PESQUISA EM SALA DE AULA – por que não?

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PESQUISA EM SALA DE AULA – por que não? 1 Sofia Lerche Vieira 2 Não, não tenho um caminho novo, O que tenho de novo é o jeito de caminhar. (Thiago de Mello) INTRODUÇÃO A idéia de educar pela pesquisa (DEMO, 1998) tem estado presente na literatura educacional desde há muito, representando importante princípio da Escola Nova, cujos fundamentos remontam ao início do século XX. Anísio Teixeira foi, talvez, o primeiro educador brasileiro a defender a idéia de que a reconstrução da experiência deveria integrar a prática docente desde a mais tenra idade dos alunos. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), importante documento histórico norteador do debate educacional no Brasil, falava de uma educação que abrisse o educando à sua energia de observar, experimentar e criar todas as atividades capazes de satisfazê-la, propondo fazer da escola um meio vivo e natural, favorável ao intercâmbio de reações e experiências (O MANIFESTO In. GHIRALDELLI, 1990, p. 66). Ao trazer a lembrança da Escola Nova e de Anísio Teixeira à cena da reflexão que hoje, aqui, travamos, o fazemos como uma ilustração. Tanto as formulações recentes acerca do professor pesquisador (PATTERSON, 1993), como do professor- reflexivo (SCHÖN, 1987 e ALARCÃO, 1996) remontam a um debate que não é novo e está presente em idéias pedagógicas que aportaram no Brasil desde a primeira metade do século XX. A iniciativa aqui apresentada discute aspectos da proposta metodológica que temos denominado de pesquisa em sala de aula, concebida com o objetivo de desenvolver práticas coletivas de investigação com estudantes universitários de graduação e de pós-graduação. Este trabalho é fruto de nossa experiência em coordenação de projetos de pesquisa, desde meados dos anos noventa. Neles, por diversas vezes, fomos desafiados a elaborar estudos de equipe, a partir de um foco de investigação comum, o que nos levou a buscar uma metodologia compatível com um trabalho de tal natureza. Como decorrência, fomos delineando a idéia de adaptar algumas das estratégias desenvolvidas no trabalho de campo ao ensino universitário. Trazer a experiência da pesquisa para a sala de aula, a nosso ver, poderia vir a resultar em uma alternativa de dinamização de ensino. A prática desenvolvida a partir daí tem revelado que este é um caminho fértil de inovação pedagógica, como defende a proposta de fazer da pesquisa atitude cotidiana no professor e no aluno (DEMO, op. cit). A partir de 1999, passamos a introduzir em nossas disciplinas a prática de projetos comuns de investigação, que envolvem planejamento e coleta de dados 1 VERSÃO PRELIMINAR. 30/08/2001. 2 Professor Titular. Universidade Estadual do Ceará. Brasil.

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PESQUISA EM SALA DE AULA – por que não?1

Sofia Lerche Vieira 2

Não, não tenho um caminho novo,O que tenho de novo

é o jeito de caminhar.

(Thiago de Mello)

INTRODUÇÃO

A idéia de educar pela pesquisa (DEMO, 1998) tem estado presente na literaturaeducacional desde há muito, representando importante princípio da Escola Nova, cujosfundamentos remontam ao início do século XX. Anísio Teixeira foi, talvez, o primeiroeducador brasileiro a defender a idéia de que a reconstrução da experiência deveriaintegrar a prática docente desde a mais tenra idade dos alunos. O Manifesto dosPioneiros da Educação Nova (1932), importante documento histórico norteador dodebate educacional no Brasil, falava de uma educação que abrisse o educando à suaenergia de observar, experimentar e criar todas as atividades capazes de satisfazê-la,propondo fazer da escola um meio vivo e natural, favorável ao intercâmbio de reações eexperiências (O MANIFESTO In. GHIRALDELLI, 1990, p. 66).

