"Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena": págs 225
Perspectivismo ameríndio e literatura: por uma sociologia...
Click here to load reader
Transcript of Perspectivismo ameríndio e literatura: por uma sociologia...
Perspectivismo ameríndio e literatura: por uma sociologia menor
Ivan Tadeu Gomes*
Resumo: O texto que segue refletirá não somente sobre a potência contida nas narrativas
literárias como suporte às pesquisas do cientista social, mas discutirá sobretudo como isso pode
ser feito. Inúmeros trabalhos já tiveram na literatura o suporte para discussões de temas diversos
que orbitam o mundo social. Devido sua flexibilidade, tais narrativas são utilizadas com
diversas finalidades. O sociólogo Norbert Elias está entre aqueles que não se furtam a se valer
da literatura para vir ao auxílio de suas reflexões e análises. Em seu ensaio Sobre o tempo, o
sociólogo se pauta ao romance A flecha de Deus, do escritor nigeriano Chinua Achebe, a fim de
analisar o tempo social além da dicotomia natureza/cultura. Contudo, a forma de olhar que
dirige ao texto, tem leves – porém perceptíveis - contornos etnocêntricos e narcísicos – tomando
emprestada a concepção que o antropólogo Viveiros de Castro dá ao termo freudiano. O
presente ensaio pretende discutir a possibilidade de mirarmos a literatura menos como um
espelho a refletir nossos objetos de pesquisa, mas concebendo-a como antropologia
especulativa: que contém a potência para execussão da difícil tarefa de alteração do próprio
ponto de vista a partir da subjetivação do/no outro – e não sua objetificação. Visando, dessa
forma, contribuir para a ampliação das categorias de análise científica e do pensamento.
Palavras-Chave: Ciências Sociais. Literatura. Norbert Elias. Perspectivismo ameríndio.
Antropologia especulativa.
.esboçando o contorno
Toca a cada uno forjar su escritura-método. Renovar la escritura de las
ciencias sociales no consiste pues en abolir toda regla, sino en darse
libremente nuevas reglas. (JABLONKA, 2016, p.18)
O vasto e amplo mundo das ciências humanas, guarda em seu núcleo a potência
de extrapolar as linhas epistemológicas que dividem os campos produtores de
conhecimento. Extrapolar – veja bem – sem suspendê-los. É importante que haja algum
grau de especificidade. Mesmo toda a crítica com relação à especialização e
compartimentalização da produção de conhecimento não deve se render à sedução do
caos a todo custo. Algum sentido a de se ter – ou se dar; pela lâmina da reflexão. E por
mais difícil que seja imprecisar as linhas limítrofes que separam cada campo de
conhecimento – pelo risco de abusos, incompreensões e até mesmo do ridículo -, a
* Bacharel em Ciências Sociais (UFSC)
2
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
possibilidade – mesmo que mínima - de fazer surgirem novas perspectivas, capazes de
ampliar, refigurar e estilizar o conhecimento, já é motivação o suficiente para dar ritmo
à dança sob as linhas divisórias.
O presente ensaio propõem discutir não apenas as potencialidades inerentes
entre o encontro dos saberes literários e das ciências sociais. Isso já está implícito e não
carece de qualquer defesa – apesar de não haver exageros em fazê-lo. O que se busca
neste texto diz mais respeito ao como fazê-lo. Em outras palavras, como as ciências
sociais podem se servir das narrativas literárias para refletir categorias que são do seu
interesse. Essa questão por si mesma já é bastante ampla, cabendo perspectivas diversas
e com um vasto campo de possibilidades reflexivas. Para afunilar a discussão, a fim de
fincar margens que permita ao pensamento fluir em seu ritmo, escolhi partir do caso
específico da apropriação que Norbert Elias faz do romance A flecha de Deus, que dá
parcial suporte para sua reflexão Sobre o tempo.
