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Martha Tupinamb de Ulha

PERTINNCIA E MSICA POPULAR EM BUSCA DE CATEGORIAS PARA ANLISE DA MSICA BRASILEIRA POPULARMartha Tupinamb de Ulha

Uma das questes centrais do estudo da msica popular refere-se pertinncia de categorias de anlise. Os parmetros de avaliao esttica privilegiados no estudo da msica erudita nem sempre se ajustam ao estudo da msica popular. Essa uma das motivaes que nos levaram tentativa interdisciplinar de experimentar uma metodologia que possibilite ampliar a competncia interpretativa para alm dos significantes musicais mais bvios e contaminados pelo senso comum. Para tal, so empregados procedimentos estatsticos da tcnica de anlise de contedo, utilizada nas cincias sociais, para inferir os valores culturais subjacentes s manifestaes estticas a partir da escuta. As premissas filosficas so o conceito de pertinncia, como utilizado por Gino Stefani,1 e o modelo de comunicao musical de Eero Tarasti.2 De acordo com Stefani, o conceito de pertinncia foi desenvolvido por Luis Prieto, na fonologia, para classificar o que importante para os falantes de uma lngua, ou seja, os traos e contrastes vlidos, aspectos que so levados em considerao e significam alguma coisa para os sujeitos, em oposio a aspectos ignorados. O que pertinente ou no diz respeito no aos sons manifestos, mas ao uso especfico que se faz deles. A pertinncia no campo da msica seria, portanto, a identidade sob a qual um membro de um grupo sonoro conhece um fato musical.3 Pertinncia tem a ver no com o significante, ou o evento sonoro, mas com o ponto de vista sob o qual ele vem considerado pelos seus usurios normais.4 Tudo

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Stefani, G., Introduzione alla semiotica della musica, Palermo: Sellerio, 1976. Tarasti, E., A theory of musical semiotics., Bloomington: Indiana University Press, 1994. Blacking, J., Music, culture and experience, in: Music, culture & experience. Selected papers of John Blacking, ed. Reginald Byron, Chicago: University of Chicago Press, 1995. A noo de grupo sonoro faz parte da estratgia de pesquisa de John Blacking. Um grupo sonoro um grupo de pessoas que compartilha uma linguagem musical comum, junto com conceitos sobre msica e seus usos. Os grupos sonoros podem transcender grupos lingsticos e classes sociais (p. 232). Pressupem dois modos de discurso que, dialeticamente relacionados, revelam como as pessoas pensam sobre msica: um modo verbal, incluindo falas de pessoas que tocam, escutam e compartilham msica, incluindo pesquisadores e acadmicos; e um modo no-verbal, de prtica musical enquanto um processo de conhecimento (p. 231). Stefani, op. cit., p. 56.

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vai depender dos critrios de identificao do evento sonoro, de que princpio ou tipo de cdigo est sendo utilizado como referncia para emitir uma apreciao ou conduzir a anlise. imprescindvel, portanto, tomar contato com as categorias de avaliao empricas para, ento, identificar as classes e nveis de cdigo que regem tais avaliaes. De um lado, a expresso musical e, de outro, os cdigos culturais que a tornam pertinente. Os princpios tomados como referncia para emitir juzos de valor que so a chave das regras para a produo do discurso e, portanto, para os cdigos culturais que regem as estruturas de comunicao e significao variam de cultura para cultura, entre nveis culturais (eruditos, populares, folclricos), e at mesmo de gnero para gnero dentro de uma mesma cultura. Para poder descrever as caractersticas esttico-musicais dos principais gneros de msica brasileira popular (msica sertaneja, rock brasileiro, MPB termo que identifico abaixo e msica romntica), necessrio identificar os critrios de avaliao utilizados pelos usurios de cada gnero.5 Essa metodologia de coleta e anlise de dados foi sendo desenvolvida empiricamente e, at o momento, consolidou-se em dois estgios. O primeiro consiste na identificao da pertinncia funcional estsica (as categorias de avaliao emic, ou seja, o que valorizado por ouvintes qualificados especialistas, entusiastas e fs do gnero a ser estudado); o segundo, na identificao da pertinncia musical estsica (os parmetros musicais etic, ou seja, os elementos musicais correspondentes).6 Assim, no universo da msica sertaneja, voz significa o estilo vocal dos cantores e vrios parmetros descritivos (guturalidade, nasalidade, tessitura, impedncia etc.); no rock, som refere-se a questes de timbre e textura. Para a MPB ainda no surgiu um conceito-chave. Criatividade e melodia rica, em oposio a estilo brega e som repetitivo, dizem respeito a um sistema de convenes ligadas ao arranjo e interpretao.