Ao trazer a lembrança da Escola Nova e de Anísio Teixeira à cena da reflexãoque hoje, aqui, travamos, o fazemos como uma ilustração. Tanto as formulaçõesrecentes acerca do professor pesquisador (PATTERSON, 1993), como do professor-reflexivo (SCHÖN, 1987 e ALARCÃO, 1996) remontam a um debate que não é novo eestá presente em idéias pedagógicas que aportaram no Brasil desde a primeira metadedo século XX.

A iniciativa aqui apresentada discute aspectos da proposta metodológica quetemos denominado de pesquisa em sala de aula, concebida com o objetivo dedesenvolver práticas coletivas de investigação com estudantes universitários degraduação e de pós-graduação. Este trabalho é fruto de nossa experiência emcoordenação de projetos de pesquisa, desde meados dos anos noventa. Neles, pordiversas vezes, fomos desafiados a elaborar estudos de equipe, a partir de um foco deinvestigação comum, o que nos levou a buscar uma metodologia compatível com umtrabalho de tal natureza. Como decorrência, fomos delineando a idéia de adaptaralgumas das estratégias desenvolvidas no trabalho de campo ao ensino universitário.Trazer a experiência da pesquisa para a sala de aula, a nosso ver, poderia vir a resultarem uma alternativa de dinamização de ensino. A prática desenvolvida a partir daí temrevelado que este é um caminho fértil de inovação pedagógica, como defende a propostade fazer da pesquisa atitude cotidiana no professor e no aluno (DEMO, op. cit).

A partir de 1999, passamos a introduzir em nossas disciplinas a prática deprojetos comuns de investigação, que envolvem planejamento e coleta de dados1VERSÃO PRELIMINAR. 30/08/2001.2 Professor Titular. Universidade Estadual do Ceará. Brasil.

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realizadas por todos os alunos de uma mesma turma e análise diferenciada em função deinteresses individuais ou grupais. De tal maneira, os estudantes têm a oportunidade devivenciar as diferentes etapas de um projeto de pesquisa a partir de uma prática coletiva.Neste processo, além de desvelar aspectos da lógica do processo de investigação, ainteração desenvolvida entre professor e alunos tem colaborado para a construção dapossibilidade de ser feliz na universidade (SNYDERS, 1995). Por acréscimo, o trabalhotem representado a acumulação de um conjunto de informações preciosas para apesquisa em educação, viabilizando incursões que têm se traduzido em estudos degraduação e pós-graduação. Um dos resultados concretos da iniciativa tem sido aprodução de ensaios de pesquisa que vêm sendo divulgados em eventos da área.

A experiência, concebida inicialmente no âmbito de uma disciplina sob nossaresponsabilidade, no curso noturno de graduação em Pedagogia da UniversidadeEstadual do Ceará (UECE), tem sido compartilhada com outros professores dainstituição e resultado em produtos coletivos de investigação. Este ensaio pretendeaprofundar aspectos relativos aos princípios, à metodologia e aos resultados obtidosdesde o início até o estágio atual da experiência (1999/1- 2001/1).

PRINCÍPIOS

A proposta da pesquisa em sala de aula constitui uma alternativa para dinamizaro ensino e a aprendizagem na universidade, colocando-se na vertente dos chamadosprojetos curriculares (MARTÍNEZ BONAFÉ, 1991) ou projetos de trabalho(HERNANDEZ, 1998).

Na perspectiva em que temos trabalhado, professores e alunos se envolvem emprocesso onde a sala de aula é visualizada como instância de trocas e depossibilidades, onde todos aprendem. Os fundamentos dessa forma de condução dadocência universitária não são novos. Buscam inspiração em contribuições diversas,algumas das quais, como já observamos, estão presentes no campo educacional desde oadvento da Escola Nova. O que há de novo, talvez, seja a forma como as idéias estãoassociadas, que consiste em trabalhar com princípios mutuamente articulados, os quaisassim podem ser resumidos:

▪ O professor como orientador e coordenador de iniciativas

▪ O aluno como sujeito ativo na construção do conhecimento

▪ O projeto coletivo como alternativa de ensino-aprendizagem

▪ O tema-gerador como estratégia de investigação

▪ A prática como ponto de partida para a aprendizagem dapesquisa

▪ O ensino e a pesquisa como atividades indissociáveis

Uma breve incursão em torno desses princípios, facilita o entendimento de comoa perspectiva da pesquisa em sala de aula tem sido trabalhada no cotidiano da docênciauniversitária.

