urrostroantes do dia anterior. - Por favor.- - No temos autorizao para falar contigo -respondeu a rapariga.- E muito menos ainda podemos dar-te gua - acrescentou orapaz.- Mas tenho a certeza que o vosso pai no sabia que hoje iaestar assim to

    quente - insistiu o deus dos troves. - Num dia quente

  • como este, todos deviam ter direito a um pequeno gole degua, sejam deuses ou humanos.o nosso pai proibiu-nos - continuou ela.

    Para o vosso prprio bem, presumo - disse o deus dos troves,agarrando-se s grades. - Ele devia ter medo que eu tentasseagarrar um de vs se me dessem de beber.- Precisamente - confirmou o rapaz.- - Mas... e se eu vos desse a minha palavra de honra que

    no ousarei sequer tocar-vos? - props o deus dos troves.- Est to quente e tenho tanta sede, aqui enclausuradonesta gaiola de ferro... Afinal de contas sou um deus,honrarei a minha palavra.

    A filha do campons olhou para ele, preso na gaiola de ferroe sob o sol impiedoso. No tinha qualquer maneira de serefugiar na sombra.- Com certeza uns goles de gua no faro mal... - disse parao irmo.- Se ele deu a sua palavra de honra que no nos tocaria... -respondeu ele. E foi assim que as duas crianas desobedecerams ordens do pai e deramde beber ao deus. Aquilo que no sabiam, e que o pai notivera o cuidado de lhes dizer, era que toda a fora e poderdo deus dos troves provinha da gua. Mal a primeira gota lhepassou pelos lbios, aumentou logo de tamanho e libertou-seda gaiola de ferro como se fosse feita de carto.As crianas recuaram, aterrorizadas, ao verem o que tinhamfeito.- Nada temam - tranquilizou-as o deus dos troves. - Disseque no vos faria mal. Aqui tm, pela bondade quedemonstraram. - Arrancou um dente da sua boca e atirou-o parajunto deles. - A partir de hoje, pequena irm, chamar~te-sNu Wa, e tu, pequeno irmo, sers Fu Xi. Agora plantem estedente e usem os frutos que ele gerar com sensatez.Dito isto, voltou para os cus. Nu Wa olhou para o irmo.- Que fomos ns fazer? - lamentou-se ela. - Que dir o nossopai quando regressar e vir que o deus dos trovesdesapareceu?- Se plantarmos o dente mgico, talvez nasa da qualquercoisa que possa agradar ao pai quando ele regressar - sugeriuFu Xi.Plantaram o dente e, em menos de nada, irrompeu uma planta docho carregada com uma s cabaa, que crescia e se tornavacada vez maior.- No admira que nos tenha chamado Nu Wa e Fu X1 - comentou airm; estes nomes querem dizer precisamente rapariga dacabaa e rapaz da cabaa. - Mas de que nos serve esta

  • cabaa gigantesca? - Continuaram a observar a cabaa, que noparava de crescer.Nesse momento voltou a chover e, quando o pai chegou domercado com as verduras, havia j grandes poas em redor dacasa.- Tm conscincia do que fizeram, no tm? - perguntou o pai.-

    O deus dos troves voltou para o cu e, para se vingar, irinundar a terra! Por causa de vocs, vamos morrer todosafogados!O campons estava a ser bastante injusto, sobretudo porquetinha sido ele prprio, e no as crianas, quem tinhacomeado por prender o deus dos troves naquela gaiola,irritando-o. E as guas l comearam a subir.- Terei de construir um barco para ns - anunciou o pai. -Enfrentei o deus dos troves com uma forquilha de ferro,encerrei-o numa gaiola de ferro. Por isso, ser num barco deferro que me irei proteger dele. - Lanou mos ao trabalho eos filhos ouviam mais o ferro a ser batido do que o som dachuva a cair.O barco de ferro no tardou a ficar pronto, mas as crianasno quiseram entrar a bordo. Nu Wa e Fu Xi lembraram-se doque o deus havia dito acerca do dente mgico: Usem os frutosque ele gerar com sensatez. No lhes tinha ele chamadorapariga e rapaz da cabaa? Por que razo era a cabaagigante to importante? Para retirarem o seu interior e usara casca a servir de barco!Assim, e apesar dos protestos do pai quando subiu para o seuprprio barco, as crianas entraram na cabaa gigante... e asguas desataram a subir, a subir, at que chegaram perto dasportas do cu.jamais um humano lograra aproximar-se das portas do cu; porisso, quando o campons nelas bateu com a fora dos seuspunhos e pediu ajuda, o senhor do cu foi apanhado desurpresa.- Que barulho terrvel este? - perguntou.O deus das guas, no to importante como os anteriores,explicou:- O deus dos troves foi preso por um humano. Por isso, epara se vingar, mandou-me inundar a terra.- Pouco falta para que a tua gua comece tambm a inundar oscus acrescentou o senhor do cu, num tom irado. - Faz baixaras guas!- Sim, senhor - respondeu o deus das guas. E apressou-setanto a cumprir as ordens que o nvel das guas desceudemasiado depressa. De um momento para o outro, a gua que

  • sustentava o barco de ferro e a cabaa desapareceu porcompleto.

    Ambos se precipitaram a grande velocidade de volta terra. Obarco de ferro fez um grande estrondo ao embater no cho,tendo o campons morrido instantaneamente. Felizmente para arapariga da cabaa, Nu Wa, e para o rapaz, Fu Xi, a aterragemdeles foi mais suave. A cabaa gigante embateu contra o choe balouou ainda umas quantas vezes, aps o que as duascrianas pisaram o solo hmido, nada mais apresentando paraalm de alguns arranhes. Foram eles as duas nicas pessoasque sobreviveram face da terra.Depois de adulta, Nu Wa deu luz uma bola de carne. Ela eFuXi levaram-na por umaa escada acima, uma escada que vinhado cu, e a certa altura cortaram a bola em pedaos pequenos.Espalharam-nos ao vento, e cada pedao que atingia a terratransformava-se num ser humano. Nu Wa e Fu Xi passaram a serconsiderados deuses.

    O ARQUEIRO EOs SOISDe acordo com alguns dos mitos chineses mais antigos, cadauma das coisas vivas concorre para a unidade doUniverso e formada por trs elementos: o yin, o yang e ochi. As coisas so sustentadas pelo yn, movidas pelo yang emantm-se unidas pela energia do ch.in feminino. a Lua. a gua. o frio. o Outono e o YInverno. a sombra,Yang masculino. o Sol. a terra seca. o calor. aPrimavera e o Vero. a luminosidade.O yin est em conflito com o yang, e o yang em conflito com oyin. Travam um conflito equilibrado e cada um deles pretendeassumir o controlo. Esse confronto contnuo e o equilbrionatural assim mantido. Por vezes, esse equilbrio perturbado e necessrio um heri para devolver tudo normalidade. o Arqueiro, era um desses heris.Para l do horizonte dos mares orientais, numa Primavera bemquente, havia uma gigantesca amoreira que chegava at aoscus. Chamavam-lhe Fu Sang e nela habitavam os dez filhos deDi jun, deus do cu do Oriente, bem como a deusa sua noiva,de seu nome Xi He. Os seus filhos eram sis e revezavam-se natarefa de percorrer o cu, trazendo calor e vida terra lem baixo. Todas as manhs calhava a veza um sol diferente de fazer o seu percurso. Enquanto esteatravessava o cu, os seus nove irmos tinham de ficar nosramos de Fu Sang.