Antes de tudo, não posso deixar de registrar que: ao evocar uma narrativa
ficcional, a fim de servir de ponto de apoio para suas reflexões sobre o tempo, Elias já
diz muito sobre o encontro dos dois tipos de narrativa – a saber, ficcional e histórica - e
sobre o lugar em que os coloca. Entretanto, o seu como exige um olhar mais demorado,
uma ruminação sobre suas consequências e limitações. Mais do que criticar e evidenciar
as perspectivas do sociólogo, é em direção à forma de olhar das ciências sociais que se
dirigem as argumentações que seguem. Tendo em vista que não penso que a simples
aproximação dos campos de saber possuem valores positivos em si. É preciso
interpretá-los em intensidade, reconhecendo as potencias e limitações de cada campo do
conhecimento. Dessa forma, o debate ganha corpo e aproximação de ciência sociais e
literatura extrapola o patamar de mera aventura reflexiva para ganhar densidade e,
assim, dar vazão a sua potência.
Em meu auxílio nesta difícil e sinuosa tarefa, busco uma série de categorias de
reflexão, de diversos saberes: que vão da literatura - sobre o conceito de ficção,
antropologia especulativa, mímesis – à antropologia – perspectivismo ameríndio,
multinaturalismo – passando pela filosofia: desterritorialização da linguagem, literatura
menor. Correndo riscos, transito entre estes campos do saber em formato ensaístico –
por sentir nesta modalidade de expressão uma hospitalidade maior à tentiva de pensar o
pensamento com um pouco mais de espaço ao movimento proposto – sem com isso
3
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
tomar o devido cuidado em manter uma certa forma que não destitua os argumentos
apresentados de alguma substância. A forma, aliás, como não poderia deixar de ser, é
largamente influenciada pelos saberes que evoca, sobretudo por pensar, junto com o
historiador Ivan Jablonka, que:
El investigador tiene todo el interés en escribir de manera más sensible, más
libre, más justa. En este caso, la justeza, la liberdad y la sensibilidad están
asociadas a la capacidad cognitiva, como cuando se dice que una
demonstración matemática es "elegante". Una cronologia o unos anales no
producen conocimento, y la idea de que los hechos hablan por sí mesmos es
una muestra de pensamiento mágico. Muy por el contrario, la historia ([SIC]
assim como as ciências sociais) produce conocimento porque es literaria,
porque se despliega en un texto, porque cuenta, expone, explica, contradice,
prueba: porque es un escribir-veraz. (JABLONKA, 2016, p. 18)
.borrando o contorno
Certo, queremos a verdade:
mas por que não, de preferência, a inverdade?
Ou a incerteza?
Ou mesmo a insciência?
Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal, p. 09
As Ciências Sociais têm, como qualidade e característica, constantes crises
epistemológicas. Para muitos, uma fragilidade que as destitui de propriedade e,
consequentemente, de mais espaço no rou de discursos científicos. Assumindo como
potência essa capacidade plural de interpretação do mundo social, outros mergulham
nesse vazio e o manejam como terreno fértil para novas criações de olhares e
interpretações sobre a vida.
A aproximação entre as narrativas literárias e sociológicas pode resultar num
vórtice catalizador da produção de conhecimento e das formas de ver o mundo social.
Ambas lidam com elementos comuns: a fabulação e o imaginário social. Teoria e
ficção, romance e vida misturam-se no olhar interpretativo das narrativas sociais – não
para enclausurar a literatura nas jaulas conceituais, mas para inspirar-se na aura de
liberdade que a ronda.
Así como el investigador puede encarar una demonstración en un texto, el
escritor puede desplegar un razonamiento histórico, sociológico,
4
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
antropológico. La literatura no es necessariamente el reino de la ficción.
Adapta y a veces anticipa los modos de investigación de las ciencias sociales.
El escritor que quiere decir el mundo se erige, a su manera, en investigador.
