Permusi - 1

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Artigos sobre música

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  • Editorial

    O Programa de Ps-Graduao da Escola de Msica da UFMG ([email protected]) apresentaPER MUSI - Revista de Performance Musical, aberta diversidade de temas caractersticos darea de performance musical. Alm de tratar de assuntos especficos como tcnicas e prticas deperformance, decises de interpretao, re-criao musical, improvisao, gestual e interao com opblico entre outros, PER MUSI tambm abrigar temas resultantes de interfaces da performancemusical com outras reas (musicologia histrica, educao musical, composio, anlise, tecnologia,medicina e filosofia).

    A idia de criao de PER MUSI, concretizada agora com a publicao de seu primeiro volume, surgiuem 1995 em Joo Pessoa, durante o VIII Encontro Anual da ANPPOM - Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Msica, motivada tanto pela necessidade de estimular a pesquisa emperfomance musical quanto pela ausncia de um veculo de divulgao cientfica especfico nessa rea.

    A inexistncia de uma associao cientfica nacional de performance musical e a tradio dos intrpretesde se expressarem por meio do discurso sonoro em detrimento do texto, ainda se colocam comoobstculos consolidao da pesquisa nessa rea e socializao de seus resultados. Por outro lado,a rea de performance musical, representada por instrumentistas, cantores e maestros, responde pelomaior nmero de ps-graduados em msica no Brasil.1 Desta forma, PER MUSI se apresenta comoespao ideal para divulgar trabalhos resultantes dessas pesquisas.

    A diversidade proposta por PER MUSI se reflete nesse primeiro volume. Embora tambm pretenda,esporadicamente, publicar trabalhos em outras lnguas, a Comisso Editorial optou por traduzir doisartigos inditos, um em ingls e outro em alemo. Andr Cavazotti nos traz um inusitado estudo sobreArrigo Barnab, abordando a introduo do serialismo e atonalismo na Msica Popular Brasileira. SandraAbdo nos apresenta uma reflexo terica sobre a execuo/interpretao musical, tendo como pano defundo algumas hermenuticas da filosofia contempornea. O alemo Tobias Glckler acompanha osdestinos de uma ria de Mozart at sua recente descoberta, ao lado do renascimento de prticas deperformance do classicismo vienense. Maurcio Freire Garcia aborda aspectos tcnico-musicais dagravao da flauta, em um texto bastante informativo tambm para os outros instrumentistas, cantorese profissionais de gravao. Ceclia Cavalieri Frana discute a relao entre a compreenso musicale a tcnica, e suas implicaes para a performance na educao musical. O americano AnthonyScelba analisa a estrutura de uma obra de cmara serial para voz e contrabaixo em estilo renascentistado compositor canadense Paul McIntyre com texto de William Shakespeare. Agradecemos a PaulMcIntyre por permitir a publicao, em primeira mo, da partitura completa de de Viol Will. CludioUrgel esclarece a notaco e a performance dos harmnicos naturais com a Tcnica de Nodo Duplo novioloncelo, que tambm se aplica a outros instrumentos de cordas. Flvio Barbeitas focaliza aimportncia da transcrio musical, fazendo um paralelo com a traduo na poesia.

    A Comisso Editorial de PER MUSI espera receber, com esse volume, sugestes para o aprimoramentoda revista e uma participao crescente em nvel nacional para os volumes seguintes.

    Fausto BormEditor-Chefe de PER MUSI ([email protected])

    1 Uma avaliao da produo dos cursos de mestrado em msica no pas mostrou que, das 262 dissertaes defendidasno pas at dezembro de 1996, 127 foram na rea de performance musical, alm de 17 cujos ttulos refletiam objetos deestudo situados em interfaces da performance com outras reas. ULHA, Martha Tupinamb de (Ed.). Dissertaes demestrado em msica at 1996. Opus. v.4, n.4, agosto, 1997. p.80-94.

  • PER MUSI - Revista de Performance Musical um espao democrtico para a reflexo intelectual na rea de msica, onde adiversidade e a controvrsia so bem-vindas. As idias aqui expressas no refletem a opinio da Comisso Editorial ou do ConselhoConsultivo.

    Comisso EditorialProf. Dr. Andr Cavazotti (UFMG/FAPEMIG)

    Prof. Dr. Ceclia Cavalieri Frana (UFMG)Prof. Dr. Fausto Borm (UFMG)Prof. Dr. Lucas Bretas (UFMG)

    Conselho Consultivo do Volume 1:Prof. Srgio Freire (UFMG)

    Profa. Salomea Gandelman (UNIRIO)Dra. Profa. Martha Ulha (UNIRIO)

    Profa. Sandra Abdo (UFMG)Dra. Profa. Rosngela de Tugny (UFMG)

    Prof. Flvio Barbeitas (UFMG)

    Universidade Federal de Minas GeraisReitor Prof. Dr. Francisco Csar de S Barreto

    Vice-Reitora Profa. Dra. Ana Lcia Almeida Gazzola

    Pr-Reitoria de Ps-GraduaoProf. Dr. Ronaldo Antnio Neves Marques Barbosa

    Pr-Reitoria de PesquisaProf. Dr. Paulo Srgio Lacerda Beiro

    Escola de Msica da UFMGProf. Dr. Cludio Urgel Pires Cardoso, Diretor

    Programa de Ps-Graduao em Msica da UFMGProf. Dr. Lucas Bretas, Coordenador

    Secretrias de Ps-GraduaoMestrado: Marli Silva Coura

    Especializao: Edilene Oliveira

    Projeto GrficoCapa e miolo: Jussara Ubirajara (CAV / CCS - UFMG)

    Marca Per MusiCriao: Prof. Fausto Borm - Editorao: Magella Perptuo (CAV / CCS - UFMG)

    FotosConservatrio: Foca Lisboa (CAV / CCS - UFMG)

    Escola de Msica: Prof. Fausto Borm

    PER MUSI: Revista de Performance Musical - v.1, 2000 - Belo Horizonte: Escola de Msica da UFMG, 2000

    v.: il.; 21,0cm X 29,7cm. Semestral ISSN: 1517-7599

    Msica - Peridicos. 2. Performance Musical - Peridicos. 3. Interpretao Musical - PeridicosI. Escola de Msica da UFMG

    UF G

    ISSN: 1517-7599

  • SUMRIO

    O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB:as canes do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnab ................................................................... 5Serialism and free atonalism land on Brazilian Popular Music:the songs of the LP Clara Crocodilo by Arrigo Barnab Andr Cavazotti

    Execuo/interpretao musical: uma abordagem filosfica....................................................... 16Music Performance: a philosophical approach Sandra Abdo

    Per questa bella mano KV 612 de Mozart: a redescoberta domanuscrito de uma ria de concerto para voz e contrabaixo obligato ea reabilitao de uma prtica de performance de afinao equivocada ................................ 25Per questa bella mano KV 612 by Mozart: the rediscovery of a manuscript of an aria forsoprano and double bass obligato and the rehabilitation of awrong tuning performance practice Tobias Glckler

    Gravando a flauta: aspectos tcnicos e musicais ......................................................................... 40Recording the flute: technical and musical aspects Maurcio Freire Garcia

    Performance instrumental e educao musical:a relao entre a compreenso musical e a tcnica ..................................................................... 52Instrumental performance and music education: the relationship between music understanding and skills Ceclia Cavalieri Frana

    Viol Will de Paul McIntyre: anatomia de um madrigal serialcanadense para voz e contrabaixo ................................................................................................. 63Viol Will by Paul McIntyre: anatomy of a Canadian serial madrigal for soprano and bass viol Anthony Scelba

    Partitura completa de Viol Will ........................................................................................................ 71Complete score of Viol Will Paul McIntyre

    Performance de harmnicos naturais com aTcnica de Nodo Duplo aplicada ao violoncelo ............................................................................ 77Cello natural harmonics performed with the Double-Node Technique Cludio Urgel

    Reflexes sobre a prtica da transcrio:as suas relaes com a interpretao na msica e na poesia ..................................................... 89Reflections upon transcription connected with interpretation in music and poetry Flvio Barbeitas

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    O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB:as canes do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnab

    Andr Cavazotti

    Resumo: Neste estudo, observa-se a relao da utilizao dos processos seriais nas canes do LP Clara Crocodilode Arrigo Barnab com o contedo sociolgico das letras, onde a marginlia da cidade de So Paulo na dcada de70 retratada. Conclui-se tambm que os processos seriais so utilizados como afronta ao tonalismo, como umaconotao da distoro e da desintegrao do centro tonal; paralelamente, no texto potico, o ser humano retratadoem sua forma distorcida e desintegrada.Palavras-chave: serialismo, atonalismo, MPB, msica popular brasileira, rock, Arrigo Barnab, Clara Crocodilo

    Serialism and free atonalism land on Brazilian Popular Music:the songs of the LP Clara Crocodilo by Arrigo Barnab

    Abstract: In this article, it is demonstrated that the use of serial procedures in the songs of the LP Clara Crocodilo byArrigo Barnab is directly related to the sociological content of the lyrics, in which the underground of the city of SoPaulo in the 1970s is portrayed. This investigation also demonstrates that the serial procedures used in ClaraCrocodilo represent an affront to tonality, indicating the distortion and disintegration of the tonal center; in the sameway, the lyrics portray human beings in their distorted and disintegrated state.Keywords: serialism, atonalism, MPB, Brazilian Popular Music, rock, Arrigo Barnab, Clara Crocodilo

    O lanamento do primeiro LP de Arrigo Barnab, Clara Crocodilo, em 1980, causou impacto nocenrio da msica popular urbana brasileira. Incensado tanto pela grande imprensa quanto pelamdia alternativa, Arrigo Barnab foi apontado como o primeiro compositor popular a utilizarsistematicamente os procedimentos seriais em suas composies.

    A partir do lanamento de Clara Crocodilo, Arrigo Barnab passou a ser considerado pelaimprensa como a maior novidade surgida na msica brasileira desde a Tropiclia, conformetestemunha SOUZA (1982, p.3) em uma nota jornalstica: () Arrigo Barnab surgiu em 1979como o personagem mais polmico da msica brasileira desde a Tropiclia, movimento lideradopor Caetano Veloso e Gilberto Gil ().

    O carter inovador que a imprensa lhe atribuiu se deveu, precisamente, a um trao caractersticoda sua composio: a mistura de elementos da msica erudita modernista, aliados a letras ferinassobre a vida nas metrpoles. Para compreender os motivos que teriam levado Arrigo Barnab aoperar esta mistura de elementos de culturas dspares num mesmo LP, so imprescindveis, j deincio, breves traos biogrficos do compositor. Nascido em Londrina, Paran, no dia 14 desetembro de 1951, Arrigo vem de uma famlia de classe mdia seu pai era escrivo e sua me,dona-de-casa. De formao catlica, freqentou o Colgio dos Irmos Maristas, e durante cincoanos foi aluno do Conservatrio Musical Carlos Gomes, tambm em Londrina, onde cursou

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    disciplinas tericas e piano. Seu desejo sempre foi ser inventor, primeiramente na rea da qumica,depois em arquitetura e, finalmente, em msica.