Professor – orientador e coordenador de iniciativas

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Muito se tem escrito e pesquisado sobre o professor nos últimos anos,particularmente no contexto da sociedade do conhecimento, palco de mudanças semprecedentes no âmbito da educação e da escola. Existe, hoje, uma literatura rica eatraente sobre questões as mais diversas relativas ao professor. Como já mencionamosanteriormente, temos tido influências marcantes das idéias de NÓVOA (1995 a, b),SCHÖN (1992), CUNHA (1997), entre outros. Nossa intenção não é discorrer sobreum tema tão palmilhado como esse mas, antes, sinalizar na direção do papel reservadoao professor na pesquisa em sala de aula.

Num tempo em que o conhecimento está cada vez mais nos objetos, é óbvio queo papel do professor transcende, em muito, à função de transmitir conhecimentos. Se,por um lado, permanece forte em seu trabalho a dimensão de mediador entre osconteúdos existentes e aquilo que se espera do aluno saber, por outro, cresce aimportância de que este seja, em sala de aula, um orientador e coordenador deiniciativas.

Duas imagens de trabalho coletivo aqui são oportunas: o jogo e a orquestra. Emambos os casos, os integrantes têm uma tarefa específica a desempenhar. O rendimentodepende de todos e de cada um em particular. O técnico é figura indispensável.Acompanha o trabalho diário da equipe. Estimula, briga. Vibra, na vitória. Acolhe, naderrota. O maestro, atento a todos os instrumentos, é capaz de ouvir o som de cada umdeles e, a partir do conjunto, construir uma sintonia. Em qualquer dos casos, o que estáem questão é a importância de orientar e coordenar a equipe a ser o que de melhor puderser, a partir de suas próprias circunstâncias. Para o professor, orientar e coordenar umtrabalho deste tipo significa ajudar seus alunos a conquistar a taça do conhecimento.

Como síntese, pode-se dizer que para conduzir um trabalho onde a pesquisa seconstitua como princípio educativo e a dinâmica coletiva esteja sempre presente, oprofessor necessita abandonar a posição de detentor exclusivo de conhecimentos, onde oensino é centrado apenas na aula expositiva. Tal atitude, embora ainda presente nauniversidade, podia fazer sentido no passado, sob a égide da pedagogia tradicional;hoje, entretanto, é inadmissível.

1. Aluno – sujeito ativo na construção doconhecimento

Por óbvio que pareça e por mais difundidas que estejam entre nós as concepçõesconstrutivistas do conhecimento, não é demais repetir que trabalhar com a perspectivada pesquisa em sala de aula implica em que o professor confie em seu(s) aluno(s) comopessoas autônomas, capazes de construir conhecimentos. Vale ressaltar, contudo, que aoreconhecer o estudante como um sujeito que aprende por si próprio, acentua-se para oprofessor um papel mediador nesse processo. Ou seja, se é verdade que o aluno temautonomia para apropriar-se do objeto a ser conhecido, este é um processo construídoem situação, onde o conhecimento vai sendo desvelado ao sujeito em um percurso nemsempre linear.

Na perspectiva da pesquisa em sala de aula, o conhecimento não é algo dadoespontaneamente, seja ao professor, seja ao aluno. Como em todo processoinvestigativo, antes, resulta de um esforço sistemático de apreensão do real, naquilo quedele é possível conhecer em um determinado momento, uma vez que não háconhecimento pronto, ou acabado. Assim, compreende-se que “aprender é construir

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significados” e “ensinar é oportunizar esta construção” (MORETTO, 1999, p. 9). Sobeste ponto de vista, a pesquisa em sala de aula viabiliza a criação de um ambientepropício a que a construção de significados aconteça, sob o acompanhamento de alguémque aí está para facilitar a possibilidade desta construção.