(JABLONKA, 2016, p. 12)
“La literatura no es necessariamente el reino de la ficción”. Não necessariamente
o reino, mas pertence a uma mesma classe. Independente do lugar onde é colocada a
ficção na literatura, penso que uma é indissociável da outra1. Não vejo necessidade em
querer aproximar o caráter ficcional da literatura ao caráter da (suposta) realidade
daquilo que as ciências sociais se propõem a estudar. Isso porque não concebo a ficção
como antagônica àquilo que é objetivo, mas sim como seu suporte – um suporte sem
pretensão ao status de Verdade. Ao mesmo tempo em que não a vejo adentrar o campo
do falso, concordando com Juan José Saer, quando diz que:
Podemos, portanto, afirmar que a verdade não é necessariamente o contrário
da ficção, e que quando optamos pela prática da ficção não o fazemos com o
propósito obscuro de tergiversar a verdade. Quanto à dependência hierárquica
entre verdade e ficção, segundo a qual a primeira possuiria uma positividade
maior que a segunda, é desde já, no plano que nos interessa, uma mera
fantasia moral. (2009, p.02)
A ficção tem a qualidade de mesclar o empírico ao imaginário. O romancista,
como o pesquisador, apreende os acontecimentos sociais que o cerca e, a partir de seu
método particular, cria uma narrativa sem pretensão de expor o – problemático conceito
de – real propriamente dito. Por outro lado, podemos dizer que sua obra pode ser mais
um olhar sobre o mundo social. Essa característica confere ao romance um ponto de
partida para a pesquisa que tem legitimidade e potência para trabalhos no campo das
Ciências Sociais. Penso que esse encontro pode ser de grande contribuição para ambas
as áreas de conhecimento, chegando mesmo a movimentar os limites impostos que as
separam, frutos de uma cultura científica que reflete o compartimento dos saberes desde
há muito. A interpretação do social tende a se tornar mais verossímil na união desses
diversos olhares e modos de apreender a vida. A aproximação num mesmo tecido entre
a prosa das ciências sociais com as narrativa literárias, tendem a ampliar a compreensão
das narrativas humanas como um todo – sem, contudo, partir de uma hierarquia que é
“mera fantasia moral”. Por isso:
El problema, en consecuencia, no es"saber si el historiador debe o no hacer
literatura, sino cuál hace". Se puede decidir lo mismo del escritor con las
ciencias sociales: el problema no es saber si habla de lo real, sino si se da los
medios de comprenderlo. (JABLONKA, 2016, p. 23)
5
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
Partindo do ponto de vista de que todo romance é uma ficção mimética; que,
segundo Aristóteles, em sua Poética, a “mímesis supõe um ato de adequação ou
correspondência entre a imagem produzida e algo anterior que o guia” e que “(…) a
mímesis aristotélica adquire um acentuado grau de liberdade quanto a este algo anterior
(…).” (LIMA, 2014, p. 31), penso que o mímema tem um caráter de imbricamento com
os acontecimentos sociais ou existenciais que pretende reproduzir – tenha ela maior ou
menor grau de liberdade quanto à forma de expressá-los.
Ela (a mímesis) apenas não é moldada pelo princípio da semelhança senão
que pelo vetor da diferença, em suas diversas formas (…). Por mais radicais
que sejam as formas de diferença, elas sempre mantêm um resto de
semelhança, uma correspondência, não necessariamente com a natureza mas
sim com o que tem significado em uma sociedade, com a maneira como a
sociedade concebe a própria natureza. (LIMA. 2014, p. 46, grifo meu)
Não à toa, sociólogos com trabalhos científicos notadamente reconhecidos já se
utilizaram das prosas ficcionais para poder dar lastro aos seus argumentos, ou mesmo
servir de documento para suas hipóteses sociológicas. É o que faz Norbert Elias em seu
ensaio Sobre o tempo.
.o narcisismo de Elias
Em seu ensaio, Norbert Elias busca olhar para o dispositivo2 tempo com o
estranhamento necessário para que este seja descolado do tecido social. Em outras
palavras, o transforma em objeto, utilizando um método genealógico para analisá-lo, a
fim de tentar demonstrar as arbitrariedades contidas no decorrer da formulação e da
construção dos conceitos e concepções de tempo. Nesse árduo trabalho de
desnaturalizar o tempo, mostrando-o como um elemento sociocultural construído ao
longo de gerações, o sociólogo descreve como os fenômenos naturais foram, em
determinado momento, essenciais para o desenvolvimento da demarcação do tempo
como é hoje concebida nas sociedades Ocidentais modernas.
