Perrusi, Artur. Sociologia histórica da doença: o caso da AIDS
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XV Congresso Brasileiro de Sociologia
26 a 29 de julho de 2011, Curitiba (PR)
Grupo de Trabalho: GT20 - Saúde e
Sociedade
Título do Trabalho: Sociologia histórica da
doença: o caso da AIDS
Nome completo e instituição do(s) autor(es):
Artur Perrusi – Universidade Federal da
Paraíba, Departamento de Ciências Sociais.
Sociologia histórica da doença: o caso da AIDS
Introdução
O foco do texto será as mudanças na percepção social da doença e do doente,
ocasionadas pelo advento da Aids. Contudo, não há uma relação causal direta
e imediata entre o seu surgimento e as diversas transformações que ocorreram
no campo imaginário da doença e da saúde. A Aids inscreve-se, na verdade,
num contexto histórico bem complexo que relaciona transformações de longo
alcance na sociedade moderna e re-significações no processo saúde-doença.
Justamente pela Aids ter uma história, achamos necessário, para compreender
as novas percepções sociais sobre a doença, realizar inicialmente uma breve
comparação com representações de doenças do passado, como a peste, por
exemplo. A Aids, de certo, mistura diversas representações, incluindo as mais
antigas, ao mesmo tempo em que radicaliza algumas, cujas origens podem ser
encontradas na tuberculose e no câncer. Talvez seja essa radicalização,
principalmente política, como veremos mais adiante, a maior originalidade da
Aids, em relação às outras doenças.
A comparação, mesmo rápida, é importante, até porque a história da Aids é
recente e, por vezes, por causa disso, não percebida como um processo
inscrito numa temporalidade de longa duração. As percepções sociais em torno
dela não se esgotam no contexto do surgimento da doença. Estão aquém, pois
têm um pé no passado, e além, até do desencadeamento da enfermidade, já
que sofrem mudanças ao longo do tempo. Além do mais, a Aids é, de forma
inédita, uma construção social a olhos vistos. Surge e se transforma sob
nossos olhos. Cria medos e emoções, reproduzindo outros mais antigos.
Ocupa o espaço público e exige o reconhecimento do Estado. Torna evidente a
articulação entre o biológico, o político e o social. Mais ainda: a apropriação
científica do fenômeno foi e está sendo simultânea à sua captura pela opinião
pública, em particular pela mídia. Nunca o jogo de relações, muitas vezes
conflituoso e ambíguo, entre ciência e senso comum, mediado pela mídia, foi
tão visível e explícito (Herzlich, Pierret, 1988).
Para facilitar a comparação e tendo uma função apenas metodológica,
utilizaremos modelos tanto de doente como de doença para assim indicarmos a
originalidade da Aids1. Os modelos podem ser interpretados, também, mesmo
com algumas ressalvas, por causa de sua generalidade, como indicadores de
percepções sociais da doença e do doente. Tais percepções juntam, no fundo,
doença e doente pelo simples fato de sua implicância mútua. Usualmente, uma
concepção social de doença implica, de forma velada ou não, uma de doente, e
vice-versa.
Por fim, ainda que o texto tenha um caráter de ensaio, prescindindo assim de
uma averiguação empírica, nossas interpretações possuem uma base de
dados e informações, proveniente de uma pesquisa financiada pela UNESCO e
pelo Ministério da Saúde: “Casais soro-discordantes no estado da Paraíba:
subjetividade, práticas sexuais e negociação do risco”2.
Doente-objeto e Flagelo
A objetivação do doente pela biomedicina é um tema recorrente na sociologia
da saúde (Camargo Jr., 2003; Martins, 2003). De fato, uma prática terapêutica,
fundada na tecnologia e na biologia, tem a tendência em subsumir as
experiências existenciais dos doentes a resíduos subjetivos sem importância
(Fernandes, 1993). Haveria, neste ponto, uma dessubjetivação do doente.