    Durante a adolescncia, fez parte de um crculo de amigos onde eram discutidos os mais variadosassuntos, desde matemtica at astrologia, ocultismo e msica. Deste crculo faziam parte MrioLcio Cortes, Robinson Borba, Paulo Barnab seu irmo caula e Antnio Carlos Tonelli,todos futuros colaboradores do LP Clara Crocodilo. Aos dezesseis anos, Arrigo mudou-se paraCuritiba onde fez o curso pr-vestibular. Nesta poca, fascinou-se com as obras de Plato, Voltaire,Rousseau, Kafka, Freud e Marx, afastando-se definitivamente do catolicismo.

    Nos freqentes retornos a Londrina, conheceu, naquele mesmo crculo de amigos, obras deStravinsky, Bartk, Stockhausen e Luigi Nono. Neste contexto fez suas primeiras composiesexperimentais. Este crculo discutia com insistncia um outro tema: os prximos passos da msicapopular brasileira. Era a poca da Tropiclia1 e da difuso do livro O Balano da Bossa deAugusto de Campos. Sobre os novos caminhos da msica popular brasileira Arrigo Barnabteceu a seguinte considerao:

    A Tropiclia um negcio que mexe muito com a pardia, no um movimento propriamentemusical. A loucura a letra, toda fragmentada. () A gente achava, ento, que o passoseguinte era mudar a prpria msica. () depois do tropicalismo, s a msica atonal tinhafuturo (ARANTES, 1981, p.17).

    Depois de curta estada no Rio de Janeiro, Arrigo mudou-se para So Paulo em 1970, onde cursouum ano de arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foi neste perodo que ocompositor comeou a se interessar por histrias em quadrinhos, quando visitou uma exposio noMuseu de Arte de So Paulo levado pelo cartunista Luiz G que, dez anos depois, faria a ilustraoda capa do LP Clara Crocodilo. As histrias em quadrinhos tornaram-se, para o compositor, pontode referncia esttica e fonte de inspirao de vrias personagens de suas canes.

    Em 1971, Arrigo participou do Festival de Inverno de Ouro Preto, onde teve aulas de composiocom Ernst Widmer. Nesta ocasio, fez parte da montagem da missa Orbis Factor, de AyltonEscobar, fato que o marcou consideravelmente. Em 1975, j tendo composto as canes ClaraCrocodilo e Sabor de Veneno, ingressou no curso de msica do Departamento de Msica daEscola de Comunicao e Artes da USP, onde estudou composio com Willy Correa de Oliveira,e piano com Caio Pagano. No ano seguinte, montou o conjunto Navalha, integrado por AntnioCarlos Tonelli (baixo-eltrico), Itamar Assumpo (voz e guitarra) e Paulo Barnab (bateria),antecipando a formao do grupo do LP Clara Crocodilo. Em 1978, abandonou o curso de msicada ECA/USP, onde, segundo afirma, teria sido desestimulado a compor e tocar. Com vistas aoFestival Universitrio da Cano da TV Cultura paulista - edio de 1979 -, Arrigo montou aBanda Sabor de Veneno. Interpretando a cano Diverses Eletrnicas, Arrigo e sua bandavenceram o Festival, em meio a vaias. A partir da, seguiram-se diversas apresentaes pelopas, com o pblico invariavelmente dividido entre o aplauso e a vaia.

    Com a Banda Sabor de Veneno e alguns msicos convidados, Arrigo gravou seu primeiro LP,Clara Crocodilo. A princpio, este LP seria lanado pela gravadora Polygram, dentro da srie

    1 1969 - o chamado Disco Branco de Caetano Veloso havia sido recm lanado, com as canes Objeto noIdentificado, Chuvas de Vero, Acrlico e Carolina, esta, de Chico Buarque.

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    Msica Popular Brasileira Contempornea (dedicada difuso de msicos pouco conhecidos),mas devido a atritos entre o compositor e a gravadora, sua efetivao se deu numa produoindependente. Clara Crocodilo foi gravado em dezeseis canais, durante os meses de julho, agostoe setembro de 1980, nos estdios da gravadora Nosso Estdio em So Paulo. Foi lanado em15 de novembro deste mesmo ano, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Entretanto,s foi liberado pela censura federal na ltima semana de dezembro deste mesmo ano.

    Na esteira de Arrigo Barnab, surgiram, em So Paulo, novos nomes na msica popular os quaisforam logo agrupados e rotulados pela imprensa como Vanguarda Paulista. Dentre estes,destacam-se Tet Espndola, cantora pop-sertaneja, o cantor e instrumentista Itamar Assumpoe os grupos Premeditando o Breque, Lngua de Trapo e Rumo. Na poca, a jornalista Marlia(FIORILLO, 1981, pp. 46-47). assim caracterizou este movimento: () um tanto insolente, poucoafeito utilizao da msica como jingle ideolgico ou sentimental, de compenetrada formaomusical e impecvel senso do absurdo

    Em julho de 1981, no auge do sucesso, Arrigo desfez a Banda Sabor de Veneno e interrompeusua carreira para estudar e compor, enquanto continuava a ser sustentado por uma mesada deseu pai. Somente voltou a aparecer novamente em pblico no final de 1982, com um show quepermaneceu em cartaz por duas semanas no SESC - Pompia em So Paulo. Este espetculoserviu de preparao para sua apresentao no Festival de Berlim, onde obteve crticas favorveis,como a de Tibor Kneif do Der Tages Spiegel: Arrigo provou que o jazz pode receber grandesidias da Amrica Latina (SOUZA, 1982, p.3).

    Arrigo assinou com a gravadora Ariola, em 1983, um contrato que inclua o relanamento deClara Crocodilo em nvel nacional e a produo de seu segundo LP, Tubares Voadores. Emborao relanamento de Clara Crocodilo s tenha ocorrido em 1996 pela gravadora Polygram, emformato CD, seu segundo LP, Tubares Voadores, foi lanado em 18 de maio de 1984, no TeatroSESC-Pompia, em So Paulo. A temtica que permeia o texto potico das dez faixas destenovo LP trata da mesma realidade abordada em Clara Crocodilo, ou seja, a desumanizao doser humano nas metrpoles. Essa interpretao referendada por CARVALHO (1984, p.8),segundo o qual:

    () o Kid Suprfluo ou o Office-Boy (esta faixa do disco anterior) so os seres comuns,representam a humanidade, os urbanides de uma apocalptica, fria e eletrnica pauliciadesvairada, que os esmaga e deprime

    Ao contrrio de Clara Crocodilo, Tubares Voadores constituiu-se numa produo cara eesmerada. Foi gravado em 32 canais no estdio Transamrica, um dos mais bem equipados daAmrica Latina. Arrigo saa, assim, do underground, lanando-se no concorrido mercadofonogrfico nacional.

    1987 foi o ano de lanamento, pela Polygram, de seu terceiro LP, Cidade Oculta, com a trilhasonora do filme homnimo, dirigido por Chico Botelho. Em 1988, seu quarto LP Suspeito eralanado pela gravadora 3M. A maior parte das faixas deste LP contm canes de amorinterpretadas pelo prprio compositor, que buscava, desta forma, atingir um pblico maior atravsde composies mais simples e acessveis, sem abandonar, entretanto, a esttica submundana.Neste sentido, o prprio compositor afirma literalmente que Suspeito um disco de mercado.

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    Em 1992 foi lanado Faanhas, seu quinto lbum, remasterizado nos Estados Unidos e lanadoem formato CD pela gravadora independente Camerati. Faanhas alterna composies inditascom novas verses de canes dos LPs Clara Crocodilo e Suspeito. Em 1998, a gravadoraNcleo Contemporneo lanou, em formato CD, a gravao ao vivo da pseudo-pera2 de Arrigo,Gigante Nego, realizada no Palace, em So Paulo, em 1990.

    Alm destes seis lbuns, Arrigo Barnab comps a trilha sonora dos seguintes filmes: O OlhoMgico do Amor (1981) e A Estrela Nua (1985), de Jos Antnio Garcia e caro Martins; Janete(1983) e Cidade Oculta (1986), de Chico Botelho; Tenso no Rio (1984), de Gustavo Dahl; NemTudo Verdade (1985), de Rogrio Sganzerla; Vera (1987), de Srgio Toledo; Lua Cheia (1988)e Ed Mort (1997), de Alain Fresnot; e Oriundi (1999), de Ricardo Bravo. Maiores detalhes sobreos filmes lanados at 1988 para os quais Arrigo Barnab comps trilhas sonoras podem serencontrados em PAIVA (1989), e RAMOS (1990). Na rea teatral, Barnab fez a trilha sonora dediversas peas, incluindo Santa Joana, com Estr Ges e Cludio Mamberti, tendo tambmcontracenado com Patrcia Pillar na pea O Mximo.

    Feitas estas observaes biogrficas, retomamos o fio do presente estudo, que se concentrarnas canes do LP Clara Crocodilo, considerado pelo prprio compositor como seu trabalhomais consistente do ponto de vista musical. Foi atravs desta obra que o atonalismo livre e ododecafonismo aportaram na msica popular brasileira.

    O LP Clara Crocodilo, que totaliza 42 minutos e 11 segundos de msica, contm oito canes:Acapulco Drive-In (430), Orgasmo Total (437), Diverses Eletrnicas (749), Instante (330),Sabor de Veneno (231), Infortnio (450), Office-Boy (659), e Clara Crocodilo (721). Nestas,exceto em Instante, o compositor discorre com crueza e realismo sobre a vida neurtica edesumanizante nas metrpoles contemporneas brasileiras. O enfoque da contracultura marginalemerge em um texto potico assumidamente influenciado pelas histrias em quadrinhos. A esserespeito, destacamos a esclarecedora considerao de NAZRIO (1983, p.30):

    () a msica de Arrigo apenas parece agressiva: de fato limita-se a tornar transparente aagressividade da realidade em forma o processo de industrializao total por que passa aAmrica Latina: internacionalizada e urbanizada em seus pontos nevrlgicos, s pode mantero ritmo de crescimento sobre a runa de suas (boas ou ms) tradies. () As novas geraesso de mutantes, que se arrastam do centro para a margem, da cultura para a natureza.

    A inexistncia de partituras das oito canes e a constatao da dificuldade de estabelecercorrelaes atonais e dodecafnicas recorrendo apenas audio do LP, impuseram-nos umaprimeira exigncia: a confeco das partituras.

