Pesquisar na Diferença: Um Abecedário

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Tania Mara Galli FonsecaMaria Lívia do NascimentoCleci Maraschin.Inspirado no Abecedário de Deleuze, este livro se propõe a criar umabecedário a partir de palavras propostas pelo processo de pesquisar. Desta vez, entretanto, buscamos fazer o abecedário gaguejar, não como uma defi ciência, maspor aquela indiscernibilidade própria das palavras que nos remetem à polifonia.

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  • PESQUISAR NA DIFERENA: UM ABECEDRIO

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  • Conselho Editorial

    Alex Primo UFRGS

    lvaro Nunes Larangeira UTP Carla Rodrigues PUC-RJ

    Cristiane Freitas Gutfreind PUCRSEdgard de Assis Carvalho PUC-SP

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  • PESQUISAR NA DIFERENA: UM ABECEDRIO

    Organizadoras:

    Tania Mara Galli FonsecaMaria Lvia do Nascimento

    Cleci Maraschin

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  • Autores, 2012

    Capa: Carla Luzzatto

    Projeto grfi co e editorao: Niura Fernanda Souza

    Reviso: lvaro Larangeira

    Reviso de contedo e tcnica: Graziela Pereira Lopes

    Reviso grfi ca: Miriam Gress

    Editor: Luis Gomes

    Editora Meridional Ltda.Av. Osvaldo Aranha, 440 cj. 101 Bom Fim Cep: 90035-190 Porto Alegre/RSFone: (0xx51) 3311.4082Fax: (0xx51) 2364.4194www.editorasulina.com.bre-mail: [email protected]

    Abril/2012

    Todos os direitos desta edio reservados so reservados para: EDITORA MERIDIONAL LTDA.

    A grafi a desta obra est atualizada segundo o Acordo Ortogrfi coda Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Bibliotecria Responsvel: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960

    P474 Pesquisar na diferena: um abecedrio / organizado por Tania Mara Galli Fonseca, Maria Lvia do Nascimento, Cleci Maraschin. Porto Alegre: Sulina, 2012. 261 p. ISBN: 978-85-205-0646-2

    1. Psicanlise. 2. Psicologia. 3. Filosofi a. I. Fonseca, Tania Mara Galli. II. Nascimento, Maria Lvia do. III. Maraschin, Cleci.

    CDU: 101 159.9 159.964.2 CDD: 100 150 190

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  • SUMRIO

    RUMORES DISCRETOS DE UM ABECEDRIO DE PESQUISA ....................................... 7INTRODUO Pesquisar: A Genealogia de Michel Foucault .........................................11ACOPLAR ....................................................................................................................................19AFETAR ........................................................................................................................................23AGENCIAR ..................................................................................................................................27AGIR .............................................................................................................................................31ANALISAR ...................................................................................................................................35BRICOLAR ..................................................................................................................................39CARTOGRAFAR ........................................................................................................................43CLINICAR ...................................................................................................................................47COLETIVIZAR ...........................................................................................................................51COMPARAR ................................................................................................................................55CONHECER ................................................................................................................................59CONTEXTUALIZAR .................................................................................................................63DESEJAR ......................................................................................................................................67DESNATURALIZAR ..................................................................................................................71DEVIR ...........................................................................................................................................73DIFERIR .......................................................................................................................................79ENATUAR ....................................................................................................................................83ENTREVISTAR ...........................................................................................................................85ESCREVER ...................................................................................................................................87ESCUTAR .....................................................................................................................................91ESTETIZAR/ETICIZAR ............................................................................................................95EXPERIMENTAR .......................................................................................................................99EXPLICAR .................................................................................................................................103EXPRESSAR ...............................................................................................................................107FORMAR ....................................................................................................................................111FOTOGRAFAR: CAPTURAR A PASSAGEM ......................................................................115GAGUEJAR ................................................................................................................................119HISTORICIZAR ........................................................................................................................123IMAGINAR ................................................................................................................................125IMPLICAR .................................................................................................................................129

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  • INSTITUCIONALIZAR ...........................................................................................................133INTERVIR ..................................................................................................................................135INVENTAR ................................................................................................................................139JOGAR ........................................................................................................................................143LER ..............................................................................................................................................147MAQUINAR ..............................................................................................................................151MARTELAR ...............................................................................................................................155NOMADIZAR ...........................................................................................................................157OBSERVAR ................................................................................................................................161OFICINAR .................................................................................................................................165OLHAR .......................................................................................................................................169OPERAR .....................................................................................................................................173OUTRAR ....................................................................................................................................177PENSAR......................................................................................................................................181POLITIZAR ...............................................................................................................................185PROBLEMATIZAR ..................................................................................................................189PRODUZIR ................................................................................................................................193QUESTIONAR ..........................................................................................................................197RECORTAR ...............................................................................................................................201RESISTIR ............................................................................................................................... 205SINGULARIZAR ......................................................................................................................207SOBREIMPLICAR ....................................................................................................................209SOPRAR .....................................................................................................................................213SUBJETIVAR .............................................................................................................................217SUBVERTER ..............................................................................................................................221TATEAR .....................................................................................................................................225TRANSDISCIPLINARIZAR....................................................................................................229TRANSDUZIR...........................................................................................................................233TRANSVERSALIZAR ..............................................................................................................237UNIVOCIZAR ..........................................................................................................................241VIRTUALIZAR / ATUALIZAR ..............................................................................................243XERETAR ...................................................................................................................................245ZERAR ........................................................................................................................................249SOBRE OS AUTORES ..............................................................................................................253

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  • 7RUMORES DISCRETOS DE UM ABECEDRIO DE PESQUISA

    Tania Mara Galli FonsecaMaria Livia do Nascimento

    Cleci Maraschin

    Inspirado no Abecedrio de Deleuze, este livro se prope a criar um abecedrio a partir de palavras propostas pelo processo de pesquisar. Desta vez, entretanto, buscamos fazer o abecedrio gaguejar, no como uma defi cincia, mas por aquela indiscernibilidade prpria das palavras que nos remetem polifonia.

    O alfabeto, como sabemos, compe-se de letras. Aprendemos a ler e escrever combinando-as para formar palavras, depois frases. As mesmas letras no se encontram em toda a parte, em todas as palavras, mas cada uma possui sua peculiar posio na enunciao desejada. Temos, assim, letras como elementos, relaes entre eles e singularidades produzidas por suas agregaes. Ao pensar o processo de pesquisar, vimos ser insufi ciente uma letra abarcar os diferentes sentidos disparados como tambm vivenciamos a insufi cincia de uma palavra enunciar todo o sentido que lhe seria possvel. Por isso pensamos em uma gagueira, a,a,a... uma vez que as letras se repetiriam, duas, trs ou mais vezes segundo a sua correspondncia com os sentidos-conceitos que nos aprouvesse demarcar. Assim, em nosso abecedrio, as letras se repetem para fazer proliferar uma srie de sentidos que lhes so correlatos e possveis no escopo do pesquisar. Srie feita de multiplicidades. Repetir para diferenciar.

    Nosso enfoque busca situar o pesquisar no mbito daquilo que pode ser proliferado para diversas direes, cada qual de acordo com a potncia dos corpos que pesquisam. Corpo implicado com planos de viso que, ao ultrapassarem o conjunto sensrio-motor perceber, agir e sentir , lanam bases para a criao de novas imagens de mundo , imagens-pensamento , prenhes de potncias de outros modos de fazer ver, para alm do emprico, para alm do corpo orgnico, para alm do tempo cronolgico, que apenas assinala posies notveis no curso dos acontecimentos. Posies capazes de fazer emergir potncias de transmutao,

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    de inveno. Nos instantes quaisquer, nos espaos quaisquer, para extrair das banalidades e do ordinrio que se passa, buscamos algo que nos force a pensar, no apenas algo que nos leve a reconhecer aquilo que j se tornou evidente. Buscamos vidncia e no evidncias. Buscamos tatear os virtuais contidos em nosso presente atual, como em um espelho partido , para afi rmar que toda a imagem bifacial, atual e virtual , associada ao curso de um tempo que ultrapassa o efetuado, que desmedido em suas infi nitas potncias de se proliferar para alm das representaes, dos clichs e daquilo que j nos familiar. Buscamos, na produo de conhecimentos, afi rmar outros possveis, outros mundos coalescentes a esse nosso atual presente. Essa seria nossa poltica, essa seria nossa busca de reconciliao com aquilo que ainda no foi trazido superfcie e que ainda jaz nos lenis do tempo como espera e suspenso em busca de agenciamento. Dar a ver mais do que acreditamos ver. Dar a ver aquilo que imperceptvel aos olhos de um paradigma de cincia que tem a tradio de apenas positivar aquilo que pode ver. Pesquisa-vidncia que nunca seria concluda ou acabada, mas que, desde seus barrocos entrelaamentos mentais, levaria a outros e tantos mais mundos quanto o nosso desejo permitir. Pesquisa-desejo forjada no abismo do no saber, em busca de algo a inventar, sem que seja, jamais, pesquisa transcendente, que buscaria em outras esferas que no o das imanncias de seu campo emprico novos sentidos, novos devires, enfi m, a diferenciao.