Em um trecho do ensaio, a fim de “encontrar lembranças autênticas da vida
numa aldeia tradicional” (ELIAS, 1998, p.130) (grifo meu), com a finalidade de
apreender a transição de poder desta mesma aldeia para o Estado (inglês) que então
passava a colonizá-lo, o sociólogo diz que, para efetuar sua análise, “seremos obrigados
6
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
a nos apoiar essencialmente em fontes escritas” (ibidem). Como fonte de análise é
escolhido o romance A flecha de Deus, do escritor nigeriano Chinua Achebe3.
O livro narra os pontos de vista tanto do colonizador, como do colonizando:
sobretudo de Ezeulu: sacerdote da divindade Ulu. O sacerdote de Umuaro é responsável
por, entre outras designações políticas, definir as medidas de tempo no “calendário” das
seis aldeias unidas sob a proteção dessa mesma divindade. Para isso, o sacerdote se
valia de seus saberes adquiridos ao longo da vida, transmitidos a ele por seu pai – seu
antecessor no podsto do sacerdócio -, para analisar o movimento da lua, a fim de definir
o calendário4 desse conjunto de aldeias.
São evidentes os motivos que levam Norbert Elias a resgatar as fontes presentes
na narrativa (ficcional) do romance: delinear os contornos da violência, presente na
coerção externa, utilizada para o disciplinamento dos corpos com relação à definição de
uma determinada concepção de tempo; e se utilizar dessa demonstração como parte de
sua reflexão sobre o tempo. É louvável seu esforço. Seu método nos coloca de frente
aos mecanismos arbitrários de imposição de uma perspectiva sobre outra. E que, nesse
caso, é focada na narrativa sobre o tempo: como os colonizadores ingleses se utilizaram
de artimanhas para suplantar a perspectiva do colonizando. Contudo, a partir disso,
poderíamos - com certa facilidade, diga-se - usar nossa imaginação para deslocar esse
método a fim de desvelar as formas mais ou menos violentas em que as imposições de
pontos de vista podem migrar para outros campos, outros costumes, outros mundos.
A limitação do como Elias olha para seu objeto de estudo, tangencia justamente
esta esfera: o ponto de vista. Um olhar mais atento, fortemente comprometido com a
tentativa de mergulhar na arte política do deslocamento perspectivista5, nota, sem muito
esforço, um certo grau de etnocentrismo na forma como o sociólogo descreve a forma
do pensamento dos povos do romance – em outros termos, sua ontologia. Dostoievski
diz que “o diabo mora nos detalhes”. E é nos detalhes da linguagem que o canhoto
lambe os beiços – para o bem ou para o mal – ou além desta dicotomia.
O fato de muitas denominações de objetos inanimados trazerem hoje a marca
do masculino, em alguns casos, e a do feminino, noutros, talvez seja um
vestígio de uma situação antiga na qual esses objetos eram percebidos como
pessoas. (ELIAS, 1998, p. 135)
7
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
Norbert Elias, ao taxar tais vestígios como pertencentes a uma determinada
“situação antiga”, está assinando o atestado de óbito do pensamento dessas
coletividades. Se não matando, jogando-os na vala comum do que foi superado, do que
não merece atenção - que não seja com a utilidade de um espelho onde nossa moderna
cultura Ocidental possa mirar-se para poder olhar para si mesma, num estranhamento do
Outro para reafirmar o Mesmo. Inúmeras palavras do texto de Elias chamam minha
atenção pelo forte teor evolucionista e teleológico. Sobretudo quando coloca de frente a
cultura da tribo nigeriana do romance com a “nossa” moderna sociedade Ocidental.
Dicotomias como “estágios anteriores ou primitivos” em oposição a “estágios
posteriores”, são repetidas constantemente ao longo do ensaio, mostrando que “(...) o
etnocentrismo é, como o bom senso (...), a coisa do mundo mais bem
compartilhada”(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 35).