Projeto coletivo – alternativa de ensino-aprendizagem

“Um galo sozinho não tece uma manhã”, diz o poeta brasileiro João Cabral deMelo Neto, em um de seus belos poemas. Em todos os processos humanos vivemosestabelecendo trocas. Somos seres de relações. Alimentamo-nos da relação com o outro.A situação pedagógica não foge a esta regra. Embora cultivemos muito o trabalho emgrupo, este nem sempre gera os efeitos desejáveis no ambiente de sala de aula. Écomum encontrar alunos que rejeitam as atividades de equipe, argumentando que estaprática permite que uns se aproveitem dos outros para fugir ao trabalho. Na pesquisa emsala de aula as coisas se passam de uma forma diferente. Há momentos de trabalhoindividual e de trabalho em grupo. Em ambos os casos, porém, um depende do outro. Ametáfora do jogo, aqui, outra vez, é ilustrativa. Não há jogo sem regras. Quando se temum time, todos têm que participar. Se um falha, todos perdem. Se outro faz o gol, todosvibram.

É importante buscar sintonia entre vários aspectos e nem sempre se deve oupode sucumbir aos apelos individuais. O problema é que temos uma forte tradição depesquisa individual na área de educação – todos querem perseguir o seu tema eproblema, muitas vezes, se esquecendo que não é assim que se caminha quando sepretende fazer avançar o conhecimento científico. Os pesquisadores individuais sãoraros e a investigação, cada vez mais, um empreendimento coletivo.

Outro aspecto relevante a destacar na busca de sintonia entre o individual e ocoletivo, diz respeito à possibilidade de potencializar áreas de interesse, sem perda deoriginalidade no percurso do trabalho. Melhor explicando. Um problema freqüente como qual nos defrontamos na pesquisa em grupo refere-se à preservação do trabalhoindividual de cada pesquisador e da autoria das diferentes partes que o compõem.

Tema-gerador – estratégia de investigação

Se a definição dos temas e problemas de pesquisa é etapa fundamental dequalquer processo investigativo, também na pesquisa em sala de aula este é umpressuposto verdadeiro. No caso de estarmos em busca de um foco coletivo deinvestigação, esta é questão das mais relevantes. O objeto da pesquisa tem que despertarinteresse entre os alunos. Ser um tema-gerador, por assim dizer. O encontro de um temamotivador contribui para maior envolvimento do grupo e para o bom rendimento dotrabalho.

Temas interessantes existem em todas as áreas do conhecimento. O desafio estáem encontrá-los. E, uma vez encontrados, não perdê-los de vista. Isto nos remete àpassagem de um livro valioso - Consejos a un joven cientifico, de Peter Medawar(1992), Prêmio Nobel por trabalhos de investigação clínica – onde o cientista fala daimportância de pesquisar sobre temas que despertem o interesse público. O exemplo queo autor utiliza é o de um jovem cientista, dedicado à pesquisa sobre ovos de ouriços domar. Se o jovem fizer uma pesquisa para demonstrar que 36% dos ouriços do marpossuem uma manchinha preta em sua superfície superior corre o risco de, ao apresentar

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seu trabalho em uma reunião científica, despertar o interesse de apenas um único jovemcientista – aquele que está empenhado na investigação acerca dos outros 64% dos ovosde ouriços que não têm uma manchinha preta em sua superfície superior...

Ao buscar um foco de pesquisa comum, lembremo-nos dos ovos de ouriços domar. É mais importante saber dos perigos que estes podem representar à espécie humanado que se seus ovos têm, ou não, manchinhas pretas. Construir um tema-gerador depesquisa significa ser capaz de encontrar focos de pesquisa que agreguem oconhecimento em torno de temas viáveis, úteis e relevantes.