  • Xi He tinha decidido que nunca deveria estar mais do que umdos seus filhos no cu ao mesmo tempo. E assim foi durante ummilhar de anos.Mas os sis cansaram-se daquela rotina, que se repetia diaaps dia. Apetecia-lhes fazer algo diferente.- A nica ocasio em que podemos brincar juntos aqui narvore disse um deles.- No acham que seria divertido corrermos uns atrs dosoutros atravs do cu? - props outro.- Porque no fazemos isso? - sugeriu um terceiro.- No podemos - avisou o quarto.- Porqu? - indagou o quinto.- Porque a nossa me nos proibiu - respondeu o sexto.- Mas por que razo ela o proibiu? - questionou o stimo.- Tenho a certeza que os humanos o apreciariam - alvitrou ooitavo.- Fornecemos-lhes calor e claridade e fazemos crescer as suasculturas -acrescentou o nono,- Vamos ento sair todos juntos amanh de manh! - props odcimo, pois era de noite e estavam todos os dez reunidos nosramos de Fu Sang.Na manh seguinte, antes mesmo de Xi He chegar no seu carro,os dez sis saltaram da rvore e andaram numa correria pelocu, atrs uns dos outros, a rir e a brincar.L em baixo, na terra, as pessoas ficaram radiantes.- Mas que belo dia! - exclamaram. - Que viso esplendorosa.Temos sorte por poder contemplar dez sis e no apenas um.No tardou, porm, que a alegria se transformasse em horror emedo. Dez sis no cu implicava dez vezes mais claridade edez vezes mais calor. As colheitas secaram e murcharam,completamente queimadas. As pessoas ficaram cegas devido claridade. Os lagos e os rios evaporaram-se e as rochascomearam a derreter por aco daquele calor insuportvel. Osanimais selvagens saram das florestas secas e queimadas embusca de alimento e de gua, passando a atacar as pessoas.Monstros terniveis apareceram a assolar a

    terra. A situao tornou-se desesperante, mas os dez sisirmos l continuavam a brincar atravs dos cus.Di Jun e Xi He viram o mal que os seus filhos estavam acausar aos humanos e pediram-lhes que voltassem majestosaamoreira. Estes recusaram-se, pois pela primeira vez tinhamsaboreado a liberdade e estavam a adorar.Um imperador chamado Yao dirigiu as suas oraes ao deus e deusa em busca de ajuda. O imperador Yao no era um imperadorcomo os demais. No vivia num palcio com centenas de

  • criados, no se banqueteava com comidas exticas nem vestiaapenas roupas de seda. Achava prefervel viver junto dos seussbditos. A sua casa era uma simples cabana de campons, assuas roupas eram perfeitamente comuns e comia o mesmo que oseu povo, isto , comida preparada com o que havia na regio.Era um homem humilde e um excelente govenante; por isso,Dijun decidiu ajud-lo.O deus enviou Y1, o Arqueiro, ao imperador Yao; levavaconsigo dez setas brancas na sua aljava, uma para cada um dossis. O imperador ficou muito satisfeito com a chegada de Yi.O arqueiro trouxe consigo a sua mulher, Heng E (tambmconhecida por Chang E), e o imperador recebeu ambos muitobem.pegou no seu arco vermelho, colocou nele a primeira setabranca, fez pontaria e disparou-a, acertando em cheio nocentro de um dos sis. Deu-se uma enorme exploso, voaramchispas e fagulhas e o sol desapareceu. Algo velo cairviolentamente no cho, ali perto. Aqueles que se aventurarama sair de casa com aquele calor acorreram rapidamente aolocal onde a tal coisa tinha cado. Era um corvo com trspatas cUjo corao fora trespassado pela seta de Yi. Tratava-se do esprito do sol.colocou nova seta no arco, depois uma terceira, depois umaquarta. De cada vez que atirava a seta, eliminava um sol e umcorvo de trs patas estatelava-se no cho, ao passo que o cuse tornava menos claro e a temperatura descia. Um aps outro,Yi foi eliminando os sis rebeldes.o imperador Yao olhou ento para a aljava de Yi. De inicio,comportara dez setas, mas, agora que o arqueiro tinha jacertado em oito dos sis, apenas restavam duas. Duas setaspara dois sis. Que aconteceria se Yi, o Arqueiro, usasseambas as setas? No haveria mais nenhum sol, no haveria luzdo dia. Nem calor, nem uma fonte de energia para fazercrescer as colheitas.

    O imperador subtraiu uma seta da aljava e assim, quando oesprito do nono sol caiu no cho sob a forma de um corvo, Yijulgou que esgotara as setas e que a sua tarefa estavacumprida. Apenas um sol brilhava no cu, tal como deve ser.- Em nome de todo o meu povo, agradeo-te - disse oimperador, aps o que expressou tambm a gratido a Di Jun eXi He.Mas Di Jun, deus do leste e senhor do cu, no estava tosatisfeito com Yi.- Fizeste tal como te pedi, Yi - declarou -, no o possonegar, mas no consigo suportar continuar a ver-te l em cimano cu. De cada vez que olhar para ti lembrar-me-ei dos meus

  • filhos mortos. Tu e a tua mulher, Heng E, devero deixar oceu para todo o sempre.Heng E achou muito injusto ter de ser banida para ir viverjunto dos humanos. Afinal de contas fora o marido que atiraraas setas e no ela. Reparou que ele parecia um pouco mudado,sendo bvio que andava a guardar segredos e a esconder coisasdela.Yi tinha ido ao monte Kurilun visitar a rainha me do Oeste.Em apenas dezasseis dias, havia-lhe construdo o maisesplndido palcio face da terra, com paredes feitas dejade muito bem polido, com madeiras docemente perfumadas ecom um telhado todo de vidro. Aquilo que Heng E no sabia eraque o marido recebera em troca uma Plula da Imortalidade,uma daquelas que os deuses tomam para viver eternamente.A rainha me do Oeste, ela prpria uma deusa, tinha dado a Yiinstruoes precisas quanto ao uso dessa plula. Deveria serpartilhada, pois era demasiado potente para uma s pessoa, etomada apenas depois de o corpo estar devidamente preparadopara o efeito. Ao regressar a casa, Yi escondeua plula, embrulhando-a num leno de seda, numa das vigas dotecto. Um belo dia, quando Yi estava ausente, Heng Eestranhou um brilho incomum, quase magico, proveniente dotecto, Subiu para uma das vigas e descobriu a a Plula daImortalidade. A sua magia parecia ser de tal modo poderosaque chegava mesmo a brilhar atravs do leno que a envolvia.Estava j Heng E a tocar na plula com a ponta da lngua,para lhe provar o sabor, quando Yi entrou em casa. Algunsdizem que Heng E engoliu

    deliberadamente a plula, ao passo que outros sustentam queficou to surpreendida com o regresso do marido que a engoliusem querer.Assim, a plula que devia ser tomada por duas pessoas apscuidadoso planeamento acabara de ser engolida por Heng E semqualquer preparao!O resultado foi imediato. Heng E comeou a flutuar no ar,saiu pela porta da rua, que estava aberta, e nenhum dos doispde fazer fosse o que fosse para o evitar. Ela no possuaj qualquer domnio sobre o seu proprio corpo.Flutuava e subia, subia, subia... at que chegou Lua. Aficou e por l ainda hoje se encontra, tendo uma lebre porcompanheira. A lebre no se cansa de esmagar minerais e ervascom um gigantesco pilo e um almofariz.Y, entretanto, construiu para si um palcio no sol querestou, para poder estar no cu junto sua mulher amada. nas noites em que a Lua brilha com maior intensidade que elea vai visitar.

  • Assim, Heng E, a deusa da lua, confere a esta o seu yin, oseu lado feminino. A sua frieza. A sua calma. Yi confere aoSol o seu yang,o seu lado masculino. O seu calor e o seu fogo. juntos,equilibram-se e formam a noite e o dia.