    Assim, dizemos que nosso Abecedrio de Pesquisa afi rma um modo especial de pesquisar, relacionando-o a um processo de produzir fi ssuras no duro gelo das subjetivaes institudas, um quebra-cabea, por cujas fendas possveis se deixe entrever aquilo que denominamos de pensamento. Trata-se, pois, de evidenciar um modo de usar as aes do pesquisar, tal como Georges Perec nos mostra criticamente, em seu livro A vida: modo de usar. Nas palavras do autor,

    a funo do construtor de puzzles difcil de defi nir. Na maioria dos casos sobretudo em todos os que so feitos de papelo , os puzzles so fabricados mquina e o corte no atende a requisito algum: uma guilhotina programada segundo um desenho imutvel corta as placas de carto de maneira sempre idntica; o verdadeiro apreciador de quebra-cabeas rejeita esses puzzles, no s por serem de papelo em vez de serem de madeira, ou por vir o modelo reproduzido na tampa da caixa, mas porque esse processo de cortar suprime a prpria especifi cidade do puzzle; contrariamente ideia fortemente enraizada no esprito

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  • 9do pblico, pouco importa no caso que a imagem seja reputada fcil (...), no o assunto do quadro nem a tcnica do pintor que fazem a difi culdade do puzzle, mas a sutileza do corte, e um corte aleatrio produzir necessariamente uma difi culdade aleatria, oscilando entre uma facilidade extrema para as bordas, os detalhes, as manchas de luz, os objetos bem defi nidos, os traos, as transies, e uma difi culdade fastidiosa para o resto: o cu sem nuvens, a areia, a pradaria, as lavouras, as zonas de sombra, etc (Perec, 2009, p. 12).

    No se trataria, portanto, de considerar cada ao como portadora de um nico sentido. Os procedimentos demarcados por verbos no infi nitivo nos foram a pensar haver diversos modos de us-los. Tais modos, no nosso caso, impeliriam para o polo da criao/inveno, e nos fariam recuar diante de descries ou narraes meramente marcadas pelas analogias e pelas signifi caes. Buscar-se-ia outros sentidos, reerguer a linguagem para um plano criativo, talvez algum plano menor porque no dominante, encontrar no galope dos fatos a suavidade do eterno retorno da diferena, uma vez que nos saberamos fazedores de efeitos de superfcie causados pela queda oblqua nos lenis do tempo puro, para alm do Eu penso, do Eu sinto, do que Eu ajo e imagino.

    Nosso livro constitui-se como obra de um coletivo, sendo produto do encontro de uma pequena multido de amigos e colegas pesquisadores do territrio nacional. Produz-se como uma morada de ecos que ao mesmo tempo em que selam alianas de ressonncias tambm as expandem e as traem em sua evocao original. Aqui, os autores poderiam ser annimos e apenas confundidos no murmrio discreto de mltiplas vozes, no homogeneizadas e uniformes, mas irmanadas na busca que clama pela construo do presente aliada aos lenis de um passado puro, de virtuais que podero, sim, vir a ser chamados de sonhos por vir, que caberia a cada um desenvolver.

    Nossos verbetes foram escolhidos como emergentes dos atos de pesquisar, traduzidos em verbos no infi nitivo, a serem conjugados nos usos e na pragmtica da pesquisa cientfi ca. Os verbetes referem-se a verbos que traduzem aes ainda por vir, situados no plano de uma indeterminao, de uma impessoalidade e de multiplicidades virtuais. Uma espcie de um caso nos modos de pesquisar, de escrever, de amar o que no se sabe, de constituir o leitor essencial, o ltimo leitor do mundo, que o reinventa pela implicao, que o explica sem se separar de si, que o experimenta atravs da enao e do colocar-se em atividade atravs de uma cognio

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    que no dissocia objetivao e subjetivao. Um caso de pesquisa que constitudo no como problema a resolver, mas como o prprio problema que gera novas problematizaes e novas perguntas. Amar, buscar, implicar, traduzidos em aes de um combate contra o pensamento sedentrio e representacional. Abrir a cincia para os domnios dos dramas, juntar-lhe afectos, perceptos e conceitos. Reunir o homem despedaado pela racionalizao que prevalece nas cincias humanas. Constituir uma esttica e uma tica que se ligam vida e ao compromisso de expandi-la atravs de gestos de autoria que, menos do que falarem de um sujeito personalgico e de um Eu identitrio e compacto, posiciona o pesquisador como portador e executante de uma funo-autor, pela qual se constitui o leitor, aquele outro que, pelas afeces, sensibilidades e contgios, tambm se torna produtor de sentidos.

    Com o Abecedrio tentamos construir um dispositivo que possa abrir potncias e caminhos para a pesquisa por trilhas de insurgncia contra seus percursos dominantes e tradicionais. A proposta de constru-lo emerge de debates feitos no coletivo Subjetividade, conhecimento e prticas sociais, um dos GTs da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Psicologia (ANPEPP). A partir de afi nidades conceituais, temticas e, sobretudo, tico-polticas, o grupo vem afi rmando a produo de conhecimento como uma prtica conectada vida, guiada pela possibilidade do devir e pela potncia da diferena.

    Gostaramos de fazer notar, ainda, que ao contrrio de um dicionrio, o abecedrio no se prope a ditar modelos e regras. Apenas quer ter funo de registro para fazer ver outro modo de pesquisar voltado para as variaes diferenciais, para as sutilezas imbricadas nas tramas empricas, para, enfi m, produzir, um modo menor de pesquisar a contrapelo dos modelos hegemnicos e tradicionais. Tal fato, entretanto, no nos situaria mais alto ou mais baixo de qualquer outro empreendimento cientfi co dotado de outras operaes e diretrizes. Apenas fazemos questo de nos fazer constar como uma pequena multido cujas vozes se traduzem em atos de pesquisa, de ensino e de formao, fato que, certamente, interfere nos caminhos da histria das cincias humanas. Convidamos os leitores-artfi ces da pesquisa a compor esse coletivo reinventando infi nitivos, fazendo emergir outras virtualidades e tantas gagueiras quantas nossa paixo e criao permitirem.

    Referncias bibliogrfi cas

    PEREC, Georges. A vida modo de usar. So Paulo: Cia. das Letras, 2009.

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    INTRODUO

    Pesquisar: A Genealogia de Michel Foucault

    Lilia Ferreira Lobo

    Pensar nem consola, nem d felicidade. Pensar arrasta-se languidamente como uma perverso: pensar repete-se com

    uma aplicao sobre um teatro; pensar lana-se de um golpe fora do copo de dados. E quando o acaso, o teatro, e a perverso

    entram em ressonncia, ento o pensamento um transe; e ento vale a pena pensar.

    (Foucault, Nietzsche, Freud, Marx: Th eatrumPhilosofi cum) A honra do convite para introduzir este livro provocou uma difi culdade

    alm da simples elaborao de um texto. Como fi car altura da ousadia destes escritos dada a riqueza do instrumental terico-metodolgico que seus autores aqui apresentam? Um incrvel Abecedrio de Pesquisa que se estende intencionalmente para uma proposta transdisciplinar no que ela instiga novos traados no campo das chamadas cincias humanas. Ainda bem para os leitores (e para ns, os autores) que podem contar com a variedade de procedncias e descobrir caminhos inditos para suas prprias pesquisas.

    Trata-se de afastar-se por inteiro das formalidades da pesquisa, dos mtodos consolidados (e talvez do prprio mtodo!) pelos cientifi cismos na busca de comprovar verdades, de tomar como ponto de partida formas extensivas macropolticas (e/ou nomotticas), mesmo em sua aparente dinmica, como nos propem as correntes dominantes tanto da psicologia como da sociologia. Um trao comum me parece sublinhar a variedade das ofertas tericas aqui

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    apresentadas: o conhecimento como produo de verdades sempre pontuais e provisrias, voltado para processos intensivos em andamento, fora das dicotomias tradicionais, como as categorias de sujeito e objeto, para citar apenas uma das mais prximas, que estancam o pensamento nos eufemismos do mesmo. Algo assim como sugere Michel Foucault quando nos fala da seriedade e do extremo rigor do genealogista que coloca em cena um grande carnaval do tempo em que as mscaras reaparecem incessantemente (2000, p. 33).

    Ser, portanto, o pensamento de Foucault que encaminhar a tentativa da escrita guisa de uma quase introduo ao profuso continente de pesquisa que constitui este livro. No apenas pela paixo da ressonncia de um acorde com ambos, o livro e o genealogista, mas ser principalmente do fi lsofo pesquisador que quero tratar.

    Foucault um dos fi lsofos que mais valorizou o ato de pesquisar. O termo encontra-se sempre presente em seus escritos, sejam cursos, artigos, entrevistas, livros, uma vasta obra caracterizada por um trabalho febril de pesquisa. Em seu curso de 1975-1976 Em defesa da sociedade (1999), na primeira aula de janeiro, menciona, salvo engano, treze vezes esse termo pesquisa. Pesquisar no pertence apenas ao seu discurso, mas est principalmente de forma inequvoca e em ato, na prtica de investigao a grande tarefa de um fi lsofo-arteso, cujo ofcio forjar as armas de combate s repeties do presente1. Cada curso que ele ministrava era fruto de um ano de pesquisa em tempo integral, conforme contrato de trabalho de atividade no Collge de France. E, com as ferramentas que inventou para a histria, construiu todo o seu pensamento fi losfi co a genealogia termo que extraiu da obra de Nietzsche A genealogia da moral (Foucault, 2000a).

    Desde sua primeira grande obra, Histria da loucura na idade clssica, em 1961, j se pode encontrar, mesmo no explicitamente, uma arqueologia e uma genealogia, cujas prticas de dizibilidade e visibilidade viriam a ser enunciadas em seus livros posteriores. preciso, porm, deixar claro que tais formas jamais se constituram em uma teoria, no sentido clssico do termo, mas em precaues metodolgicas em relao aos conceitos universais e/ou universalizantes (Foucault, 1988), em recomendaes estratgicas, na busca dos indcios histricos de desmon-

    1 Franois Ewald (2004, p. 31) refere-se a Foucault como um fi lsofo que inventou um estilo de fi losofar: A fi losofi a como ato deve nos fazer sair da repetio, da alienao da origem perdida.