Contudo, a visão do doente, como um mero expectador de seu sofrimento, não
é uma “invenção” da biomedicina, pois podemos encontrá-la em outros
modelos mais antigos, incluindo aqueles enraizados nas diversas formas do
cristianismo3. O doente, como um sofredor, que deixa seu devir nas mãos de
Deus, seria equivalente, do ponto de vista da passividade, ao doente que
espera (logo, tem a esperança em) a ação redentora do médico. A esperança,
muitas vezes fundada no desespero, traduz uma situação de dependência, não
1 Inspiramo-nos, na elaboração dos modelos, dos trabalhos de Langlois (2006) e de Herzlich e Pierret,
(1991). 2 Pesquisa realizada na cidade de João Pessoa-PB. Teve como população estudada casais
sorodiscordantes heterossexuais, nos quais um dos membros é soropositivo, isto é, portador do vírus HIV. A pesquisa teve a duração de dois anos e foram entrevistados 22 casais sorodiscordantes. 3 Como mostra Laplantine (2004), os modelos etiológicos e terapêuticos, muitas vezes, têm um
enraizamento histórico antigo e, algumas vezes, imemorial.
importando aqui se em relação ao divino ou à medicina. Essa dependência, por
sua vez, implica uma ausência de si, já que tem como fundamento uma
passividade ontológica. Ocorre, assim, uma negação radical da singularidade
da experiência da doença.
A negação da vivência do doente pode significar, além do mais, uma
desqualificação social, acarretando a exclusão de sua comunidade. O caso da
lepra, no período medieval, é um exemplo, até mesmo pela violência do
isolamento que sofreu o leproso. No mundo contemporâneo, o estigma e o
preconceito, contra determinadas doenças, revelam processos de
desqualificação social, acompanhados de algum tipo de exclusão ou, como é
mais comum, de alguma forma de normalização. Nesse último caso, numa
situação de desqualificação social, a normalização não representa
necessariamente a positivação do status do doente, mas sim, várias vezes, um
sintoma de dominação social.
A dessubjetivação é um processo social, mas pode ter como alvo a
individualidade e/ou a coletividade. No caso da lepra, houve a combinação das
duas formas: era o leproso, visível por causa de sua chaga, excluído e vivendo
em leprosários, onde vivia a coletividade de seus iguais. Nas epidemias, tipo a
peste, é a coletividade que é atingida, física e simbolicamente. O indivíduo está
subsumido no coletivo. A maldição da peste é culpa da comunidade. O flagelo
tem o poder da dessubjetivação coletiva – a percepção social, baseada no
horror e na desgraça, esvazia a experiência coletiva da doença da
comunidade. Por isso, a culpabilização comunitária, em que o medo domina,
como um pânico moral e coletivo; a vergonha de fazer parte de uma
comunidade “amaldiçoada”; a necessidade do segredo, que vira tabu, e,
inclusive como consequência, a inevitabilidade da confissão4.
A doença antiga tem como substrato o contágio. É o contato com o outro que
se torna abominável (Herzlich, Pierret, 1991). O outro, ao se tornar doente,
torna-se maldito. Mas o outro faz parte indissolúvel da comunidade. O contágio
4 Segundo Langlois (2006), esse modelo, baseado no medo, na vergonha social, no segredo e na
confissão, configura a visão piedosa da doença.
é coletivo, abarca e marca a todos com seu horror. A culpa é comunitária. Sua
expiação não depende de procedimentos individuais ou idiossincráticos, mas
sim de métodos ritualísticos que abranja todo mundo. Mesmo a autoflagelação
é dirigida para além do corpo flagelado. A reparação dos pecados, por envolver
a comunidade, necessita da figura simbólica do bode expiatório, o outro da
comunidade (Girard, 1998).
O modelo do flagelo é antigo, mas se atualiza constantemente. A Aids, pelo
menos no início, incorporou tais representações. Não causa surpresa sua
designação como “peste gay”. Atualmente, com a tecnologia médica e as
biopolíticas do Estado Moderno (Foucault, 2009; Fassin, 2000), as epidemias
antigas desapareceram ou se tornaram endêmicas. As representações do
flagelo, aos poucos, foram deslocadas e capturadas pela mídia. Agora, é um
assunto praticamente midiático. Roda o imaginário da população, influencia
comportamentos, mas concretamente o flagelo é um evento raro nas
democracias ocidentais. Existe como potência, principalmente no medo de uma
epidemia catastrófica, seja em expectativas reais, como o Ebola, seja no
mundo ficcional, a começar pelos mundos distópicos da literatura e do cinema.