    Cada ano chins dedicado a um de doze animais, desde omacaco ao rato. Esta lenda, baseada num antigo mitoconfuciano, explica por que razo o Ano do Co se chamaassim.viveu em tempos um jovem chamado Wu que estava enamorado deuma princesa. No podia fazer nada para remediar a situao,pois ela era to bela que ele no conseguia sequer afastar osolhos. Para sorte de Wu, o sentimento era correspondido, mas,para seu azar, a sua posio social no era tal que lhepermitisse que o pai da princesa, o imperador, os deixassecasar, pelo que o seu amor tinha de ser mantido em segredo.Um dia, o imperador reparou em Wu a fitar a sua filha com umolhar que transbordava de amor e anseio, e o velho homemficou furioso.- Como te atreves a olhar a princesa dessa maneira? - bramiu.Deixars este palcio e nunca mais c voltars. Devesagradecer-me por no mandar j cortar-te a cabea,A princesa quis dizer algo em defesa de Wu, quis revelar aopai o amor por Wu, mas sabia que isso s pioraria as coisas;decidiu permanecer calada. Assim, Wu abandonou a corte doimperador com o corao destroado e, semdinheiro nem bens prprios, dingiu-se para as montanhas.Levava uma vida miservel, no tardando que outrosinadaptados e proscritos, que tinham ouvido falar da suatriste histria, a ele se juntassem e com ele fossem viver.Tornaram-se bandidos, sendo Wu o chefe da quadrilha. Semterras para cultivar arroz e sem dinheiro para o comprar, umavida de crime era a nica soluo. Os salteadores de Wupassaram a aterrorizar as populaes que viviam no sopdaquelas montanhas, saqueando quintas e aldeias e roubando osviajantes que se aventuravam nas estradas.

    No tardou que chegassem notcias dessas actividades aosouvidos do imperador, que logo ordenou ao seu exrcito quepusesse cobro situao. Wu e os seus bandidos, porm,conheciam as montanhas melhor do que mnguem e desapareciampor detrs das rochas, desciam pelos barrancos e escondiam-seem grutas cUjas entradas estavam tapadas por ramagem.Corriam rumores de que Wu e os seus homens conseguiamtransformar-se numa espcie de nvoa e ser levados pela brisaao primeiro sinal de problema. Tudo isto contribua para

  • deixar o imperador ainda mais furioso.- Faa saber que quem me trouxer a cabea de Wu receber nos terras em cujaa extenso vive um total de dez milfamlias, mas tambm a mo da minha bela filha, a princesa,em casamento - anunciou ele ao comandante das suas tropas.Este anncio rapidamente se tomou conhecido em todo o seuimperio. Entretanto, a princesa permanecia no seu quarto,tendo-se recusado a comer e a beber durante trs dias, e nofalava com ningum. Adquiriu assim um aspecto adoentado eplido.- O que se passa contigo, filha? - perguntou o pai, sentado beira da cama-. Claro est que ele no sabia do amor que asua filha sentia pelo homem que elequeria ver morto.Ela nada proferiu, mantendo apenas uma expresso distante nosseus belos olhos.

    Uma semana mais tarde, estava o imperador sentado no seupagode com a princesa a seus ps, irrompeu por ali dentro umcriado com novidades extraordinrias.- Meu amo e senhor - disse -, vinde depressa s portas dovosso palcio, pois h algo que folgareis em ver.Intrigado o imperador atravessou o jardim em direco aoptio, a filha seguindo-o apressadamente, alguns passosatrs. A, em frente ao porto aberto, encontrava-se um coenorme, cujo plo ostentava todas as cores do arco-ris.o imperador estava boquiaberto de espanto e profundamentefeliz. No eram as cores do co que lhe agradavam, nem osdentes enormes ou a sua lngua pendente. O que o deixavafeliz era a viso daquilo que se encontrava pendurado nostufos de plos abaixo da boca salivante do arumal: a cabeadegolada de Wu.

    o imperador ordenou que a cabea de Wu fosse espetada no paude bandeira mais alto do seu palcio, para servir de aviso atodos aqueles que ousassem olhar para a sua filha ou realizarataques contra o seu povo.- Ofeream a este co as mais deliciosas comidas - ordenou oimperador.- Dem-lhe banho e escovem o seu plo at que as cores doarco-ris reluzam no seu maior esplendor...- O que ests a fazer, pai? - interrompeu a princesa.- Ora essa, recompenso o animal pelo excelente trabalho -respondeu ele.- Mas no anunciaste que fosse quem fosse que te trouxesse acabea de Wu deveria receber terras onde habitam dez milfamlias?

  • - Sim - concordou o imperador -, mas de que servem as terrasa este ammal?- No podes voltar com a palavra atrs, pai! - lembrou-lhe afilha.- Tens razo, claro - concordou o imperador. Aclarou agarganta e anunciou o seguinte a todos aqueles que seencontravam presentes no palcio:- Tal como prometido, vou ento recompensar este co por metrazer acabea de Wu, entregando-lhe terras em cuja extenso vivemdez mil famlias. Fizeram-se ouvir expressoes de surpresa emurmrios por parte dos cortesos.- No ests a esquecer-te de nada? - sussurrou a princesa aoouvido dovelho homem. - Tens de casar-me com aquele animal...- No - gritou o imperador.- Sim - insistiu a princesa. - De que serve um imperador sefaltar sua palavra?- Muito bem - anuiu finalmente o imperador. - Mas ser umcasamento apenas no papel. No espero que te sintas obrigadaa viver com esta criatura como sua mulher.E o dia do casamento chegou. A princesa vestiu-se com a suasmelhores roupas e os votos foram trocados. No final dacerimonia, o co, a quem a princesa chamara Ban Hu, pegoucuidadosamente nela entre os seus dentese arremessou-a para cima das suas costas. Antes que algum seapercebesse do que estava a acontecer, ou tivesse sequertempo para o evitar, o co correu para fora do palcio com aprincesa agarrada ao seu plo.

    - Detenham-nos! - gritou o imperador. - Se aquele animalperigoso tocar num cabelo que seJa da minha filha...Enquanto o seu amo e senhor berrava furiosamente, ocomandante das tropas reuniu os seus homens e partiram embusca do enorme co. A cabea de Wu parecia observ-los, asorrir, l bem no alto.O cu escureceu num instante, e'abateu-se sobre aquela regiouma violenta tempestade, com troves, relmpagos e chuva toforte que cada gota parecia quase um murro aplicado nascostas de um homem. As pegadas do enorme co foram apagadas eos homens voltaram ao palcio de mos a abanar.- Perdi-a para sempre! - lamentava-se o imperador, - Deve tersido comida por aquele co multicolor. - Proclamou ento queseriam observados doze meses de luto oficial, durante osquais todos os habitantes do imperio chorariam a perda da suanica filha, - Passar a chamar-se o Ano do Co.Os anos passaram. O imperador encontrava-se beira da morte

  • quando pelo quarto adentro entrou a sua querida filha, aprincesa. Olhando-a do seu leito de morte, o pai chorou dealegria.-Julgava-te morta - disse ele.- No - respondeu a princesa. - Vivi todos estes anos com BanHu, para l das montanhas. Ele morreu entretanto, mas tivemosdoze filhos que tm agora um presente para dar ao av. - Foibuscar uns pauzinhos de alcauz que trouxera e colocou umdeles na boca do pai.O imperador mastigou o pau e o efeito foi mgico. Os anospareciam recuar e ele sentia-se novamente jovem. Lanou osbraos em redor da filha.- Fala-me do teu marido - pediu-lhe.- Muito bem. - A princesa sorriu. - Acontece que o co e Wueram um s. Sempre amei Wu e, quando anunciaste umarecompensa pela sua captura, enviei o meu esprito para asmontanhas para o procurar.- Foi por isso que estavas to plida, com aquele olhardistante! exclamou o imperador, subitamente compreendendotudo. - o teu esprito tinha partido numa viagem,221

    - Sim - confirmou a princesa. - Finalmente encontrei o meuamado Wu c, com a ajuda do meu esprito, ele adoptou a formade Ban Hu, o velho deus co. E o resto j tu sabes.- Mas ele tinha sempre o aspecto de um co? - indagou oimperador.- No - respondeu-lhe a princesa. - Por vezes eletransformava-se no Wu decapitado.- Mas isso deve ter sido horrvel de ver! - exclamou oimperador.- No - retorquiu a princesa. - Eu amava-o, independentementedo seu aspecto. juntos no tivemos seno momentos felizes.- Precisamente o mesmo que estas a proporcionar-me agora,minha filha- declarou o imperador. - Fiz um juzo errado de Wu elamento-o. Bem-vinda a casa.E eis a lenda do imperador, da princesa e de Wu, o cortesode baixa condio, que conquistou a mo da amada, sendo porisso obrigado a pagar um preo avultado: a sua propriacabea.