    Para tal foram utilizadas trs fontes primrias:1) fragmentos de partituras de cinco das oito canes (Diverses Eletrnicas, Sabor de Veneno,

    Infortnio, Office-Boy, e Clara Crocodilo), remanescentes da poca da gravao, fornecidospelo compositor (Ex.1, que contm a indicao de uma ocorrncia de uma srie dodecafnica,seguida de sua verso retrgrada);

    2) a partitura quase completa da cano Clara Crocodilo fornecida por Hyla Ferraz, flautista ecantora, conterrnea do compositor (Ex.2);

    2 Termo utilizado pelo compositor.

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    3) o preenchimento, pelo compositor, das lacunas existentes nas partituras, efetuado emdois encontros que se realizaram em sua residncia em So Paulo, em dois de fevereiro ecinco de maro de 1993.

    A anlise do texto musical das oito canes do LP Clara Crocodilo evidenciou que todas socomposies seriais. Delas, as duas canes mais antigas, Clara Crocodilo (1972) e Sabor deVeneno (1973), so baseadas em sries de oito e seis alturas, respectivamente, indicando queo compositor utiliza a tcnica dodecafnica apenas a partir de 1974. As demais (Acapulco Drive-In, Orgasmo Total, Instante, Infortnio e Office-Boy) so dodecafnicas.

    Os processos seriais empregados por Arrigo Barnab nestas canes so aquelesuniversalmente reconhecidos: transposio, retrogradao, inverso, rotao, multiplicao,fragmentao, operao de derivao e operao de desmembramento (vide definies destestermos no glossrio ao final; e vide tambm Ex. 01, que contm uma ocorrncia de uma sriedodecafnica, seguida de sua verso retrgrada). Observou-se, tambm, indcios de tonalismoem trs canes (Acapulco Drive-In, Instante e Infortnio) e de atonalismo livre em seis seqnciasde alturas de trs canes (Orgasmo Total, Office-Boy e Infortnio).

    Atravs de uma narrativa semelhante quela das histrias em quadrinhos, Arrigo Barnab retrata,ao nvel do texto potico, a marginlia paulistana na dcada de 70, ressaltando a forma distorcidae desintegrada na qual vive o ser humano nas metrpoles contemporneas. Para conjugar osentido do texto potico com o serialismo e a atonalismo livre, Arrigo Barnab utilizou de distoroe desintegrao do centro tonal, desnorteando os ouvintes tradicionais da msica popular urbanatonal, aqueles a quem assumidamente se destina este LP.

    Ex.1. Trs fragmentos da cano Infortnio de Arrigo Barnab.

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    Ex.2. Trecho do manuscrito da cano Clara Crocodilo de Arrigo Barnab, compassos 27-28.

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    possvel traar um paralelo entre as motivaes que levaram Arnold Schoenberg, o sistematizadordo serialismo, e Arrigo Barnab a incursionarem pela atonalidade. A partir de 1906, Schoenbergcomps obras hibridamente tonais e atonais como a Sinfonia de cmara op.9 (1906), o SegundoQuarteto de Cordas op.10 (1908) e Trs Peas para Piano op.11 (1909). Sua primeira obraatonal, onde as dissonncias so finalmente emancipadas e as funes harmnicas dissolvidas, o Livro dos Jardins Suspensos op.15 de 1908-9, uma coletnea de canes sobre textos deStefan George. tambm de George a frase que abre o ltimo movimento do Segundo Quartetode Cordas de Schoenberg: Eu sinto o ar de outro planeta. Sobre este movimento, dizSchoenberg:

    O quarto movimento, Enlevo, comea com a introduo que descreve a partida da Terra emdireo a outro planeta. Aqui o poeta visionrio previu sensaes, que em breve talvez sejamconfirmadas. Livrando-se da fora de gravidade atravessando nuvens em direo ao ar cadavez mais rarefeito, esquecendo todas as atribulaes da vida terrena isto o que se tentailustrar nesta introduo. Quando a voz inicia Eu sinto o ar de outro planeta, o cenrio musicalest estabelecido neste clima e tudo o que se segue suave e terno, mesmo quando conduzao clmax por meio de um movimento ascendente () (RAUCHHAUPT, 1971, pp. 48-51).

    Esta imagem pode ser comparada segunda estrofe (versos 7 a 13) da cano Sabor de Veneno,de Arrigo Barnab, composta em 1973, e que uma de suas primeiras incurses pelo serialismo,ainda no dodecafnico:

    7 No sei se ela veio da luaOu se veio de Marte me capturars sei que quando ela me beija

    10 eu sinto um gosto(uma coisa estranha, um negcio esquisito)meio amargo do futurosabor de veneno

    Tanto no poema utilizado por Schoenberg, quanto nesta estrofe da cano de Barnab, o objetoque desperta o desejo no pertence dimenso terrestre. Porm, enquanto as imagens utilizadaspor Schoenberg descrevem a chegada a um outro planeta, na cano de Arrigo Barnab a ao dominada pelo ser extra-terreno, que captura o narrador. Assim, se o narrador em Schoenberg/George se liberta do cotidiano, em Arrigo Barnab, ao contrrio, o narrador escravizado poreste ser estranho, cujo beijo tem um gosto () meio amargo do futuro. Ou seja, em Barnabno h a descoberta pessoal de um outro mundo de sensaes suave e terno, como emSchoenberg, mas a descoberta, entre o fascnio e o desespero, de um futuro amargo, com saborde veneno.

    Ao contrrio de Schoenberg, que utiliza o atonalismo e o dodecafonismo com um sentido decontinuidade histrica, Arrigo Barnab utiliza-os como um signo apocalptico, uma afronta, umaruptura com o tonalismo. Da ocorre que o atonalismo e o serialismo de Arrigo Barnab se referemretrospectivamente ao tonalismo, justamente pela conotao de confronto, enquanto que oserialismo de Schoenberg tem uma conotao prospectiva de libertao.

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    CAVAZOTTI, Andr. O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB... Per Musi. Belo Horizonte, v.1, 2000. p. 5-15

    Arrigo Barnab partiu de uma concepo particular da histria da msica popular brasileira aointuir, em 1972, que o atonalismo e o serialismo seriam os passos seguintes aps a Tropiclia,dizendo a esse respeito:

    Eu e o Mrio [Cortes] achvamos que depois do Tropicalismo o que tinha que acontecer oatonalismo na msica popular, que tinha que pintar uma coisa atonal. Isso porque os carastinham chegado num ponto, mas no tinham rompido com a linguagem tonal, no tinha umacoisa organizada (DIAS, 1981, p.9).

    Apesar da afirmao por ele feita em 1983, eu j vejo tudo com o filtro histrico (FALA, 1983,p.9), as duas dcadas passadas desde o lanamento do LP Clara Crocodilo no permitem afirmarque sua intuio histrica tenha se confirmado. Efetivamente, h a evidncia inicial de que ClaraCrocodilo no levou um nmero significativo de compositores populares a utilizarem o atonalismoe o serialismo em suas composies. Alm disso, pelo menos dois outros motivos justificam ano confirmao da intuio histrica de Arrigo Barnab:

    1. ao afirmar que depois da Tropiclia o passo seguinte na msica popular seria a utilizao doatonalismo e do serialismo, Arrigo Barnab fez uma transferncia direta msica popular brasileiraurbana dos acontecimentos de um outro tipo de msica, pertencente a um outro universo cultural,determinado por outras formas de relaes sociais;

    2. o conceito de necessidade histrica, baseado na idia de que a histria unidirecional, datado e deixou de ter validade:

    () nossa enorme riqueza de informao sobre o passado, juntamente com a decepo coma idia de processos histricos necessrios, teleolgicos, fazem com que o passado pareato complexo e desconcertante (seno to incerto) quanto o presente (MEYER, 1967, p.150).

    De qualquer modo, a utilizao do atonalismo e do serialismo como afronta ao tonalismo, nascanes do LP Clara Crocodilo, encontra motivao na idia central do texto potico, que discorresobre a marginlia de So Paulo na dcada de 70. O ser humano retratado, no texto potico,em sua forma distorcida e desintegrada prpria de uma sociedade em dissoluo, de modoanlogo utilizao do atonalismo e do serialismo, se estes forem entendidos como uma distoroe desintegrao do centro tonal, princpio agregador central do tonalismo.

    A narrativa das oito canes do LP Clara Crocodilo, direcionada a todas as classes, objetivachocar o cidado, confrontando-o com a marginalidade, conforme declarao do prpriocompositor:

    A gente queria fazer uma msica de que as pessoas no gostassem, mas que fosse bela. Aspessoas a que estou me referindo so a alta burguesia, o chefe de polcia, a dona-de-casacaretona (ARANTES, 1981, p.17).

    A idia de que o atonalismo e o serialismo, nestas oito canes, foram utilizados com o objetivode provocar o ouvinte, mais especificamente o ouvinte de msica popular acostumado aotonalismo, traz tona a dificuldade intrnseca deste tipo de msica percepo e cognioauditiva, como observa MEYER (1967, p.278):

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    O aparecimento de eventos previsveis e regulares gratifica o ouvinte, dando-lhe um senso decontrole e de segurana psquica (). provvel que a nova msica irrite os ouvintes noporque ofenda sua sensibilidade esttica mas porque sua segurana psquica seu senso decontrole seriamente ameaado3 .

    Esta irritao, provocada pela dificuldade de previso dos eventos, um dos objetivos destascanes, confirmado pelo contedo do texto potico. A agudeza dessa irritao, no entanto, amenizada pelo alto grau de redundncia no texto musical, resultado de diversas repeties dedeterminadas seqncias de alturas e de padres rtmicos. Do mesmo, recupera-se um mnimode segurana psquica atravs de uma compreenso facilitada pela estrutura formal simples eevidente das canes.

    As oito canes do LP Clara Crocodilo no alcanaram o sucesso radiofnico esperado pelocompositor: A gente queria fazer msica erudita contempornea, mas que pudesse ser tocadano rdio, com guitarra eltrica (ARANTES, 1981, p.17). Este sucesso inversamente proporcional repercusso de Clara Crocodilo na imprensa, onde lhe foram dedicados importantes e generososespaos, como uma entrevista nas pginas amarelas da revista Veja.

    O LP Clara Crocodilo ocupa lugar sui generis na msica popular urbana brasileira. Ao discorrerno texto potico sobre uma realidade social especfica e estranha aos temas da msica popularde ento (a marginlia paulistana na dcada de 70) e ao utilizar no texto musical a tcnicacomposicional serial, Arrigo Barnab produziu uma obra complexa. Na sua unidade entre textopotico e musical e ao lanar mo de recursos composicionais fora do ordinrio, o LP ClaraCrocodilo abre-se a perspectivas analticas e assume conotaes histricas que ultrapassam omero fruir do entretenimento e justificam as hiprboles que a imprensa tem dedicado ao compositor.

