Pertencer Ou Não Pertencer Ao Círculo - Narrativas Do Exílio Em Milan Kundera

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Narrativas do exílio

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PERTENCER OU NÃO PERTENCER AO CÍRCULO: NARRATIVAS DO EXÍLIO

EM MILAN KUNDERA

Maria Veralice Barroso

(Doutoranda – UnB/Brasília)

Rosimara Richard

(Mestre – UnB/Brasília)

RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar, a partir dos romances O livro do riso e do

esquecimento e A ignorância, de Milan Kundera, o quanto o autor se nutre de sua condição de

sujeito histórico para compor suas personagens e testá-las no universo ficcional que, em nossa

concepção, é marcado de maneira significativa pela experiência de vida do autor, em especial,

por sua experiência de exilado. Para tanto, procuramos pelo sentido do autor-narrador-

personagem desenvolvido pelo escritor ao longo das duas obras escolhidas.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Autor-narrador-personagem. Exílio.

Um breve histórico

Assim como muitos outros artistas tchecos, Kundera envolveu-se na Primavera

de Praga, de 1968, período de otimismo, que acabou em agosto do mesmo ano, com a

invasão soviética. Tendo sua obra proibida na então Tchecoslováquia, no ano de 1975,

Kundera deixa seu país rumo à França, porém, tornando-se cidadão francês somente nos

anos 80. A partir desse acontecimento, boa parte da produção do escritor passou a

apresentar, de modo profundo, reflexões sobre as marcas que ficam no sujeito, que se vê

dominado pela angústia, frente a trágicas experiências adquiridas durante períodos

revolucionários, como o que assombrou seu país e marcou o século XX.

Lançado ainda nos anos setenta, O livro do riso e do esquecimento é o primeiro

romance kunderiano publicado em solo francês. Nele pode-se observar, além de um

amadurecimento substancial do autor, em relação aos escritos iniciais, a maneira como a

solidão e as angústias são traduzidas para a ficção. As situações apresentadas no curso

da narrativa têm como pano de fundo os fatos ocorridos em Praga e experienciados pelo

autor, que vivera na cidade até ser “forçado” a deixar o país.

Um pouco mais de duas décadas depois, em A ignorância, Kundera novamente

se ocupa com as reflexões sobre o exílio, mas desta vez demonstra uma preocupação em

narrar outro tipo de experiência vivida por aquele que se viu obrigado a se afastar do

convívio com suas raízes: a experiência do retorno.

Se, em O livro do riso e do esquecimento, Kundera, como afirma Wladimir

Krysinski (2007, p.79), extrapola as leis da ficção, quando mais uma vez elabora uma

metaficção mediada, sobretudo, pelo princípio poético versus princípio da realidade, em

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A ignorância, persistindo nesse código semântico, o autor faz digressões sobre o que

poderia ser seguramente o seu “grande retorno” à terra natal, depois da queda do regime

soviético.

As duas narrativas constituem-se em uma espécie de epopéia em que os (anti)

heróis vivem, por um lado, a dor e a solidão da brusca separação, bem como a angústia

diante do esmaecimento de suas lembranças e referências, e, por outro, tomam

consciência da condição permanente de estranhos, de estrangeiros. Assim, quando nos

diz que, “embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heróicos,

românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais que

esforços para superar a dor mutiladora da separação” (2003, p. 46), Edward Said

expressa, de modo singular, aquilo que Kundera, por meio de suas representações

literárias, nos leva a perceber diante das duas narrativas escolhidas para análise.

Cientes de que os romances de Milan Kundera comportam um jogo

metaficcional mediado singularmente pela tensão dicotômica: realidade versus ficção.

Acreditamos que, antes de voltar nosso olhar em direção às duas obras escolhidas para

análise, seria válida uma discussão acerca do autor-narrador-personagem desenvolvido

ao longo dos romances kunderianos.

Realidade versus ficção/ autor versus personagem/ vida versus obra

Na obra de Milan Kundera, o que nos primeiros romances trata-se apenas de

pequenas interferências do pensamento e das opiniões do autor, mais adiante se

configura em presença física. Kundera parece não mais se contentar com as

manifestações tímidas, as quais parecem não contemplar as necessidades de expressão

da voz que escreve. A insatisfação em permanecer fora do romance se evidencia quando

o sujeito Kundera cria um espaço para si dentro da narrativa, fazendo-se presença

concreta no corpo do texto. Ao se personificar no texto, ele se identifica enquanto autor

e, de certa forma, deixa ao leitor a impressão de que pode estar dizendo: “sou eu Milan

Kundera quem vos fala”. Esta estratégia é utilizada pelo escritor para desenvolver suas

reflexões de modo direto, reforçando o vínculo entre narrador e autor, já que é

aparentemente ele mesmo (o escritor) que se dirige ao leitor.

De acordo com o professor e pesquisador da obra de Milan Kundera, Wilton

Barroso, “O narrador kunderiano é um autor emancipado, inventa um espaço para si no

interior da narrativa, seu lugar é onde esta é interrompida, efeito que permite a

dissipação da ilusão realista e introduz uma reflexão realista sobre questões

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significativas da existência humana” (2008, p. 3). A construção estética dessa

modalidade de narrador aponta, sobretudo, para uma necessidade do escritor de

credibilizar aquilo que é dito, que é pensado, e que esse credibilizar passa

necessariamente pelo princípio adotado e gerenciado por Kundera ao longo de suas

narrativas: o princípio poético versus o princípio da realidade.