1. A prática – ponto de partida para a aprendizagem dapesquisa

O poeta Drummond que o diga – amar se aprende amando – como em quasetudo na vida, também em pesquisa se aprende a partir da ação. Ou seja, pesquisar seaprende pesquisando. Daí, talvez, um dos grandes equívocos da maior parte dos cursosde metodologia de pesquisa, onde se fala muito sobre pesquisa, mas não se pesquisa.Parte da dificuldade está no fato de que os alunos – com toda razão – costumam detestaras disciplinas que pretendem falar sobre o como fazer, sem fazer. Aliás, quem gosta depromessas não cumpridas? Outro problema é que não raro o professor de tais disciplinasnão é um pesquisador. Neste caso, o falar sobre é levado às últimas conseqüências – aaula vira um grande discurso sobre a pesquisa. Lê-se muitos manuais, discute-se muitasregras mas, pesquisar que é bom, nada... Ao final de um curso dessa natureza, a teoriasobre o método foi passada de uma forma insossa e inconseqüente. Todos estãofrustrados e – o que é pior – quando se defrontam com a necessidade da pesquisa(monografias e dissertações são um bom exemplo nesse sentido), muitos dos iniciantesestão perdidos. Não sabem onde nem como ir. De que lhes valeu, então, o ensino sobrea pesquisa?

Julgamos que a maioria dos professores e dos alunos, no fundo, estão cientes deque não é este o caminho para ensinar a pesquisa. Onde há muitas regras, porém, é maisdifícil quebrá-las. Poucos ousam se aventurar a buscar outras formas de fazer as coisas.A atitude de mudar o ensino da pesquisa começa pelos pesquisadores. E muitos deles ofazem, como podemos testemunhar através da prática da iniciação científica, que tantosdividendos tem trazido para a universidade. Esta, porém, é uma atividade a qual poucosestudantes têm acesso. Daí, a importância de socializar o que pode e deve sersocializado em termos da prática de pesquisa em espaços mais amplos. A sala de aula,pois, é o laboratório para ensaiar esta iniciação. Assim como na escola, os melhoresprofessores deveriam estar à frente do ensino de alfabetização, o mesmo se aplica àuniversidade, onde os pesquisadores mais experientes não deveriam ser poupados dacondução das disciplinas introdutórias à iniciação científica e à pesquisa. O quepropomos, pois, é aprender a pesquisar – pesquisando, com um professor-pesquisador,orientando.

Ensino e pesquisa – atividades indissociáveis

Há mais de trinta anos a universidade brasileira convive com o princípio daindissociabilidade entre o ensino e a pesquisa, legado da reforma de 1968. Sobre oassunto, muito já foi discutido, refletido e polemizado. Ao longo do tempo, ao paroriginal acrescentou-se também a atividade de extensão. A Constituição de 1998 dispõe

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que as universidades obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino,pesquisa e extensão (CF - Art. 207). Aqui, nos limitaremos a tratar da articulaçãoentre o ensino e a pesquisa no âmbito da docência, uma vez que ambas alimentam otrabalho de sala de aula de forma direta.

A experiência com a incorporação da prática de pesquisa ao conteúdoprogramático das disciplinas tem ensinado que esta propicia uma dinâmica de trabalhoprazerosa e instigante. Assim, através da pesquisa o ensino se renova. Os alunosencontram um novo desafio à sua trajetória acadêmica, deixando muito claro para osprofessores que, dadas as devidas condições, eles são, sim, capazes de construirconhecimentos e se envolver nos cursos ministrados com compromisso,responsabilidade e – por que não dizer? – paixão.

METODOLOGIA

O trabalho de construção da pesquisa em sala de aula é simples. Merece, porém,cuidadoso preparo, atento acompanhamento e coordenação. Em certo sentido, pode-serepetir o conhecido ditado: Quem não sabe o que procura, quando encontra nãopercebe. Há que se saber o que se quer. Também o como se quer chegar.

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Para levar uma proposta de trabalho de tal natureza adiante, é necessário quetodos estejam convencidos da possibilidade de realizar um projeto coletivo deinvestigação no decorrer de um semestre letivo. Muitos docentes e pesquisadoresacadêmicos poderão dizer que esta é uma tarefa impossível. Não é. É preciso manter emmente que esta não é a pesquisa, mas uma pesquisa, ou melhor dizendo, um exercício depesquisa que se dá através de uma oportunidade de percorrer algumas etapas doprocesso de investigação.