Na falta de uma percepção objetiva do enorme aumento da segurança que é
característico das sociedades dos estágios posteriores, com a concomitante
redução da incerteza e da angústia, é impossível nos conscientizarmos do alto
grau de incerteza e perigo experimentado pelas sociedades dos estágios
anteriores. (ELIAS, 1998, p.137) (grifos meus)
Não entrarei no mérito da afirmação desse trecho – que, a meu ver, é, por si só,
questionável. O que cabe a esse ensaio é evidenciar para discussão a forma como a
perspectiva do Outro pode ser apropriada pelo discurso do Mesmo nessa postura
narcísica. Antigos e posteriores determinam um local em uma perversa e preexistente
seta teleológica do tempo. Apesar de o sociólogo dizer que ao fazer uso de termos que
remetam à ideia (ou ideal) de progresso, está apenas utilizando-se de um método de
análise que se vale de “uma abordagem sociológica evolucionista, que tome por regra a
simples evidência dos fatos” (ELIAS, N. 1998, p. 75), a leitura que faz da ontologia
dessa coletividade africana, dita primitiva, narrada no livro de Chinua Achebe,
evidencia que:
(…) supor que todo discurso “europeu” sobre os povos de tradição não
europeia só serve para iluminar nossas “representações do outro” é fazer de
um certo pós-colonialismo teórico a manifestação mais perversa do
etnocentrismo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.21)
As marcas desse etnocentrismo - desse apego ao seu próprio ponto de vista, sem
qualquer esforço para desloca-lo para adentrar e entender o ponto de vista do Outro -
são visíveis não apenas nas dicotomias e nas armadilhas verbais de Elias. Na genealogia
do tempo que o sociólogo desenvolve, parte-se do acúmulo de saber que a moderna
8
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
sociedade Ocidental lança mão, ao longo de gerações, para que o tempo viesse a se
tornar esse objeto despersonificado o bastante para habitar os calendários e relógios de
pulso de forma tão natural e onipresente – além de totalitária. Em contraposição a essa
forma de apreender o tempo, Elias elege o multinaturalismo6 presente na cultura dos
povos do romance como exemplo da forma de apreensão do tempo de “sociedades em
estágio primitivo”.
Objetos como a lua ou o sol eram apreendidos como uma espécie de pessoas
(por esses homens dos estágios anteriores) (…). Ao primeiro surgimento da
lua nova, as pessoas tinham o costume de saudá-la devidamente, como
convinha, com palavras como “teu rosto que se encontra com o meu”. Esse
exemplo ilustra com muita clareza um modo de experiência ingenuamente
egocêntrico ou engajado. (ELIAS. 1998, p.136, grifo meu)
Ora, Elias, não estaria o egocentrismo encharcando a forma com a qual você percebe o
pensamento do Outro? Não quero insinuar com este questionamento que a lua deve ou
pode ser encarada como uma potencial homicida7. Apenas penso que o perspectivismo
ameríndio - como proposta epistemológica de Viveiros de Castro -, tem o potencial de
contribuir não apenas para redesenhar enriquecedoramente a forma como as Ciências
Sociais olham para aquele – no sentido mais amplo que essa palavra pode ter - que
escolhe estudar, mas sobretudo como um catalizador do pensamento crativo, a partir da
especulação possível por esse olhar perspectivado, quando dirigido ao Outro de forma
anti-narcísica – sobretudo quando o pesquisador se vale da literatura como ponto de
partida de sua pesquisa:
A perspectiva da antropologia especulativa, assim, é a que deriva desse
encontro – não é a perspectiva de um mundo ou de outro, mas a de sua
tradução recíproca: uma entre-perspectiva, uma perspectiva caleidoscópica,
composta e atravessada por mais de uma perspectiva, como talvez toda
perspectiva, quando tornada corpo (textual ou xamânico), seja marca de um
encontro de perspectivas: as técnicas corporais dos xamãs, o parentesco que o
constitui, as relações interespecíficas que compõem a sua experiência, todos
esses outros e suas perspectivas dão corpo à perspectiva xamânica ; assim
como o ponto de vista do autor, do narrador, dos personagens, mas também
os paratextos, a edição, a crítica e as interpretações, todas essas perspectivas
dão corpo ao texto, constituem a perspectiva de uma ficção literária.