É certo que esse narrador autoral, ao se concretizar fisicamente no interior do

texto, é estetizado na e pela consciência criadora, sendo, portanto, elevado à condição

de personagem de criação ficcional. Mas é inegável que essa opção por narrar o texto

usando um narrador-autor e personagem, simultaneamente, não é inocente, constitui-se

em uma ação, um jogo articulado da voz que escreve. Ao jogar com oposições entre

vida e obra, o jogo narrativo elaborado estrategicamente pelo autor permite que a

narrativa adquira, perante o leitor, um teor de verdade, que vai além da verdade literária,

mas que também não pode ser confundida com uma verdade filosófica, ou com uma

confissão do autor.

Saramago nos diz que, “Um livro não está formado somente por personagens,

conflitos, situações”, “um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela

identificada da humanidade: o seu autor”, pois “o romance é uma máscara que esconde

e, ao mesmo tempo, revela os traços do romancista” (1998, p. 27). A partir dos

apontamentos de Saramago sobre a constatação da complexidade latente na tríade autor-

narrador-personagem, é possível refletir as duas narrativas escolhidas para análise, das

quais emergem as seguintes indagações: Até que ponto pode-se afirmar que as vozes

que falam no romance são ecos da voz que escreve? Até que ponto as experiências

pessoais do escritor se distanciam de sua escrita ou nela se traduzem?

A proximidade entre criador e criatura é tamanha nas narrativas kunderianas que

a leitura da obra, respeitando uma linha do tempo, permite, por exemplo, uma

demarcação precisa de pelo menos dois momentos distintos: o antes e o depois do

exílio.

A experiência de exilado, vivenciada enquanto sujeito histórico, pode ser

considerada um divisor de águas na escrita do romancista, pois embora toda a sua

narrativa esteja assentada sobre vários temas, os quais se repetem no curso da obra, há

uma diferença visível na abordagem e no tratamento desses mesmos temas nos

romances que antecederam o exílio, em relação àqueles escritos imediatamente após sua

efetivação. Isso pode ser notado no tratamento dos vários elementos estéticos que são

recorrentes na escrita de Kundera os quais precedem, inclusive, sua condição de

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exilado. Contudo, é notório que as perspectivas dadas a tais elementos se modificam

consideravelmente a partir de O livro do riso e do esquecimento, seu primeiro romance

pós-exílio.

O livro do riso e do esquecimento e o narrador autoral

O livro do riso e do esquecimento caracteriza-se, sobretudo, pela ausência de

uma continuidade narrativa, sendo composto por vários fragmentos de histórias

independentes, que se entrecruzam por meio dos sentidos oferecidos pelos temas

transversais, os quais vão sendo apresentados do início ao fim. A idéia de deslocamento

é algo que percorre toda a obra kunderiana, porém, nesse livro especificamente, as

narrativas são desprovidas de uma ambientação espacial, e essa ausência de um cenário

determinado parece reforçar ainda mais a sensação de leveza e de fluidez das

personagens, que flutuam num vazio desterritorializado e angustiante.

Tais elementos tornam-se donos de uma densidade subjetiva1, até então, jamais

vista no percurso da obra kunderiana, que passou a apresentar um tom bem mais intenso

e pessoal que de costume. A memória, por exemplo, é uma espécie de âncora utilizada

pelas personagens – inclusive pelo autor-narrador-personagem -, como meio de

preservação do eu, constantemente ameaçado de submergir ante a possibilidade do

esquecimento que, nesse caso, significaria a perda gradativa das raízes e das referências

identitárias. Da mesma forma, a sedução e o erotismo generalizados dos dons juans

podem ser entendidos como uma tentativa de reconstituição desse eu deslocado e

fragmentado, que vaga perdido numa busca desesperada de si mesmo.

Todorov, em seu livro O homem desenraizado, fala da desculturação para citar o

fenômeno vivido pelos exilados, na relação entre a cultura de origem e a cultura do país

de exílio. Segundo ele, a desculturação constitui-se na “degradação da cultura de

origem”, mas salienta que “ela talvez seja compensada pela aculturação”, isto é, pela

“aquisição progressiva de uma nova cultura” (1999, p. 25).

Para esse teórico, a perda de traços culturais, bem como a assimilação de outros,

se trata de um processo natural, que acontece gradativamente na convivência entre as

1 Nos dois livros posteriores, A insustentável leveza do ser e A Imortalidade, o teor subjetivo se mostra

com a mesma força. É como se essa fase do autor começasse com O livro do riso e do esquecimento e

encontrasse seu apogeu no romance A imortalidade. Essas três obras são seqüenciais e complementares.

O livro do riso e do esquecimento só parece encontrar uma “conclusão” - se é que se pode dizer que a

obra de Kundera tem um fechamento –, com A imortalidade.

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formas culturais. Nesse sentido, “o indivíduo não vive uma tragédia ao perder a cultura

de origem quando adquire outra” (Idem).