    GLOSSRIOOperao de Derivao: processo no qual uma nova srie gerada a partir de segmentos relacionados por

    transposio. Esta definio parafraseada de WUORINEN (1988, p.112).

    Operao de Desmembramento: processo de segmentao da srie em seqncias de alturas originalmenteno adjacentes. Esta definio , novamente, parafraseada de WUORINEN (1988, p.116).

    Operao de Fragmentao: processo de segmentao de uma seqncia de alturas adjacentes (cf. WUORINEN,p.28, 1988).

    Operao de Inverso: operao aritmtica na qual alturas so substitudas por seus respectivoscomplementares, definidos pela diferena entre as alturas originais e o nmero inteiro 12 (cf. WUORINEN,p.89, 1988).

    Operao de Multiplicao: operao aritmtica na qual as alturas so multiplicadas por um nmero inteiro.Se o resultado for maior que 12, calcula-se o mod 12 desse nmero, ou seja, subtrai-se 12 do resultado atque este seja menor que 12 (cf. WUORINEN, p.98, 1988).

    3 Traduo do autor.

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    Operao de Retrogradao: reverso da ordem das alturas de determinada seqncia de alturas(cf. WUORINEN, p.90, 1988).

    Operao de Rotao: permutao cclica na qual, atravs de sucessivos estgios de transformao, cadaelemento da srie avana uma posio, de tal forma que o elemento que avana de uma extremidade dasrie deslocado para a outra extremidade; trata-se de um processo circular onde o nmero de estgiospossveis corresponde ao nmero de elementos a serem rotados (cf. WUORINEN, p.102, 1988).

    Operao de Transposio: operao aritmtica na qual um determinado nmero inteiro (representando ointervalo [mod 12] de transposio) adicionado s alturas de uma seqncia de alturas (cf. WUORINEN,pp.86-87, 1988).

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    Andr Cavazotti, natural de Londrina, Paran, Professor de Anlise Musical e Violino na Escolade Msica da UFMG, com bolsa recm-doutor pela FAPEMIG. Doutor em Msica (1998, bolsado CNPq) pela Boston University, EUA, sua tese de doutorado consiste em um estudo estilsticosobre as Sonatas para violino e piano de M. Camargo Guarnieri. Mestre em Msica pela UFRGS,estudou violino com o Prof. Marcello Guerchfeld e, sob orientaco do Dr. Celso Loureiro Chaves,defendeu sua dissertaco de mestrado, que uma investigao sobre a utilizao de processosseriais nas canes do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnab.

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    Execuo/Interpretao musical: uma abordagem filosfica

    Sandra Neves Abdo

    Resumo:Este artigo discute o estatuto hermenutico da execuo/interpretao musical, tomando como ponto departida duas concepes opostas e bem conhecidas: 1) a que defende uma estrita fidelidade inteno do compositor;2) a que concede total licena aos executantes. Contra ambas, a autora defende que o critrio diretivo legtimo decada execuo a prpria obra, no as intenes do compositor ou do intrprete. Para a demonstrao, recorre teoria da interpretao de Luigi Pareyson, coteja suas teses com as acima citadas e examina sua aplicao aoassunto.Palavras-chave: obra, execuo/interpretao, fidelidade, licena interpretativa.

    Music performance: a philosophical approachAbstract: This paper discusses the hermeneutic status of musical performance, starting from two opposite and wellknown conceptions: 1) one which sustains strict fidelity to the composer; 2) another confers total license to theperformers. In opposition to both, the author asserts that the guide to a genuine interpretation is the musical workitself, not the composers or the performers intentions. To support her assumptions, she brings up Luigi Pareysonsinterpretation theory comparing his thesis with the above-mentioned conceptions and examines its application to thesubject.Key words: musical work, performance, fidelity, license.

    Que tipo de atividade a execuo musical? Uma livre traduo, entregue subjetividade decada executante? Ou, ao contrrio, uma atividade cujo fim a fiel reevocao da vontade docompositor?

    Questes como estas compem uma problemtica complexa, polmica e envolvente, sobre aqual debruam-se as mais conceituadas correntes estticas e hermenuticas, desde o incio dosculo XX, mas que, at hoje no recebeu adequada ateno por parte da comunidade acadmicamusical. Dela ocupo-me no presente artigo, analisando suas divergncias mais freqentes everificando a legitimidade de seus pressupostos. As premissas estticas de minha anliseinspiram-se na esttica da formatividade, do filsofo italiano Luigi Pareyson1 , particularmenteem sua teoria da interpretao.

    A exposio assim se divide: I. Fidelidade ao autor versus licena interpretativa: um dilema bemconhecido; II. O conceito pareysoniano de interpretao; III. Aplicaes ao dilema entre fidelidadee licena interpretativa.

    1Luigi Pareyson (1918-91) tem uma extensa obra filosfica, em grande parte desconhecida do leitor brasileiro.Contudo, seu pensamento esttico encontra-se exposto em duas obras centrais, j traduzidas para o portugus:Esttica; teoria da formatividade. Petrpolis: Vozes, 1993 e Os problemas da esttica. 3ed. So Paulo: MartinsFontes, 1997.

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    I. Fidelidade ao autor versus licena interpretativa: um dilema bem conhecidoFidelidade ao autor e licena interpretativa so os dois plos de uma divergncia bem conhecida,em torno da qual dividem-se interessados e estudiosos da esttica e da hermenutica da arte.Paradigmaticamente, refiro aqui o primeiro plo esttica neo-idealista de Benedetto Croce, e osegundo, s teorias relativistas de Giovanni Gentile, H.-G. Gadamer, H.-J. Koellreutter, RolandBarthes, Jacques Derrida e Richard Rorty.

    A tese da reevocao do significado autoral teve o seu auge durante a primeira metade dosculo XX, com a larga difuso do espiritualismo esttico de Benedetto Croce, mas ainda temmuitos adeptos no campo da msica erudita.

    Como se sabe, Croce define a arte como sntese de sentimento e imagem, criao cuja essnciase esgota na interioridade do esprito e que, assim sendo, nada tem de corpreo ou fsico. Noque o conhecido filsofo ignore a necessidade de exteriorizao em um corpo fsico, mas considera-a como uma etapa secundria em relao ao momento produtivo, importante apenas para fixar ecomunicar o que, de outro modo, ficaria restrito memria do autor. (CROCE, 1945, p.3-25).

    Quanto execuo musical, afirma Croce que seu fim primeiro reevocar fielmente o significadooriginal, recomendando-se, para tanto, uma execuo to impessoal e objetiva quanto possvel,respaldada no exame da partitura e na investigao histrico-estilstica. Como se sabe, aindahoje, esse o ponto de vista vigente na maior parte das escolas de msica, perpetuando-seacriticamente, gerao aps gerao, a idia de que o executante tem como dever tocar comoo prprio compositor tocaria. , pois, mais que hora de refletir sobre os pressupostos filosficosdesse parmetro interpretativo. Fao-o mais adiante.

    Contrapondo-se radicalmente ao ponto de vista acima delineado, a Filosofia dellArte, de GiovanniGentile defende um atualismo esttico, cujo argumento central o seguinte: a obra de arte spode reviver mediante uma interpretao pessoal, que a reelabora indefinidamente, tendo comonico critrio a subjetividade de quem interpreta. Desse modo, longe de ser uma fiel reevocaoda inteno autoral, a execuo/interpretao , mais exatamente, uma livre traduo, umaoperao subjetiva, da qual resultam criaes sempre novas e diversas. Com essecontingentismo esttico, ganha fora, no mbito da cultura italiana, o trocadilho que fala dointrprete como traduttore, logo, traditore da inteno original.

    Mas a nfase na subjetividade e historicidade dos atos humanos no fica restrita ao argumentogentileano, encontrando desenvolvimentos tericos diversos como, por exemplo, o chamadorelativismo moderado, de H. G. Gadamer. O significado original, diz Gadamer, est para sempreperdido no tempo. A compreenso ocorre do ponto de vista do presente e de nada adianta tentarresgatar o passado. Mais precisamente, a compreenso se efetiva como uma fuso dehorizontes, isto , passado e presente (autor e intrprete), juntos, constroem, a cada vez, umnovo significado.

    tese da fidelidade ao compositor, Gadamer faz uma dura crtica: tomar como refernciaprivilegiada o significado dado pelo autor e seu tempo (como fazem, por exemplo, os que tocamcom instrumentos da poca, acreditando, assim, estarem mais prximos da obra e serem mais

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    verdadeiros), alm de acarretar um esforo intil (pois tal significado inalcanvel), implica umdesvio, um afastamento, pois significa relacionar-se com uma mediao e, por conseguinte,distanciar-se duplamente da obra e da sua verdade. O significado do autor e seu tempo apenasum dentre os vrios que a obra recebe ao longo de sua trajetria histrica, sendo todos igualmentelegtimos. (GADAMER, 1977, p.165).

    Em certo sentido, tambm o relativismo de H. J. Koellreutter pode ser qualificado de moderado:o executante tem um papel eminentemente ativo e criador a interpretao decodificaodos signos musicais, logo operao que se define como traduo subjetiva (KOELLREUTTER,1985, p.78) , mas o processo interpretativo no fica inteiramente entregue sua subjetividade;ele deve perceber as relaes sonoras criadas pelo compositor. (KOELLREUTTER, 1990,p.27).

    J o filo relativista mais radical, dito desconstrucionista 2 , tem como tese central que o sentidode um texto est em sua destinao, no em sua origem, quer dizer, no o autor, e sim o leitorque cria o sentido, a cada vez, de modo sempre diverso. No h centro significante fixo eprivilegiado, nem tampouco fuso de horizontes ou algum outro tipo de conciliao.

    Dois conceitos o de autor e o de obra so especialmente questionados, particularmentepor Roland Barthes e Jacques Derrida. O que tradicionalmente se chama de autor, de compositor,enfim, de sujeito do ato formativo, dizem os dois conhecidos desconstrucionistas, no passa deum mero intermedirio de pontos de vista alheios. Resumindo, o autor uma fico, que deveser urgentemente abandonada. Por razes semelhantes, a noo tradicional de obra (entendidacomo uma unidade fechada, da qual emana um significado nico) substituda pela noo detexto, mais adequada para designar o que, com efeito, um espao multidimensional,intertextual, constitudo pela absoro e transformao de vrios outros textos. Todo texto algo fragmentrio, inacabado e incoerente, um fluxo contnuo de valores, sem sentido prprio,receptivo a qualquer interveno, em suma, um palimpsesto (escrito sob o qual se pode sempredescobrir escritos anteriores, nenhum deles original).