Individualismo e percepção social da doença
Talvez, o fim ou a diminuição das epidemias tenha sido a condição necessária
para a mudança nas percepções sociais da doença; mas, provavelmente, não
foi a condição suficiente, pois não podemos negar a articulação histórica do
processo saúde-doença com outras determinações societárias. As epidemias
antigas surgiam e estavam inscritas em sociedades tradicionais onde o balanço
nós/eu pendia inapelavelmente para o nós (Elias, 1994). A socialização das
experiências de subjetivação ou de dessubjetivação da doença aconteciam por
vias predominantemente comunitárias. A vivência singular de uma doença,
mesmo sendo uma “construção social”, era estruturada coletivamente. Enfim, o
mundo era outro.
Mas, o que mudou?
Abaixo, de forma esquemática, tentaremos resumir a discussão, focando as
articulações entre individualismo, saúde, vida, valores e política:
1. A sociedade ocidental, na balança entre nós/eu, pendeu
progressivamente para o eu. Foi um longo “processo civilizador” (Elias,
1993) no qual a lógica do vínculo social passou a ser hegemonizada por
um sistema moderno de crenças, o individualismo (Dumont, 1985);
2. A “base material” do individualismo é a complexa diferenciação social,
organizada por uma sofisticada divisão social do trabalho. Há uma
conexão entre diferenciação social e individuação (Durkheim, 2010).
Quanto mais desenvolvida, mais singularizada, em tese, a
individualidade. A singularização do indivíduo vem acompanhada da
explosão na quantidade de papéis sociais;
3. Começa a surgir uma contradição entre funções e instâncias, antes
fundidas num mesmo processo: entre comunidade e sociedade
(Tönnies, 2010), entre identidade e papel social (Dubar, 2005), entre
sentido e função (Perrusi, 2009), entre destino pessoal e trajetória social
(2003). Assim, o processo de constituição do ego não está mais
conectado diretamente ao processo de socialização. Como não há mais
fusão entre sentido e função, identidade e papel social, a formação da
personalidade desmembra-se em dois processos conectados, porém,
não mais amalgamados. O indivíduo moderno funda-se nessa clivagem
existencial: o Eu distante do Nós;
4. A existência passa a ser menos um atributo dado pela socialização do
que uma "construção" socialmente encampada pelo sujeito. A
construção é um risco, pois agora baseado numa incerteza ontológica.
Pode acontecer o fracasso.
5. A vida abandona sua conexão com o transcendental e é capturada pela
saúde. Vida e saúde fazem parte de uma sinonímia. Tal captura
alicerça-se em ideologias poderosas e mobilizáveis: a) crença na
tecnologia moderna; b) crença na ciência; c) crença na medicina; d)
crença na capacidade individual de autorregulação e autodisciplina física
e mental. A saúde, como categoria de valor, é também um dispositivo de
ordenamento moral, essencial à integração social.
6. A saúde, como categoria de valor, tornou-se fundamental quando se
conectou, de forma umbilical, à lógica igualitária do individualismo. A
igualdade é um dos valores supremos da modernidade. Sua lógica
aponta diretamente para a formação do indivíduo moderno. A
radicalização da igualdade só se realiza no reconhecimento moral e
jurídico da individualidade. A lógica igualitária interpela o núcleo da
individualidade e da subjetividade modernas, o corpo. A importância da
saúde é proporcional à valorização do corpo, esse santuário da
individualidade e da subjetividade. O corpo profano é a sagração da
saúde. Nesse sentido, a saúde tem relação com as diversas práticas de
controle do corpo, principalmente com a disciplina (Foucault, 2009);
7. A saúde ao se identificar com a própria vida faz com que a medicina
indique o sentido dos processos vitais. Ocorre um reducionismo
axiológico: a saúde assume um papel essencial para definir o que é a
vida boa. O campo da saúde torna-se um poder constituinte da ordem
moral da sociedade. Sendo um poder constituinte, a saúde toma um
caráter político, permitindo a apropriação da vida pela política ou, mais
especificamente, pela biopolítica (2009);
8. Após as barricadas de 68, aos poucos, a soberania desloca-se para a
individualidade. O individuo é visto como soberano de si mesmo. Não
precisa tanto da disciplina e sim da responsabilidade (Ehrenberg, 1998).