Em uma entrevista concedida a Philip Roth, em 1980, Milan Kundera se mostra

simpático à idéia de hibridismo presente no conceito de aculturação, desenvolvido por

Todorov. Na conversa com o crítico e romancista norte-americano de origem judaica2,

Kundera afirma que, “Para um escritor, a experiência de viver em vários países é uma

tremenda vantagem” e prossegue salientando que em seu romance, O livro do riso e do

esquecimento, assiste-se ao “encontro de dois mundos” (ROTH, 2008, p.102-103), um

encontro entre França e Praga e, mais precisamente, a França aos olhos de Praga.

Entretanto, as representações construídas ao longo de O livro do riso e do

esquecimento não são tão simples assim. O peso imediato do exílio, do deslocamento

obrigatório, parece não permitir uma instalação serena das personagens no universo em

que se encontram. Pensando na já mencionada afirmativa de Saramago sobre o romance

ser uma máscara que ao mesmo tempo esconde e revela os traços do romancista,

estamos autorizados a dizer que o próprio jogo literário criado por Kundera, de certa

forma, trai essa simplicidade transmitida, quando nos fala do processo de assimilação de

outra cultura.

Sendo assim, o que percebemos no curso das narrativas que compõem o

romance é uma latente sensação de desconforto com a situação de excluído, em terra

estrangeira, muito mais do que uma negociação dialogada entre as culturas de que nos

fala Todorov. Mesmo que mais adiante os traços da aculturação se reflitam em sua

escrita, temos que, nesse primeiro momento, é inteiramente ignorada enquanto

possibilidade do exilado. O que se assiste então, nesse romance, é a perigrinação do

deslocado em um processo de desculturação, narrado como um fenômeno angustiante,

experienciado até a exaustão pela personagem Tamina.

O livro do riso e do esquecimento é composto de sete partes independentes e, ao

mesmo tempo, dependentes. Em duas dessas partes os títulos se repetem: a quarta e a

sexta, que contam a história de Tamina. O narrador nos fala que o livro “É um romance

a respeito de Tamina e, no momento em que ela sai de cena, é um romance para

Tamina” (KUNDERA, 1978, p. 156-157). Assim, todas as outras histórias são variações

da história dessa personagem e se reúnem na vida dela como um espelho, por isso, os

temas trabalhados no livro são recorrentes.

2 Muitas das obras de Philip Roth trazem reflexões sobre os problemas de assimilação e identidade dos

judeus que vivem nos Estados Unidos.

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O autor também se vale de vários símbolos em seu processo de criação. Os

símbolos são palavras colocadas no lugar das coisas para dizer os que as coisas são. Por

isso, o significado de uma palavra, na obra de Kundera, é construído no decorrer da

narrativa. Um bom exemplo disso é a simbologia adquirida pela palavra círculo.

Expressão recorrente nos textos do autor e que, de modo geral, é utiliza para descrever a

noção de pertencimento a um grupo.

A personagem Tamina, juntamente com seu marido, fora colocada para fora do

círculo, e na tentativa de manter qualquer tipo de vínculo com suas raízes promove uma

busca frenética e solitária no intuito de trazer, da terra natal, as cartas e diários deixados

para trás. Neles estão descritos os 11 anos de sua vida ao lado do marido, com quem

tivera que deixar a Boêmia ilegalmente. Pavel faleceu mais tarde na terra estrangeira.

Para resgatar o tempo que passou é que Tamina quer os seus escritos, pois se

desespera ao ver que o passado está cada vez mais pálido e tenta de todas as formas não

esquecê-lo. A obsessão em recuperar os escritos revela, acima de tudo, a necessidade

vital de manter acesas as chamas das lembranças, e isso só lhe parece possível por meio

do contato físico com o passado, já que no nível da abstração, as lembranças se diluem e

se perdem numa velocidade espantosa.

Assim, a batalha travada no campo objetivo, com o intuito de recuperar as cartas

e diários, acontece paralelamente à intensa luta desencadeada no universo subjetivo, no

sentido de reter, a qualquer custo, as frágeis lembranças, os fragmentos de memória que

ainda restam. Isso se faz necessário, uma vez que sua existência plena só é assegurada

com o retorno ao passado, pois é esse retorno que lhe possibilitará dar sentido e

ressignificar o presente.

O processo de desculturação vivido por Tamina é mais que angustiante, é

doloroso. O esquecimento é, nesse sentido, uma nuvem que encobre o passado e suas

identificações, impossibilitando-a de continuar a existir enquanto ser individual. O peso

do esquecimento parece ser visto pelo autor-narrador como um caminho sem volta, sem

saídas, “porque se o edifício vacilante das lembranças cai como uma tenda mal

levantada, não vai sobrar nada de Tamina a não ser o presente, esse ponto invisível, esse

nada que avança lentamente em direção à morte” (KUNDERA, 1978, p. 84).

Diante da complexidade dessa personagem e das coincidências de sua trajetória

com a história de vida do autor, surge para nós um questionamento: quem é

verdadeiramente Tamina? Talvez o próprio autor, travestido de narrador possa nos

fornecer elementos, senão para responder à pergunta, pelo menos para problematizá-la.