    O pragmatista Richard Rorty3 enfatiza essa posio, preconizando que os textos (literrios,musicais, pictricos etc.) destinam-se a um simples uso por parte dos leitores/intrpretes,segundo a utilidade que possam ter, de acordo com os propsitos pessoais de cada um.

    Naturalmente, existem outros desenvolvimentos e variaes, tanto da tese da fidelidade ao autorquanto da preeminncia do intrprete. No cabe aqui mencion-los exaustivamente, devido natureza e objetivos deste trabalho. Exponho, a seguir, os pontos principais da teoria dainterpretao artstica, de Luigi Pareyson, luz dos quais pretendo desenvolver minhaargumentao.

    2 Para uma viso geral das teorias desconstrucionistas, em especial sobre a noo de morte do autor, vide WOLFF,1982, p.132-49.

    3 A clebre conferncia de Richard Rorty, intitulada A trajetria do pragmatista, encontra-se transcrita no livro ECO,1993, p.105-27.

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    II. O conceito pareysoniano de interpretaoAntes de tratar do conceito de interpretao artstica em Luigi Pareyson, fundamental situar suaesttica da formatividade em relao s concepes acima mencionadas.

    De modo geral, Pareyson contrape-se s difundidas concepes neo-idealistas da arte comoforma de conhecimento e forma de expresso. Longe de ser uma atividade puramente espiritual,uma espiritualidade formada, a arte , pelo contrrio, uma fisicidade formada, sendo-lhe,portanto, essencial o processo de extrinsecao fsica. Desse prisma, os conceitos de forma eformatividade aparecem como os mais adequados para definir a arte e a atividade artstica: aarte forma, sic et simpliciter, sem genitivo e sem complemento, puro xito de um exercciointencional e preponderante da formatividade (atividade humana, que alia, indivisivelmente,inveno e produo de formas).4

    No se trata, note-se bem, de uma concepo formalista. No ato da criao, o artista exercitapreponderantemente a sua intencionalidade formativa, ou seja, a sua formatividade, mas istono ocorre de modo isolado. Ao contrrio, toda a sua vida espiritual (que indivisvel) contribuipara o xito dessa formao. Assim sendo, em seu modo de formar, ou seja, em seu estilo(que , naturalmente, ao mesmo tempo pessoal e histrico), concretiza-se toda a sua vontadeexpressiva e comunicativa; e esta introduz-se na obra j sob a forma de arte, ou seja, comoestilo, valor de organicidade. Precisamente por isso, at o trao mais discreto, o detalhe maisdespretencioso, esta carregado de significado, embebido de seus sentimentos, aspiraes econvices, e portanto ... diz, significa, comunica alguma coisa (PAREYSON, 1997, p.61).5

    fcil perceber que forma no aqui nem um belo rosto fsico de que se reveste determinadocontedo espiritual, nem tampouco um mero arcabouo, desenraizado e vazio de sentido, masum todo orgnico, internamente coerente, e que se exibe, ao mesmo tempo, como contraodialtica de valores diversos (assuntos, temas, ideologias, tcnicas, sentimentos, cores, timbres,harmonias, ritmos etc.). Logo, o seu acabamento no se apresenta como perfeio esttica,mas como perfeio dinmica e conflitual, que carrega em si a tenso permanente de seuselementos constitutivos.

    No centro da argumentao pareysoniana, reside o princpio da coincidncia de fisicidade eespiritualidade na arte, pelo qual, no h, na obra, sinal fsico que no esteja carregado de

    4 Na base dessa proposta est a idia, herdada de Augusto Guzzo, de que toda a vida humana possui carteressencialmente formativo, ou seja, de que toda ao humana gera formas que, tanto no campo moral como no dopensamento e da arte, so criaes orgnicas e perfeitas, autnomas, dotadas de leis internas, de compreensibilidadee exemplaridade. A esse pressuposto bsico, Pareyson integra duas outras idias fundamentais, erigindo sobreelas a sua teoria: a idia do carter formativo de toda a operosidade humana e a idia da arte como especificaodessa universal formatividade. (PAREYSON, 1991, p.7).

    5 Em termos semiolgicos, a isto que Umberto Eco se refere ao dizer que a mensagem esttica fundamentalmenteambgua e autorreflexiva, quer dizer, uma mensagem que, no ato mesmo em que aponta para referentesexternos, atrai a ateno do destinatrio para a sua prpria forma, abrindo-se consequentemente, a inmerasdecodificaes (ECO, 1971, p.51-7).

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    significado espiritual nem significado espiritual que no seja presena fsica. Contra as estticasconteudistas e, em particular, contra a tese idealista de que a obra de arte espiritualidadeformada, representao sensvel da Idia, propugna Pareyson que ela matria formada,portanto, coincidncia perfeita de matria, forma e contedo: a forma matria formada, a qual, em si mesma, contedo expresso. Explica-se, assim a sua plurissemanticidade constitutivae inesgotvel.

    Executar, interpretar, compreender uma obra de arte seja ela musical, pictrica, escultrica,potica, teatral, cinematogrfica etc. no significa, portanto, alcanar um significado quetranscende a sua fisicidade (como se esta fosse simples meio expressivo, representativo oucognoscitivo), mas fazer falar a sua prpria realidade fsica com sentidos espirituais. A arte ,sim, expressiva e comunicativa, mas expressa e comunica, antes de tudo, a si prpria, pois deseu ser forma que se irradia, essencialmente, a sua plenitude revelativa e expressiva, e no deeventuais referentes externos. Dizer que a arte forma significa dizer que ela , ao mesmotempo e indivisivelmente, uma forma e um mundo: ... uma forma que no exige valer senocomo pura forma e um mundo espiritual que um modo pessoal de ver o universo. (PAREYSON,1997, p.44).

    Ademais, se a forma artstica no uma perfeio esttica e sim dinmica, marcada pelatenso interna de seus componentes, o que se requer de seus intrpretes uma consideraoigualmente dinmica, processual, em outras palavras, uma percepo capaz de penetrar oseu movimento interno e com ele dialogar.

    A lei nica da interpretao , como j se pode perceber, a prpria obra. Seu nico critrio diretivo,a congenialidade, a sintonia que o intrprete deve ter com ela, para poder colh-la no comoperfeio esttica, mas como organicidade viva e processual.

    A personalidade do executante, longe de ser um dado negativo, uma lente deformante, umadequado canal de dilogo, que, quando convenientemente explorado, revela-se extremamentepositivo e profcuo. Naturalmente, o intrprete pode falhar e deixar que suas reaes e pontos devista assumam foros de parmetro interpretativo, sobrepondo-se obra. Mas, nesse caso, abem se ver, nem mesmo se trata de interpretao, pois o que ocorre a prpria falncia desseato como tal. A menos que se trate de um outro tipo de atividade, intencionalmentesuperinterpretativa6 , como a releitura, o arranjo, por exemplo, cujo estatuto diverso dainterpretao.

    A obra e o intrprete so, pois, os dois plos fundamentais da relao interpretativa. Apresentam-se eles intimamente unidos por um vnculo dialtico essencial, em virtude do qual no se podefalar de nenhum dos dois fora dessa relao: a intencionalidade do intrprete, sendo ao mesmotempo ativa e receptiva, s se define como tal em contato com obra; a intencionalidade da obra,por sua vez, s se revela quando a intencionalidade do intrprete a capta como tal. Tratando-sede uma relao interativa, que tem a obra como ponto de referncia, no se justifica qualquer

    6 O conceito de superinterpretao exaustivamente discutido em: ECO, 1993, p.53-77.

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    pretenso de neutralidade, de impessoalidade, de contemplao desinteressada7 ; nemtampouco de liberdade arbitrria. Com tal proposio, concorda Umberto Eco: Entre a intenodo autor e o propsito do intrprete existe a inteno do texto (ECO, 1993, capa); tal inteno ...no revelada pela superfcie textual [...] preciso querer v-la. Assim possvel falar da intenodo texto apenas em decorrncia de uma leitura por parte do leitor. (ECO, 1993, p.74).

    Especialmente no que se refere ao questionamento da hermenutica historicista, decisiva umaoutra tese pareysoniana, qual seja, a de que o fundamento da multiplicidade das interpretaesno somente quantitativo (quer dizer, no se trata de uma questo apenas numrica), mastambm qualitativo. Se as interpretaes so mltiplas, explica Pareyson, no simplesmenteporque so incontveis os intrpretes ao longo da histria, mas, fundamentalmente, porque osdois plos da relao interpretativa, pessoa e obra, so inexaurveis, inesgotveis em seusaspectos, perspectivas e possibilidades. O fundamento da infinidade da relao interpretativa ,ento, a prpria infinidade e dialeticidade dos dois termos que constituem essa relao: intrpretee a obra revelam-se em toda a sua inteireza em cada ato de interpretao, sem que se esgotemas infinitas possibilidades que ambos apresentam. Assim entendida, a multiplicidade dasexecues/interpretaes convive perfeitamente com a noo de unidade da obra, e mesmo aconfirma e consolida. Personalidade e multiplicidade das interpretaes deixam de ser elementosnegativos, indicativos de insuficincia, arbitrariedade, subjetivismo, ausncia de lei ou critriointerpretativo, para, ao contrrio, revelarem-se como ndice de riqueza.

    Nesse sentido, conclui Pareyson: a interpretao da arte uma posse, que, se por um lado no definitiva, por outro, plena e verdadeira. E se no definitiva, no porque seus termossejam fragmentrios, inacabados, mas porque so inexaurveis.

    III. Aplicaes ao dilema entre fidelidade e licena interpretativaTocar como o prprio compositor tocaria, diz o velho chavo, j mencionado na primeira partedeste escrito. Quero question-lo, mas no com base em argumentos relativistas, tais como ahistoricidade e subjetividade do processo, as mudanas contextuais, o diverso estgio tecnolgicodos instrumentos, pois estes mantm a discusso num plano de genericidade e superficialidade.Vou direto ao que penso serem aqui os pontos fundamentais.

    Primeiramente, uma breve considerao sobre a natureza da historicidade da arte. No h comodesconhecer que a obra nasce numa data precisa, sendo condicionada por sua poca e pelapersonalidade de seu autor, mas fundamental recordar que essa historicidade no tal que acircunscreva dentro do seu tempo. A obra de arte nasce j especificada, o que significa que enquanto arte que ela no s emerge da histria, mas nela reentra, continuando a fazer histria:contribuindo para configurar a fisionomia de sua poca e vivendo alm dela, atravs das infinitasleituras, interpretaes e execues a que se oferece ao longo dos tempos, e que so no a suasimples reevocao, mas a sua prpria vida: ... o seu modo natural de viver e de existir(PAREYSON, 1991, p. 238).