(NODARI, A. 2015, p. 83)
.O Anti-Narciso
Sublinho: proliferar a multiplicidade.
Viveiros de Castro, Metafísicas Canibais, p. 28
9
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
A formação acadêmica do cientista social é, via de regra, pautada em
epistemologias objetivistas da modernidade Ocidental – sobretudo na sociologia e na
ciência política. Ao longo do curso de graduação, em consequência disso, somos
induzidos a pensar que: conhecer é “objetivar”.
Nosso jogo epistemológico se chama objetivação; o que não foi objetivado
permanece irreal ou abstrato. A forma do Outro é a coisa. (VIVEIROS DE
CASTRO. 2015, p. 50, grifo meu)
O Outro é a coisa. Não só a lua e o sol, como se refere Elias, são objetos nessa
análise. Também o são as sociedades dos estágios anteriores. Quando tratadas como
objetos, é inevitável: forma-se o telos. A comparação, feita desse modo, com essa
dicotomia evolucionista – mesmo que manifesta como destituída daquele valor
Iluminista – ainda possui em si algum valor. O valor de espelho. O valor de objeto
insuficientemente analisado.
Como alternativa epistemológica, Viveiros de Castro nos apresenta o livro que
nunca foi – e nunca será – escrito: O Anti-Narciso. Em Metafísicas Canibais, a
proposição de uma outra forma de ver - a saber, o perspectivismo -, sugere um outro
viés analítico. Não mais o Outro como espelho. Não mais a objetificação. Frente ao
animismo ao qual Elias supõe praticarem aqueles povos por ele referenciados, o
perspectivismo guarda um lugar para a personificação daquele que pretende interpretar.
O xamanismo ameríndio é guiado pelo ideal inverso: conhecer é personificar;
tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido. Ou antes, daquele;
pois a questão é a de saber “o quem das coisas” (Guimarães Rosa), saber
indispensável para responder com inteligência à questão do “por quê”. A
forma do Outro é a pessoa. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 50) (grifo
meu)
Guardemos as devidas proposições: Viveiros de Castro fala do lugar do
antropólogo amazonista; e quando fala, parte de seus estudos sobre os povos indígenas
que fizeram derivar os conceitos de perspectivismo e multinaturalismo ameríndio – e
não daquelas sociedades nigerianas do livro de Chinua Achebe. Entretanto,
desterritorializar o conhecimento, tomando emprestado o que pode servir como
potencializador para o que aqui discutimos - o método sociológico de análise de Norbert
Elias -, nessa antropofagia deslocada, justifica o ato.
A transversalidade de se fazer uso de uma narrativa literária para orientar
determinada discussão sobre temas sociológicos, além de legítima, é fértil. As
10
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
possibilidades que Norbert Elias desperdiça ao sepultar o pensamento daqueles povos,
sob seu viés etnocêntrico, são sintomáticas: o esgotamento de nossas categorias de
análise nas ciências sociais, por se privarem, muitas vezes, do mergulho profundo em
outras formas de pensar. O conhecimento Ocidental contemporâneo, por mais que se
faça valer da síntese de um enorme amontoado de saberes, perde em intensidade quando
deprecia outras perspectivas ontológicas e as descarta rapidamente por entendê-las
superadas.
Para sua análise sobre o tempo, a forma como Elias se dirige à cultura daquele
povo narrado no romance serve ao seu propósito: construir uma linha tosca e grosseira
da evolução dos saberes. Mas não podem passar batidos os custos do projeto. Vejo nisso
o quadro de toda uma tradição do conhecimento “europeu”. Olhar para o Outro e de sua
forma de ver com altivez e soberba.
Analisando o mesmo trecho citado por Elias (ACHEBE Apud ELIAS, 1998, p.
132), onde a lua é personificada pelos personagens, e descartando sua interpretação
deste fenômeno como animismo – pautado numa concepção multiculturalista -,
colocando em seu lugar a perspectiva do multinaturalismo proposta por Viveiros de
Castro, percebemos menos uma forma primitiva de ver o mundo do que uma ontologia
diferente.