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Nesse sentido, a apresentação da personagem ao leitor é bem sugestiva quando se deseja

apanhar o sentido dela na obra:

Dessa vez, para mostrar claramente que minha heroína é minha e só pertence a mim

(estou mais preso a ela do que a qualquer outra), vou chamá-la por um nome que

nenhuma mulher jamais teve: Tamina. Imagino que ela é bela, alta, que tem trinta e três

anos e que é de Praga. (grifo nosso) (KUNDERA, 1978, p. 77)

A proximidade e a cumplicidade entre o narrador autoral e a personagem são

evidentes, há inclusive mais que uma intenção; há um esforço claro do autor para que

essa aproximação ocorra durante a caminhada de Tamina. Em vários momentos da

narrativa, a exemplo do trecho citado, o autor fornece elementos que possibilitam ao

leitor realizar essa aproximação. A própria presença do autor, na pessoa do narrador,

credibiliza a reação quase que espontânea do leitor em assegurar que Tamina não é mais

que uma representação metafórica dos sentimentos e sensações do escritor, como se um

fosse a extensão, ou mesmo o espelho do outro. Ela parece condensar as angústias e

conflitos que o autor - na condição de narrador - confidencia ao leitor.

Em O livro do riso e do esquecimento, a intimidade entre criador e personagem

possibilita ao autor-narrador refletir sobre si mesmo e sobre sua própria condição de

exilado.

Para onde exatamente ela queria voltar? Para Praga?

Ela esqueceu até mesmo a existência dessa cidade.

Para a cidadezinha no oeste da Europa?

Não. Queria simplesmente partir. (KUNDERA 1978, p. 178)

O jogo estético produzido pelo autor é, de tal forma engendrado, que as vozes do

narrador e da personagem se confundem, o que pode ser percebido nessa passagem,

onde o narrador-autoral acaba por desenvolver um diálogo interior, utilizando-se da

personagem, como se esta fosse um ponto de referência para, a partir daí, realizar suas

reflexões pessoais.

Em seu livro teórico A arte do romance (1988), Milan Kundera apresenta o

conceito de ego experimental e o define como um ser criado no romance para testar e

compreender as possibilidades humanas. Em A cortina (2005), ele reforça essa teoria ao

afirmar que o ‘eu’ é inconcebível fora da situação concreta e única de nossa vida, que

ele só é compreensível dentro e por causa dessa situação (p. 62). Por isso, segundo ele, o

que interessa ao romancista é o enigma existencial presente na figura da personagem

principal, dessa forma, o romance seria “A grande forma de prosa em que o autor,

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através de egos experimentais, examina até o fim alguns temas da existência”, pois “o

romancista não é nem historiador nem profeta: ele é explorador da existência”

(KUNDERA, 1988, p. 43).

Diferentemente de como ocorre na filosofia, essa exploração não acontece

somente no nível da abstração, isto porque a literatura dispõe dos egos experimentais

como meio para testar e explorar o pensamento e a condição humana no seio da história,

na situação concreta e única de suas vidas. Com Tamina, tudo sugere que o romancista

explora e testa a existência daqueles, que assim como ele, carregam o peso do não

pertencimento, o peso de ser banido do círculo:

Depois, um dia, eu disse algo que devia dizer; fui expulso do partido e tive de sair da

roda. Foi então que compreendi a significação mágica do círculo. Quando nos afastamos

da fila, ainda podemos voltar a ela. A fila é uma formação aberta. Mas o círculo torna a

se fechar e nós o deixamos sem retorno. Não é por acaso que os planetas se movem em

círculo e que a pedra que se desprende de um deles afasta-se inexoravelmente, levada

pela força centrifuga. Semelhante ao meteorito arrancado de um planeta, eu saí do

círculo, e, até hoje, não parei de cair. (grifo nosso) (KUNDERA, 1978, p. 65)

Se por meio dos egos experimentais, apresentados em O livro do riso e do

esquecimento, temos o início de reflexões profundas acerca da condição humana no

exílio, o que nos permite uma aproximação legítima em relação às experiências do

sujeito histórico com as experiências do escritor, é em A ignorância, publicado

aproximadamente vinte anos depois, que Kundera cria um narrador menos envolvido

emocionalmente com a história, o qual, desta vez, apenas assiste aos conflitos daqueles

que se viram expulsos do círculo, e, enquanto isto acontece, tece várias reflexões sobre

essa “fratura incurável entre o ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro

lar” (SAID, 2003, p. 46).

A ignorância: impossibilidade do retorno

Se, em O livro do riso e do esquecimento, nos deparamos com personagens

soltos, perdidos dentro de uma situação de deslocamento - sem conseguir se posicionar

com coerência -, a problemática do retorno, do modo como nos é apresentada em A

Ignorância, revela uma narrativa construída de modo mais racional, mais consciente3.

3 O uso do termo “consciente” merece uma atenção, isto porque Kundera demonstra ser um escritor

bastante consciente do processo de escrita e produção do romance. Durante a leitura de sua narrativa

pode-se perceber que tudo que é escrito parece ser pensado e direcionado para um fim. Entretanto, em O

livro do riso e do esquecimento parece haver, na verdade, uma desestabilização da personagem- autor. O

que se percebe é uma tentativa do autor de testar as próprias sensações, limites e capacidades para uma

melhor compreensão da situação em que se encontra.