    A VIAGEM AO MUNDO INFERIORMuitos chineses acreditavam que, aps a morte, a alma de umapessoa era julgada e depois colocada num novocorpo. A identidade do novo corpo dependia daquilo que cada

  • pessoa tinha feito no passado. Por vezes, nem tudo corriacomo se esperava.ouve em tempos um monge budista que noite no se deitavanuma cama e no fechava os olhos. Enquanto os outros homens emulheres dormiam, ele ficava sentado muito direito numcaixo, acordado. Este monge parecia no precisar de dormir,e os outros cedo repararam que havia algo de especial nele.- Realmente, ele j deve ter atingido a sabedoria - disse umdos monges.- Os deuses devem ter na forja grandes planos para ele -concordou outro.Quando, anos mais tarde, o monge morreu, foi deitado nocaixo onde passava as noites sentado. Tinha uma expresso degrande paz interior e parecia, pela primeira vez, estar agostar de dormir.As pessoas vMham de longe ver o corpo daquele estranho homemsanto, e em breve se tornou evidente que algo deextraordinrio estava a suceder com aquele mesmo corpo.Quando as pessoas normais morrem, os corpos comeam adeteriorar-se, de modo a que as suas almas possam ir para omundo inferior, a fim de ser julgadas. 0 corpo daquele mongeno estava a deteriorar-se; por isso, quando foi para o mundoinferior, levouconsigo o seu corpo.O mundo inferior dos Chineses consistia numa srie detribunais, ondeas almas dos mortos eram julgadas, os castigos eram aplicadose as condies da sua prxima vida determinadas. Quando umaalma chegava ao mundo inferior, era levada a um tribunal ondeera pesada. Se o seu peso fosse grande - resultante da culpapelas ms aces que tivesse cometido em vida era conduzida aoutro tribunal para ser julgada.O tribunal para onde ia dependia directamente do tipo depecados e crimes cometidos pela alma em questo. Haviatribunais especficos para cada tipo de crime, fosse esteganncia, homicdio, canibalismo, mentira, trfico deescravos, ou at a falta de venerao da prpria me e doprprio pai. O monge budista no chegou sequer a passar pornenhum destes tribunais; apenas lhes passou ao lado.Havia tambm uma grande diversidade de castigos. Algumasalmas eram atiradas aos animais selvagens, outras eramPregadas cama, outras ainda eram lanadas para as chamas.Cada um dos tribunais enviava as suas vtimas para um infernodiferente.O monge teve igualmente o cuidado de evitar esses stios.Quando os castigos estavam quase todos aplicados, as almaschegavam ao dcimo e ltimo tribunal, onde era tomada a

  • deciso acerca da nova vida que uma alma deveria ter quandopassasse pela Roda da Transmigrao. A tratavam de combinaras velhas almas com corpos novos, havendo o cuidado de seescolher corpos que as almas merecessem.As boas almas, que depois de pesadas tinham sido consideradassuficientemente leves logo no primeiro tribunal do mundoinferior, eram encaminhadas directamente para a Roda daTransmigrao. Reencarnavam como aristocratas. As almas quetinham sido menos boas eram enviadas para a terra no corpo depedintes ou animais, tendo sempre uma oportunidade demelhorar da prxima vezque morressem e renascessem.Enquanto o monge atentava nas almas que partiam com os seuscorpos novos, houve uma que o chamou mal passou os portes domundo inferior.- Eu lembro-me de ti! - gritou ela. - A alma da tua me estainda a suportar tormentos terrveis.O monge ficou horrorizado. Durante todo aquele tempo,calculara que a me tivesse renascido e estivesse a viverfeliz na terra, na companhia de um novo corpo... Agora,descobria, entretanto, que a alma dela ainda ali estava,algures, a ser torturada.

    Drigiu-se apressadamente para os portes, a fim de ficar asaber algo mais, antes que a alma partisse. Fora dos portoesencontrava-se a senhora Meng, que, a cada alma que partia,distribua uma chvena da Poo do Esquecimento, que tinha onome de Mi Hun Tang. Depois de beberem aquela poo, as almasno se lembrariam de nada.Era por isso que ningum se lembrava do tempo passado nomundo inferior ou acerca das vidas passadas. Apenasrecordavam a dor. Se no houvesse a memria da dor, oscastigos no teriam qualquer efeito prtico.Porm, o monge chegou tarde de mais. A alma que lhe dirigiraa palavra tinha j bebido a poo. No se lembrava de nada.j no valia a pena perguntar-lhe onde vira a alma torturadada me do monge.Tal como o Governo chins superficie da terra e os deusesacima desta, nos cus, diversos funcionrios geriam o mundoinferior. Cada departamento de cada um dos tribunais tinha-oss dezenas. Uns anotavam o peso das almas, outros os pecadoscometidos, outros ainda os castigos inffigidos, e uns quantosmaisavisavam quando as penas se aproximavam do fim. E por afora...Tudo o que o monge sabia era que a me tinha sempre sidomuito boa para ele. Ela fora, alis, boa para toda a gente.

  • No conseguia imaginar nada de mau que ela tivesse feito,razo por que queria que a libertassem. O Mco problemaresidia no facto de no saber a quem deveria dirigir-se. Aque tribunal? A que funcionrio? Ningum parecia ralar-se, eno tardou que os seus pedidos se transformassem emexigncias.Como ainda tinha o corpo intacto, o falecido monge podiatornar-se muito mais incmodo do que qualquer daquelas almasnormais que aguardavam julgamento. Podia andar de um ladopara o outro, tentando apurar onde a sua me se encontrava eexigindo que ela fosse libertada,Invariavelmente, a resposta oficial que lhe davam era aseguinte:- Os castigos que as almas recebem referem-se a pecadospassados. Esses castigos so decididos l nos cus eexecutados aqui no mundo inferior. Ninguem tem o poder deimpedir o seu cumprimento.- Mas a minha me ser uma excepo! - insistia o monge. Noia desistir:

    andava de tribunal para tribunal, batia as portas com toda afora e fazia o maior barulho possvel.- Se eles querem dificultar-me a vida, tambm eu dificultareia deles declarou.Visitou os diversos infernos e perguntou aos respectivoscarcereiros se a alma da me no estaria l a ser puMda.Alguns deles mandavam-no embora, outros mostravam-se maiscooperantes, sentiam pena do monge e at chamavam por ela,elevando as vozes acima dos atormentados e desesperadosgemidos. Mas nem assim conseguiu encontr-la.A busca continuou. A me cuidara dele em vida; por isso,parecia-lhe mais do que 'usto tentar a1udar a alma deladepois de morta... S precisava de a1 3encontrar. Em breve, todos os funcionrios de todos ostribunais e cada um dos carcereiros de cada um dos mfernosconheciam o monge, passando a temer assuas visitas.j desesperado, lembrou-se de organizar um banquete para asalmas de todos os monges falecidos e presentes no mundoinferior, almas essas que aguardavam a sua atribuio a novoscorpos e a passagem pela Roda da Transmigrao.Muitos deles tinham conhecido em vida aquele dedicado mongebudista - era o tal que nunca dormia, que passava as noitesem claro, sentado direito num caixo- e muitos sabiam tambm da sua busca incessante pela alma dame por todo o mundo inferior. Vieram em grande nmero e

  • fizeram muito barulho.Foi um verdadeiro caos! No mundo mferior nunca se tinhaouvido... nunca se tinha visto nada assim. Os funcionriosprecisavam de tranquilidade para levar a cabo o seu trabalho;precisavam de paz e sossego, e disso tinham tido pouco desdeque o monge comeara procura da alma da me.Fora atingido o ponto de saturao. O monge tinha ganho! Osfuncionrios concordaram em libertar a alma da me mais cedodo que o previsto, nem que fosse no corpo de um co. Ao menosassim ela poderia regressar para o mundo dos vivos, e aquelaalma - ainda com corpo - deixaria de armar tamanha confuso.H quem diga que foi o prprio Buda que libertou a alma damulher do mundo inferior por ter ficado impressionado com adevoo demonstrada pelo filho. Fosse qual fosse a razo, averdade que o monge conseguira.- E agora eu? - Indagou o monge. - Em vIda no precisava dedormir.