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    tagem de objetos prvios to indispensveis construo terica. o que Foucault comea a fazer em Histria da loucura: a problematizao da loucura como realidade objetiva, a devastao como objeto natural e, portanto, supra-histrico, para chafur-d-la nas impurezas de uma histria sem sujeito, sem causalidade, sem totalidade, sem evoluo e, principalmente descontnua, destituda da nobreza de qualquer fi nalidade (teleologia) e, ironicamente, plena de positividades. Sendo assim, a genealogia torna efetivo o desrespeito pelos recortes histricos consagrados, libertando o curso da histria das amarras das sequncias das continuidades, dos invariantes, das representaes e das tentativas de explicao dialtica. Mais do que uma abordagem para o tempo histrico dos acontecimentos, a descontinuidade para a genealogia uma ferramenta de pesquisa, a ferramenta que faz irromper as diferenas nas permanncias do mesmo. A esse respeito nos diz Foucault: A descontinuidade era o estigma da disperso temporal que o historiador se encarregava de suprimir da histria. No uma fatalidade que o pesquisador teria que reduzir, mas um conceito operatrio que se utiliza (...). Paradoxal noo de descontinuidade: , ao mesmo tempo, instrumento e objeto de pesquisa (1986, p. 10).

    A pesquisa genealgica uma investigao e isto no uma tautologia. Quem nos fala a esse respeito Jacques Donzelot em um texto intitulado Th e poverty of political culture (1979), onde apresenta interessantes argumentos para contrastar as perspectivas de pesquisa no campo das representaes e da genealogia. A primeira teria mais afi nidade com o teatro por causa do status que atribui realidade, separando a realidade da aparncia. Dessa forma, a pesquisa consistiria em extrair a realidade do vu das aparncias, o que permite atribuir a esta realidade uma natureza autoevidente, uma essncia. Descrever a realidade das representaes seria supor a existncia de um real verdadeiro ofuscado pelo senso comum das representaes, das ideologias de classe, gnero ou, enfi m, pelas foras produtivas introduzidas como anlise de causalidade. Por outro lado, a genealogia estaria mais prxima dos gneros literrios menores, das histrias de detetives, por exemplo. No h nada a buscar por detrs das aparncias, a no ser traos, indcios de passagens cujos fi os tornam possvel investigar o enigma dos processos que vm nos constituindo tal como somos no presente e estamos em vias de ser na atualidade. Investigar indcios2, no o mesmo que procurar causas. A realidade

    2 No se trata, contudo, do paradigma indicirio tal como descrito por Carlo Ginsburg, que se empenha em construir objetos do passado a partir do presente. Segundo DAmaral e Pedro (apud Rodrigues, 2005, p. 19) o objeto, mesmo construdo, ainda porta em si uma verdade oculta, invisvel, a qual se deve buscar com rigor.

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    para a genealogia3 um invisvel-no-escondido, um modo de apresentao, uma referncia a ser iluminada ou tornada visvel pela constituio de uma superfcie de inscries, atravs da ligao dos indcios de passagens (como as pegadas) e no de relaes simblicas a serem interpretadas em suas causas profundas, escondidas ou recalcadas. Seguir suas trilhas, as linhas de transformao nunca estacionar nas formas dos estratos sociais (as instituies, por exemplo), jamais tom-las em si, mesmo quando se considera o contexto de relaes com outras formas, mas entender os agenciamentos, as relaes de fora, os dispositivos de poder que as instituram como tal. seguir pistas quase invisveis, como nas histrias de detetive, fragmentos que podero engendrar muitas outras genealogias, tantas quantas pistas puderem ser encontradas. Por isso, investigar documentos mais do que simplesmente seguir pegadas ou impresses digitais que, certamente, foram deixadas em um tempo passado. Mal comparando, o genealogista ter que esculpir esses rastros, traados nos documentos, em sries, em sries de sries, transformando-os em monumentos, esses rastros deixados pelos homens, tantos quantos puderem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos (Foucault, 1986, p. 8). Como ento escolher num emaranhado de ocorrncias aquilo que se quer surpreender?

    Como na arte da caa, um caador que espreita sua caa rastreia suas pegadas, estuda seu comportamento, suas rotinas, todos os seus sinais e s ento prepara a armadilha e se coloca no melhor lugar para surpreend-la, ou... quem sabe, ser surpreendido por ela e obrigar-se, ento, a remontar suas estratgias; assim tambm, como na arte da caa, nenhuma teleologia com suas verdades-fi m orienta a pesquisa genealgica. Apenas uma prtica terica, enquanto produo de verdades-meio, instrumenta certas manipulaes conforme o alvo a atingir. Uma caada implica tambm a explorao do terreno da constituio histrica de sujeitos, de como chegamos a ser o que somos, ou seja, de uma ontologia histrica das subjetivaes, de uma anlise no linear que aborde a emergncia de prticas e a construo de discursos, a discusso das questes polticas que os engendraram e que possam ser confrontadas com o que ocorre na atualidade. Trabalhar o passado, seguir a trilha das antigas provenincias, articular pontos de emergncia das atuais

    3 A respeito da genealogia, ver principalmente: Foucault, M. Vigiar e punir, 1977, e Nietzsche: genealogia e histria em: Microfsica do poder (2000), alm de Veyne, P.M. Foucault revoluciona a histria, In: Como se escreve a histria (1982).

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    formaes pretender a crtica do presente; dos mecanismos normalizadores que, por extenso, se deslocam por toda a sociedade. No para dar conta da totalidade dos controles da vida social, mas para desmontar-lhes mais uma pea (Lobo, 2008).

    Um pensamento estratgico como este implica certas escolhas metodo-lgicas, dentre as quais, como afi rma Michel Foucault, um ceticismo sistemtico acerca dos universais antropolgicos. Isto no quer dizer que se deva rejeit-los todos desde o comeo, de uma vez para sempre, mas que no se deva aceitar nada desta ordem que no seja estritamente indispensvel (Foucault, 1988, p. 14).

    As palavras nos enganam, carregam falsos universais que atravessam o tempo com apenas pequenas variaes, criam evidncias opacas, obscurecem as diferenas. No se trata, portanto, de pesquisar as mutaes que um objeto sofreu no decorrer da histria este seria o fundamento do relativismo seria tambm tomar os fatos humanos (como, de resto, qualquer outro objeto) como coisas em si. Na base da emergncia de novos objetos est a pesquisa das descontinuidades. A propsito, Paul Veyne (1982, p. 172) apresenta uma fi gura interessante para clarifi car a passagem descontnua do tempo histrico: o remanejamento do caleidoscpio, que compe com as mesmas peas sempre outro desenho, e no a continuao de um crescimento.

    Embora minuciosa, a pesquisa genealgica fragmentria porque recusa qualquer pretenso de totalidade. No se trata, portanto, da proposta de um mtodo geral, prescritivo, vlido em defi nitivo, capaz de validar pela simples aplicao as verdades que supe descobrir. Por desprezar tanto quanto possvel as generalizaes totalizadoras, a pesquisa precisa colocar-se no pequeno lugar de funcionamento onde a prtica engendra o objeto, outro rigor a se enuncia. A pesquisa ento partir das prticas discursivas e no discursivas e para isso elas precisam ser verifi cadas e verifi cveis. Uma enorme massa do material de pesquisa, entre todo o tipo de documentos, Foucault disponibilizou em seus livros, submetendo-os refutao por parte dos historiadores. Pouco importava, contudo, as atribuies de julgamento de verdade e falsidade, mas da verifi cabilidade que possa servir de ponto de partida para novos problemas, novas pesquisas. Isto signifi ca que a pesquisa genealgica, ao insistir na verifi cabilidade das verdades que produz, incita outras verdades-meio, enquanto que a comprovao quer consolidar verdades-fi m, defi nitivas ou, pelo menos, aproximar-se cada vez mais delas. No lugar da demonstrao a experincia.

    A esse respeito, Foucault tambm um dos fi lsofos que mais valorizou a experincia em suas pesquisas e, surpreendentemente, a manteve no plano

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    pessoal: Cada vez que tentei fazer um trabalho terico, foi a partir de minha prpria experincia, sempre em relao com processos que eu via se desenrolarem em torno de mim (apud Eribon, 1996, p. 40). Uma inquietao que, embora pessoal ou uma autobiografi a como apelidava sua obra, nunca foi centrada num eu subjetivo, porque realizou a incrvel faanha de torn-la instrumento de seu trabalho de pesquisa. Uma experimentao que demandava a sensibilidade de afeces transformadoras de um si mesmo voltadas para fora, para o outro. Uma experincia em ato, um autor que escreve para deixar de ser, para desaparecer e surpreender-se consigo mesmo mais adiante:

    Eu jamais penso inteiramente a mesma coisa pela razo de que meus livros so, para mim, experincias (...), eu desejaria, o mais pleno possvel. Uma experincia alguma coisa da qual a gente mesmo sai transformado. Se eu tivesse que escrever um livro para comunicar o que eu j penso, antes de ter comeado a escrever, eu jamais teria coragem de empreend-lo. Eu no o escrevo seno porque eu no sei ainda exatamente o que pensar desta coisa que eu gostaria tanto de pensar. De sorte que o livro me transforma e transforma o que eu penso (...). Eu sou um experimentador e no um terico. (...) Eu sou um experimentador no sentido que eu escrevo para me mudar e no mais pensar a mesma coisa que antes (Foucault, Entretien avec Michel Foucault, 2001, p. 860-861).

    Por fi m, Foucault nos sugere para a pesquisa no propriamente um mtodo, mas um ethos, no sentido grego desta palavra, uma atitude, termo que ele prope quando discute os textos de Kant sobre o Iluminismo: Uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira tambm de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinncia e se apresenta como uma tarefa (2005, p. 342). Uma interrogao crtica sobre ns mesmos, sobre o que ele denominou ontologia histrica de ns mesmos, um trabalho tico, poltico e fi losfi co como experi-mentao cotidiana que pode se desdobrar em pesquisas diversas, no sentido de promover novas formas de subjetividade atravs da recusa deste tipo de individua-lidade que nos foi imposto h vrios sculos (Foucault, 1995, p. 239). Um caminho tico de pesquisa, no uma prescrio ou uma doutrina, ao qual este livro generosamente se destina.