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Impressão que o autor parece querer passar propositadamente. A opção por alguns dos

elementos do romance tais como: uma estrutura textual mais linear que de costume ou a

própria postura do narrador-autor, asseguram que há uma possibilidade real de

fundamento dessas observações. Kundera parece, do alto de sua experiência pessoal,

construir, defender ou testar dentro do romance, uma reflexão mais aprofundada sobre a

experiência inevitável na vida daquele que foi exilado: o retorno.

Nesse romance, o narrador se posiciona do lado de fora da narrativa e

mostrando-se mais objetivo, tenta desenvolver suas análises fazendo uso da

racionalidade e, aparentemente, da neutralidade. Ele parece abdicar-se do lugar de

personagem, postando-se fora da narrativa, na posição de fiel observador.

Dessa forma, em A Ignorância, somos colocados na posição de testemunhas da

viagem de retorno de personagens que foram exilados durante o regime comunista

sofrido pela então Tchecoslováquia, quando esta foi invadida pelas tropas russas.

Ao regressarem à Praga, tal como Ulisses, quando este regressa a Ítaca, as

personagens se encontram com a ignorância e se percebem fantasmas de uma vida

passada, tornada em fachadas de casas corroídas pelo tempo, acontecimentos

empoeirados que se atualizam em presentes sem futuros, e nesse sentido, nenhuma delas

consegue se reconhecer em sua cidade, com seus amigos, com seu passado; ao

contrário, percebem-se, a cada dia, mais distantes e diferentes a si mesmos. O livro

narra, paralelamente, o retorno de Irena, exilada na França, e o regresso de Josef,

exilado na Dinamarca, os quais, depois de vinte anos vivendo no estrangeiro, decidem

retornar à cidade natal.

As datas escolhida para a publicação desse texto são bastante significativas e,

mais uma vez, conduzem-nos em direção a dados que comprovam a aproximação da

narrativa com as experiências vivenciadas pelo autor. A história dos tchecos, no século

XX, é contada por Kundera de maneira irônica em A Ignorância, revestida de uma

“extraordinária beleza matemática, devida à tríplice repetição do número vinte” (2002,

p. 13). Os tchecos obtiveram seu Estado independente em 1918 e o perderam em 1938.

Em 1948, iniciou-se a revolução comunista vinda de Moscou, até a invasão russa em

1968. A ocupação russa se deu de 1969 até 1989, quando partiu sem que ninguém

esperasse. O narrador diz que foi nesta época, em 1969, que a personagem Irena e seu

marido se exilaram na França.

Os protagonistas do romance decidem-se pela volta à terra natal exatamente

vinte anos após o exílio. Coincidentemente, o livro é publicado aproximadamente vinte

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anos após a saída do autor da Tchecoslováquia. Vinte anos foi também o tempo de

peregrinação de Ulisses fora de sua Ítaca, sendo que desses vinte, dez anos foram

dedicados à nostalgia do retorno.

Empreendendo uma discussão filosófico-literária, o romance A ignorância

inicia-se com um passeio pela compreensão do que vem a ser o retorno, que nessa

perspectiva mantém uma relação direta com o sentido de nostalgia. Tal aproximação, de

acordo com a narrativa, deve-se ao sentido da palavra na língua criadora daquela

considerada a epopéia fundadora da nostalgia: A Odisséia.

Na definição do narrador, “à luz da etimologia, a nostalgia surge como o

sofrimento da ignorância. Você está longe e não sei o que se passa com você. Meu país

está longe, eu não sei o que está acontecendo lá” (KUNDERA, 2002, p. 10). Além da

ignorância, a nostalgia é fruto do esquecimento, nesse sentido “Ulisses, o maior

aventureiro de todos os tempos, é também o maior nostálgico” (Idem). Assim como

Ulisses, Irena e Josef vivem também a nostalgia do retorno a sua Ítaca.

Durante o sonho de retorno à terra natal é que o subconsciente revela as

angústias da ignorância vivida por aqueles que se desprenderam de seu lugar de origem.

De acordo com a definição de Said, “o exílio é uma solidão vivida fora do grupo”

(2003, p. 50) ou, como quer Kundera, fora do círculo. “Durante muito tempo, acordei

aos sobressaltos. Os detalhes se diferenciavam, mas, em linhas gerais, o sonho era

sempre o mesmo” (TODOROV, 1999, p. 13). No livro O homem desenraizado,

Todorov descreve seus sonhos de exilado, sonhos de impossível retorno, e afirma que

compreendeu depois que esse sonho era comum a muitos imigrantes.

No romance analisado, o narrador também constata a relevância desse fenômeno

e se pergunta: “como é que uma experiência tão íntima de um sonho poderia ser vivida

coletivamente?” e conclui que, os sonhos que se tem em situação de exílio são “um dos

fenômenos mais estranhos da segunda metade do século XX” (KUNDERA, 1978, p.