Identificado o tema-gerador do estudo, elabora-se um instrumento comum deinvestigação. No caso das experiências de pesquisa em sala de aula sob nossaorientação, temos trabalhado basicamente com entrevistas semi-estruturadas mas,observações e questionários podem ser igualmente explorados como procedimentos decondução de trabalho de campo. Os roteiros para o trabalho de campo (entrevistas,questionários e fichas de observação) podem ser produzidos a partir de duas situações.Se a pesquisa atende a um interesse institucional, o roteiro é proposto pela equipecoordenadora da iniciativa e submetido à apreciação dos estudantes participantes. Se apesquisa atende a interesses dos próprios alunos de uma disciplina, todo o trabalho deprodução de instrumentos é assumido por eles, sob a orientação do professor.

Antes da realização do trabalho de campo, é oportuno discutir exaustivamenteem sala de aula os diferentes aspectos desta etapa da pesquisa (Ver, a propósito:BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 115-145). Em nossa experiência na graduação, sentimosque este é um passo importante para que o pesquisador iniciante vá a campo comsegurança dos procedimentos a adotar. Assim, em algumas circunstâncias, ensaiamoscomo se conduz e registra a coleta de dados. Ao contrário do que talvez possamimaginar os mais céticos, este trabalho tende a ser divertido e a despertar grandeentusiasmo por parte dos estudantes.

A definição da amostra é feita a partir do tema proposto e das possibilidades dosestudantes envolvidos no projeto. No caso da experiência conduzida com estudantes depós-graduação, cada mestrando realizou e transcreveu 6 entrevistas. No caso das turmasde graduação, temos atribuído a cada aluno a realização e transcrição de 2 entrevistas.Concluída esta etapa primeira de coleta de informações, chega-se ao momento deproceder ao trabalho de organização dos dados, no sentido de viabilizar que os assuntosabordados sejam classificados e analisados de acordo com categorias previamenteestabelecidas. É a partir desta fase do processo da pesquisa em sala de aula que osdiferentes temas podem ser distribuídos entre os alunos, conforme seus interessesespecíficos ou segundo critério de distribuição previamente estabelecido e acordado.

O cuidado especial com o processo de coleta e registro de dados justifica-se emfunção dos resultados a serem obtidos. Se as informações coletadas estão registradas deforma criteriosa, com maior facilidade poderão constituir objeto de descrição e análise.Em todas as iniciativas realizadas sob nossa responsabilidade, os alunos receberam umdisquete contendo o roteiro do trabalho a ser realizado – no caso, entrevistas – queretornam ao professor em data definida de comum acordo por todos.

As entrevistas são copiadas em duas vias. Este procedimento é necessário paraque possa se ter um arquivo, contendo o registro completo de todas as entrevistas, assimcomo para dirimir dúvidas de preenchimento que são inevitáveis ao longo do percurso –sobretudo em se tratando de uma atividade de iniciação científica, onde estamos lidandocom jovens que, em sua maioria, jamais realizaram um trabalho de campo orientado.

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Uma das vias impressas é utilizada para que as respostas sejam organizadas portema. Aqui os estudantes percebem em concreto o quanto, na pesquisa coletiva, somosum por todos e todos por um. Todo pequeno detalhe esquecido resulta em algumobstáculo a ser analisado e contornado. Cada resposta em branco, cada preenchimentoincorreto faz diferença e isto fica claro no decorrer do processo de organização dosdados.

Concluída a etapa de organização da informação, procede-se à descrição eanálise dos dados. Trabalhamos com dados qualitativos mas, em muitos casos, estes sãopassíveis de um tratamento estatístico simples. De tal maneira, os alunos aprendem aconstruir tabelas e delas extrair sentido a partir do material por eles coletado. Do mesmomodo, procede-se com a análise qualitativa da informação. Busca-se identificartendências predominantes de respostas assim como elementos divergentes do conjunto.Aos poucos, vai se construindo um desenho que expressa os resultados do trabalhorealizado.