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A noo de gnero segue a formulao de Franco Fabbri (A theory of musical genres: two applications in: Horn, D. e Tagg, P., eds., Popular music perspectives, Gothenburg e Exeter: IASPM, 1982:pp.52-81): um gnero musical seria um conjunto de eventos musicais cujo curso governado por um conjunto definido de regras aceitas. Fabbri enumera regras formais e tcnicas; semiticas (baseando-se nas funes comunicativas referencial, emocional, imperativa, ftica, metalingstica e potica apontadas por Roman Jakobson); comportamentais; sociais e ideolgicas; econmicas e jurdicas. Ele baseia-se na teoria dos conjuntos da matemtica, na qual se admite no s a noo de subconjuntos (ou subgneros), como todas as operaes de interseo, unio e complementaridade entre eles. Neste caso, de acordo com certas regras sociais e ideolgicas (como a identificao com um grupo sonoro especfico), dependendo de quem o est cantando, um samba pode ser considerado como samba ou como MPB. Ver meu artigo A anlise da msica brasileira popular, Cadernos do colquio 1, 1999, pp. 61-68.

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A pesquisa tem carter ainda exploratrio, tanto em termos de mtodo quanto de teoria. Nessa fase, buscamos categorias gerais, ou seja, cada uma das classes em que se dividem as idias avaliadoras pertinentes para cada gnero. Posteriormente, para o estudo interpretativo-semitico, ser necessrio um nmero maior de anlises em repertrio especfico. A inspirao terica foi buscada na semitica da msica, na proposta de Gino Stefani da semiose e pertinncia como plano para uma semitica musical, e nas formulaes de Eero Tarasti sobre a lgica do discurso musical. Segundo a proposta de Stefani, a semitica musical seria um sistema ou disciplina que fundamenta a crtica musical. Estaria subdividida em dois planos, um relacionado prpria msica, compreendendo tanto significantes quanto significados estritamente musicais, e outro que trataria de uma competncia musical mais ampla e geral, discutindo os cdigos culturais, retricos e ideolgicos como critrios de pertinncia. Tarasti prope um modelo de comunicao musical com dois nveis, um manifesto e outro imanente. O discurso musical encontra-se, por um lado, entre os modelos manifestos de comunicao musical, buscados nos conceitos e normas de avaliao esttica (modelos ideolgicos) e nas regras para a produo do discurso (modelos tecnolgicos). Por outro lado, a lgica do discurso musical no nvel imanente acha-se entre estruturas de comunicao, ou seja, nos mecanismos disponveis para o compositor comunicar idias musicais e nas estruturas de significao particulares nas quais as idias se concretizam. No estgio atual da pesquisa, examinamos somente os conceitos e normas de avaliao, ou seja, os traos ou oposies pertinentes para a interpretao da msica popular. Deixamos para outro projeto a elaborao e teste de um modelo de anlise mais completo. Mas vamos aos dados. Como exemplo tomaremos a MPB, gnero que investigamos no momento. Enquanto prtica musical, a MPB emergiu do samba urbano carioca das dcadas de 30 e 40, agregou outros ritmos regionais, como o baio, nos anos 1950, passou pela bossa nova, tropicalismo e festivais da cano nos anos 1960, para consolidar-se enquanto categoria na dcada de 70. Na MPB fundamental a problemtica da nacionalidade, como diz Jos Roberto Zan. Num primeiro momento, quando o samba se converte em smbolo da brasilidade, a noo de nao central para a mediao dos conflitos entre o Estado e as massas urbanas; posteriormente, quando se traz para o campo da cano o engajamento esttico do modernismo, rompe-se com a hegemonia do samba. quando a vanguarda tropicalista assume posturas de autocrtica e abre espaos para novas misturas e novas hierarquias; depois do tropicalismo vale tudo (samba, rock, reggae etc.) na MPB.7