    Depois de morto, o meu corpo no se decompoe, e aqui no mundoinferior impus a minha vontade. O que que me estreservado?O monge estava certo de que iria ao tribunal e o enviariampara a Roda da Transmigrao, regressando terra como um sersuperior. Enganara-se.Os deuses tinham decidido que, uma vez que ele se sentia to vontade entre as almas dos mortos, deveria l permanecercom elas. Deram-lhe o nome de Di Zang Wang, que significarei do ventre da terra, e nomearam-no senhordo mundo inferior. Os muitos infernos de que tinha queridosalvar a me to desesperadamente faziam agora parte do seuvasto reino. Finalmente, os anos que passara sentado nocaixo ganhavam algum sentido. Podemos nem sempre obter o queesperamos, mas por vezes recebemos o que merecemos..Ao recm-nomeado Di Zang Wang foi ainda posto disposiotodo um squito destinado a ajud-lo nas suas novas funes.Deste faziam parte o poderoso e impressionante Yan Wang, deusdos mortos e juiz do primeiro tribunal do mundo inferior, bemcomo dois demnios carcereiros, um deles com a cabea de umboi, o outro com uma cabea de cavalo.

    A ESTRADA DE ARROZEste mito tauista demonstra o grande fosso existente entre os ricos e os pobres,e o modo como um magistrado

    honesto foi ajudado por um dos Oito Imortais, conseguindo tornar humilde um

  • homem avarento.

    uang Zi Lian, mercador e agricultor, era rico, muito rico mesmo, e adorava fazeralarde da sua fortuna exibindo o maior e o melhorfosse do que fosse. Era dono de milhares de terrenos, as suas roupas eram feitas comas sedas mais caras e mais requintadas, Para alm de que a sua enorme casa estavarepleta de tesouros inestimvels.

    Para o dia do seu aniversrio, organizou o banquete mais espectacularque os vizinhos janais tinham visto. Os preparativos estavam

    Jadiantados: como a estrada de terra batida que levava a sua casa estava cheia depedras, Kuang Zi Lian ordenou a um grupo de criados que tratasse de as retirar. Foium trabalho bastante rduo, tendo os empregados carregado as pedras em cestos.

    Quando esta tarefa ficou pronta, Kuang Zi Lian fol inspeccionar o trabalho edescobriu que onde antes havia pedras existiam agora buracos.- Manda encher os buracos e colocar por cima uma passadeira

    vermelha que v at ao portdo de entrada, passe pelos meus jardins e leve as pessoasat A porta da frente de minha casa - ordenou ele.

    - E com qu se enchero os buracos? - perguntou-lhe o secretrio.- Arroz! - respondeu Kuang Zi Lian, com um sorriso de orelha a orelha. - Mas noose limitem a encher os buracos. Quero uma grossa camada de arroz sob a passadeira,de modo a que os meus convidados possam desfrutar do mais suave de todos oscaminhos!

    Naqueles tempos, os pobres na China nada mais comiam a noser arroz, e os muito pobres tinham sorte se conseguissemalgum. Utilizar aquele alimento deste modo era um desperdcioterrvel, mas Kuang Zi Lian encarava-o como uma maneira dedemonstrar como era rico e importante. Qualquer pessoa podiacomer arroz, mas s ele era suficientemente rico e poderosopara mandar fazer uma estrada com aqueles gros.Numa altura em que havia pessoas a morrer de fome, chegaramrelatos deste desperdcio aos ouvidos de um magistrado de umacidade vizinha.O seu nome era Zhao Shen Xiao e era um homem bom e honesto,mas nada conseguia fazer acerca da estrada de arroz. Kuang ZiLian podia dispor da sua riqueza do modo que melhor lheaprouvesse, contudo a verdade que Zhao Shen Xiao ficaratriste ao lembrar-se de todas as pessoas famintas nas cidadese nas aldeias.Foram chegando notcias do banquete que Kuang Zi Lianpreparava aos ouvidos dos pedintes locais e estes

  • encaminharam-se para a casa do homem, levando na mo astigelas com que costumavam pedir. Sabiam que era arroz queestava sob a passadeira, mas no se atreviam a retirar umgro que fosse, pois sabiam que no lhes pertencia.No ousavam igualmente passar o porto e entrar pelosjardins, uma vez que os guardas, atentos, os observavam.Estes ltimos tinham recebido de Kuang Zi Lian instruoesmuito claras acerca do tratamento a dar a visitantesinoportunos - deveriam, muito simplesmente, ser maltratados.No dia do banquete, porm, houve um pedinte que entrou pelacasa dentro. Passou pelas legies de criados que corriam deum lado para o outro a cuidar dos ltimos preparativos. Dacozinha vinha um aroma delicioso, as tijelas de porcelanabrilhavam, dispostas em diversas filas de mesascuidadosamente envernizadas; as esttuas recebiam umderradeiro polimentoe a passadeira era varrida uma ltima vez.O pedinte dirigiu-se cozinha e estendeu a tigela.- Poderiam arranjar-me algumas sobras? - pediu. - A minhamulher e o meu filho no comem nada h dias.

    Todavia, os cozinheiros no se atreveram a dar-lhe qualquercomida, com medo que Kuang Zi Lian viesse a saber.Nesse momento, irromperam pela cozinha dois guardas eagarraram-no e um delesarrancou-lhe a tigela vazia das mos, ao passo que outro opegou pelo cachao e o atirou pelos degraus abaixo, para ocho. o pedinte conseguiu ainda agarrar uma mo-cheia dearroz antes de se pr de p. TinhaO nariz a sangrar devido queda.O primeiro guarda prendeu-lhe o pulso e apertou-o com fora.Deixa isso - ordenou.- O pedinte deixou escorregar os gros de arroz por entre osdedos. , COMo poder ao teu amo fazer falta uma mo-cheia dearroz se tem a estrada pavimentada com ele? - suplicou.No nos questiones! - gritou o, segundo guarda e, de acordocom as ordens do patro, distriburam ao pedinte uma dose depontaps queServissem de lio para todos os demais.Depois foi o banquete. Todos os ricos proprietrios de terrasdos arredores hegando pela estrada de arroz, ficandomaravilhados com um anfitrio demasiadamente rico que podiautilizar arroz para pavimentar a estrada.Admiraram os magnficos jardins de Kuang Zi Lian, bem como asua casa e tesouros, aps o que se sentaram para a festa.xclamaes de prazer por parte dos ricos convidados cedo setornaram em terror: as tigelas de arroz comearam a