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    EWALD, Franois. La philosophie comme act. Le Magazine Littraire: Dossier Michel Foucault, n 435, octobre 2004, p. 30-1.

    FOUCAULT, Michel. (Auto)biography 1926-84. Em: History of present. San Francisco: University of Califrnia, 1988, p. 13-5.

    _______________. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1986._______________. Em defesa da sociedade. So Paulo, Martins Fontes, 1999._______________. Entretien avec Michel Foucault, 1980. Em: Dit Et crit, vol II- 1976-

    1988, Paris, Quarto Gallimard, 2001, p. 860-861. _______________. Nietzsche, a genealogia e a histria. Em: Microfsica do poder. Rio

    de Janeiro, Graal, 2000. _______________. Nietzsche, Freud, Marx: Th eatrum Philosofi cum. So Paulo, Editora

    Princpio, 5 edio. _______________. O que so as Luzes. Em: Ditos e Escritos II. Rio de Janeiro, Forense

    Universitria, 2005._______________. O sujeito e o poder. Em: Dreyfus, Hubert L., Rabinow, Paul. Uma

    trajetria fi losfi ca: para alm do estruturalismo e da hermenutica. Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1995.

    _______________. Vigiar e punir. Petrpolis, Vozes, 1977.LOBO, Lilia F. Os infames da histria: pobres, escravos e defi cientes no Brasil. Rio de

    Janeiro, Lamparina/FAPERJ, 2008.RODRIGUES, Heliana C. B. Para desencaminhar o presente Psi. Em: Guareshi, N. M. F.

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    Braslia, UnB, 1982.

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    ACOPLAR

    Cleci MaraschinRafael Diehl

    Tomamos a noo de acoplamento estrutural (Structural Coupling, Couplage struturel) da teoria da Autopoiese (Maturana e Varela, 1995, 1997; Maturana, 2001). Trata-se da escolha de um domnio conceitual a partir do qual podemos operar como observadores de realidades sempre entre parnteses, ou seja, realidades que so defi nidas a partir de distines feitas por observadores imersos nos sistemas nos quais podem criar domnios explicativos. A circularidade desses pressupostos epistemolgicos e as implicaes para o pesquisar exigem percorrer uma pequena rede conceitual na qual essa noo se delineia.

    A teoria da Autopoiese foi criada para buscar uma explicao sobre o viver e sobre o critrio distintivo dos seres vivos. Para os autores, os seres vivos so defi nidos como mquinas autopoiticas:

    Uma mquina autopoitica uma mquina organizada como um sistema de processos de produo de componentes concatenados de tal maneira que produzem componentes que: I) geram os processos (relaes) de produo que os produzem atravs de suas contnuas interaes e transformaes e, II) constituem a mquina como uma unidade no espao fsico (Maturana e Varela, 1997, p. 71).

    Mquinas que mantm constante uma organizao peculiar cujo resultado sua autoproduo: a produo dos componentes e das relaes que a constituem. O contnuo processo de relaes recorrentes faz surgir, em um mesmo tempo, um indivduo e seu meio associado. No caso dos seres vivos, o indivduo orgnico funciona acoplado a seu meio, mantendo sua coerncia operacional e a autopoiese que identifi ca sua organizao. Trata-se de uma relao absolutamente necessria entre o ser vivo e o seu meio, pois se o acoplamento estrutural se desfaz, o organismo deixa de estar vivo.

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    As interaes contnuas de um organismo autopoitico, estruturalmente plstico com seu meio (que inclui outros seres vivos e no vivos), produzem pertur-baes que o levam a modifi car sua estrutura, ou seja, seus componentes e relaes que o caracterizam como uma unidade particular. Por outro lado, a organizao autopoitica defi ne o domnio de perturbaes que o organismo capaz de suportar, ou seja, os limites que lhe permitem funcionar sem se desintegrar. importante salientar uma distino necessria. No domnio do viver, da experincia, somos afetados, perturbados e essa afeco faz com que nos transformemos. Os modos de viver deslocados perturbam os outros recorrentemente. Aqui s possvel tratar com dados, com instrues, com medies, previses, enfi m, com representao, enquanto estabilidades consensuais que pressupem observadores. No domnio do observador constitumos descries, narrativas sobre a experincia e (dependendo da comunidade de observadores da qual participamos) podemos interpretar a histria de interaes recorrentes como se cada participante informasse ao outro o prximo passo a tomar, em uma intercorrncia causal. O domnio do observador o domnio do entre parnteses, pois ao construirmos uma explicao sobre algo estamos mais referidos a uma comunidade de observadores que partilha a existncia desse algo do que a esse algo como se tivesse uma existncia independente do observador. Ao no misturarmos os domnios nos explicam Maturana e Varela diminumos o gradiente de confuso.

    Dessa maneira, a organizao autopoitica no pode ser especifi cada por uma instruo do seu meio, no sentido de adequao a uma regra ou funo externa. Os constrangimentos e perturbaes sofridos por uma unidade autopoitica no indicam seu modo de operar, mas participam sistemicamente em sua coderiva estrutural, que a condio advinda do acoplamento indivduo e meio. A histria de uma unidade autopoitica a histria das mudanas estruturais que fazem frente s perturbaes para a manuteno de uma autopoiese ininterrupta.

    (No) acoplamento, a conduta autopoitica de um organismo A passa a ser fonte de deformao para um organismo B; e a conduta compensatria do organismo vivo B atua, por sua vez, como fonte de deformao para um organismo A (...) e assim sucessivamente, de maneira recorrente at que seja interrompido o acoplamento. Desta maneira, se desenvolve uma corrente tal de interaes concatenadas que, ainda que a conduta de cada organismo seja determinada pela sua organizao autopoitica, tal conduta para o outro fonte de deformaes compensveis e, portanto,

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    pode qualifi car-se de signifi cativa no contexto da conduta acoplada. Estas so interaes comunicativas (Maturana e Varela, 1997, p. 117).

    O domnio no qual exista uma histria de interaes concatenadas um domnio lingustico que pode dar condies de existncia a sistemas observadores. O operar com seus prprios estados descritivos faz com que uma mquina autopoitica se transforme em uma mquina-observador. A ao de explicar faz surgir um observador e um mundo, pois no domnio da linguagem constitumos observador e mundo e no somente organismo e meio como no plano da vida:

    Uma explicao sempre uma proposio que reformula ou recria as observaes de um fenmeno, num sistema de conceitos aceitveis para um grupo de pessoas que compartilham de um critrio de observao (Maturana e Varela, 1995, p. 34).

    A percepo humana, com seu substrato biolgico cerebral, um sistema operacionalmente fechado, pois nenhuma unidade do meio entra no sistema como parte do processo da percepo. O fato de que para um sistema estruturalmente fechado no exista instruo, nem entrada ou sada de informaes, torna o acoplamento estrutural a operao-chave para a compreenso da modulao e co-variao recproca entre indivduos, autopoiticos ou no. Por mais paradoxal que possa parecer, o fechamento estrutural que possibilita a criao, a inveno. Os sistemas fechados estruturalmente em relao a seu operar se transformam mediante acoplamentos estruturais, podendo at mesmo gerar novas mquinas. Para os autores, o acoplamento estrutural um operador essencial para a emergncia dos domnios comunicativos e lingusticos, tornando possvel o aparecimento do linguajar. Existem, assim, dois nveis de acoplamento estrutural: o do indivduo vivo com seu meio, fundamento de toda teoria da autopoiese; e os acoplamentos funcionais que podem se estabelecer entre humanos e mquinas e mesmo entre mquinas. diferena desses ltimos, o acoplamento estrutural dos seres vivos com seus meios s se desfaz com a morte e no dependente da distino de um observador.

    Dessa maneira, um observador, mesmo com a experincia de uma larga histria de interaes entre uma mquina e seu meio associado, incapaz de prever com certeza a trajetria futura da mesma. Essa impossibilidade no devida falta de uma capacidade terica ou insufi cincia metodolgica, mas no interseco

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    dos domnios do operar da mquina e do observador que, embora se modulem reciprocamente, so incomensurveis.

    O mesmo ocorre com as explicaes usadas no pesquisar. O observador, ao partilhar de um caminho explicativo entre parnteses, est referido a um domnio cognitivo, com o qual produz/reproduz congruncias operacionais que modulam seus processos de distino e de construo de objetos; de critrios de validao das explicaes que certifi cam ou no determinado conhecimento como verdadeiro ou falso dentro do respectivo domnio. Para os autores, esse processo acontece em qualquer domnio do conhecer. O que distingue um domnio denominado de cientfi co o fato de que os observadores/pesquisadores explicitam seu modo de explicar e sua condio de observadores. Os autores distinguem quatro condies desse domnio: 1) distino que produz o(s) objeto(s) a explicar, de maneira aceitvel para a comunidade de observadores; 2) proposio de um sistema conceitual que ao operar gere o(s) objeto(s) a explicar; c) deduo a partir do sistema conceitual proposto de outros objetos no considerados na distino anterior e suas condies de observao e 3) observao desses outros objetos. Cabe ressaltar que, sendo uma explicao operativa e recursiva, os modos de ao da comunidade de observadores, incluindo a metodologia de pesquisa, constituem os objetos, as explicaes e a prpria comunidade.

    Dessa forma, o acoplar no se refere a uma ao possvel do pesquisador, mas condio de todo conhecimento e explicao baseado em nossa condio viva. Ao invs de ser uma limitao, o acoplamento estrutural nos situa na responsabilidade dos domnios que criamos e habitamos, mantendo a irredutibilidade de nosso acoplamento com o meio que caracteriza nossa condio de seres vivos.