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Zan, J. R., Do fundo de quintal vanguarda, Tese de Doutorado em Sociologia, Campinas: UNICAMP 1997. ,

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Em estudos anteriores,8 tenho discutido a MPB como uma subcategoria da msica popular, inscrita no campo simblico da msica no Brasil, em interao com a msica erudita e a msica folclrica. Esses estudos tiveram como inspirao a perspectiva sociolgica desenvolvida por Pierre Bourdieu para a investigao da cultura simblica no que chama de espao social.9 Bourdieu trata do aparecimento das hierarquias de legitimidade que se estabelecem nos campos de produo cultural. No caso da Frana, seu foco de estudo, as hierarquias estruturam-se a partir da alta cultura (configurando um campo de produo restrita) e da indstria cultural (configurando o campo da grande produo). A perspectiva de Bourdieu foi adaptada aos estudos da cultura no Brasil, sendo que analistas como Srgio Miceli10 consideram que aqui esse espao social deve ser ocupado tambm pelo que chamam de cultura rstica. O que importante destacar que nesse modelo a cultura considerada a partir da sua produo. A proposta atual move o ngulo epistemolgico de uma tendncia sociolgica para uma aproximao mais antropolgica, passando a considerar como pertinente a escuta dos usurios normais de MPB, ou seja, seus fs. O elemento complicador aqui que MPB um termo problemtico, utilizado tanto por um grupo sonoro restrito que distingue a linha evolutiva mencionada acima quanto pela indstria musical, que incorporou a rubrica para referir-se a um segmento do mercado, de considervel prestgio apesar do retorno comercial reduzido. Pretende ser um termo guarda-chuva e por isto aparece de forma bastante heterognea e hbrida nas respostas ao questionrio sobre o gnero. De fato, a noo de msica brasileira popular subjacente s respostas ao questionrio traz no seu cerne a ambigidade da noo de popular brasileiro, ligada tanto a um certo tipo de raiz cultural quanto totalidade dos brasileiros que produzem e consomem msica no Brasil.11 Foram aplicados 308 questionrios a pessoas que se autodenominavam fs de MPB. Os questionrios foram conduzidos por alunos de Histria da Msica Popular Brasileira do Instituto Villa-Lobos da UNIRIO, no segundo semestre de 1997. Foram feitas quatro perguntas bsicas: 1) indique trs artistas da MPB que aprecia e 2) diga porque; 3) indique trs artistas da MPB de que no gosta e 4) diga porque.

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Em especial meu trabalho de doutoramento pela Cornell University de 1991, intitulado: Msica popular in Montes Claros, Minas Gerais, Brazil: a study of middle-class popular music aesthetics in the 1980s (como Carvalho, Martha de Ulha), e tambm nos textos Nova histria, velhos sons. Notas para ouvir e pensar a msica brasileira popular, Debates 1, 1997, pp. 78-101, e Chiclete com bananas Us and the other in Brazilian popular music, Musical cultures of Latin America: Global effects, past and present, Los Angeles: UCLA, 27-30 de maio de 1999 (no prelo). Principalmente seu Distinction A social critique of the judgement of taste, trad. Nice, R., Cambridge: Harvard University Press, 1984. Ver em especial A noite da madrinha, 2. ed., So Paulo: Perspectiva, 1982. Discuto esta questo em Nova histria, velhos sons... (op. cit.).