  • transformar-se em tigelasde larvas de insectos e as massas em minhocas que secontorciam. E as prprias tigelas ficaram demasiado quentespara os convidados lhes pegar, ostentando as mos destesbolhas dolorosas das queimaduras. E o arroz , do melhor,passou a saber a gua lamacenta.Os convidados ficaram aterrorizados, mas ningum ficou maisdo que o anfitrio.Passa-se qualquer coisa estranha aqui! - gritou, pondo-se dep. -Os meus guardas relataram-me um incidente com um pedinte.Deve terlanado uma maldio sobre ns, mas descansem que serpunido!Kuang Zi Lian, furioso, deixou o local do banquete e ordenouaos guardas que o levassem at ao pedinte, que ainda seencontrava a sangrar no cho. Um grupo de pedintes tinhaentretanto entrado nos jardins para o socorrer.- Foste tu o autor disto! - vociferou Kuang Z1 Lian e deu umpontap ao pobre pedinte, que inspirou uma ltima vez emorreu.Alguns pedintes conseguiram reunir coragem suficiente pararelatar o homicdio ao magistrado Zhao Shen Xiao, que ficoufurioso e logo se fez ao caminho pela estrada de arroz,acompanhado de polcias, rumo casa de Kuang Zi Lian.Ao chegar, ficou surpreendido por ver que o corpo do pedinteainda ali estava. Era de esperar que Kuang Zi Lian o tivessemandado tirar dali para o caso de vir a haver umainvestigao. No tardou a descobrir a razo por que no foraretirado: nenhum dos criados conseguia levantar dali ocadver; o corpo estava incrivelmente pesado.Zhao Shen Xiao curvou-se e revistou os bolsos do pedinte,tendo apenas encontrado um pedao de papel. Desdobrou-o, leuas poucas palavras nele escritas e voltou a dobr-lo.- Tragam-me Kuang Zi Lian - ordenou aos polcias que oacompanhavam. Dali a pouco o homem mais rico de toda aprovncia estava diante de si.- Mataste este homem - acusou Zhac, Shen Xiao, - Tenhotestemunhas.- Era um ladro e invadiu a minha propriedade - respondeuKuang Z1 Lian, com desdm.- Enganas-te - acrescentou o magistrado. - No era nem umladro nem um pedinte. Tratava-se de Li Xuan.Uma expresso de horror e surpresa invadiu o rosto dospresentes. Li Xuan (por vezes chamado Tie Gual L) era um dosOito Imortais, um dos oito seres humanos extraordinrios quetinham encontrado o caminho da verdade e do conhecimento

  • atravs da prtica do bem. Aquele homem vestido como umpedinte, que se encontrava morto no cho, era quase um deus.Kuang Zi Lian prostrou-se de imediato aos seus ps e mercdo magistrado.

    - No sabia... No sabia... - lamentava-se pateticamente.- Claro que no sabias - confirmou Zhao Shen Xiao. - Veioaqui para te submeter a um teste, que tu falhaste e que lhecustou a vida. O que me impede de mandar matar-te?- Poupa-me! - balbuciava Kuang Z1 Lian. - Distribuirei tudo oque tenho. Tudo, a comear pela estrada de arroz. Que acomida seJa dada aos pobres! Que as minhas riquezas sejamvendidas e o dinheiro seja aplicado em beneficncia!- Muito bem! - declarou Zhac, Shen Xiao. - Se fizeres isso,poupo-te a vida, desde que passes o resto dos teus dias comovarredor de estradas!- Fao o que tiver de ser! - implorou Kuang Z1 Lian. - Muitoobrigado. Zhao Shen Xiao sorriu, lembrando-se do pedao depapel que estava no bolso de Li Xuan. Dizia assim: Poupa avida de Kuang Z1 Lian. Condena-o a varrer as estradas.Depois estava assinado. Ningum obrigara Kuang Zi Lian aalienar as suas riquezas. Fizera-o de sua livre vontade.Quando os pedintes vieram retirar o corpo de Li Xuan, estepesava como uma pena. Logo depois de o colocarem num caixo,desapareceu. preciso muito mais do que aquilo para destruirum dos Oito Imortais. Li Xuan estava reunido com os outrossete, a contar-lhes as lies que dera naquele dia.

    O FEIOSO

    mUItos pensam que Kui (por vezes chamado Zhong Kui)ERA muitofeio. Mas Kui era no s um notvel estudioso, COmo tambm setornou um deus. Havia esttuas a Kui em muitas casas, ondeeste era frequentementerepresentado em cima de uma tartaruga-gigante.Existem vrias histrias diferentes para explicar a razo porque Kul i representado sobre uma tartaruga. Uma delas contacomo ele TEVE Origem numa famlia muito pobre e como os paisse sacrificaramPARA que prosseguisse os seus estudos. Nenhum deles sabia lerou ESCRever, mas ambos queriam o melhor para o filho. o seusucesso HONraria toda a famlia.- Um dia poders mesmo vir a ser um funcionrio pblico -DIZIa-lhe a me, no adivinhando que ele chegaria ainda muitomais longeque isso.Desde cedo, KuI sempre estudara at j no haver luz para ler

  • e, de MaNh, logo a partir dos primeiros raios de Sol,comeava o seu dia.TInha uma verdade'ra sede de conhecimento. EstudOU,Fez os exames locais, depois os municipais, sempre comdistino, at CHEgar a vez dos exames provinciais. Saiu-sebem em todos os examesQUE fez, mas nunca se gabou e queria sempre fazer melhor.Finalmente, ficou preparado para fazer o mais importante detodos os exames: o ime imperial.Os outros candidatos tambm eram muito bons, mas Kul tinhaPASsado toda a vida a preparar-se para aqueles exames,esperando por issoboas hipteses.

    Apesar de Kui ter esperana e rezar para que tudo lhecorresse bem, tendo-se esforado por dar o seu melhor,ningum ficou mais surpreendido do que ele prprio ao obteras melhores classificaes. Fizera os exames juntamente comos mais estudiosos e provara ser melhor do que todos.- Como ficaste em primeiro lugar, irs, segundo a tradio,receber o teu diploma, dentro do palcio, das mos do prprioimperador - foi-lhe dito pelos examinadores.A famlia de Kul sentia-se muito orgulhosa dele. A me e opai viajaram at Cidade Imperial para estar perto do filhonaquele dia to importante,- Ningum podia desejar um filho melhor - dizia a me de Kul,abraando-o calorosamente. Amava muito o filho e no faziaideia do quanto as outras pessoas o consideravam feio.- verdade - concordou o pai. - Eu nunca terei sequer ahonra de entrar no palcio.- E graas a vocs dois que aqui me encontro hoje - agradeceuKui. Muitas foram as vezes que precisaram de mim para vosajudar a trabalhar no campo e, em vez disso, deixaram-meestudar. Nunca poderei retribuir-vos isso.-j o fizeste - respondeu o pai com um sorriso. - o teusucesso a nossa recompensa. Ests prestes a conhecer oimperador de toda a China. Quem sabe o que te espera depoisdisso?Kui apresentou-se no palcio e foi levado para junto de umaescadaria onde deveria aguardar at ser recebido peloimperador. Quando este apareceu, Kul curvou-se numa grandevnia. Neste gesto respeitoso, chegou mesmo a tocar com atesta no mrmore frio do cho do palcio.- Levanta-te - ordenou o imperador.Quando Kul se levantou, os olhares de ambos cruzaram-se pelaprimeira vez. A imperial boca de Sua Alteza ficou aberta, nummisto de espanto e horror. Recusava-se a acreditar que algum

  • assim to feio pudesse mesmo ser o melhor estudante de todo oimprio!- Quer isto dizer que esta... esta... pessoa a mais espertade todas? - balbuciou o imperador - Deve ter havido algumengano! Afastem-no da minha vista!Kui no teve outro remdio seno curvar-se numa vnia e sairdo palcioem sma. Que iria ele dizer me e ao pai? Deveria, claro est, ter ficado revoltado pelainjustia demonstrada, mas, em vez disso, sentiu vergonha.

    Aquele que deveria ter sido um dia magnifico Para ele e Para os pais acabou por se tornarum dia de rejeio e vergonha.

    Kui ficou to desanimado e desesperado que decidiu matar-se. Sem pensar sequer duasvezes, lanou-se ao mar.

    Kui era bom nos exames mas no se saiu to bem ao tentar suicidar-se. Fez um grandeestardalhao na gua e aterrou em cima da cabea de uma tartaruga que por ali ia a passar eque se chamava Ao.

    Talvez os deuses j estivessem de olho nele. Ou talvez este fosse apenas um bom auspicioPara o estudioso.

    Assustada, a tartaruga olhou Para cima e viu um homem que nao teria destoado entre assuas anugas tartarugas. Decidiu, pois, levar aquele estranho ser Para um local seguro, o queat se podia considerar um acto de grande generosidade, tendo em conta a valente dor decabea que a falta de jeito de Kui lhe havia provocado.

    A tartaruga-gigante elevou-se em voo acima da gua e, por no ser uma qualquer criaturamarinha, continuou a subir, levando Kui cada vez mais alto. A expresso assustada na carado estudloso fez com que o seu aspecto se tornasse ainda mais extraordinrio quandochegou ao cu.