    Bibliografi a:

    MATURANA, H. Cognio, cincia e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.MATURANA, H. R. e VARELA, F.J. A rvore do conhecimento: as bases biolgicas do

    entendimento humano. Campinas: Editorial Psy II, 1995.MATURANA, H. R. e VARELA, F.J. (1997). De maquinas y seres vivos: autopoiesis: la

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    AFETAR

    Gislei Domingas Romanzini LazzarottoJulia Dutra de Carvalho

    Eu no amava que botassem data na minha existncia. A gente usava

    mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em ns. A gente era o que quisesse ser s usando esse advrbio.

    Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma rvore e podia apreciar melhor os passarinhos...

    (Manoel de Barros)

    Uma criana diz: Afetar quando aciona um ponto fraco na gente. Outra criana para seu olhar em ns na esquina. Ultrapassa o vidro do carro. Na mo uma caixa de sapato. Rouba a tranquilidade do protegido corpo maquinado pela relao com um carro. A regra de como reagir clara: no abra o vidro, disfarce a visada, no se mostre presente. O que pode sair daquela caixa? Uma arma? Algo insiste, nos afeta e nos fora a olhar para ela. Mais ainda, olhamos o olhar infantil e tiramos o vidro e a caixa que estabelecem o limite. A caixa abre. Nela, um passarinho. Desculpa para os olhares se encontrarem. J tarde, as regras deixaram de vigorar. Estvamos criana-pssaro-adulto em um quando perturbador. O pensamento nos leva, entre olhares e afetos, quando um jovem diz para um dos pesquisadores: Voc tem medo de ser assaltado? Olhares se olham. Todos sentimos medo, responde o pesquisador. Temos medo de que nos agridam, que levem coisas que gostamos, temos medo... Na caixa estava um pssaro, tambm estava a possibilidade de uma arma, e infi nitos possveis que nos rodeiam quando vivemos a abertura ao afetar. Ao vivermos esses olhares, emprestamos nossos corpos para estar nessa relao, capacidade de afetar e ser afetado, conforme analisa Deleuze (2001, 2002).

    A vida avana com a expresso de uma criana e de um jovem reivin-dicando um olhar. Expresso que no diz somente de um quando ela e ele, pois traz consigo um tempo de afetar. Nada acontece que no seja neste embate: agonia

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    de nos percebermos to pequenos diante do que a vida e o medo de viver a potncia de agir. Uma fora desconhecida a partir da qual teremos que aprender algo no presente, sem salva-vidas, nem garantias. Afetar denuncia que algo est acontecendo e que nosso saber mnimo nesse acontecer. Sinaliza a fora de expanso da vida e da atividade que podemos viver. A tenso se instala. O que se passa?

    Entre as variaes de afetos vividos percebemos que algo convoca ao movimento de pesquisar. Vontade de encontro que se faz de uma esquina, de uma infrao, de um conceito, de uma pergunta que insiste com sensaes. Passagens ativas, no as perca. A expectativa de conhecer a priori esse viver nos afasta da intensidade que produz o movimento do afetar. Permita-se viver esse movimento, pois precisamente na experincia desse percurso do afetar que a pesquisa acontece. Diz aquele jovem que sua vontade para cometer o ato de roubar permanece. Mas diz tambm que ... queria poder parar uma hora por dia, num lugar escolhido por mim para poder pensar na minha vida.... Um roubo no tempo para estar jovem, um roubo para estarmos no acontecer de nossos corpos. Os fragmentos de sensaes, roubadas entre olhares, vo edifi cando o encontro do pesquisar nas relaes com quem pesquisa e o modo de pesquisar. Mas se o movimento de afetar no for experimentado na extenso da relao que o produz, o que nos resta? Nos perdermos do acontecimento que j sinalizava nossa potncia de agir e de compor outros modos de pesquisar. Desponta a centralidade nos saberes, nas tcnicas e nas verdades. E na tentativa de reconhecer sem cessar, trancafi amos as prprias sensaes que insistem no movimento de perceber, afetar e afetar-se. Alimentados pela fora reativa que encarcera afetos em um saber e uma moral, camos no engodo: se afetar, diferena; se diferena, ameaa vida. A opo pode ser uma pesquisa normatizadora para reproduzir infi nitamente o saber e termos, como pesquisadores, a morada na verdade. Ainda assim, nos ronda a pergunta: E para onde vai esse emaranhado de relaes nas quais uma e outra criana e um jovem e um pesquisador acionam modos de afetar? Num quando que ainda por a est e que por vezes experimentamos nas tenses entre corpos. Ou seja, em qualquer momento podemos ser acionados para acompanhar um percurso abandonado de nosso pesquisar que segue em durao, um devir (Deleuze, Guattari, 2004). Essa potncia de agir alimentada pela fora ativa s quer permitir que a vida se expanda. Fique atento: experimentar afetos sinaliza a enunciao de outras formas de agir a partir dos modos de expresso que vamos percorrendo. Quando afetados pelas

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    audies e vises, gostos e cheiros, toques de vidas que nos foram a pesquisar na historicidade de um tempo que acontece, percebemos que nossas questes so feitas de vidas. Assim, exercitamos uma tica e expandimos nosso conhecer nas relaes de uma vida de todos em ns, de uma vida de si com todos. Imanncia de relaes no corpo que cria passagens com o que fora a experimentar nosso pensamento: afectos e perceptos que j no so de um ou de outro, mas da vida. No precisamos mais temer o processo de estarmos afetados pelo acontecimento no ato de pesquisar, pois o que antes era dado como ponto fraco do pesquisador, agora marca uma condio indispensvel do processo de pesquisar: a capacidade de afetar e afetar-se para que se criem os modos de expressar os sentidos de uma pesquisa.

    Bibliografi a:

    BARROS, Manoel de. Memrias inventadas. As infncias de Manoel de Barros. So Paulo: Planeta, 2010, p. 133.

    DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofi a prtica. So Paulo: Escuta, 2002.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats 4. 1730 Devir-intenso, devir-animal,

    devir-imperceptvel... So Paulo: Editora 34, 2004.DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a fi losofi a. Porto-Portugal: Rs-Editora, 2001.

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    AGENCIAR

    Pedro de Souza

    Agenciar no fazer pelo outro, em lugar do outro, como imediatamente se seria levado a pensar. No se trata da distncia entre o que produz e o que, por demanda do produtor, viabiliza as condies materiais de produo e de colocao do produto em circulao. Esta a viso de mercado que subjaz tambm o processo de produo de cincia envolvendo de um lado instituies de pesquisa e agncias de fomento. Estas proveem para aquelas as condies necessrias para que o saber seja produzido e veiculado.

    Fora da perspectiva mercadologia, o verbete agenciar, aqui considerado inevitavelmente no escopo da fi losofi a deleuziana, remete a um processo de criao, seja artstico ou cientfi co. Certamente a heterogeneidade das instncias trao constante na noo mercadolgica de agncia entra neste outro modo de formular o conceito. No agenciar, mltiplos agentes entram em ao. Eles podem ser de natureza humana ou inumana, corprea ou incorprea. Tanto o grito de uma criana quanto o canto de um pssaro ou o explodir de uma bomba podem ser agentes da produo de uma realidade. Isso vale tanto para o documentarista cinematogrfi co ao cobrir uma guerra quanto para o antroplogo ou historiador.

    No se vai a campo e tampouco se constri o dirio dele sem que o corpo do investigador torne-se inteiramente implicado na tarefa, a ponto de, na conexo com outros corpos, perder todas as suas referncias pontuais de organicidade. O saber que um linguista ou um etngrafo pode produzir sobre uma comunidade vem de sua disposio a tomar-se mero terminal corporal em conexo com outros terminais em campo. A, ao agenciar, ele no mais reconhece as fronteiras entre seu corpo e o do tambor com que um africano quebra a monotonia da hora e anuncia a festa em sua tribo. Neste modo de investigar, expe-se precisamente a cenografi a de uma empresa coletiva. Trata-se, nos termos que nos interessa a defi nio, de agenciamento coletivo de enunciao, mas nunca de uma ao colegiada, no sentido totalizador do termo, j que implica a manuteno da diferena dos elementos envolvidos.

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    Quando Deleuze (1985) juntou fi losofi a e cinema para pensar temas como o movimento e a temporalidade, no procedeu simplesmente uma estratgia interdisciplinar em que cada disciplina garante a unidade de seu corpo. Juntar cinema, literatura, lingustica, fi losofi a, artes plsticas equivale ao ato de investigar no sentido de produzir algo como efeito de criao. como fazer ver uma imagem, jamais percebida nas cores que a singulariza, ou fazer escutar uma cano, nunca antes ouvida na partitura, inmeras vezes repetida. O modo com que tal atitude se produz descreve agenciamentos promovendo o cruzamento entre mltiplas instncias de memria. Tais instncias compem ento duas dimenses do ato coletivo de agenciar: agenciamento coletivo de enunciao, posto que se trata de expressar-se apropriando-se de regimes semiticos ou de produo de signos, e agenciamento maqunico de desejo, posto que se trata no de reproduzir, mas de criar tanto as subjetividades quanto os meios nos quais elas passam a existir como efeitos, efeitos de agenciamento.

    Se pensarmos nas noes deleuzianas de agenciamento maqunico de corpos e agenciamento coletivo de enunciao, ento notamos que agenciar consiste apenas em dispor do prprio corpo para, quer no seu interior, que no seu exterior dele criar outra realidade corporal. Assim, por exemplo, acontece quando um automobilista est em uma competio: a conexo entre seus ps, suas pernas, seus braos, suas mos e os mecanismos motores e eltricos de seu carro compem as duas dimenses do agenciar modos de correr agenciando enunciaes e efeitos de velocidade produzindo desejos. Ambos remetem, por sua vez, respectivamente subjetividade e ao desejo produzido no indivduo que corre acoplado a sua mquina automo-tora.