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Esses dados, que nos deram acesso estese funcional, foram artesanal e coletivamente explorados em sala de aula. De seu exame preliminar, foram selecionadas algumas frentes de trabalho ou portas de entrada, como diria Canclini;12 uma delas, de natureza tcnico-musical, identifica no nvel da expresso ou significante as categorias para anlise de repertrio. Estas categorias o correspondente estsicomusical da escuta funcional eram trs, no caso do gnero MPB: 1) a composio, compreendendo melodia e letra requisito mnimo para a identificao de uma cano; 2) o arranjo, incluindo formao instrumental, ritmo, harmonia, e forma; 3) a interpretao, abrangendo a competncia e postura do msico e seu estilo vocal.13 Esse modelo tecnolgico, ou seja, as regras para a produo do discurso musical na MPB, est sendo avaliado nas classes de anlise da cano e por bolsistas de iniciao cientfica. A outra porta de entrada desse mundo artstico de natureza semntica. Ou seja, qual o significado da MPB para seus ouvintes qualificados? Essa uma empreitada delicada pelo fato de a MPB ser um gnero hegemnico entre pesquisadores e pesquisados. Fica muito difcil provocar uma ruptura epistemolgica em relao a prticas do nosso prprio cotidiano expressivo, aceitar que artistas e canes que so nossos possam ser apropriados e ter significados diferentes para pessoas de trajetrias diversas; ou aceitar que o que consideramos pertinente para avaliar essa ou aquela prtica irrelevante para outra pessoa. Da a tentativa de tratamento sistemtico das manifestaes dos fs. As respostas ao questionrio foram digitadas em um banco de dados, do qual pudemos utilizar 298 registros. Antes de mais nada, preciso lembrar que nosso interesse no um estudo de recepo em termos de popularidade, mas no sentido de explorar o terreno para a obteno de indcios de cdigos que possam levar a uma maior compreenso do gnero em estudo. Foi explicado aos alunos que aplicaram os questionrios que a condio mais importante na seleo dos entrevistados, era que as pessoas se considerassem fs de MPB. Ou seja, no se estava buscando uma sub-cultura ou grupo social no sentido dado pelos estudos culturais, mas um grupo sonoro, pessoas que se identificavam com MPB, no esprito da etnomusicologia de Blacking. No quadro 1, aparecem os totais parciais para grupos de idade, sexo e escolaridade.

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Canclini, N. G., Culturas hbridas estratgias para entrar e sair da modernidade, trad. Lessa, A. R. e Cintro, H. P., So Paulo: Edusp, 1997. Na cano popular industrializada, exceo de melodia e letra (ainda assim com certa liberdade na utilizao da totalidade ou de parte da melodia ou da letra), tudo pode ser modificado sem comprometer a identidade da cano enquanto composio, mas no enquanto gnero. Artistas MPB consagrados, como por exemplo Caetano Veloso, tm freqentemente gravado canes de gneros depreciados pela crtica, sendo que suas verses ganham em prestgio e valor esttico.

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Grupos de idade 13-18 = 52 19-29 = 113 30-45 = 83 46 + = 47

Sexo M = 161 F = 137

Escolaridade Sem escolaridade = 6 Primeiro grau = 45 Segundo grau = 116 Terceiro grau = 134

Quadro 1 = Totais parciais para grupos de idade, sexo e escolaridade

Houve um predomnio de homens da faixa etria de 19 a 29 anos e do nvel de escolaridade universitria. Observe-se que a MPB, surgida nos festivais de msica popular nos anos 60, bastante difundida nos meios universitrios. Essa tendncia acentua-se no item das profisses: dentre as 61 profisses declaradas, h um grande nmero de estudantes (23% do total) e professores (10 %). Esse um fator complicador, uma vez que a amostragem no suficientemente proporcional em termos de distribuio das condies sociais dos sujeitos. Tanto que nenhuma das variveis independentes (idade, sexo, escolaridade e profisso) parece ser determinante da preferncia por MPB (varivel dependente). Nas regresses, que analisam a relao entre as variveis, o resultado (identificado como R-quadrado ajustado) indica ajuste muito fraco entre as variveis, como se pode ver no quadro 2.14Todas as variveis Estatstica de regresso R mltiplo 0,19876 R-quadrado 0,03951 R-quadrado ajustado 0,02639 Erro padro 0,05802 Observaes 298 Idade Estatstica de regresso R mltiplo 0,058565 R-quadrado 0,003430 R-quadrado ajustado 0,000063 Erro padro 0,058795 Observaes 298 Profisso Estatstica de regresso R mltiplo 0,024740 R-quadrado 0,000612 R-quadrado ajustado 0,002764 Erro padro 0,058878 Observaes 298 Escolaridade Estatstica de regresso R mltiplo 0,151654 R-quadrado 0,022999 R-quadrado ajustado 0,019698 Erro padro 0,058215 Observaes 298 Sexo Estatstica de regresso R mltiplo 0,127242 R-quadrado 0,016191 R-quadrado ajustado 0,012867 Erro padro 0,058418 Observaes 298