Os comportamentos passam a ser balizados menos por uma obediência
disciplinar do que pela decisão e pela iniciativa pessoais. O indivíduo
não age mais conformado a uma ordem externa; age utilizando seus
próprios recursos, suas competências e aptidões cognitivas.
Quais seriam as consequências de tais transformações nas percepções sociais
da doença, em particular na da Aids?
A individuação moderna corre, pari passu, com a progressiva singularização do
processo saúde-doença. A responsabilização do indivíduo torna latente a
responsabilização do doente, agora provedor do “cuidado de si” (Foucault,
2007). Podemos perceber melhor essa questão, oferecendo como exemplo os
casos da tuberculose e do câncer.
Os processos de “metaforização”, analisados por Sontag (1984), além de
relacionar a tuberculose e o câncer a diversas metáforas que estigmatizam o
doente, revelam uma mudança no campo imaginário das doenças. As
metáforas têm como alvo o indivíduo. Há até mesmo uma “psicologização” nas
representações dessas doenças (Laplantine, 2004).
Entretanto, a tuberculose, talvez, seja mais ambígua, já que mais “antiga” do
que o câncer. Ela é vista, ao mesmo tempo, como flagelo, quando ataca as
classes populares, e como uma doença romântica, relacionada à elite
intelectual do final do século XIX. Ela é coletiva no primeiro caso e
individualista, no segundo.
Já o câncer é uma doença, de fato, “individualista”. Como doença do indivíduo,
é uma doença moderna, por excelência. É a doença silenciosa de um doente
solitário. Câncer é silêncio: “tudo aquilo que rói, corrói, corrompe e consome
lentamente e secretamente” (Sontag, 1984:15). É o corpo contra o próprio
corpo, numa espécie de vingança absurda. As metáforas são terríveis e
desvelam uma culpa individual: o mal é causado pelo modo de vida, pela
relação do indivíduo com a sociedade – são suas falhas, inclusive as de
natureza psicológica. O câncer é o sintoma de uma vida mal vivida. É o indício
de uma sociedade hedonista e baseada na espontaneidade (autenticidade). É,
no fundo, produto da tirania do prazer.
A Aids radicaliza esse aspecto individualista do câncer. Além de ter sido uma
“peste gay, logo, um flagelo, foi-se transformando num “câncer gay”. Ao se
tornar “câncer”, a Aids enfim encontrou uma metáfora individualista. Porém, foi
mais além na radicalização: assim como o câncer, a Aids responsabiliza o
indivíduo ordinário. Com a responsabilização, as duas doenças, mas
principalmente a Aids, colocam em cena o doente sujeito.
Tal problema tornou-se agudo, no caso da Aids, já que sua significação social
mudou, consideravelmente, nesses últimos dez anos. Com os avanços no
tratamento, houve uma cronificação da doença. Não é incomum que ocorram
reconfigurações simbólicas e práticas quando uma enfermidade deixa de ser
aguda, tornando-se crônica. O primeiro efeito é na própria experiência social da
Aids, antes vivenciada como morte eminente, agora vista como passível de
tratamento. Tal fato significa um aumento na expectativa e na qualidade de
vida do portador do HIV. Com isso, a responsabilização do doente pode ser
negociada e até imposta.
A Aids mudou a representação social da doença no mundo contemporâneo,
mas também a forma como se relacionam o sistema médico e os doentes
(Dodier, 2003). A mudança nas percepções sociais da doença possui uma
afinidade eletiva com a que ocorreu no campo das instituições médicas. A
medicina, como instituição pública, transformou-se numa medicina de massa,
fazendo parte dos diversos dispositivos de controle da sociedade. Boa parte de
tais dispositivos são geridos pela lógica do risco, como discutiremos mais
adiante. A Aids, nesse sentido, insere-se nessa série de transformações,
reconfigurando a lógica do risco e os espaços de atuação no campo
institucional da saúde. Nessa reconfiguração, os diversos atores sociais,
principalmente as pessoas que vivem e convivem com o HIV, constituíram um
espaço público inédito na história das doenças. A atuação política nesse
espaço influenciou de sobremaneira a conduta médica e as representações da
doença.