    Isso vale para o que Deleuze (1998) chama de estilo de escritura. Escrever agenciar, ato que comporta tanto o indivduo que escreve quanto a lngua que ele mobiliza para escrever. O que se cria neste agenciamento maqunico advindo da acoplagem das mos escrevendo com a lngua posta em movimento, uma subjetividade e uma lngua outra. Trata-se de agir tomando os meios como instrumentos que so por eles mesmos a materialidade e a possibilidade do agenciar.

    Isso acontece ainda quando se trata de mobilizar teorias, campos de conhecimento ou mesmo tecnologias heterclitas. No se faz nada mais do que lanar mo de modos ou caminhos para agenciar investigaes rumo criao e exposio do saber diferena. Pensemos no professor que desenvolve uma aula

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    de geografi a ou de histria a partir de materiais didticos incompatveis. Por que o mestre exibe um fi lme de aventura para falar de um episdio da histria de uma nao? Por que o professor leva para a sala de aula peas de vesturio para expor como um falante se apropria da lngua? Quanto menos o contedo tem a ver com a estratgia adotada para ensinar ou pesquisar mais estamos diante da atitude daquele que agencia processos de criao de saber em si e no outro.

    Tal a caracterstica prpria do agenciar, ou seja, a incitao ao estranhamento pela colocao em evidncia da diferena na forma do contedo e na forma da expresso. Agenciar acaba por consistir no ato de renncia ao j sabido e de entrega ao estranhamento em si, em termos do agenciamento de enunciao que desarranja modos estabelecidos de dizer e fazer e, em termos de agenciamento maqunico (Deleuze, 1995) de desejo, que cria maneiras outras de ser sujeito desbancando regimes cristalizados de subjetividades. Deste modo, levar em conta qualquer programa de pesquisa encetada sob o diapaso da diferena deve ter como ponto de partida uma perspectiva necessariamente transgressora. Aqui se chega ao trao que permite designar o sentido prprio para o termo agenciar. Enfi m, no que diz respeito pesquisa da diferena, agenciar dispor-se radicalmente, tanto pelos meios utilizados quanto pelos contedos perseguidos, ao imprevisvel do ato de criar pensamento (Deleuze, 1996) e desejo conspirador de subjetivaes.

    Bibliografi a:

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. O que a fi losofi a? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Muoz. 2 reimpresso. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mil Plats. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 5. So Paulo: Editora 34, 1995.

    DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Dilogos Trad. Eloisa Arajo Ribeiro. So Paulo: Escuta, 1998.

    DELEUZE, Gilles. O ato de criao. Trad. Jos Marcos Macedo. Em: Folha de So Paulo, Caderno Mais!, 27 de junho de 1999.

    DELEUZE, Gilles. Cinema a imagem-movimento. So Paulo: Brasiliense, 1985.

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    AGIR

    Alice De Marchi Pereira de SouzaGislei Domingas Romanzini Lazzarotto

    Julia Dutra de Carvalho

    Minha opinio que nem tudo ruim, mas tudo perigoso, o que no signifi ca o mesmo que ruim. Se tudo

    perigoso, ento temos sempre algo a fazer. Portanto, minha posio no conduz apatia, mas ao hiperativismo pessimista.

    (Michel Foucault)

    Agir. Efetuao de uma tica, ethos. Forma de existir, modo de vida. Agir no mundo. Navegar e ser navegado.

    Em nossas aes, o que est operando? De nosso agir, o que colocamos em movimento? Tais indagaes so combatentes do esvaziamento poltico de nossas prticas. Constituem uma parada, um intervalo em relao ao automatismo do fazer ininterrupto e suas palavras de ordem: seja gil, produza mais, aperfeioe sua tcnica, faa rapidamente, urgente. Em nosso cotidiano de trabalhar-pesquisar somos arrancados ao tempo do imediatismo e pressionados a atender numerosas demandas, o que tende a nos manter conformes lgica capitalista do culto competncia, performance, ao rendimento. A pesquisa, arrastada neste movimento, torna-se fragmentada. O tarefi smo e o sobretrabalho alojam-se em nossos corpos. A pesquisa, assim como a vida, torna-se funcionria. Ora, ser puramente levado pela corrente no agir.

    Tambm no se pode confundir o agir com um ativismo. Numa atrapalhada e ingnua tentativa de contrariar a lgica do trabalho neoliberal, talvez um militante comprometer-se- com tantos movimentos, espaos de luta e grupos organizados que se tornar um militonto (Betto, 2001), afogado em excesso de atividades. Sem perceber o seu prprio lugar nestes movimentos, navegar entre um espao

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    e outro, esquecendo de algo no caminho sua vida. que nadar gratuitamente contra a mar tampouco agir.

    Quando se adota essas atitudes, fi ca-se aprisionado ao sobreimplicar-se, ausncia de anlise dos atravessamentos presentes nas pesquisas-intervenes que realizamos. Ficamos alijados da turbulncia que traz algo diferente. Ficamos entregues e a-critcos sofrendo sem conseguir entender suas causas. Assujeitados e anestesiados, mesmo que debatamo-nos na gua, s afundamos mais e mais.

    Afi rmar o agir como parada pode parecer contraditrio neste panorama. Mas no quando entendemos que agir est menos ligado indiferena e mera execuo de tarefas e muito mais desnaturalizao de nossas prticas e inveno. Ora, se implicado sempre se est, o que importa poder analisar nossas implicaes: perguntarmo-nos que lugares estamos ocupando, que lgicas estamos reproduzindo ou recusando, a quem e ao que afetamos, deformamos, engendramos e como estamos sendo tambm modulados. Agir implica (desculpem-nos a redundncia...!) analisar as implicaes, mas no se confunde com isso. Agir est, isso sim, concatenado a tal exerccio. A sensao de paralisia que habitamos quando vivemos o no saber o que fazer enuncia o impulso sensvel que compe o agir. O paradoxo de agir que a lgica que opera funciona muito mais no sentido de transformar para conhecer do que conhecer para transformar.

    Agir viver uma fora ativa que ganha forma em prtica atenta ao que est em jogo. Os conceitos, nesse sentido, so colocados para funcionar na problemtica de pesquisa. diferente de limitar-se a uma teoria contemplativa, que supostamente serviria para refl etir sobre uma temtica previamente escolhida. Agir inicia-se na funo que atribumos, junto a Michel Foucault, ao pensamento: estratgia de luta, forma de estranhar o j institudo, anlise do que ajudamos a fazer de ns mesmos como condio de possibilidade para sermos outros-em-ns, para expandir a vida. Se tudo perigoso, ento temos sempre algo a fazer, diz o francs (Foucault, 1995, p. 256). No cabe adormecer diante do que se apresenta como, justamente, inquietante! exatamente este o estado indicativo de que algo absolutamente novo pode (in)surgir.

    Agir deixar-se desestabilizar e, consequentemente, interferir de forma problematizadora numa dada organizao. experimentar a potncia prtica da teoria e operar conceitos como ferramentas, intensidade do plano de investigao (sem medo de se molhar...). Portanto, agir em pesquisa balouar com a malemolncia do mar-pesquisa. Mar-imensido. Estamos mergulhados

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    no infi nito de possveis afetos nos atingem em ondulaes, em paradas e em pleno movimento. Nesta vastido algo nos visga, como a um peixe que conduz suas nadadeiras na composio com a gua. A relao gua-nadadeiras d a forma do peixe, sua modulao, sua existncia em ato, processo em que pesquisar e agir so uma s e mesma coisa. Como peixe, inventamos nadadeiras para habitar a imensido do mar, sem sermos dragados, ou arrastados por ele e suas foras. Agir percorrer esses processos: estar no mar-pesquisa e perceber-se agente e agenciamento, agenciar.

    Nunca se escapa ileso do agir: agimos e somos agidos. Epa: coagir? S se o formos por aquilo que nos fora a pensar, por aquilo que permitimos que aja em ns, acolhendo o fato de que as questes de pesquisa constituem linhas s quais no podemos nos furtar e que, por isso mesmo, perseguimos em nossas agitaes! Movimento de um fazer nas entranhas do pensar, quando encarnamos o pensamento: agir deixar que esse movimento lhe diga o que e por onde fazer, como se utilizar das agitaes para percorrer as invenes da pesquisa sem tomar um rumo toa. Modos como acompanhamos processos micropolticos, que dizem respeito ao modo como (de)compomos nossas prticas nas relaes com o mundo e com a produo de subjetividade. Agir um movimento encharcado de sentido. Para alm da pesquisa, so foras que movem a vida.

    Bibliografi a:

    FOUCAULT, Michel. (1995). Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. Em: H. Dreyfuss & P. Rabinow (Orgs.). Michel Foucault: uma trajetria fi losfi ca. (p. 253-291). Rio de Janeiro: Forense Universitria.

    FREI BETTO, Carlos Alberto Libanio Christo. Dez conselhos para os militantes de esquerda. Disponvel em: http://latinoamericana.org/2002/textos/castellano/Betto.htm.