Descobrimos, na prática, que uma boa forma de apresentar os resultados dapesquisa em sala de aula é através da elaboração de resumos e de realização de sessõesde posters, onde os alunos discutem entre si suas descobertas e recebem orientaçõessobre como proceder para participar de eventos científicos.

Assim tem sido a condução da pesquisa em sala de aula, ao longo dos dois anosde seu desenvolvimento. O trabalho costuma pautar-se por interesse e entusiasmo porparte de todos, indicando a oportunidade de desenvolver experiências de tal naturezapara uma plena realização do princípio da indissociabilidade entre ensino e pesquisa nauniversidade. Para os alunos, tem significado uma oportunidade ímpar de articular ateoria à prática de uma investigação. Para a professora, um estímulo à continuidade daexperiência e a resignificação do trabalho docente.

RESULTADOS

A experiência da pesquisa em sala de aula teve início a partir de umaexperiência individual, mas tem sido compartilhada com outros docentes no âmbito dainstituição onde trabalhamos. Como resultado concreto da experiência, com acooperação de outros docentes e de alunos que participaram da coleta de informações,nos dois anos considerados, foram produzidos cinco bancos de dados, sob as seguintesdenominações:

- Inovações Institucionais na Escola (1999/1 e 2001/2);

- Profissão – Pedagogo (1999/2);

- Profissão – Professor de Língua Estrangeira (1999/2);

- Profissão – Professor de Ensino Fundamental (2000/1);

- Profissão – Professor de Ensino Fundamental (2000/2);

As informações coletadas e organizadas através desse procedimentometodológico oferecem múltiplas possibilidades de pesquisa discente e docente. OsBancos de Dados têm viabilizado a produção de trabalhos coletivos em diferentes

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disciplinas da graduação e de pós-graduação, assim como outros estudos. Detalharemosa seguir, algo da experiência acumulada neste sentido.

A primeira iniciativa sistemática de pesquisa em sala de aula foi conduzida noâmbito da disciplina Planejamento Educacional 1, quando juntamente com outracolega3, realizamos o estudo Inovações Institucionais na Escola (1991/1), com dadoscoletados em 16 escolas públicas estaduais. Foi concebido um instrumento comum paraa realização de entrevistas e para a observação das condições de funcionamento dasescolas pesquisadas. Os alunos distribuíram-se em equipes responsáveis pela coleta dedados em uma unidade escolar, onde foram entrevistados: 1 membro da equipedirigente, 2 professores e 2 alunos. Os dados foram classificados e analisados,permitindo uma apreciação acerca de diferentes iniciativas da política estadual. Estainvestigação coletiva foi objeto de uma segunda aplicação dois anos depois (2001/1),quando novas turmas voltaram à escola, com o objetivo de captar o andamento dasinovações propostas e identificar a presença de novas iniciativas..

O estudo Profissão – Pedagogo (1999/2), foi concebido a partir de um interesseinstitucional – a reforma curricular do Curso de Pedagogia da UECE, articulando-secom o trabalho desenvolvido pela comissão de reforma curricular. Valendo-nos daexperiência adquirida no semestre anterior, propusemos a iniciativa do estudo que foiacatada e compartilhada por diversos colegas do curso4. O estudo envolveu entrevistascom 51 alunos e 47 egressos do curso de Pedagogia, 31 diretores de escola e 8instituições empregadoras não-escolares. As informações resultantes das entrevistascom alunos e egressos foram sistematizadas e analisadas no âmbito das turmas sobnossa responsabilidade. Posteriormente, o Banco de Dados passou a constituir-se comoobjeto de estudo de um conjunto de docentes ligados ao Grupo de Pesquisa Formaçãode Professores, da referida universidade. Algumas oficinas de pesquisa foram realizadassob nossa coordenação que resultaram em ensaios sobre os dados referentes à formaçãode alunos e egressos, tendo os trabalhos sido apresentados em eventos de divulgaçãocientífica na área de educação.

3 Maria Gláucia Menezes de Albuquerque.4 Participaram também da iniciativa os colegas professores: Josete de Oliveira Castelo Branco Sales, Lia Matos Britode Albuquerque, Maria de Jesus Oliveira, Maria Gláucia Menezes Teixeira Albuquerque, Maria Marina DiasCavalcante e Rita de Cássia Barbosa Paiva Magalhães.