O Doente/sujeito
Podemos perceber esse “novo” doente por meio da análise de duas
características nas práticas sociais associadas à Aids5:
5 Boa parte da discussão abaixo é proveniente do Relatório Técnico Final da Pesquisa/Projeto: “Casais
soro-discordantes no estado da Paraíba: subjetividade, práticas sexuais e negociação do risco”. O relatório foi produzido pelos seguintes professores da Universidade Federal da Paraíba: Prof. Dr. Artur Perrusi (Departamento de Ciências Sociais – DCS), Profa. Dra. Monica Franch (DCS), Profa. Dra. Maria de
1. Gestão racional e individual dos riscos
Se a individualidade moderna rompeu com o destino, tornando o futuro uma
questão de volição, ao mesmo tempo fez do devir um risco, já que incerto. Não
causa surpresa, assim, que o risco tornou-se um sintoma da modernidade
tardia, quando a gestão da vida, na sociedade dita disciplinar (Foucault, 2009),
passou a ser propriamente uma gestão do risco, isto é, uma sociedade do
controle (Deleuze, 1992). Não que o risco não existisse, como tal, nas
sociedades tradicionais, mas era percebido de forma diferente, isto é, como
perigo, fatalidade ou mesmo destino. O risco, na modernidade, é um
acontecimento relacionado à contingência, ao acaso e, principalmente, à
incerteza, inscrito paradoxalmente numa sociedade que percebe o controle do
futuro, logo, do tempo, como uma necessidade. O risco é uma fortuna que
precisa ser calculada, até porque o futuro precisa ser previsto, logo, controlado.
Assim, aos poucos, houve a passagem cognitiva de uma expectativa temporal
baseada na determinação, isto é, no destino, para outra, baseada na
probabilidade e na tendência. O predomínio do risco não deixa de ser a história
da noção de probabilidade (fundamento da estatística, por exemplo, a mais
estatal de todas as ciências). O risco convive historicamente, na sua origem,
com a necessidade do controle populacional – torna-se, de certa maneira, a
mensuração desse controle. Utilizando uma linguagem foucaultiana, o risco é a
face contábil do biopoder, isto é, a base estatística da biopolítica.
A gestão do risco não é incompatível com a responsabilização do indivíduo; ao
contrário, há uma afinidade eletiva entre os dois processos. Com o “cuidado de
si” (Foucault, 2007), ampliou-se o contexto simbólico do risco: sua gestão,
antes pública, tornou-se também privada. Aliás, a gestão de si é a base da
autorregulação, consequência histórica de uma crença máxima, tornada
prática, da modernidade: autonomia do sujeito.
Fátima Araújo (DCS) e Profa. Ms. Luziana Marques da Fonseca Silva (Departamento de Ciências Sociais Aplicadas).
É uma gestão individualizada, que coloca o corpo como constituinte da
identidade, ultrapassando a mera biografia, por isso, indo ao encontro de um
projeto reflexivo. É uma administração racional da informação e do
conhecimento sobre a situação ou o objeto de risco. Portanto, a gestão privada
acompanhou a reflexividade (Beck, 2008) da gestão pública do risco: a
administração racional do mundo. Inclusive, a racionalização pública do perigo
aconteceu pari passu à sua gestão privada: o risco, na gestão individual,
pressupõe que possíveis danos são consequências da decisão do sujeito
(2008). Ocorre, assim, a responsabilização individual do risco. A autonomia do
sujeito é cobrada socialmente: risco envolve uma capacidade de manejar uma
técnica de si, logo, uma autorregulação baseada num tipo de racionalidade -- a
adequação e otimização entre meios e fins.
O portador de HIV é visto como um indivíduo que gere, de forma racional, os
riscos da soropositividade; inclusive, é cobrado por isso. É um parceiro da
divisão técnica do trabalho médico e, por meio das organizações da sociedade
civil, das políticas públicas do Estado. Ele torna-se um sujeito ou, como tal, é
incentivado a sê-lo, pois precisa conhecer a doença e seu corpo, em suma, ter
cuidado de si (Mono Ndjana, 2010). A soropositividade e a doença tornam-se um
momento de subjetivação, ou seja, é um processo identitário, baseado no
reconhecimento de uma identidade social, como portador ou como doente, e na
doença como “experiência de vida”. É uma “bioidentidade positiva”. O doente
tem o direito de ser tratado, mas agora assume a responsabilidade pela gestão
de sua saúde.