    7 Trata-se aqui da clebre noo kantiana. (KANT, 1995, p.45-89)

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    Quanto tese croceana de que a reevocao fiel condio para que a msica continue a existirconcretamente, sem se perder no esquecimento da histria, cabe interpel-la com outro poderosoargumento de Pareyson: a execuo no um momento externo, secundrio, cujo fim seja resgataro momento originrio, com fins de comunicao e preservao, mas um momento essencial econgnito ao processo de criao. A obra musical nasce executada, ou seja, nasce j comorealidade sonora, portanto, j especificada como tal. Assim sendo, a execuo no lhe acrescentanada que j no seja seu, que j no pertena sua natureza.

    Mas, h ainda outros aspectos que fragilizam a eleio do autor como cnone sagrado dasexecues. Vale a pena discuti-los, pois so geralmente acolhidos e perpetuados de modointeiramente acrtico.

    Em primeiro lugar, est implcito nesse tipo de concepo o raciocnio equivocado de que oponto de vista do autor seria como que algo fixo, imutvel, passvel de repetir-se em duas execuessucessivas, o que implica no s um desconhecimento da mutabilidade e irrepetibilidadeconstitutivas dos atos humanos, como tambm um empobrecimento da prpria noo de obra dearte, na medida em que esta tomada como mero veculo comunicativo de determinada inteno,portanto, como algo esttico, fechado em torno de um significado que s pode ser unvoco.

    Aos defensores da tese da reevocao fiel, talvez soe como heresia afirmar, por exemplo, que:Temos de respeitar o texto, no o autor enquanto pessoa assim-e-assim (ECO, 1993, p.76).Todavia, no se trata aqui de uma diminuio da figura do autor, mas, antes, de uma valorizaode seu potencial criativo: a preeminncia concedida obra atesta que ele, o autor, foi de fatocapaz de criar algo novo, algo que, embora seja como que a sua memria permanente, deleindepende para sempre, impondo-se como uma organicidade viva, reguladora de seu prprioprocesso interpretativo.

    Sintonizar-se com essa presena do autor em sua obra uma possibilidade permanente para ointrprete, que s precisa introduzir-se no prprio tecido composicional, ouvindo e interpretandoas solicitaes e sugestes que a prpria obra lhe faz. Por meio desse dilogo ntimo,fundamentalmente, e no atravs do recurso a dados externos, o intrprete pode colher a obraem sua verdade prpria e, ao mesmo tempo, como memria viva e indelvel de quem a fez. CitoPareyson:

    Aquilo que profundo no o que se encontra atrs, ou dentro, ou sobre, ou alm doaspecto sensvel da obra, mas o seu prprio rosto fsico, todo evidente na sua insondveldimenso espiritual: geheimnisvoll offenbar, como diria Goethe, isto , misterioso e patentea um s tempo. (PAREYSON, 1997, p.157)

    Ponto de escndalo entre os que defendem a reevocao da inteno autoral o questionamentode Gadamer e Pareyson execuo com instrumentos antigos, ou melhor, da poca em que aobra foi composta. Tal prtica, concordam os dois filsofos, no garantia nem condio deautenticidade interpretativa, mas, pelo contrrio, fator de distanciamento, e mesmo de mistificao.O emprego de instrumentos e modos de execuo antigos uma opo sob certos aspectosinteressante, mas no se pode ignorar seus limites hermenuticos. Sobretudo preciso ver queno se trata de um contato direto, natural, com a obra, mas, ao contrrio, de um contato mediado,

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    indireto, artificial, regido pelo parmetro de uma outra execuo/interpretao, que, alm disso,no , necessariamente, a mais verdadeira. Mesmo que os propsitos sejam honestos e queassim se busque uma execuo mais autntica, o que de fato se faz uma simulao, um faz deconta que se est no passado e que se pode verdadeiramente interpretar por intermdio de umaviso de mundo e de uma sensibilidade alheias, emprestadas. Repito: uma opo, mas no amais apta a colher a verdade da obra.

    Passando aos argumentos relativistas e desconstrucionistas, uma das lies de Pareyson que, se a interpretao continuamente aprofundvel, no porque seja incontornavelmentesubjetiva, parcial, aproximativa, mas porque o seu objeto, a obra, inexaurvel, recusando,portanto, qualquer tentativa de posse exclusiva. Se a obra de arte fosse substancialmenteinacabada, como querem os desconstrucionistas, ela no solicitaria interpretao e simcomplementao; e o que solicita complementao no se oferece a uma infinitainterpretabilidade, mas a uma finalizao, que s pode ser unvoca. Ademais, para que ela sedesintegrasse ao ser diversamente interpretada, seria preciso que fosse uma totalidadefechada, dotada de significado unvoco. Mas a obra de arte, recorda Pareyson, perfeiodinmica, processual, plurissemanticidade constitutiva e inesgotvel, que suscita e acolheinterpretaes diversas, sem que isso acarrete desintegrao.

    O fundamento de sua infinita interpretabilidade, j foi dito, no apenas a quantidade de intrpretesao longo da histria, mas, mais propriamente, a constitutiva infinidade da pessoa e da forma.Longe de atestar uma insuficincia, uma impotncia do seu modo de conhecimento, o carterno definitivo da interpretao atesta a sua riqueza e plenitude. Afinal, Que maior riqueza do quepossuir alguma coisa de inexaurvel? [...] irremedivel empobrecimento seria a presuno deuma posse exclusiva, que negaria a prpria infinidade do seu objeto. (PAREYSON, 1997, p.231).

    Feitas essas consideraes, o que enfim se deve esperar, filosoficamente falando, de qualquerexecuo/interpretao musical?

    Tratando-se de uma relao dialtica, na base da qual esto plos orgnicos, constitutivamentemultifacetados, plurissmicos e inexaurveis, o que, em suma, se pode esperar desse tipo deatividade , ao mesmo tempo e inseparavelmente, a revelao da obra em uma de suaspossibilidades e a expresso da pessoa que interpreta, condensada em um de seus mltiplospontos de vista.

    Nada mais falso e absurdo do que esperar coisa diversa, seja desconhecendo a natureza pessoaldo ato interpretativo e pregando uma reevocao fiel e impessoal, uma rplica, enfim, dosignificado concebido pelo compositor; seja ignorando a plurissemanticidade constitutiva da obrade arte e pretendendo uma nica interpretao correta; seja pregando uma execuo to pessoale original que se sobreponha obra, forando-a a dizer o que ela no quer ou mais do que querdizer, como se fosse a pessoa do executante, o centro primeiro das atenes e a obra um meropretexto para a sua expresso.

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    Referncias bibliogrficasCROCE, Benedetto. Estetica como scienza dellespressione e linguistica generale. 8.ed. rev.,

    Bari: Laterza, 1945.ECO, Umberto. A estrutura ausente; introduo pesquisa semiolgica. So Paulo: Perspectiva,

    1971. (Coleo Estudos).________. Interpretao e superinterpretao. So Paulo: Martins Fontes, 1993.GADAMER, Hans-Georg. Verdad y mtodo; fundamentos de una hermenutica filosfica.

    Salamanca: Ediciones Sgueme, 1977.GENTILE, Giovanni. Filosofia dellArte. Florena: Sansoni, 1942.KANT, Immanuel. Crtica da faculdade do juzo. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1995.KOELLREUTTER, H. J. Introduo esttica e composio musical contempornea. Porto

    Alegre: Movimento, 1985.________. Terminologia de uma nova esttica da msica. Porto Alegre: Movimento, 1990.PAREYSON, Luigi. Estetica; teoria della formativit. 5.ed. Milo: Tascabili Bompiani, 1991.________. Os problemas da esttica. 3ed. So Paulo: Martins Fontes, 1997.

    Sandra Neves Abdo Professora do Departamento de Filosofia da FAFICH-UFMG, onde integraa Linha de Pesquisa Esttica e Filosofia da Arte, da Ps-Graduao. Bacharel em Violino(FUMA) e Bacharel-Licenciado em Filosofia (UFMG), possuindo tambm, em nvel de Ps-Graduao, os ttulos de Especialista em Filosofia Contempornea, Especialista em EducaoMusical e Mestre em Filosofia, todos pela UFMG. Na rea musical, atuou como solista, cameristae integrante das Orquestras da Escola de Msica da UFMG, Sinfnica de Minas Gerais e outras.De 1974 a 1988, lecionou Msica de Cmara e Esttica (Professora Titular), na Escola deMsica da FUMA (atual UEMG). Na USP, cursa atualmente, o Doutorado em Literatura Portuguesa,com Projeto de Tese sobre O ceticismo na pluridiscursividade potica de Fernando Pessoa.Tem artigos e tradues divulgados em mbito nacional e internacional.

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    Per questa bella mano KV 612 de Mozart:a redescoberta do manuscrito de uma ria de concerto para voz,contrabaixo obligato e orquestra e a reabilitao de uma prticade peformance de afinao equivocada1

    Tobias Glckler(Traduo de Fausto Borm e Larissa Cerqueira)

    Resumo: Estudo histrico sobre a ria Per questa bella mano KV 612 de Wolfgang Amadeus Mozart desde suacomposio em 1791 at sua mais recente edio em 1996, passando pela redescoberta do original em 1979.Anlise das prticas de notao e de peformance do contrabaixo no perodo clssico, com nfase no ressurgimentoda afinao em teras e quarta justa do violone vienense. Apresentao de duas obras do repertrio para voz,contrabaixo e orquestra: as primeiras edies das rias Selene, del tuo fuoco non mi parlar de Johannes Sperger eLied an den Contrabass de Adolph Mller. Inclui a traduo para o portugus, dos textos poticos originais emalemo e italiano das trs peas.Palavras-chave: W. A. Mozart, Per questa bella mano, contrabaixo, violone, Johannes Sperger, Adolph Mller,afinao vienense, prticas de performance.

    Per questa bella mano KV 612 by Mozart: the rediscovery of amanuscript of an aria for soprano and double bass obligato andthe rehabilitation of awrong tuning performance practice

    Abstract: Historical survey of W. A. Mozarts aria Per questa bella mano KV 612 from its composition in 1791through the rediscovery of its original in 1979 to its most recent edition in 1996 by Tobias Glckler. Analysis of thedouble bass performance and notation practices in the classical period, focusing on the third-fourth tuning of theVienese violone. It also presents new additions to the voice and double bass repertory: the first editions of JohannesSpergers Selene, del tuo fuoco non mi parlar and Adolph Mllers Lied an den Kontrabass and the translations of theoriginal German and Italian lyrics of the three pieces into Portuguese.Keywords: W. A. Mozart, Per questa bella mano, double bass, violone, Johannes Sperger, Adolph Mller, vienesetuning, performance practice.