    A, Kui tornou-se o deus dos exames. Era um dos dois deuses assistentes do deus daliteratura, Wen Chang. Apesar de ser apenas assistente de Wen Chang, Kui era bem maispopular do que este. Existiam altares dedicados a Kui na maioria das casas em que um oumais membros da familia fossem submeter-se a um exame.

    Wen Chang pode ter sido um deus mais importante, e no h dvida que era mais bonito,com o seu bigode bem aparado, mas era Kui que escolhia quais os candidatos que recebiamos melhores resultados; por isso, no admira que as pessoas lhe quisessemn agradar.

    O segundo assistente de Weri Chang era outro deus cUja funoera ajudar alguns estudantes que no se tinham esforadotanto como os colegas: aqueles que no podiam ambicionar asnotas mais altas, mas que de modo algum queriam chumbar. Arazo por que apenas ajudava alguns que ele prprio era um

  • pouco preguioso. Kui, pelo contrrio, ajudaria todos oscandidatos que o merecessem e que lhe dirigissem as suasoraes.E que foi feito de Ao, a tartaruga-gigante que salvara a vidaa Kui? No foi esquecida. Uma cabea igual sua foiesculpida nos degraus do palcio, e todos os candidatos queiam receber os diplomas das mos do imperador tinham de pr-se de p sobre ela, aps o que o imperador anunciava:- Possas tu apenas estar de p na cabea de Ao.Como deus da literatura, Wert Chang por vezes tambm ajudavaos estudantes. Certo dia, um candidato bastante inteligentechegou a casa aps um exame, convencido de que poderia terfeito melhor.- Vou reprovar! - gemeu. - Aps tantos meses, anos mesmo, detrabalho, sei bem que poderia ter feito melhor... Se ao menosconseguisse voltar a fazer aquele exame.E dirigiu as suas oraes a Weri Chang. S que nada sucedeu eo rapaz foi deitar-se bastante deprimido. No tardou aadormecer e foi ento que o deus da literatura lhe surgiu emsonhos.As imagens eram to ntidas e as cores to vivas que o deusparecia estar ali realmente... como se o rapaz no estivessemesmo a dormir. Wen Chang abriu um fogo ali existente ecomeou a alimentar as chamas com as folhas do exame1 .daquela manh. Entre essas folhas o rapaz distinguiu o seupropno exame. Depois de os papis arderem completamente, WenChang colocou a mo no interior do fogo ejuntou as cinzas.Extraiu ento destas um ensaio constitudo pelas melhorespartes de cada um dos exames queimados. Entregou-o ao rapaz,que o leu e, tendo-o considerado brilhante, o releu ememorizou, palavra por palavra.Na manh seguinte, o estudante acordou com o barulho que oseu melhor amigo fazia a bater porta.

    - O que se passa? - perguntou.- Nem vais acreditar - respondeu o amigo.- O qu?- Ms notcias - retorquiu o amigo.- O qu? - insistiu o estudante, impaciente.- Vamos ter de repetir o exame de ontem!- Mas porqu? - perguntou o estudante, ainda confuso.- Porque o stio onde guardaram as folhas do exame ardeu porcompleto- explicou o amigo.O rapaz nem queria acreditar. No eram ms notcias, bem pelocontrrio. As notcias no podiam ser melhores! O seu amigo

  • no conseguia entender por que razo ele tinha um sorriso deorelha a orelha.Repetiram o exame e o rapaz utilizou o ensaio que Weri Changlhe dera em sonhos. As suas preces haviam sido escutadas eele passou com a melhor nota de sempre.Kui, Wen Chang e o seu outro assistente vivem nos cus, naconstelao da Ursa Maior. Ainda continuam a ajudar osestudantes, e a histria de Kui um bom exemplo de que,decididamente, o aspecto fisico no tudo.

    As AVENTURAS DE MACACOH mais de mil anos, um monge budista chins chamado XuanZang (tambm conhecido comoTripitaka) viajou para a ndia em busca de cpias dasescrituras budistas. A sua viagem tornou-se objecto de umalenda, na qual ele ter viajado com algum chamado Macaco.Mas quem era este misterioso ser?avia um grande ovo de pedra aninhado numa encosta do monteHAolai, junto s margens do mar Oriental, que ali seencontrava desde que o mundo fora formado. Havia sido postol pelo prprio gigante Pari Gu, o primeiro ser humanoexistente. Os seus olhos transformaram-se no Sol e na Lua, oar que respirava tornou-se o vento e a sua voz o trovo. Doseu sangue formaram-se os rios, passando as suas velas aservir de estradas e caminhos. As suas pulgas deram origem raa humana.Um belo dia, a casca do ovo de pedra finalmente quebrou-se ede dentro deste saiu Macaco. Parecia um macaco comum e foiviver para as montanhas, para junto dos outros macacos, masestes cedo se aperceberam de que ele no era como eles. Todosos macacos so espertos, mas aquele era o mais esperto detodos. Escolheram-no como seu rei.Agradava a Macaco ser rei e, assim sendo, reinou durantelongos e bons anos. Mas aps algumas centenas deles (unsfalam numa centena, outros insistem nas trs centenas),Macaco apercebeu-se de que um dia morreria, pelo que ficoupreocupado ao pensar no que os sbditos fariam sem ele paratomar conta dos seus destinos.

    Ouvira falar de Buda e aprendera que aqueles que fossemrealmente sbios e o seguissem viveriam para sempre.- Se isso se aplica aos humanos, porque no h-de aplicar-sea mim? intcrrogou-se Macaco, e l foi ele rumo ao mundo doshumanos, com o intuito de encontrar um mestre que lheindicasse o caminho para a imortalidade.Macaco era um bom aluno e aprendia depressa. Aps bastantes

  • anos de formao nos meandros da sabedoria, conseguia jtransformar-se naquilo que lhe aprouvesse ou voar pelos cusem cima de uma nuvem. Descobrira tambm o segredo da vidaeterna.Macaco regressou a casa todo contente, mas cedo descobriu queos outros macacos estavam a viver num estado de medopermanente causado por um monstro horrvel que osaterrorizava desde que ele partira. Com os seus novospoderes, Macaco conseguiu derrotar o monstro e os seusseguidores, mas aps o confronto tomou conscincia de que atarefa teria sido facilitada se dispusesse de uma armaespecial.Sabia que o rei Drago do mar Oriental, junto ao qualnascera, guardava um pilar feito de ferro. Com apenas umpiscar de olhos, este convertia-se numa agulha pequenina,numa coluna que ia da terra at ao topo dos cus, ou numavara prpria para lutar. Esta seria, sem dvida, uma armamuito til... por isso Macaco roubou-a ao drago, passandoento a escond-la atrs da orelha, para as emergncias.Possua tambm um basto mgico, um grande cacete, quecostumava agitar acima da cabea para assustar os inimigos.Com a sua sabedoria e poder recm-adquiridos, Macaco sossegoue entregou-se a uma vida pacfica entre os seus sbditos. Umbelo dia, no decurso de uma festa, apareceram dois guardas domundo inferior. A funodestes consistia em guiar as almas para o seu mundo, ondemorreriam quando fosse chegada a sua hora.- Viemos buscar-te - disseram a Macaco.- Mas eu vou viver para sempre! - protestou ele.Macaco estava to furioso que deu um murro no alto da cabeade cada um dosGuardas, dirigindo-se de seguida para o mundo inferior,terrivelmente irado. A chegado, irrompeu por um dostribunais e conseguiu consultar o registo dos mortos.Quando olhou para o livro, apercebeu-se de que os guardashaviam dito a verdade. a morte estava mesmo marcada paraaquele dia. A tremer de raiva pegounum pincel e riscou o nome do registo.