Quadro 2 - Resultados de regresses dos dados sociolgicos do questionrio

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Regresso a ferramenta estatstica que aponta o poder de explicao que uma varivel tem na explicao do comportamento de uma populao ou amostra. O R-quadrado, em uma anlise de regresso linear simples, um valor que mede como a varivel independente pode explicar variaes na varivel dependente. Seu valor situa-se entre 0 (ajuste fraco) e 1 (ajuste perfeito). Downing, D. e Clark, J., Estatstica aplicada, So Paulo: Saraiva, 1999, p. 297. Agradeo a Eduardo Henrique Garcia a consultoria da parte estatstica e processamento dos dados no programa Microsoft Excel.

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Muitas hipteses podem ser levantadas a partir disto, sendo a primeira, obviamente, considerar que a amostragem no foi suficiente e nem foi estatisticamente preparada para tal. Mesmo assim, surgem perguntas como: 1 A teoria do capital cultural de Bourdieu no seria inadequada para o estudo da recepo de MPB? Para esse autor: hierarquia das artes socialmente reconhecidas, e dentre cada uma dessas artes, de gneros, escolas e perodos, corresponde uma hierarquia social dos consumidores.15 Como aceitamos como verdade a autodenominao de fs de MPB, ou seja, de que as pessoas tinham familiaridade com um capital cultural restrito que muitas vezes no possuam (ao indicar artistas e gneros que so reconhecidos no senso comum como fora do mbito da MPB), seria uma boa hiptese esperar que estas inconsistncias fossem aparecer correlacionadas s diferenas de categorias sociolgicas (escolaridade, profisso, idade, sexo). Afinal, por suas caractersticas musicais, histricas e sociais, sucessos comerciais como o do palhao Tiririca, dos grupos de pagode pop ou da msica sertaneja so muito diferentes musical e esteticamente do repertrio dos grandes cancionistas, que nessa mesma amostragem aparecem estatisticamente no topo das citaes positivas, como veremos abaixo. 2 Ou ser que esse repertrio de prestgio to restrito assim? Neste caso, a MPB como msica brasileira, de qualidade, no seria uma construo ideolgica de grupos em incurso no campo da grande produo na tentativa de se diferenciar e se atribuir uma marca de classe?16 Como comenta Jos Roberto Zan em comunicao pessoal sobre este trabalho:Parece-me necessrio considerar a noo de hegemonia. O fato das respostas relativas MPB se apresentarem de forma pouco lgica no estaria expressando a condio hegemnica desse segmento (gnero) no mercado? Quem ousaria neglo? Ao invs de neg-lo, no seria mais cmodo ampli-lo? Incluir na categoria MPB o seu artista (ou cano) preferido numa tentativa de dar legitimidade ao seu gosto (ou escolha)?17

3 O campo de produo simblica da MPB muito heterogneo ou muito novo para comportar esse tipo de anlise. Bourdieu analisou um campo cultural bastante estvel e, no caso do romance, estudou-o ao longo de um perodo longo de tempo.18

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Bourdieu, op. cit., p. 2. Ibid. Zan, J. R., e-mail em 20 de maro de 2001. Bourdieu, P., As regras da arte-gnese e estrutura do campo literrio, trad. Machado, M. L., So Paulo: Cia das Letras, 1996.