    I - IntroduoPer questa bella mano, ria para voz baixo, contrabaixo obligato e orquestra composta por Mozartem 1791, ainda pode ser considerada a nica composio de um grande mestre da Viena clssica

    1 Artigo indito em qualquer lngua, Von verschollenen Autographen und verstimmten Kontrabssen: Konzert-Arienmit obligatem Kontrabass von Wolfgang Amadeus Mozart, Johannes Sperger und Adolphe Mller foi traduzidocomo parte do projeto de pesquisa Contrabaixo para Compositores, viabilizado com recursos do CNPq, FAPEMIGe Fundo Acadmico UFMG/FUNDEP. Os exemplos musicais foram elaborados por Fausto Borm e Hudson Cunha.

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    para solo de contrabaixo. Embora Franz Joseph Haydn tenha composto o Concerto paraContrabaixo [ou Concerto per il violone]2 em 1763, esta obra encontra-se desaparecida e noh pistas concretas sobre seu paradeiro (POHL, 1882, p.302).3 A ria de Mozart representa umatraente desafio musical para ambos solistas (voz e instrumento) e reveste-se de um significadoespecial dentro do pequeno repertrio do perodo clssico que os contrabaixistas tem acesso. Arealizao da parte obligato do contrabaixo nessa ria ainda apresenta algumas dificuldades derealizao para o instrumentista de hoje. A afinao em teras menor/maior e quarta justa dosviolones clssicos, comum na Viena do final do sculo XVIII (PLANYAVSKY, 1984; Ex. 1), bemcomo a notao em clave de sol transposta uma oitava acima, no mais usada nas prticas deperformance modernas (Ex. 2), levantam questes a respeito da adequao performance cominstrumentos modernos, como ser abordado no decorrer do texto.

    Ex.1- A afinao em teras menor/maior e quarta justa do violone vienense (a quinta corda era menos usada peloviolone solista) e a afinao em quartas justas do contrabaixo moderno

    Ex.2- Per questa bella mano de Mozart: notao do contrabaixo obligato na clave de sol, uma oitava acima do quedeve ser tocado, caracterstica do perodo clssico.

    2 Nota dos Tradutores (N.T.): (1) O uso de colchetes reflete acrscimos dos tradutores ao texto original (2) O termocontrabaixo, aplicado aos instrumentos e repertrio musical at o final do sculo XVIII, ambguo e pode significartanto o contrabaixo (de 3 ou 4 cordas) da famlia do violino, quanto o violone (de 4, 5 ou 6 cordas) da famlia dasviolas da gamba. Foi para o violone de cinco cordas (som real F 1 , L -1 , R 1 , F# 1 , L 1; considere o D centraldo piano como D3), que compositores como J. Haydn, Michel Haydn, Mozart, Pichl, Albrechtsberger, Sperger,Dittersdorf, Vanhal e outros mestres vienenses compuseram esse repertrio solista no perodo clssico.

    3 N.T.: Todos os indcios da existncia deste concerto de J. Haydn se resumem aos poucos compassos queaparecem no seu catlogo temtico (Hob VII, C1). Embora no original de Histoire des contrebasses cordes(Paris: La Flute de Pan, 1982, p.117) Paul BRUN apresente uma transcrio retrouv do Segundo MovimentoAdagio cantabile, o autor foi mais cauteloso na verso posterior em ingls (Paris: Edio do autor, 1989) e omitiu talinformao.

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    II - O original e as ediesMozart comps a ria Per questa bella mano cerca de nove meses antes de sua morte. Infelizmente,no se sabe com preciso a data em que foi escrita ou estreada. O registro da obra, declaradaem seu inventrio, data de 8 de maro de 1791 (MOZART, 1965). De acordo com esta fonteprimria, a ria foi dedicada ao cantor Franz Xaver Gerl e ao tocador de violone [ou contrabaixista,como ser referido daqui por diante] Friedrich Pischelberger. Ambos foram colegas de Mozart noTheater im Freihaus em Viena, teatro que na poca era dirigido pelo maestro, librestista,compositor e cantor Emanuel Schikaneder. Ainda em 1791, aps a estria de Per questa bellamano, houve a estria de A Flauta Mgica, com Gerl no papel de Sarastro e Schikaneder, autorado libreto, no papel de Papageno. Pischelberger, por sua vez, era famoso como contrabaixista,tendo tambm inspirado os Concertos para Contrabaixo de Karl Ditters von Dittersdorf e Wenzel[ou Vclav] Pichl.

    A ria de Mozart foi muito interpretada na sua poca a partir do manuscrito original. Mas a primeiraedio da partitura secondo il manoscritto originale parece ter surgido somente em 1822(MOZART, 1822?) e diverge um pouco do manuscrito autografado. As edies seguintes foramse distanciando progressivamente do original de Mozart. Naturalmente, devido s dificuldadestcnicas geradas pela transposio de tonalidade da parte obligato, a obra foi praticamentepredestinada a existir em diversos arranjos. J na primeira edio da reduo orquestral parapiano (MOZART, [s.d.]), foi apresentada uma alternativa para a realizao da parte obligato. Emadio parte do contrabaixo, incluiu-se uma parte de violoncelo, cuja razo pode ter sido noapenas a busca de uma vendagem maior, mas tambm resultado do ceticismo em relao aonvel tcnico-musical dos contrabaixistas daquela poca. Alm disso, circulavam especulaessegundo as quais um erro na designao do instrumento pode ter passado desapercebido [aocompositor] e a parte do violoncelo teria sido transferida erroneamente ao contrabaixo. Na histriadas performances da ria KV 612 de Mozart, [importantes maestros do sculo XIX como] GustavMahler [1860-1911], Hans Richter [1843-1916], Ernst Schuch [1846-1914], Felix Mottl [1856-1911]e Arthur Nikisch [1855-1922] concordaram com este raciocnio que exclua o contrabaixo(DAUTHAGE, Der Kontrabass, v.1, 1929). No de se estranhar, portanto, que nos meios musicaisdo final do sculo XIX, praticamente no se referisse obra como sendo destinada ao contrabaixoe que, em 1880, tenha sido publicada em Londres pela Augener & Company como ria comvioloncelo obligato.

    Uma verso relativamente prxima ao original foi includa na antiga edio completa das obrasde Mozart de 1881, mas a partir da, as adaptaes da ria apresentaram muitas divergncias.Na edio Bote & Bock de 1920, foi transposta uma quinta justa acima. A esse respeito comentouum crtico da poca: Cada contrabaixista que executar essa verso, vai deparar-se com umenigma ainda maior do que a notao original de Mozart (ALTMANN, 1929). Alm disso, foiutilizado o registro do soprano na parte da voz nessa edio. Tendo em vista que Mozart usou umtexto em italiano que uma declarao de amor de um homem para sua amada,4 fica claro oequvoco de designar esse papel a um soprano.

    4 N.T. : Veja os textos em italiano e portugus de Per questa bella mano no Anexo II.

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    Outra verso bastante inadequada apareceu em uma adaptao americana feita por G. F. Ghedinina dcada 50 (MOZART, 1952), na qual a parte obligato foi transformada em acompanhamentona parte do piano, descartando-se o contrabaixo solista imaginado por Mozart. As edies etranscries da partitura mostraram-se particularmente imprecisas e problemticas na ltimadcada, pois o manuscrito original, que desapareceu ao final da II Guerra Mundial, deixou de sera fonte primria utilizada para novas edies da ria (KCHEL, 1964). Por isso, no foi possvel,nem para a Neue Mozart-Ausgabe (MOZART, 1972), nem s outras edies, como as da Breitkopf& Hrtel (1964) e Doblinger (1971), disponibilizar verses realmente confiveis e fiis ao original.

    III - Os destinos dos manuscritos de MozartAps a Segunda Guerra Mundial, numerosos manuscritos da Biblioteca Prussiana de Berlim,entre eles a ria KV 612 de Mozart, desapareceram5 . A recuperao desses documentos, tendocomo pano de fundo a Alemanha destruda pela guerra, mostrou-se muito complicada. Agravandoesse quadro, havia o fato de uma das margens dos rios Oder e Neisse estar submetida administrao polonesa a partir de 1945, de acordo com o tratado de Potsdam. Mais tarde, coma diviso territorial da Alemanha e a Guerra Fria, esta importante herana cultural tornou-se umaquesto poltica.

    LEWIS (1981) reconstruiu minuciosamente a trajetria dos manuscritos desaparecidos no inciodos anos 80. As histrias sobre o paradeiro desses documentos, que mais tarde mostraram-severdadeiras, tm todos os ingredientes dos bons romances policiais. Sob segredo estrito, partedo acervo da Biblioteca Prussiana de Berlim foi retirada no outono de 1941, com a finalidade deproteg-los contra os bombardeios dos aliados. Como refgio, foi escolhido o castelo abandonadode Frstenstein (ou Ksiazy, quando sob o domnio polons) em Niederschlesien. Em 1944, quandoesse castelo foi transformado em um luxuoso hotel para usufruto de Hitler, os manuscritos tiveramque ser novamente deslocados. O mosteiro beneditino de Grssau (ex-Krzeszw), tornou-se oprximo esconderijo. As caixas com as obras foram armazenadas nos pores da Igreja Beneditinade St. Marien e da Igreja de St. Joseph.

    Na noite de 9 de maio de 1945, Grssau foi tomada por tropas russas. Felizmente, no houvebatalhas nem destruies mas, nos meses seguintes, comisses polonesas retiveram osmanuscritos para inspeo, at serem levados, ao final de agosto de 1946, para um lugardesconhecido (KUNZE, 1984). Nessa poca, vrias tentativas foram feitas para se encontrar osmanuscritos na Alemanha Ocidental. Em 1964, os editores da Neue Mozart-Ausgabe publicaramem vrios jornais internacionais uma lista dos manuscritos de Mozart perdidos desde o final daguerra (DIE MUSIKFORSCHUNG, 1964), dentre eles A Flauta Mgica, a Sinfonia Jpiter e aria Per questa bella mano. Infelizmente, essa busca no teve sucesso, o mesmo ocorrendocom as investigaes em Breslau (ex-Wroclaw), lugar denominado erroneamente no ndice determos musicais do Riemann Musiklexikon, em 1967, como o abrigo dos manuscritos (RIEMANNMUSIKLEXIKON, 1967, p. 102). Finalmente, ainda nesse mesmo ano, colaboradores da NeueMozart-Ausgabe descobriram o verdadeiro abrigo dos manuscritos: a tradicional BibliotecaJagiellonen em Krakau (ex-Krakw).

    6 Junto com manuscritos de Mozart desapareceram tambm manuscritos autografados de Bach, Haydn, Beethovene Schubert, dentre outros.