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    ANALISAR

    Heliana de Barros Conde Rodrigues

    Aldrovandi, naturalista do sculo XVI, muito conhecia de serpentes e drages. Quando os estudava desenvolvia, em um mesmo nvel de importncia, a descrio de sua anatomia e as formas de captur-los; seu habitat e os templos de suas lendas; sua nutrio e a melhor maneira de torn-los saborosos (Foucault, 2000, p. 177). Atravs de Aldrovandi e contemporneos, expressava-se a prosa do mundo palavras e coisas inseparveis, jogos de semelhanas a organizar o saber numa permanente ressonncia de convenincias, emulaes, analogias, simpatias. No mesmo sculo XVI, em Gargantua e Pantagruel, Rabelais pe Eustenes a dizer: Por todo o dia de hoje estaro a salvo de minha saliva: spides, Anfi sbenas, Anerudutos, Abedessimes, Alartas, Ambotas, Apinaos, Alatrabs, Aractes, Astrios, Alcarates, Arges, Aranhas, Asclabos, Atbolos, Ascalabotas, Aemorrides... (apud Foucault, 2000, p. 10-11). A semelhana dos signos aproxima coisas de outro modo dspares, e vice-versa, compondo um encantado e rumoroso lugar comum. Desde o sculo XVII, contudo, uma descontinuidade infranquevel abriu-se entre tal disposio do saber e a nossa. Daquela, somente admitimos (bem) o emprego pelos poetas e (mal) pelos loucos. No mundo que dizemos moderno, desencantado, coisas e palavras se viram separadas e h que distinguir, com rigor, o mundo e a representao do mundo, sob pena de, em no o fazendo, merecermos o epteto de quixotescos tristes fi guras a buscar (agora) ilusrias semelhanas entre signos (quais castelos, damas e exrcitos) e realidades do mundo (quais estalagens, criadas e rebanhos). Triunfa a ANLISE, portanto, nesse momento que se pode apelidar cartesiano. O nome de Descartes funciona aqui como sntese de um conjunto de prticas que fazem com que o sujeito se torne, por si s, capaz de verdade, cogito. Nada mais, como antes, lhe demanda qualquer processo de transformao de si para que se torne um erudito, um mgico, um intrprete das semelhanas. Ao mesmo tempo, porm, a verdade que apenas por ser sujeito lhe facultada em nada o transforma: abre-lhe unicamente um

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    percurso indefi nido da busca de mais, e mais, verdade (Foucault, 2004, p. 22-24). Nesse projeto gnoseolgico, suspeitoso das semelhanas esprias, prevalece uma instncia ltima: Deus a garantia (infi nita) de um mundo moldado em termos de identidade e diferenas, no qual conhecer buscar unidades elementares que, pouco a pouco desdobradas, permitam passar do simples ao complexo. A ns, seres fi nitos que somos, cabe obedecer ao infi nito, ou melhor, compor sistemas de signos aptos a representar a ordem do mundo. Muitas categorias de acusao tm sido utilizadas para problematizar esse solo do saber: racionalismo, mecanicismo, matema-tizao, quantitativismo etc. Talvez a facilidade com que as utilizamos pouco nos valha para com ele romper. Melhor seria, talvez, pensar que sua palavra de ordem , simplesmente, h ordem (e eventualmente, embora no necessariamente, medida). Isso nos facultaria divisar o destino dos eventuais insubmissos pois nela reside a ciso razo/desrazo da Idade Clssica , bem como avaliar o quanto, mesmo quando supostamente crticos, efetivamente a transgredimos ao analisar o que quer que seja, no cotidiano e/ou no processo de pesquisar. No mais somos, no entanto, exatamente clssicos. O que chamamos de pensamento contemporneo j se desprendeu, total ou parcialmente, das infi nitas garantias divinas. Deus est morto, ou ao menos assim o dizem, h cerca de dois sculos. Sua morte anuncia-se no ocaso dos quadros bem dispostos da representao e na emergncia de empiricidades que s a si prprias remetem vida, trabalho e linguagem , cujo conhecimento est reservado s cincias Biologia, Economia Poltica e Lingustica, respectivamente. Qual o Deus que lhe outorgara divinos direitos, tambm o cogito deve perecer para que nasa um sujeito do conhecimento inteiramente fundado em limites histricos, isto , nas fi nitudes positivas (sem referncia a um infi nito) do corpo, do desejo e da palavra. Entretanto, as Cincias Humanas, cujo surgimento tem a datao desse luto, mantm-se nos quadros da representao ou, melhor dizendo, entre a histria e a representao. Nelas, a criatura homem pretende sobreviver ao criador, ganhando a face de um curioso duplo: o de um sujeito constituinte (enquanto vivo, trabalhador e falante) de representaes relativas vida, ao trabalho e linguagem. Em suas vertentes positivistas, marxistas e fenomenolgicas, as Cincias Humanas interessam-se em estabelecer com preciso analtica aquilo que o homem-vida, o homem-trabalho e o homem-linguagem, respectivamente, podem representar sob a forma de percepes, lembranas, regras, normas, ideias, mitos etc. Porm o homem, essa inveno recente, tambm foi objeto de uma crnica da morte anunciada.

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    Filosofi as e contracincias o fi guraram como mero rosto na areia, prestes a ser levado pelas vagas da histria (Foucault, 2000, p. 536). No caso das ltimas, se chegou a sonhar com novas maneiras de analisar: a Psicanlise, a Etnologia e a Lingustica Estrutural descentraram o sujeito em favor do Inconsciente, dos Mitos, da Lngua. No entanto, funesto destino, quiseram-se elas Cincias, com maiscula, e logo se forjaram novos transcendentais, eventualmente mais divinizantes que o do humanismo que combatiam. Em parte de alguns de seus refugos, ou seja, do que nelas permaneceu desejavelmente minoritrio; em parte de fi losofi as radicalmente antirrepresentacionais; em parte do saber das pessoas, incapaz de unanimidade; em parte da impacincia da liberdade presente nas lutas anrquicas, novas anlises insistem em surgir, contudo, insurgindo-se contra qualquer palavra de ordem que decrete haver, eterna e infi nitamente, uma ordem predeterminada. Encontramo-las nas anlises institucionais (um pleonasmo...), nas ontologias histricas (outro...), nas esquizoanlises, nas fi losofi as da diferena etc. A partir delas, ANALISAR pode (ainda) constituir palavra de desordem, de inveno, de conexo, de transgresso. Implicantes e implicadas, pragmticas ou proces-sualidades, elas insistem em problematizar, na contracorrente dos sedentarismos analticos solucionadores. Cabe a ns, em modos de viver e de pesquisar, evitar que se transformem em tranquilizantes (e perigosas) disciplinas.

    Bibliografi a:

    FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. So Paulo: Martins Fontes, 2000.FOUCAULT, Michel. A hermenutica do sujeito. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

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    BRICOLAR

    Cleci Maraschindio Raniere

    Bricolar um verbo menor. Seu operar est em congruncia com improvisar, colar, reinventar, compor. Seu campo meldico atinge ressonncias com o Do it yourself mxima norte-americana dos anos 50 que prope fazer com as prprias mos, ou literalmente faa voc mesmo e com o Bricoleur substantivo francs aplicado a quem se pe a realizar pequenos reparos, que mesmo no sendo um especialista da rea resolve, de forma amadora, consertar, pintar, reformar, fazer uma bricolagem. Este Bricoleur, por vezes, coleciona as peas-pedaos que iro compor sua bricolagem, mas nem sempre o agrupamento-colagem dessas colees possibilita uma esttica prxima ao tradicionalmente convencionado como belo. Mesmo na histria da arte, onde se poderia esperar um pouco mais de nobreza, a bricolagem, enquanto tcnica, aparece acoplada aos no artistas. John Golding (2000), em Conceitos da Arte Moderna, atribui a Picasso a inveno da colagem sobre a tela e a Georges Braque a do papier coll; apesar da proximidade, em nenhum momento o autor aborda a bricolagem como tcnica resultante e/ou aparentada s que descreve, no chega, nem ao menos, a enunciar sua existncia. De uma forma geral a ao de bricolar parece estar ligada a um tipo de no especialista-colecionador, que por divertimento ou economia, inventa uma forma de fazer aquilo que vem pedindo para ser feito: ajustar o vazamento na descarga do banheiro, produzir uma tela-pintura cujos materiais de composio transitam entre a tinta, a fotografi a, o recorte de jornal e um pouco daquilo que h no depsito, patinar, com uma escova de lavar roupa, aquela parede fosca...

    Contudo, em se tratando de conceitos, seria possvel bricolar? Haveria algum tipo de metodologia acessvel aos no eruditos, aos que trabalham polindo lente o dia todo, como Baruch de Espinosa, e nas horas vagas se dedicam pesquisa? Seria possvel desrespeitar as especializaes acadmicas para pensar um mtodo proletrio de anlise? Mas, sobretudo, esse mtodo conseguiria bricolar sem perder o rigor?

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    Vejamos: numa estrutura tradicional/especializada de pesquisa podemos entregar ao sujeito pesquisado uma folha contendo perguntas e lhe solicitar que as responda. Temos a de forma clara e distinta o mtodo um questionrio elaborado previamente , a teoria conceitos que nos dizem ser possvel apreender a realidade deste sujeito atravs de suas respostas e o instrumento tcnico a aplicao do teste.

    Mas se tratando de um referencial bricolado Filosofia da Diferena ou pesquisa-interveno, os procedimentos e mesmo os problemas, mudam consideravelmente no transcurso do pesquisar. medida que mergulha nas intensidades do plat pesquisado, o corpo do pesquisador torna-se seu instrumento tcnico, pois se utiliza de alguns conceitos teoria a fim de operacionaliz-los em seus encontros-anlises. Dessa forma, os procedimentos e os mtodos e as prprias questes de partida, adotados para realizao da pesquisa, esto ligados criao de elos, links, conexes entre o objeto pesquisado e o prprio pesquisador. Tal metodologia precisa ser suficientemente forte para suportar a constante territo-rializao e a desterritorializao provocada pelos conceitos utilizados. Para Suely Rolnik, antropofagizando Deleuze, esse mtodo seria a Cartografia. J que ao cartografar se produz uma espcie de desenho mutante que acompanha as transformaes das paisagens singulares e coletivas. Desse modo, torna-se possvel mapear as transformaes dos mundos, as desterritorializaes e reterritorializaes que modulam a expresso dos afetos. O bricoler e o cartgrafo se misturam na antropofagia, ambos incorporam vidas e devolvem potncias ao mundo. De ambos se espera que permaneam atentos s linguagens que encontram, devorem as que lhes paream elementos possveis para a composio das cartografias e bricolagens que se fazem necessrias. O bricoler e o cartgrafo so antes de tudo antropfagos (Rolnik, 1989).