Tais considerações são verificadas empiricamente? Sim, não, mas sim, mas
não, nem isso (Perrusi; Franch; 2009).
A discussão acima perfaz apenas um modelo. No fundo, a responsabilização
do doente pode ser interpretada, também, como a imposição de um biopoder.
O “cuidado de si” pode mascarar a imposição de prescrições comportamentais
ao doente, sem considerar seus valores e seu contexto social. A gestão privada
do risco implica, muitas vezes, a aplicação de meios compulsórios, traduzidos
numa lista de “bons comportamentos” que, geralmente, normatiza a prevenção
e se torna “fator de proteção”. E, claro, a prescrição vem de “fora”: é uma
conduta comum entre os profissionais da saúde, impondo uma relação
profissional-usuário, baseada numa polarização entre um polo ativo e outro
passivo. A prescrição preventiva, inevitavelmente, atribui papéis sociais ao
doente.
De todo modo, é uma situação complexa e contraditória, até porque a
imposição da prescrição combina-se à responsabilização do doente, visto como
sujeito da gestão do risco. O indivíduo é o responsável da sua saúde e,
consequentemente, da adoção de comportamentos preventivos. O fracasso da
prevenção é individualizado e deslocado para o doente, que não foi capaz de
assumir para si o modelo de prevenção.
2. Politização da Aids e o campo da saúde
A Aids é uma doença política. Sua politização é inédita na história das
doenças. Investigar as causas desse fenômeno não será objeto desse texto.
Contudo, podemos levantar a hipótese de que a Aids tocou fundo nas relações
entre marginalidade, doença e resistência política. Se implicou
“comportamentos de risco”, significa que, desde sempre, a Aids foi uma doença
que afetou setores minoritários e marginalizados da sociedade: homossexuais,
drogados, africanos. Ao mesmo tempo, seu surgimento coincidiu com o apogeu
de uma forma de organização da sociedade civil e dos movimentos sociais: as
ONG’s. Havia já, por exemplo, principalmente nos países democráticos,
organização política dos homossexuais. Assim, o combate à Aids virou uma
bandeira de luta inserida na luta geral de reconhecimento das minorias sexuais.
Assim como, virou um fator de mudança nas percepções sociais da droga. Os
drogados, por sua vez, eram capturados ou pelo sistema judiciário ou pela
saúde pública. A Aids, dessa forma, permitiu a visibilidade das políticas de
redução de danos: a droga deixou de ser uma prisioneira da dualidade
crime/doença e passou a ser vista como... direito.
A politização da Aids repercutiu diretamente na assistência médica.
Curiosamente, uma política que afetou um código moral: a deontologia das
profissões no campo da saúde. Na tradição médica, é a autonomia profissional
que permite ao médico coordenar a relação médico/paciente. Sendo uma
interação, essa coordenação é também moral, já que implica uma ética
profissional. Assim, os limites éticos da relação médico/paciente são
determinados, via autonomia profissional, pelo médico. O médico é o grande
ator moral da relação terapêutica. Com a Aids, a tradição médica não consegue
resolver diversos problemas éticos trazidos pela politização da relação
terapêutica. Os pacientes tornam-se ativos nessa relação, pois ocupam o
espaço público, reivindicando um controle do ato médico em relação ao
portador de HIV e, ao mesmo tempo, lutam por uma política de
reconhecimento, envolvendo uma série de direitos do portador que interferem
diretamente na relação terapêutica.
Em vários países, inclusive no Brasil, principalmente nos setores de classe
média, os pacientes têm uma crescente voz ativa, seja na gestão cotidiana da
doença, seja na organização do serviço de atendimento. Como vimos acima,
há uma valorização do “doente ativo”, cuja responsabilidade é relevante,
inclusive, no tratamento. O “doente ativo” torna-se uma referência para uma
redistribuição dos poderes nas instituições de atendimento. A partir de um
determinado momento, o serviço médico, isto é, os próprios profissionais de
saúde delegam responsabilidades terapêuticas ao paciente (gestão técnica,
atenção a certos sintomas, etc.). Os portadores tornam-se parceiros do serviço
médico na gestão dos riscos da doença (Thiaudière, 2002).