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    Imediatamente depois dessa revelao, autoridades alems tentaram, sem xito, retomar a possedos documentos. Houve interveno at de diplomatas austracos com o objetivo de obter, pelomenos microfilmes do acervo de Krakau e garantir que os trabalhos da Neue Mozart-Ausgabeno fossem interrompidos. Todos esses esforos foram em vo. Apesar do crescente interessede estudiosos de diversas reas em todo o mundo, a restituio dos manuscritos foi negadapersistentemente pelos poloneses. O caso, progredindo em crescente tenso, culminoutragicamente com o suicdio de Wladyslaw Hordynski, chefe da seo de msica da bibliotecaJagiellonen, em 1968. Responsvel pela guarda dos manuscritos, oficialmente declarados comoinexistentes, ele aparentemente no suportou o confronto entre suas declaraes falsas e aacareao do processo investigatrio.

    IV - Uma questo polticaCom o tempo, a presso poltica enfraqueceu a posio do governo polons. Mas a culpabilidadealem pela Segunda Guerra Mundial e os interesses conflitantes das duas Alemanhas impediramo rpido retorno dos manuscritos Biblioteca Nacional Alem em Berlim [oriental]. Embora asautoridades alems orientais soubessem da localizao dos manuscritos, no fizeram nenhumareivindicao efetiva que envolvesse o bloco socialista6 . Na prpria Alemanha Ocidental nohouve um esforo significativo para tirar partido da crescente instabilidade poltica na Polnia. APolnia, por sua vez, tambm no mudou sua posio nem com a nova poltica oriental de WilliBrandt, nem com o acordo de 1970 entre a Alemanha Ocidental e a Polnia. Alm disso, a possedos manuscritos parece ter alcanado o status de segredo de estado polons. Ainda em janeirode 1976 em Warschau, o Ministrio da Cultura anunciou que os manuscritos no se encontravamna Polnia.

    Mas nos meses seguintes, as autoridades polonesas voltaram atrs. Decidiram, por assim dizer,reencontrar oficialmente os documentos. Em abril de 1977, a agncia polonesa de notciasPAP publicou um comunicado contendo pistas, que sugeriam que os manuscritos estavam naquelepas. Como conseqncia, foi iniciada uma busca sistemtica cujo esforo faria sentido, nofosse essa notcia extraordinria ter precedido (ou ter sido estrategicamente calculada) um fatohistrico: apenas um ms mais tarde foi assinado um tratado de paz entre as duas Alemanhas.Tendo os manuscritos como pretexto, Gierek, presidente do Partido Comunista Polons, preparouuma cerimnia cujo objetivo era mais causar impacto e promoo poltica do que contribuir paraa elucidao do problema, presenteando a Biblioteca Nacional Alem de Berlim com algunsmanuscritos menos importantes da chamada Verlagerungsgut (acervo de posse da antigabiblioteca da Prssia) (KHLER, 1979). Porm, a maior parte dos manuscritos autografados,entre as quais a ria KV 612, permaneceram na Biblioteca Jagiellonen em Krakau. Somente em1979, e com bastante discrio, que esses arquivos foram novamente disponibilizados aopblico em geral (KUNZE, 1984). Nos anos anteriores, haviam sido publicadas diversas ediesfacsmile de alguns dos manuscritos histricos desaparecidos. Per questa bella mano, porm,

    6 Numa investigao oficial em 1965/66, o SED (Partido da Unio Socialista) da Alemanha inquiriu o Partido ComunistaPolons sobre o paradeiro dos manuscritos, o qual respondeu que os mesmos no se encontravam em territriopolons. (Cf. LEWIS, 1981).

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    GLCKLER, Tobias. Per questa bella mano Kv 612 de Mozart... Per Musi. Belo Horizonte, v.1, 2000. p. 25-39

    continuou negligenciada, no sendo includa no organograma dos editores da Neue Mozart-Ausgabe uma reimpresso com as devidas correes e texto crtico. Como justificativa, os editoresafirmaram que instrumentistas e musiclogos interessados poderiam facilmente ir a Krakau,adquirir os microfilmes e, rapidamente, publicar uma edio revisada em outras editoras. Segundoeles, os manuscritos autografados reencontrados seriam tratados em um relatrio crtico na edioseguinte das obras completas de Mozart (KUNZE, 1984, p.30)

    V - Uma nova edio para uma antiga prtica de performanceMuito tempo se passou at que a msica original de Per questa bella mano fosse novamentedisponibilizada, o que ocorreu com a edio que preparei, publicada em 1996 pela Hofmeister(MOZART, 1996).7 Anteriormente, Max DAUTHAGE (Der Kontrabass, v. 3, 1929) havia apresentadoos primeiros compassos da parte obligato da ria Per questa bella mano na afinao vienenseem teras e quartas, mas se enganou em relao tonalidade. Como editor, procurei valorizar afidelidade ao original e s prticas de performance da poca. Pela primeira vez, foi propostauma realizao da parte do contrabaixo obligato que considera o renascimento da performancehistrica que, por meio de uma notao especial de intervalos, reabilita a afinao original doviolone vienense. Desta forma, os contrabaixistas dispem novamente das vantagens tcnicas etmbricas de uma afinao que esteve praticamente desaparecida por mais de dois sculos. Nanova edio, alm da parte do contrabaixo com essa afinao do violone vienense, esto includaspartes separadas para o contrabaixo moderno com afinaes tradicionais: orquestral [som realMi-1, L-1, R1 e Sol1] e de solista [F#-1, Si-1, Mi1 e L1]. Como acontece nos concertos paracontrabaixo da Viena clssica em geral, a parte obligato da ria de Mozart designada a uminstrumento com afinao em tera menor [entre as cordas I-II], teras maiores [entre as cordas II-III e IV-V] e quarta justa [entre as cordas III-IV] (Ex.1). Os compositores clssicos utilizaram habilmenteas vantagens resultantes dessa afinao, como por exemplo, a possibilidade de realizar motivostridicos com o uso de pestanas em arpejos e cordas duplas contendo, especialmente, o intervalode tera. Freqentemente, o acorde de R Maior em cordas soltas, contido nesta afinao, eraum ponto de partida composicional. O exemplo mais conhecido desse procedimento so osprimeiros compassos da parte solista no Segundo Concerto para Contrabaixo de Dittersdorf, osquais podem ser tocados simplesmente com cordas soltas e harmnicos naturais (Ex.3).

    Ex. 3: Cordas soltas e harmnicos naturais no incio da parte solista do Segundo Concerto para Contrabaixo deDittersdorf, Mov. I.

    7 N.T. : A edio crtica de Tobias Glckler, descrita por MORTON (Bass World, 1996, p.52) como definitiva, foipublicada pela Hofmeister em duas verses: uma para voz, contrabaixo e piano (FH 2356) e outra para voz, contrabaixoe orquestra (Partitura # FH 8140; partes somente para aluguel).

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    Mas por que, atualmente, pouqussimos contrabaixistas solistas utilizam a afinao vienense,apesar de suas grandes vantagens? Uma razo que, para se praticar com a afinao vienense,torna-se necessria a aprendizagem de uma nova tcnica de leitura, que inclui a utilizao dededilhados diferentes e pestanas pouco utilizadas. Outra razo que essa mudana teria poucoespao na indstria de concertos tradicional, cujo repertrio subordina o contrabaixista afinaoem quartas! Nesse conflito entre o desejvel e o praticvel situa-se esta nova edio da ria deMozart pela Hofmeister, que possibilita uma performance mais fcil da parte obligato com afinaovienense, sem a necessidade de uma re-aprendizagem extensa. Isto possvel por meio de umanotao extremamente simples das posies com pestanas, que no implica em transposiolida ou em muitas mudanas de posio.8 Desta forma, as notas podem ser lidas e dedilhadasno contrabaixo moderno previamente afinado em L-R-F#-L. Para facilitar o trabalho de leitura,as notas reais so notadas de maneira que o contrabaixista raciocine com a afinao moderna.Em outras palavras, algumas notas lidas no contrabaixo moderno so diferentes daquelas escritasno original, mas soam o mesmo. O resultado sonoro parece extraordinrio e novo, mas na verdade,apenas recupera a antiga prtica de performance do contrabaixo vienense (Ex.4).

    Ex.4: Notao que permite utilizar a afinao em teras e quarta do violone vienense no contrabaixo moderno. Asnotas devem ser tocadas nas cordas indicadas. As notas na corda II soam um semitom abaixo (compare com anotao clssica na clave de sol no Ex.2. Veja tambm o Ex.6 frente)

    Diversas obras do compositor e contrabaixista virtuoso Johannes Sperger (1750-1812) sugeremuma nfase nessa prtica de performance histrica, na qual trechos em cantabile baseados emum s acorde podiam ser tocados em apenas uma posio. Isto era exatamente o resultadobuscado pelo compositor, tornando possvel a vibrao contnua caracterstica dos acordestocados em cordas soltas e harmnicos (Ex.5).

    Porm, passagens mais virtuossticas, principalmente com mudanas de oitava, eram executadasem registros acima do registro inicial, acarretando mudanas de corda ou de posio entre asnotas dos arpejos.

    As variaes de dinmica decorrentes dessa prtica de performance histrica [N.T: a exemploda diferena de intensidade entre cordas soltas, cordas presas e harmnicos naturais] exigem

    8 Esta escrita, que evita mudanas de posio, aparece freqentemente na literatura de outros instrumentos decordas como, por exemplo, a Sonata dos Mistrios para Violino de H. Biber, a Suite N. 5 para Violoncelo Solo deJ. S. Bach e a Sonata para Violoncelo Solo de Kodly.

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    grande domnio tcnico. Um grau de dificuldade maior exigido da mo direita devido aoscruzamentos de cordas com o arco, em comparao com a mo esquerda, que permanece maistempo na mesma posio ou registro. Em relao ao estilo, arcadas mais curtas, assim como ocontraste entre legato, staccato, e spiccato so comuns no repertrio clssico do contrabaixo(FOCHT, 1999).

    Ex. 5: Acorde arpejado escrito na afinao de orquestra, afinao solo e afinao vienense. O maior volume ereverberao do som na afinao em tera e quartas do violone vienense resulta da vibrao contnua caractersticados acordes tocados em cordas distintas (cordas soltas ou harmnicos naturais; veja tambm o Ex. 2 acima).

    VI - A afinao histrica e o contrabaixo modernoUma das questes que surgiram quando propus esta nova edio da ria Per questa bella manode Mozart a adequao do instrumento moderno afinao vienense. A reconstituio destaprtica de performance certamente seria melhor emulada em um instrumento original, construdona Viena no sculo XVIII. Entretanto, so pequenas as mudanas tcnicas quando se utiliza ocontrabaixo moderno. Algumas pestanas da prtica usual de cordas duplas so satisfatoriamenteadaptveis, sem maiores prejuzos ao texto musical. Por isso, as qualidades especiais dos violonesvienenses (Cf. MEIER, 1969; FOCHT, 1999) no precisam ser levadas em considerao, da