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Passando para as respostas sobre os artistas considerados mais ou menos MPB, aparecem mais confirmaes da aparente falta de ordem, como podemos ver no grfico abaixo.0 Caetano Veloso Chico Buarque Djavan Milton Nascimento Tom Jobim Gilberto Gil Marisa Monte Roberto Carlos Pagode Gal Costa Legio Urbana Samba Skank Ivan Lins Choro Maria Betnia Bossa Nova Paralamas do Sucesso Hermeto Pascoal 20 40 60 80

Grfico 1 - Artistas mais conceituados

Entre os artistas considerados mais MPB (foram considerados aqueles que aparecem com mais de 1% de citaes, ou seja, que tenham sido mencionados mais de 10 vezes em todo o questionrio), aparecem tanto os cancionistas de prestgio (como Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Djavan) quanto artistas e gneros de avaliao ambgua. o caso de Roberto Carlos, citado nos campos opostos, como representante da MPB e como exemplo de m MPB. Isto pode ser um indcio de que Roberto Carlos, por muitos considerado apenas como um artista de sucesso, vai aos poucos adquirindo prestgio pelo envelhecimento e pelo tempo em que se mantm nas paradas. Alis, esta particularidade confirma a observao de Bourdieu sobre a disputa por posies na gnese e estrutura dos campos simblicos. Segundo o autor, artistas de legitimao consolidada podem trafegar em outros campos.19 Assim como o samba era considerado popularesco pelos porta-vozes da cultura hegemnica nos anos 1930, e se tornou representao de autenticidade, Roberto Carlos

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Ibid.

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vai aos poucos conseguindo respeito de vrios artistas da MPB, que tm inclusive gravado seu repertrio. As respostas apontam indiscriminadamente artistas e gneros. Dos artistas (e gneros) mais rejeitados, aparecem entre os citados mais de 10 vezes o pagode, o funk, o palhao Tiririca, o grupo de pagode Gerasamba (que depois ficou conhecido como o tchan), a msica sertaneja (outro gnero, aqui na sua verso pop romntica), Roberto Carlos novamente, o rock, Wando (um artista conhecido por suas letras ertico-sentimentais), Xuxa, msica baiana (ou seja a ax music) etc.Pagode Funk Tiririca Gerasamba Msica Sertaneja Roberto Carlos Rock Wando Gabriel o pensador Claudinho e Bochecha Falco Leandro e Leonardo Planet Hemp Chitozinho e Xoror Rap Xuxa Elymar Santos Maurcio Mattar Msica baiana Raa Negra 0 20 40 60 80

Grfico 2 - Artistas mais rejeitados

Agora surge a parte mais instigante em termos metodolgicos. Sempre tive muita resistncia em fazer estudos estatsticos, por consider-los desnecessrios quando tivesse acesso a algum tipo de contato etnogrfico. S que as respostas dos questionrios sobre as razes pelas quais as pessoas aceitavam ou rejeitavam o prestgio de um artista de MPB eram extremamente subjetivas. Por isto adotamos a tcnica de anlise de contedo, que consiste em fazer um inventrio dos elementos e depois agrup-los atravs de uma classificao analgica e progressiva.20

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Bardin, L., Anlise de contedo, Lisboa: Edies 70, 1977.