Esse reembaralhamento das cartas conceituais levou-me a sugerir a expressão
“multinaturalismo” para designar um dos traços contrativos do pensamento
ameríndio em relação às cosmologias “multiculturalistas” modernas:
enquanto estas se apoiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e
multiplicidade das culturas – a primeira garantida pela universalidade
objetiva dos corpos e da substância, a segunda gerada pela particularidade
subjetiva dos espíritos e dos significados -, a concepção ameríndia suporia,
ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 44)
Ao passo que o multiculturalismo como política pública pressupõe a tutela
paternalista da tolerância, o multinaturalismo reconhece uma equivalência do
“espírito”, relegando ao corpo o lugar da diferença, uma vez que “a diferença 'jamais' se
anula completamente” (LÉVI-STRAUSS Apud VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 49). Onde o
corpo:
(...) é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus,
um ethos, um etograma. Entre a subjetividade formal das almas e a
materialidade substancial dos organismos, há esse plano ventral que é o corpo
como feixe de afetos e capacidades, e que é a origem das perspectivas. Longe
11
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é um
maneirismo corporal. (VIVEIROS DE CASTRO. 2015, p. 66)
Ao analisar desse modo a apreensão daquele coletivo com relação ao mundo –
em suma, sua cosmopolítica -, Elias não está sendo somente etnocêntrico. Está também
anulando boa parte da potência contida naquela forma de pensar, em nome da
objetificação acadêmica do conhecimento. Está sendo raiz, ao passo que é o rizoma que
nos interessa.
.perspectivismo ameríndio: por uma sociologia menor
É em intensidade que é preciso interpretar tudo.
Gilles Deleuze & Félix Gattari, Anti-Édipo
Aqui, para falar sobre pensamento nômade, devir e desterritorialização do
pensamento, será preciso levar os passos desse ensaio dançarino até outro campo: o
filosófico, nos servindo daquilo que disseram Deleuze e Guattari. Claro, além de dois
desses termos estarem frequentemente presentes ao longo de seus trabalhos – clara ou
subliminarmente -, as reflexões de Viveiros de Castro estão em afinações muito
próximas a dos pensadores franceses. A epígrafe acima, que abre essa sessão, é a
mesma que dá início ao Metafísicas Canibais. São inúmeras as referências ao trabalho
de ambos ao longo do texto – de novo: clara e subliminarmente.
Já que o presente ensaio é menos traço do que borrão, inicio seu fecho me
referenciando a dupla de pensadores franceses:
Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma
minoria faz em uma língua maior. Mas a primeira característica, de toda
maneira, é que, nela, a língua é afetada de um forte coeficiente de
desterritorialização. (DELEUZE & GATTARI. 2015, p. 35)
Quando Kafka escrevia em alemão na República Tcheca de seu contexto,
descendente de família judia, fazia da desterritorialização da língua um ato político. Um
ato solitário, mas que, ao fim e ao cabo, remetia ao coletivo. Ele podia falar sobre o
conflito de pai e filho – como em Carta ao Pai -, mas nem por isso o texto deixava de
ter um programa político. Nesse sentido, resgatar determinadas narrativas literárias –
como Elias faz ao tornar A flecha de Deus uma referência de seu ensaio -, tem um certo
12
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
caráter político e desterritorializante. O problema reside, como dito antes, no modo
como é (re)tratada essa narrativa do Outro.
O resgate das narrativas literárias tem a potência de mergulhar nas
subjetividades e nas socialidades8 que perpassam o social, sem com isso perder em nada
a qualidade do que – ou de quem – se interpreta. Nisso abrem-se inúmeras
possibilidades ao pesquisador, a partir dessa etnografia ficcional. É por isso que “ler
ficções é altrerar-se, mudar a própria posição existencial, re-situar a própria existência
diante de uma nova inexistência descoberta”(NODARI, 2015, p. 82). Ou seja, “o eu, o
aqui, o mundo se modifica diante de um novo eu-aqui: não se trata de relativismo, mas
de perspectivismo” (Ibidem, p. 80, grifo meu). A fim de buscar nesse exercício o
desenvolvimento da arte de ver, sugiro que se tome como fundamento o perspectivismo
ameríndio de que nos fala o antropológo Viveiros de Castro: não o livro como objeto,
espelho; mas como pessoa, “isto é, como manifestação individual de uma multiplicidade
biossocial” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.46). Onde os personagens vão além da
dicotomia entre real e falso. E que mesmo guardados em sua qualidade de
subjetividades inventadas, carregam o potencial de serem absorvidos e observados a
partir da troca de perspectiva entre eles e quem os lê – a saber: nós, leitores.