    Para Deleuze, ruminando Nietzsche, esse mtodo seria o Mtodo de Dramatizao. O mtodo consiste no seguinte: referir um conceito vontade de potncia para dele fazer o sintoma de uma vontade sem a qual ele no poderia nem mesmo ser pensado (nem sentimento ser experimentado, nem a ao ser empreendida) Tal mtodo corresponde questo trgica. Ele prprio o mtodo trgico. Ou mais precisamente, se tirarmos do termo drama todo o phatos dialtico e cristo que corresponde seu sentido, o mtodo de dramatizao (Deleuze, 1976, p. 38).

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    Para Roberto Machado (1979) analisando Foucault, este mtodo poderia ser a Arqueologia do Saber e/ou a Genealogia do Poder. Sendo o primeiro utilizado em Histria da Loucura (1961), O Nascimento da Clnica (1963), As Palavras e as Coisas 1966), e A Arqueologia do Saber (1969), numa tentativa de descrever os nascimentos dos saberes e suas transformaes, privilegiando para isso as inmeras discursividades e suas articulaes com as instituies; enquanto o segundo, inaugurado em Vigiar e Punir (1975), tentaria explicar o aparecimento de saberes a partir de condies de possibilidade exteriores e coextensivas aos saberes. Nesse sentido, sem considerar o objeto pesquisado como mero resultante de outros saberes e prticas, que se poderiam colocar as questes fundamentais de uma pesquisa: quais seriam as condies de possibilidade que levaram ao nascimento do objeto e quais seriam as condies de possibilidade que tornam possvel a utilizao do mesmo na contempo-raneidade? Quais as principais estratgias utilizadas, com quais poderes fez/faz aliana, que tipo de corpo atitudes, comportamentos, gesto, hbitos, discursos produz, o que faz circular, o que paralisa?

    Contudo, em se tratando de mtodo, o mais importante lembrar que tanto para a Cartografi a como para o Mtodo de Dramatizao, para a Arqueologia do Saber, para a Genealogia do Poder, bem como nessa bricolagem apresentada aqui

    (...) em geral, nunca se utiliza apenas um mtodo ou uma tcnica, e nem somente aqueles que se conhece, mas todos os que forem necessrios ou apropriados para determinado caso. Na maioria das vezes, h uma combinao de dois ou mais deles, usados concomitantemente (Marconi, 1996, p. 28).

    O que possvel realizar sempre uma anlise parcial, incompleta, distante de ideais totalizantes. No se (...) tm por objetivo fundar uma cincia, construir uma teoria ou se constituir como sistema; o programa que elas formulam o de realizar anlises fragmentrias e transformveis (Machado, 1979, p. 11).

    Caro leitor, essa bricolagem coleo e colagem de mtodos precisa caber em trs laudas. Portanto, daqui pra frente contigo: Do it yourself.

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    Bibliografi a:

    DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofi a. Trad. de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffi ly Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

    GOLDING, John. Cubismo. In: Conceitos da Arte Moderna. STANGOS, Nikos. Trad. de lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

    MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: Microfsica do Poder. FOUCAULT, Michel. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1979.

    MARCONI, Marina de Andrade. Tcnica de pesquisa: planejamento e execuo de pesquisas, amostragens e tcnicas de pesquisa, elaborao, anlise e interpretao de dados. So Paulo: Atlas, 1996.

    ROLNIK, Suely. Cartografi a Sentimental: Transformaes contemporneas do desejo. So Paulo: Estao Liberdade, 1989.

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    CARTOGRAFAR

    Luis Artur CostaAndra do Amparo Carotta de Angeli

    Tania Mara Galli Fonseca

    Tudo o que no invento falso (Manoel Barros)

    Porque sempre por rizoma que o desejo se move e produz (Deleuze & Guattari)

    Ela se aproxima do papel querendo apag-lo, sob a folha em branco v uma infi nidade de palavras desenhadas. Uma tenso. Quem est ao redor quer dizer por. Quer dizer por qus. Quer dizer de. Quer saber o qu. Sobre ela uma chuva de palavras se sobrepe. Ela, palavras querendo vesti-la, molh-la. Como que se diz isso? Que que se quer dizer nisso? Cortar as palavras para inventar um dizer com elas. A raspagem da folha em branco repleta de palavras que pousam sem pousar torna-se dizer. Dizer com. Com a folha em branco, com o excesso do nada de palavras, com os muitos sentidos que se torcem, retorcem e dobram na forma aberta de um dizer ainda em branco. Aqui, pesquisar no tem mais a ver com saber sobre, pois se trata de saber com. Habitar um estado de coisas, seus trajetos possveis, seus incompossveis, subtrair o que insiste e produzir com. Operar por subtrao, cortando da folha em branco as palavras j cansadas de tanto dizer o mesmo, produo de um som menor que coabita o territrio de sons, fazendo com que este territrio se abra a novas combinatrias, insistncia no retorno da potncia de diferir. Busca-se o que menor, aquilo que agita um estado de coisas, que faz problema, deste modo, ouvidos, narizes, bocas, mos, se pem a vasculhar um acontecimento. Desenham-se os movimentos que no so completamente apreendidos, mas, seguidos por uma ateno fl utuante.

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    A ativao de uma ateno espreita fl utuante, concentrada e aberta (...) entendida como um msculo que se exercita e sua abertura precisa sempre ser reativada, sem jamais estar garantida. (...) a busca reiterada de um tnus atencional, que evita dois extremos: o relaxamento passivo e a rigidez controlada (Passos, Kastrup e Escssia, 2009, p. 48).

    Observa-se Apolo, dana-se com Dionsio: cartografar pesquisar o acontecimento acontecimentalizando.

    Escrever, fi lmar, fotografar, danar, encenar, pintar, pensar com o que acontece: dar corpo a um acontecimento se relacionando com este atravs da cincia, da arte e da fi losofi a. A linguagem ajudando a dizer daquilo que lhe ultrapassa, traados sempre provisrios e frgeis de um sempre em processo, o inacabado de um como. Investiga-se como, produz-se com. Como faz aquilo que faz? Para cartografar preciso, pois, querer o acontecimento, o lanar dos dados, estar aberto afi rmao do acaso, quilo que faz problema no mesmo. Suportar um problema, uma sempre vizinhana com territrios de solues. Estar a caminho. Caminhar em involuo, nem de onde, nem para onde, mas habitar as mltiplas temporalidades em um nico instante. E perguntar, que que insiste aqui? Que que pede passagem na lngua? Que que ganha verbo no que acontece?

    Iniciemos ento uma breve receita para o que no tem receita: trata-se antes de uma srie de operaes que efetuam uma atmosfera propcia cartografi a. Pegue a pergunta por qu? e quebre-a com um martelo em uma mirade de fagulhas at que cada pedacinho de por qu? seja to pequeno que j no pergunte a razo de algo, mas sim seu modo. Minore o por qu? em como?. O como um pequeno por que, to apequenado em sua medida que j no mede nada alm da singularidade daquele evento. No serve para explic-lo totalmente e tampouco para dar razo a outros acontecimentos passados ou futuros.

    Outra medida desmedida que cai bem a este fazer cartogrfi co no se livrar do fugaz. Os porqus em geral gostam de se livrar do que fugidio, pois apenas assim podem ansiar por sua eternidade: ultrapassar a iluso da mudana para acessar a verdade e suas constantes. J o como ama o que muda, apaixona-se pelos detalhes inteis e de vida breve, pois no lhe interessam as grandezas para alm do tempo e da imanncia. Ao invs de leis abstratas o que realmente importa so as cores, odores, sabores, caprichos, texturas, velocidades e outras veleidades

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    mundanas. Antes de buscar ultrapassar as aparncias e sua superfi cialidade exatamente na experimentao desta superfcie que se faz a vida do cartgrafo. Enquanto o mtodo cartesiano, fundador da cincia moderna, busca transcender os acidentes em sua variabilidade sensvel para alcanar as leis inteligveis de um alm-mundo, aqui, tratamos com um mundo inteligisensvel. Pesquisar com a cartografi a encontrar-se com reentrncias fugidias de dimenses mnimas que abrem problemticas ilimitadas, sem espao para binarismos advindos da partio abstrata do mundo em categorias estanques. Encontro singular e intempestivo entre os fl uxos de um devir-mundo que tecem o cartgrafo e sua cartografi a: olho e paisagem so um movimento de movimentos em encontro. Movimentos do mundo que tornam impossvel a neutralidade do ver: a perspectiva a afi rmao do ser em seu modo.

    Enquanto no mtodo cartesiano buscamos nos desvencilhar de ns mesmos para abarcar a universalidade de um sujeito epistmico geral, aqui no pretendemos a anulao da perspectiva, ainda que isso no signifi que fi car preso em si, em um eu romntico que se v presa de um solipsismo subjetivista. Devemos infectar o mundo com nossos caprichos e nos infectar com as idiossincrasias do mundo: realidade constituda na relao atravs do contgio virtico sem qualquer assepsia e esterilidade.

    Vemos j aqui uma das inclinaes deste prato. No serve simplifi cao do mundo e, portanto, no serve ao controle e previso de fenmenos. Antes disso complexifi ca, adensa nosso encontro com as insignifi cncias, faz verter novos sabores servindo intensifi cao das nossas relaes com o mundo sem tentar acabar com os imprevistos deste. Para tanto, podemos abrir a dura razo da conscincia e seu planejamento simtrico para as irregularidades da experimentao da intuio e do inconsciente: atentar s pequenas percepes que escapam s formas. Planejar o acaso experimental, fi ccionar o fato, pensar a intuio e atentar ao inconsciente: na cartografi a integramos estes antes polos opostos em uma afi rmao de mundo como paradoxo. Ao invs de se encontrar com a verdade, trata-se de dizer sim a isto e a aquilo, de afi rmar uma verdade no encontro com o mundo.

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    CLINICAR

    Tania Mara Galli Fonseca