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As respostas foram inicialmente subdivididas em duas colunas. Na primeira, alocamos as manifestaes relacionadas com o significante e, na segunda, com o significado. A coluna dos significantes, ou seja, que agrupa as respostas relacionadas com a msica, letra e interpretao de MPB, foi deixada de lado, pois j havia indcios suficientes para sugerir um modelo tecnolgico. No entanto, em relao MPB, sentimos a necessidade de experimentar, ir alm das aparncias expressas. uma tentativa de inferir os cdigos subjacentes expresso explcita. Com esse objetivo, foi feita uma segunda anlise dos dados para o estabelecimento dos termos para anlise, reunindo palavras idnticas, sinnimas ou prximas em termos semnticos. Tanto para as unidades de significao positivas quanto para as unidades de significao negativas, os grupos esto classificados de maneira decrescente segundo a incidncia de respostas. Para as unidades de significao positiva, o conceito 31 agrupa as respostas relativas ao significante ou ausncia de resposta; 30 significa bom, beleza, bonito, maneira etc.; 29 est ligado a brasilidade, cultura, regionalismo; 28 a criatividade, versatilidade, originalidade; 27 a danante, balanado; 26 a mestre, completo, genial, grande, melhor. O conceito 25 mostra um erro grosseiro de tabulao inadequada dos dados. Alguns adjetivos que apareciam somente uma vez foram agrupados em outros. Infelizmente, a categoria ficou mais significativa que outras, como 23, ligada poesia e contedo potico. Em seguida, o conceito 22 significa suave, calmo; o conceito 21 significa alegre, descontrada, feliz; o conceito 20 energia, adrenalina (no sentido figurado de exaltao e estimulao), fora; o conceito 19 emoo, sensibilidade; o conceito 17 musicalidade; o conceito 14 qualidade etc. Posteriormente, as respostas em relao aos artistas foram relacionadas com os conceitos e chegou-se ao resultado apontado no grfico 3. Os nmeros de 20 a 30 apontam o eixo dos conceitos. No mostram uma hierarquia, mas uma distribuio no espao semntico. Nota-se que alguns dos artistas que compem o grupo de maior prestgio na MPB, como apareceram na pesquisa, esto em torno do eixo 26, ou seja, so considerados completos, grandes, maior, mestre. A maioria das referncias esto entre 24 (romantismo) e 28 (criatividade) passando pelo malfadado outros, por mestre e por danante. Vejamos agora os resultados referentes s razes pelas quais fs de MPB rejeitam certos artistas. O conceito 27 significa chato, desagradvel; 26 significa pobreza, fracas, pouco elaborada; 25 repetitivo, no transforma; 24 comercial, sintetizado, clichs; 23 apelao, vulgaridade; 22 brega, cafona; 21 significa, novamente, o esdrxulo outros; 20 significa ruim, pssimo; 19 sem musicalidade; 18 atributos pessoais como sujeito nojento, obsceno, bicha; 17 barulhento; 16 agrupa categorias relacionadas com a incompetncia do(s) msico(s), tais como maus cantores, sem integrao; 15 bobo, banal etc.

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Bossa Nova Maria Betnia Gal Costa Ivan Lins Caetano Veloso Marisa Monte Tom Jobim Chico Buarque Milton Nascimento Gilberto Gil Pagode Djavan Hermeto Pascoal Samba Roberto Carlos Paralamas do Sucesso Legio Urbana Skank Choro 20 22 24 26 28 30

Grfico 3 - Conceito positivo

Vejamos a qualificao negativa dos sujeitos. Novamente, preciso lembrar que o eixo numrico representa um campo semntico e no uma escala de valores (grfico 4). Os atributos negativos mais representativos para o modelo de avaliao esttica dos sujeitos perguntados se agrupam entre 20 (ruim), 21 (outros), 22 (brega), 23 (apelativo) e 24 (comercial). Com essas categorias pode-se passar para a prxima etapa, ou seja, classificar tanto as unidades de significao positivas quanto negativas para criar uma ordem suplementar, com o objetivo de evidenciar os cdigos subjacentes que permitam inferir estruturas de significao. Os resultados para este grupo (ainda no houve tempo para analisar os dados estatisticamente, estabelecendo a relao entre capital cultural e avaliao esttica) indicam uma admirao e respeito por certos artistas, bem como

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Msica baiana Leandro e Leonardo Msica Sertaneja Wando Gerasamba Claudinho e Bochecha Falco Gabriel o pensador Funk Tiririca Pagode Elymar Santos Raa Negra Xuxa Roberto Carlos Chitozinho e Xoror Planet Hemp Rock Maurcio Mattar Rappa 14 16 18 20 22 24 26

Grfico 4 - Conceito negativo

por sua criatividade, e alto grau de rejeio do brega e apelativo. O banco ter que ser tabulado novamente para ver se possvel encontrar respostas mais significativas. Em relao aos artistas da MPB, os resultados confirmam, em parte, algumas das colocaes de Bourdieu, em especial a questo da legitimidade e consagrao artstica nos campos de produo restrita e da grande produo. O problema que, mesmo identificando campos de produo restrita e de grande produo na msica brasileira, fica difcil afirmar que o mercado simblico brasileiro seja unificado. Outra dificuldade conseguir agrupar, a partir de categorias funcionais to hbridas como as que aparecem no questionrio, os nveis de cdigo que regem as estruturas de significao do gnero. Com certeza, o consumo diferenciado e deve haver algum tipo de lgica nessas respostas heterogneas, se aceitamos a idia de que um grupo sonoro compartilha uma msica que o identifica e expressa.

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