Tal situação é bastante contraditória, pois, se há, de fato, uma tendência geral
pela responsabilização do doente e do soropositivo, inclusive estimulada pelas
próprias políticas públicas, ao mesmo tempo, a responsabilização entra em
choque com a tradição profissional dos médicos. A política de saúde,
implementada pelo serviço, subjetiviza o paciente, mas a tradição profissional
faz o contrário, reproduzindo uma relação médico-paciente que repousa na
determinação moral do primeiro e na passividade do segundo. Do mesmo
modo, a responsabilização nem sempre é assumida pelos pacientes, que
assim adotam uma postura passiva e expectante.
Considerações finais
O que significa uma sociologia da saúde que percebe a doença como história?
Creio que seja essa pergunta o pano de fundo mais geral de toda nossa
discussão. Assim, seria o momento de marcar posição. Para nós, “doença” é
um conceito que não decorre necessariamente da experiência social. Nesse
sentido, podem ser modelos explicativos, ajudando a interpretar uma realidade
empírica complexa, mas não são elementos constitutivos do real. Como
conceito, a “doença” só se realiza dentro de um esquema de interpretação da
realidade (Grmek, 1995). Existe, dessa forma, uma história do conceito de
doença ou uma história dos modelos médicos de doença. Não negamos que
tais modelos de doença podem se tornar um sistema de crença ou uma
ideologia científica (Canguilhem, 1994), logo, tendo uma eficácia real. Uma
eficácia parecida com os modelos de doença construídos pela experiência
social, isto é, pelos próprios doentes e pelo senso comum. E uma eficácia que
depende, inclusive, do reconhecimento social do fato mórbido – sem o
reconhecimento, a “doença” não é percebida; portanto, não existe no processo
saúde-doença. Acreditamos que essas três situações estão implicadas na
realidade do fenômeno que chamamos de “doença”. Assim, se suas
propriedades biológicas são reais, seus significados sociais são tanto quanto: o
sentido da “doença” faz parte estrutural da “doença”.
Acreditamos que a Aids, como fato social total, seja um exemplo paradigmático
dessa articulação entre a biologia, a história, a moral e, como vimos, a política.
A Aids tem uma história, mesmo que recente. Ela mudou nos seus efeitos
patogênicos e nas suas significações sociais. Não existe uma “história natural”
da Aids sem que não exista sua “história social”. Os modelos médicos de Aids
mudaram, seus significados, também, os doentes, idem.
E foi justamente o que esteve em jogo na história da Aids que configurou sua
originalidade. A Aids juntou, inicialmente, um modelo de doença, baseado no
flagelo, com um individualista. Conectou, desse jeito, peste com câncer, pânico
coletivo com sofrimento individualizado. Porém, foi mais além: articulou política,
doença e assistência médica, modificando políticas públicas e as relações de
força entre médico e paciente. Como nasceu na sociedade de risco, não teve
pruridos em misturar gestão pública e privada do risco. Misturou, também,
estilos de vida com estilos de risco, reverberando em diversas formas de
sociabilidades. Com a responsabilização do doente e do soropositivo,
aprofundou o fenômeno tão moderno do “cuidado de si”.
Enfim, a politização da Aids coloca a nu a naturalização do social e dos valores
imposta pela biomedicina. A naturalização já aparece conectada à
individualização do processo saúde-doença. É uma medicina que isola e
captura o indivíduo por meio de uma acentuada sofisticação tecnológica. A
politização bate de frente contra o predomínio do individual sobre o coletivo, do
natural sobre o social, do técnico sobre o político, do médico-assistencial sobre
o médico-sanitário e, enfim, do privado sobre o público.
Assim, a Aids é, além de político, um problema moral. Com suas contradições,
interrompe esse deslocamento que a biomedicina, por meio da técnica, do
ideário da neutralidade e da meritocracia, produz no campo axiológico: as
questões morais, principalmente aquelas relacionadas à sexualidade, passam
sem mediação para a gestão do risco e são transmutadas em problemas
administrativos e tecnológicos (Ayres, 2008).
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