    O Senhor do mundo inferior queixou-se ao deus competente, oimperador do Jade. Este ltimo tinha j ouvido queixas acercado comportamento de macaco feitas pelo rei Drago; por isso,decidiu que tinha de agir depressa. Sabia bem que havia algoque Macaco queria acima de tudo: ser considerado mportante.Assim, o imperador do Jade ofereceu a Macaco um lugar com umnome todo pomposo, o de guardio do Cavalo Celestial.Macaco ficou muito orgulhoso, no imaginando que o imperador

  • apenas oqueria junto de si no cu para poder estar de olhonele. Mas no tardou a aperceber-se da pouca importncia dafuno. Estava j prestes a voltarA preparar das suas quando lhe foi atribudo um lugar aindamais bem-soante,- sbio de todo o cu. Mas, uma vez mais, revelou-se apenasumcargo com um nome pomposo.Finalmente, foi confiada a Macaco uma misso realmenteimportante. Foi investido, guardio do Pessegal daImortalidade, mas esta no foi uma boa ideia, pois tal como onome sugere, os pssegos no eram propriamente comuns. Estesfrutos eram comidos pelos Imortais para garantir a suavidaeterna.Te riam de passar seis mil anos at os pessegos amadurecerem.Depois de serem comidos, era preciso esperar mais seis milanos at se poder fazer outra colheita de pssegos bemmaduros.Que mal poderei causar se comer um unico? - disse para siMacaco. Era to delicioso que logo arrancou outro, e depoisoutro e mais outro.Quando Um grupo de jovens espritos chegou ao pessegal paraapanhar osfrutos destinados ao festim dos Imortais, Macacoestava a dormirprofundamente em cima de uma das rvores, a ressonar alto ebom som. No demorou muito at que os espritos percebessem oque tinha sucedido, n os pssegos que faltavam e os caroosespalhados pelo cho, em redor do pessegueiro onde Macaco seencontrava a dormir. Apressaram-se afazer queixa a Xiwangmu, a rainha do Oeste, a quem o pomarpertencia.Quando a rainha soube, ficou to zangada que decidiu noconvidar Macaco para comparecer no festim dos Imortais. Aosaber disto, Macaco decidiu comer a maior parte dos restantespssegos, bem como beber o vinho que achara no interior deumas quantas cabaas.Aquilo que Macaco no sabia era que o vinho era um eliXir daimortalidade, que Lao Zi, o fundador do tauismo, trouxerapara o festim. Macaco bebeu-o todo, at ltima gota,deixando-se depois cair num sono ainda mais profundo.Ao acordar, Macaco foi tomado de assalto por um terrvelsentimento de culpa. Apressou-se a regressar para a sua casanas montanhas, entre os demais macacos, na esperana de ano ser encontrado pelos deuses.Quando o imperador do Jade soube das coisas imperdoveis queMacaco uma vez mais fizera, a sua pacincia esgotou-se.Enviou um exrcito de cem mil soldados celestes para ocapturar. Travaram-se vrias batalhas, mas

  • quando Macaco foi finalmente capturado e levado ao imperadordo Jade no houve maneira de o condenar morte, pois eletinha comido tantos pssegos e bebido tanto elixir queviveria para sempre.Em vez disso, o imperador do Jade ordenou que Macaco fossecolocado na fornalha de Lao Zi, onde seria derretido edividido em partes distintas, de modo a que, ainda queestivesse vivo, no pudesse fazer qualquer disparate. Quando,porm, aps quarenta e nove dias, as portas da fornalha foramabertas, saltou l de dentro Macaco a esfregar os olhos.- Est uma grande fumarada aqui dentro! - comentou, saindodali disparado e soltando uma gargalhada.O imperador do Jade estava desesperado. No haveria maneirade acalmar aquele irrequieto? Decidiu pedir ajuda a Buda.Este agarrou Macaco pelo cachao e colocou-o em cima da suamo.- Se conseguires saltar para fora da minha mo, Macaco, fareide ti senhor do cu e ocupars o lugar do imperador do Jade -prometeu Buda.- Se no conseguires, ters de regressar terra e trabalhararduamente para conquistares o direito vida eterna.- Muito bem - concordou Macaco, com um sorriso largo na cara.Deu um salto bem alto no ar e, aps uma longa queda, foiparar junto base de

    cinco enormes pilares cuja parte superior, de to altos queeram, estava envolta numa espcie de nevoeiro.- Foi fcil! - gabou-se a rir e, depois de arrancar um plo,serviu-se dele como pincel para escrever o seu nome na basedo pilar do meio.Quando deu com Buda a olhar para baixo, para si, Macaco foireclamar o seu direito a governar o ceu.- Mas nunca chegaste sequer a sair da minha mo - respondeuBuda.- Sa, pois - insistiu Macaco, indignado, contando depois aBuda acerca dos pilares e do nome escrito num deles.Ento, Buda sorriu.- Aqueles cinco pilares eram os meus dedos. Olha s!E, ao observar de perto, Macaco viu o seu nome escrito junto base do dedo mdio de Buda. Suspirou. Tinha finalmente sidoderrotado.Mas as aventuras de Macaco ainda mal tinham comeado. Comoassistente do monge budista Xuan Zang, no tardou a serprotagonista de uma srie de feitos espantosos, relatados numfamoso livro do sculo xvi chamado Viagem ao Oeste. Asaventuras de Macaco so ainda hoje das histrias maispopulares da China.

  • INDICE REMISSIVOAo, uma tartaruga 39, 40 Ban Hu, um deus co 21-3 Buda ebudismo, 5, 46-47China, o pas 2-3comunismo 4 confucianismo 4 crenas 4-5 deusesver tambm nomes individuais dos deusesdeus das guas 10 deus dos troves 7-10Di Jun, deus do cu do Oriente 13, 16 Di Zang Wang, senhor domundo inferior 29Fu Xi,o rapaz da cabaa 7-11Heng E, mulher de Yi, o Arqueiro 15-17imperador do Jade 45, 46Kuang Zi Lian, um mercador e agricultor rico 31-5Kui, um estudioso feio 37-41Lao Zi, fundador do tauismo 5, 46 Li Xuan, um dos OitoImortais 34-35Macaco, o mais esperto dos primatas43-7Mi Hun. Tang, a Poo do Esquecimento 27mitos budistas 25-29, 43-47 mito confuciano 19-23mito da transmigrao das almas25-29mito do Ano do Co 19-23 mito dos monges 25-29 mito tauista31-35nirvana 5Nu Wa, a rapariga da cabaa 7-11Oito Imortais 5, 31, 34-35Pan Gu, o primeiro ser vivo 43 povos chineses 2, 3, 4rainha Me do Oeste, uma deusa 16 Roda da Transmigrao 26religies 4-5seda 3senhor do Cu 10tauismo 5Ursa Maior, uma constelao, 41Wen. Chang, deus da literatura 39,40-41Wu, um corteso de baixa condio enamorado de uma princesa19-23Xi He, deusa e esposa de Di Jun. 13-15 Xiwangmu, rainha doOeste 45 Xuan Zang, monge budista 43, 47 Yang, o Sol, quentee masculino 13, 17 Yan Wang, juiz do primeiro tribunaldo mundo inferior 29 Yao, um imperador 15-16 Yi, o Arqueiro13, 15-17Yin, a Lua, fria e feminina 13, 17Zhao Shen Xiao, um magistrado bom e honesto 32, 34-35Primeira edio publicada na Gr-Bretanha em 1999 por Belitha

  • Press Limited, LondresCopyright neste formato C Belitha Press Ltd 1999C Belitha Press 1999Copyright de texto Philip Ardagh 1999 Copyright deilustrao Belitha Press 1999 Copyright Editorial Estampa,Lda., Lisboa, 2000 para PortugalTtulo original: Chinese Myths & Legends Responsvel pelotexto: Stephame Bellwood Maquetista: Jarme AsherConsultora: Ming Wilson Consultora educacional: Liz BassantResponsvel pela coleco: Mary-Jane Wilkins Traduo:Eugnia AntunesImpresso e encadernado para Editorial Estampa por PrinterPortuguesaem Fevereiro de 2000Depsito legal nmero 146 516/00 ISI3N 972-33-1524-6