A primeira vista, essa proposição pode ser bastante estranha à gama dos métodos
sociológicos de fazer pesquisa. Mas é justamente contra a primeira vista que esse ensaio
investe sua potência – a perspectiva da “primeira pessoa”: aceitemos a relevante tarefa
proposta por Foucault, a de penser autament o pensamento - “pensar 'outramente',
pensar outra mente, pensar com outras mentes” (ibidem, p.25). Ou seja, apropriar-se da
reflexão que o antropólogo traz à sua disciplina, buscando afetar outras áreas do
conhecimento com esse forte coeficiente de desterritorialização que vem do
perspectivismo ameríndio. Elevando dessa forma a sociologia à qualidade de uma
ciência menor, capaz de conceber os platôs que derivam da contingência resultante da
troca entre diferentes perspectivas ontológicas.
13
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
Notas
1. Vale ressaltar as discussões sobre a parcela ficcional que cabe até mesmo às narrativas autobiográficas
– que numa perspectiva derridiana, são concebidas como otobiografias: ou seja, as ficções do discurso
sobre si próprio. Não irei me aprofundar nas discussões sobre essa questão – que são muitas -, vale apenas
trazer para esta reflexão esta perspectiva a fim de ilustrar que mesmo os textos que que comumente se
concebem como narrativas “reais”, baseadas em fatos verídicos, têm, segundo as perspectivas pautadas na
otobiografia, sua parcela de ficcão.
2. AGAMBEN, G. O que é um dipositivo? p. 09 In: outra travessia nº05, Ilha de Santa Catarina: 2º
semestre de 2015.
3. Há disponível no Brasil uma edição traduzida do romance pela Companhia das Letras – que possuo e já
li. Contudo, a fim de dirigir a análise deste ensaio somente ao trabalho de Norbert Elias, preferi
referenciar apenas os trechos que o sociólogo se utiliza para construção de seus argumentos.
4. Aqui, calendário pode ser entendido simplesmente como “o momento de agir”.
5. Arte política do perspectivismo ameríndio em contraposição à arte política do multiculturalismo tutelar
das modernas sociedades Ocidentais. Metafísicas Canibais, Viveiros de Castro, 2015, p. 49 e 50.
6. Para utilizar um conceito de Viveiros de Castro, em contraposição ao “animismo” que Norbert Elias
lança mão para descrever ontologia do povo do romance. Metafísicas Canibais, Parte I, Capítulo 3:
Multinaturalismo.
7. O povo de Umuaro separava a lua entre “Lua boa” e “Lua má” – onde aquela de qualidade
perversa teria a capacidade de matar aquele ou aquela que para ela olhasse e incomodasse: ACHEBE, C.
apud ELIAS, N. 1998, p.132
8. “(…) a socialidade como a ação criadora e subversiva dos atores sociais (...)”. (MAFFESOLI, M.
apud SILVA, C. M. 2005, p. 186)
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dipositivo? p. 09 In: outra travessia nº05, Ilha de
Santa Catarina: 2º semestre de 2015.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2015.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
JABLONKA, Ivan. La historia es una literatura contemporánea: manifesto por las
ciencias sociales. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
2016.
LIMA, Luís Costa História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
14
Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano XIV, n. 08 – 2016
______. Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio para uma filosofia
do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SAER, Juan José. O conceito de ficção. Revista Sopro nº 15. Desterro: Cultura e
Barbárie, 2009.
SILVA, Cristina M. O romance da vida social: encontros entre ciências sociais e
literatura. Revista Emancipação. v. 5, n. 1. 2005.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma
antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.