17). Isso porque, como afirma Said (2003, p.51), a moderna cultura ocidental, em larga

medida, é obra de exilados, refugiados, emigrantes. E como tal, deixa transparecer suas

frustrações e aflições. Com a intenção de confirmar esta hipótese ou até mesmo testá-la,

temos em A ignorância o relato de sonhos vividos pela personagem Irena em terra

estrangeira:

O mesmo cineasta do subconsciente que, durante o dia, lhe enviava porções de sua terra

natal como imagens de felicidade, organizava, à noite, retornos pavorosos a esse mesmo

país. O dia era iluminado pela beleza do país que havia sido abandonado, e a noite pelo

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horror de retornar a ele. O dia mostrava-lhe o paraíso que ela havia perdido, a noite, o

inferno do qual havia fugido. (KUNDERA, 2002, p. 18)

Tanto para Todorov como para Kundera, os sonhos são fruto de experiências

adquiridas na relação estreita entre a partida da terra natal e a esperança de retorno. Por

meio dos sonhos coletivos, Kundera nos mostra que o retorno à pátria é um aspecto da

vida do exilado, que o persegue desde a chegada ao país que o acolhe, até a

concretização da volta ao país de origem. Se o retorno constitui-se num desafio comum,

o medo e a nostalgia em torno dessa realização preenchem a vida e os sonhos daquele

que se viu forçado a deixar sua terra.

Para o exilado, o retorno significa retomar uma vida e lembranças que foram

interrompidas; retomar essa vida representa acima de tudo anular o que fora vivido fora

dali. Por isso, do mesmo modo que o regresso ao passado angustia e frustra aqueles que

partiram, incomoda também os que permaneceram no círculo. Para Josef e Irena, isso

significa vinte anos de existência.

A vida de Irena na França - os hábitos que adquirira lá -, não interessava à mãe

ou às suas amigas de Praga, uma vez que essas não haviam participado desse momento

e por isso o ignoravam:

Ela comprou este velho Bordeaux com um prazer especial: para surpreender seus

convidados, para celebrá-los com uma festa, para reconquistar sua amizade.

Quase estragou tudo. Constrangidas, suas amigas observam as garrafas, até que uma

delas, enchendo-se de coragem e orgulhosa de sua simplicidade, declara sua preferência

por cerveja. Estimulada por esta franqueza, as outras concordam e a ardorosa

admiradora de cerveja chama o garçom. (KUNDERA, 2002, p. 32-33)

O que podemos ver nessa passagem do romance de Kundera, é que a segunda

personalidade da qual nos fala Todorov, ou seja, aquela adquirida fora do país de

origem, quando se convive com outra cultura, é inteiramente ignorada. Pois, ao se

negarem a tomar o vinho Bordeaux parisiense, que Irena trouxera para o encontro,

revelando uma preferência pela cerveja habitual de Praga, as amigas se mostram - pelo

menos aos olhos da personagem - pouco refinadas e ao mesmo tempo indelicadas.

No decorrer da narrativa, Irena atribui a suas “amigas” características físicas e

comportamentais, algumas vezes, pejorativas, reforçando seu ponto de vista sobre essas

mulheres. Entretanto, é importante que se note a unilateralidade dessas observações.

Como se pode perceber, tudo o que sabemos desse encontro nos é dado por meio do

olhar de Irena; o narrador nos revela o que ela pensa e sente. Contudo, esse processo é

mais do que crítico, o sentimento dela em relação a esse grupo de mulheres parece se

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estender por toda a pátria, fazendo com que esse encontro frustrado revele, não somente

as marcas do distanciamento existente, mas também a mágoa que a personagem carrega

em relação ao seu país.

Se por parte das amigas é explicitado um desinteresse por tudo que Irena viveu

ou se tornou nesses vinte anos, há por parte dela, também, uma resistência visível em

relação ao passado, ou em relação ao que ela poderia ter sido se tivesse continuado em

Praga. O incômodo se presentifica quando Irena coloca um vestido de verão, estando

em sua cidade natal, e este a destitui de sua aparência clássica, parisiense, favorecida

pelo tailler. O traje a faz retornar à antiga aparência simples. Os cortes dos vestidos que

via nas vitrines eram os mesmos que conhecera na era comunista e faziam-na relembrar

seu passado distante: “pareceram-lhe ingênuos, provincianos, deselegantes, adequados a

uma professora de interior” (KUNDERA, 2002, p. 29).

Irena se angustia quando passa em frente a uma grande loja e consegue olhar-se

em um imenso espelho: “aquela que via não era ela, era outra ou, quando olhou mais

demoradamente, era ela, mas vivendo outra vida, a vida que teria vivido se tivesse

ficado no país (Idem). Sua aparência lhe mostrava uma mulher submissa, lamentável,

pobre, fraca. Talvez na percepção do autor-narrador, a aparência de Irena se mostrasse

como a de alguém que não fora capaz de deixar seu país, como a daqueles que ficaram,

como suas amigas, por exemplo. Com o vestido “ela se via presa numa vida que não

queria e da qual não seria capaz de se libertar” (Idem). O vestido, na narrativa, é o

símbolo do que a personagem poderia ter sido, uma camisa-de-força que a

impossibilitaria de ser a pessoa que ela passou a ser, a partir das experiências adquiridas

no estrangeiro.

Da mesma forma que o vestido proporciona a Irena uma volta ao passado, por

meio da leitura de seu antigo diário, Josef se depara com o que fora antes. Revendo os

relatos escritos quando era jovem, ele consegue dimensionar a enorme distância que se

apresenta entre a pessoa que escreveu tudo aquilo e a pessoa que agora lê. A retomada

do que ficou no passado - incluindo os relacionamentos - trata-se de uma experiência

que faz tanto um, quanto o outro, tomar consciência de que não se tornaram estranhos

somente para os outros, mas também e, talvez, principalmente, para si mesmos.