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O estudo Profissão – Professor de Língua Estrangeira (1999/2), foi concebidono âmbito da disciplina Enfoques em Formação de Professores em LínguasEstrangeiras, do Curso de Mestrado em Linguística Aplicada (CMLA), da UECE(1999/2), tendo contado com a participação de três mestrandos5. O trabalho envolveuentrevistas com 18 professores de língua estrangeira (inglês e francês). As informaçõescoletadas na pesquisa foram aprofundadas como trabalho final da disciplina.Posteriormente, os trabalhos foram transformados em objeto de Sessão de ComunicaçãoCoordenada de evento científico da área de lingüística6. Esta foi a primeira apresentaçãopública da experiência da pesquisa em sala de aula. Os trabalhos apresentados pelosalunos foram: Identidade e Histórias de Vida; Imagens sobre o Magistério e a FormaçãoDocente; e, O Trabalho e a Prática em Sala de Aula. As informações do Banco deDados foram colocadas à disposição do curso e estão sendo aprofundadas em umadissertação de mestrado.

A partir dessas três iniciativas, propusemos à coordenação das disciplinas depesquisa do curso de pedagogia da UECE que o projeto coletivo de investigaçãopassasse a constar da experiência dos alunos de graduação, como atividade regular dadisciplina Pesquisa Educacional. Assim, com a colaboração de duas colegas 7,realizamos o estudo Profissão – Professor de Ensino Fundamental, no âmbito das trêsturmas sobre o assunto do referido curso. A coleta de dados resultou em 163 entrevistascom professores de 1ª, 5ª e 8ª séries de escolas públicas e privadas de ensinofundamental. Cada professor trabalhou as informações na esfera de abrangência de suaturma, coordenando o trabalho de coleta, registro, análise e apresentação deinformações. Alguns dos trabalhos produzidos pelos alunos foram apresentados emEncontro de Iniciação Científica da UECE (novembro/2000). O Banco de Dadosresultante está sendo aprofundado em um projeto de iniciação científica sob nossacoordenação, devendo resultar em estudo sobre o conjunto das entrevistas realizadas.

No segundo semestre letivo de 2000 foi realizada nova coleta de dados com focode aprofundamento na profissão do Professor de Ensino Médio (2000/2), quando foramentrevistados 80 professores de escolas públicas e particulares de ensino. Oprocedimento adotado neste estudo foi semelhante aos demais, sendo que asinformações decorrentes do último levantamento apresentaram uma dimensão decontinuidade, uma vez que utilizou-se um instrumento comum. Assim, tanto serápossível agregar todo o material, como realizar incursões específicas, analisando asespecificidades de cada segmento.

5 Ana Maria Mota Paz, Henrique Sérgio Beltrão de Castro e Paulo José Andrelino.6 XVIII Jornada de Estudos Lingüísticos do Nordeste (GELNE), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 03 a06/09/2000.7 Tânia Maria Leal Barbosa e Lia Matos Brito de Albuquerque.

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Esta é, em síntese, a proposta que, para efeitos de sistematização, denominamos:pesquisa em sala de aula. Temos, em mãos, os instrumentos de orientação de trabalho,registros fotográficos, avaliações de alunos, bem como os produtos resultantes dosensaios – resumos, comunicações, artigos – e os Bancos de Dados elaborados ao longoda experiência. Esperamos que a socialização desta iniciativa seja um convite a que, emfuturo próximo, outros colegas venham compartilhar o prazer de ser feliz nauniversidade através de um trabalho onde todos aprendem. E, assim, quem sabe, abrirum caminho para que iniciativas semelhantes venham a se realizar, contribuindo para ainovação didática e a construção de novas práticas formativas na universidade.

BIBLIOGRAFIA

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BOGDAN, Robert e BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: umaintrodução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994.

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HERNANDÉZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos detrabalho. Porto Alegre, Artes Médicas, 1998.

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