Ainda dentro da experiência de retorno, Josef acumula decepções ao notar o

constrangimento e a resistência que a sua presença impõe ao irmão e à cunhada. Mesmo

sendo parte da família, ele agora é um estrangeiro, não pertence mais ao meio de onde

saiu, está fora do círculo. Diante disso, ele conclui que “aquele que decide deixar seu

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país para sempre deve resignar-se a não rever mais sua família”, pois “não era então por

prudência que não lhe tinham escrito. A verdade era pior, ele não existia para eles”

(KUNDERA, 2002, p. 45).

Outro conflito vivido por Josef está relacionado com a completa ignorância das

pessoas com relação a sua casa e a existência de sua mulher, agora falecida. O narrador

nos diz que, ao tentar retornar “Josef sentiu de repente a ausência de sua mulher; não

havia ali nenhum traço de sua existência. Durante os três dias que passaram naquele

país, ninguém dissera uma só palavra sobre ela. Compreendeu: se ficasse ali a perderia.

Se ficasse ali, ela desapareceria” (KUNDERA, 2002, p. 128).

Com Halbwachs (2006) temos que a memória depende das evocações, por isso

as pessoas que se encontram longe de suas raízes costumam se reunir em grupos, nos

quais as mesmas histórias são repetidas constantemente. O contato com essas histórias,

com a língua, com traços culturais de origem fazem com que a memória não se embote,

sendo ela, desta forma, constantemente reanimada pelas evocações do passado,

impedindo aos homens a perda de seus elos.

Em A Ignorância fica claramente perceptível que: a pessoa que deixou o país

não é mais a pessoa que retorna, uma vez que não há como negar suas experiências, sua

história, seus amores. Então, se a volta ao país de origem significa abdicar de tudo isso,

então não há como voltar. E, para demonstrar que ao exilado não é dado o direito de

retorno a terra natal, deixando para trás o que viveu na terra estrangeira, o autor faz uma

analogia com o ato de amputar um braço. No romance, quando as amigas de Irena lhe

pedem que volte a viver em Praga, mas ao mesmo tempo demonstram desinteresse por

tudo que ela viveu na França, é como se tentassem “remendar seu antigo passado com

sua vida presente. Como se lhe amputassem o antebraço e fixassem a mão diretamente

no cotovelo; como se lhe amputassem a barriga da perna e emendassem os pés nos

joelhos” (KUNDERA, 2002, p. 38).

Josef e Irena só se permitem a existência plena mediante a possibilidade da

convivência mútua de suas culturas, pois não se pode negar que com a vivência fora de

seus países eles se tornaram resultado de duas culturas, de duas histórias, que

necessitam coexistir; uma não pode querer anular a outra e sim completá-la. O entrave

acontece quando aqueles com quem conviveram lhes rejeitam essa compreensão dúbia.

É nesse momento que eles constatam estar fadados a viver no exílio, na condição

permanente de estrangeiro.

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E, uma vez que o indivíduo se constitui por meio da relação com o outro e por

meio das assimilações culturais, a identificação de Irena e Josef só poderá existir

enquanto mantiverem-se acesas as lembranças que os ligam às suas vidas no presente.

Enquanto ela, numa atitude domjuanesca, se entrega por completo às possibilidades de

um encontro amoroso com Josef, ele, numa tentativa de reconstruir seu “eu”

extremamente fragilizado diante da frustração do retorno, percebe que continuar em

Praga é alimentar o esquecimento; o que significaria abrir mão de sua existência.

Sendo assim, o lugar de Josef, agora, é exclusivamente sua casa na Dinamarca,

único espaço em que suas memórias ainda lhe permitem uma identificação legítima,

sem que se sinta estrangeiro. Daí a urgência em voltar, porque ele não pode correr o

risco de ter suas lembranças apagadas.

Por fim, enquanto Irena deposita as últimas esperanças de reconstituir a si

mesma no encontro com Josef, e termina dormindo embriaga no quarto do hotel, ele, do

alto do avião, avista sua casa, em meio à escuridão do céu.

Desta forma, por meio da trajetória das personagens que habitam esse romance,

bem como pelo fim melancólico e solitário delas nessa releitura sobre o exílio, Kundera

parece querer mostrar que, quando há um afastamento do lugar de origem, este é

definitivo e configura-se num corte irreversível entre o indivíduo e a sua terra, sua

cultura, sua história, suas raízes. Com Irena e Josef, após um longo percurso de

reflexões no interior da obra, o autor fecha, por assim dizer, um ciclo, quando chega à

conclusão de que o exílio não é uma situação provisória, mas sim uma condição

permanente.

Uma representação da problemática existencial

Analisando a relevância da categoria do autor como sujeito no processo de

criação literária, Wladimir Krysinski faz uma separação entre o sujeito da escritura e o

sujeito na escritura. No primeiro caso estão inscritos, entre outros, autores como:

Cervantes, Robert Musil, Guimarães Rosa e Joyce. Os romances de autores dessa

natureza, segundo ele, colocam em cena um sujeito que é autor-criador e “sua relação

com a obra faz dele um narrador semiótico”. Esse tipo de narrador se configura

enquanto um “organizador de um universo axiológico coerente e referível a uma

subjetividade problemática, em expansão cognitiva” e, a partir disso, seria possível

estabelecer correlações entre categorias práticas e modais e o universo axiológico de

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personagens desses romancistas. Essas correlações “mostrariam nessas obras a parte do

sujeito estético, ideológico, axiológico, irônico, polêmico etc.” e, por sua vez, a

tematização do sujeito realizar-se-ia “por uma manipulação e uma mediação dos

códigos estéticos, culturais e literários.” (KRYSINSKI, 2008, p. 66)

No segundo caso, o estudioso destaca, entre outros, autores como Agostinho e

Petrarca. Em sua concepção, esses escritores buscam a si mesmos na escritura e em seus

romances “o sujeito em posição assuntiva tematiza sua busca de identidade, seu eu

(moi) e sua interioridade, bem como seu inconsciente.” (KRYSINSKI, 2008, p.67)

Acreditamos que a literatura adotada por Kundera não nega qualquer um dos

tipos de sujeito destacados por Krysinski e, sendo assim, não seria nenhum absurdo

dizer que os dois casos perpassam a obra kunderiana, ainda que dentro do jogo

malicioso constituído pela metaficção, a freqüência e a intensidade do sujeito da

escritura esteja muito mais presente. E, embora nos dois romances o eu individual

apareça com insistência, é na relação com as causas externas que tais sujeitos se

constituem.

Segundo Kvetoslav Chvatik, importante comentador do romance kunderiano, à

prática literária adotada por Kundera não interessa uma consciência isolada, mas sim o

fluxo das consciências gerais de uma época. Elas estão refletidas nas personagens ou,

como quer Kundera, nos egos experimentais, os quais se realizam no curso da História,

no tema do conto e na reflexão intelectual (1995, p. 12-13).

Podemos concluir que, a partir das experiências individuais, Kundera busca

compreender a condição humana que se configurou diante das catástrofes que se

afiguraram no decorrer do século XX. Os estilhaços das barbáries desencadeadas na Era

dos Extremos se fizeram sentir, com maior vigor, nas relações humanas a partir do

período cunhado por ele de Paradoxos Terminais da Modernidade. O tempo do qual

Kundera fora contemporâneo impunha outra postura estética na construção das

personagens. Isso para que elas não fossem simples simulações de seres reais, sendo

capazes não só de representar, mas também de fazer pensar sobre os conflitos

existenciais.

Se pensarmos as personagens de Kundera num plano real de ação, vamos acabar

por nos perguntar: Quantas Taminas, Josefs e Irenas existem no mundo? Com os ditos

egos experimentais, Kundera, mais uma vez, faz emergir em sua obra o tema da

memória aliado ao deslocamento, fenômeno que permeia a vida dos indivíduos do fim

do século XX e início do século XXI. A condição de exilados dessas personagens as

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aproxima das experiências do romancista permitindo-lhe, enquanto testemunha dos

fatos históricos, elaborar e retomar, de modo mais legítimo, as reflexões contidas na

obra como um todo.

E voltando a Krysinski, temos que os romances de Kundera pertencem a uma

linha do gênero em que:

O narrador é uma voz do autor, sujeito humano que ocupa um lugar polêmico, e até

conflituoso, no mundo real e que transmite seu ponto de vista ao leitor. Esse ponto de

vista chama um dialogismo cognitivo, pois, visando ao leitor, o autor se apóia na

particularidade subjetiva de sua mensagem, que deve ser objetivada. Nesse sentido,

Gógol e Dostoiévski, Proust e Joyce, Musil e Broch (...) engajam táticas narrativas

diversas, mas são também sujeitos cuja consciência de si, cuja subjetividade e cuja

intencionalidade estão implicadas no processo complexo da criação estética. A narração

é um discurso do sujeito. É um dispositivo da linguagem complexo que modela

enunciados narrativos, discursivos e dialógicos e que indica a posição do sujeito num

conjunto social e literário. (2008, p. 63-64)

E, quando analisa a obra kunderiana mais precisamente, o estudioso propõe que

o jogo entre realidade versus ficção ocorra com tamanha insistência em autores como

Kundera, por estes acreditarem em certa insuficiência da vida, por si só, ou da ficção,

por si só, como meios de exploração da existência humana. Dessa forma, entre uma e

outra, é necessário buscar a metaficção, que na concepção deles (dos autores), seria um

experimento para a ficção sobre a vida. Contudo, o jogo metaficcional construídos por

tais autores se sobrepõe à “auto-análise do sentido da vida, uma vez que é projetada no

palco e levada de volta do palco à vida cotidiana.” (KRYSINSKI, 2008, p. 80-81)

Nos romances de Milan Kundera, todas as discussões possíveis são

acompanhadas por uma necessidade de pensar o homem situado nos complexos

paradoxos terminais do mundo moderno, vendo se desintegrarem as normas, valores,

regras e conceitos da modernidade, em detrimento da relativização e da

desreferencialização; o que para muitos se constitui no que hoje se denomina pós-

modernidade.

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