Permanências, Ricardo Alves Jr.

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Permanências, de Ricardo Alves Júnior Por fim, Permanências, de Ricardo Alves Júnior, poderia ser rapidamente descartado pela adoção de uma agenda já bastante comum no cinema contemporâneo: o esvaziamento do plano, o esgarçamento da duração, a geografia de uma decadência urbana, as possibilidades do cinema como expressão do estático, etc. Além disso, há também os ecos cristalinos de Pedro Costa, hoje em dia tão recorrentes em uma certa corrente do cinema brasileiro que já gerou rumores de que Pedro Costa seria, de fato, mineiro. Mas enquanto o cineasta português ocupa os conjuntos habitacionais das Fontainhas para enxergar Ventura como um herói, Ricardo Alves Júnior só se depara com demônios. Permanências é um filme diabólico não só pela maneira como as personagens se colocam em cena - algo bastante claro no tecladista que amarra as duas pontas do filme, como uma espécie de Fausto - mas também pela forma como o diretor adota toda uma gestalt do cinema contemporâneo para questioná-la por dentro. Afinal, se filmes como Estrada para Ythaca e Casa de Sandro, de Gustavo Beck, imprimem na imagem estática um desejo de congelamento da fotografia parada, Permanências parece afirmar exatamente o contrário: seus planos duram o tempo suficiente para conservarem um movimento junto ao olhar, a despeito de sua estaticidade. O movimento, portanto, não está nem no que é enquadrado, nem na câmera que enquadra; mas o agenciamento entre essas duas instâncias obriga o olhar do espectador a se movimentar incessantemente por dentro do plano, no esforço de reinflar o espaço da tridimensionalidade que lhe é natural, mas que foi extirpada pela bidimensionalidade do cinema. Um dos planos, talvez o mais belo, mostra um pedaço de janela de um apartamento, entrecortado pelas pilastras de um corredor. A colocação da câmera, porém, chapa toda a profundidade em uma única dimensão; ao longo de toda a duração somos convidados a remontar essa imagem, buscando os níveis de profundidade que aparecem chapados na bidimensionalidade da tela, aguardando sempre por uma pequena ruptura que fará a imagem estática ser, novamente, uma imagem em movimento. Todo o tempo despendido na compreensão da imagem é rapidamente abalado por um único gesto, uma simples perturbação que faz com que cada plano deixe de ser uma imagem estática: uma porta que abre, um movimento de cabeça, uma variação de luz. E nessa surpresa do mínimo - pensemos aqui em Five, de Abbas Kiarostami -Permanências vai ao âmago da destituição do específico cinematográfico em relação à fotografia

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Permanncias, de Ricardo Alves Jnior Por fim, Permanncias, de Ricardo Alves Jnior, poderia ser rapidamente descartado pela adoo de uma agenda j bastante comum no cinema contemporneo: o esvaziamento do plano, o esgaramento da durao, a geografia de uma decadncia urbana, as possibilidades do cinema como expresso do esttico, etc. Alm disso, h tambm os ecos cristalinos de Pedro Costa, hoje em dia to recorrentes em uma certa corrente do cinema brasileiro que j gerou rumores de que Pedro Costa seria, de fato, mineiro. Mas enquanto o cineasta portugus ocupa os conjuntos habitacionais das Fontainhas para enxergar Ventura como um heri, Ricardo Alves Jnior s se depara com demnios. Permanncias um filme diablico no s pela maneira como as personagens se colocam em cena - algo bastante claro no tecladista que amarra as duas pontas do filme, como uma espcie de Fausto - mas tambm pela forma como o diretor adota toda uma gestalt do cinema contemporneo para question-la por dentro. Afinal, se filmes como Estrada para Ythaca e Casa de Sandro, de Gustavo Beck, imprimem na imagem esttica um desejo de congelamento da fotografia parada, Permanncias parece afirmar exatamente o contrrio: seus planos duram o tempo suficiente para conservarem um movimento junto ao olhar, a despeito de sua estaticidade. O movimento, portanto, no est nem no que enquadrado, nem na cmera que enquadra; mas o agenciamento entre essas duas instncias obriga o olhar do espectador a se movimentar incessantemente por dentro do plano, no esforo de reinflar o espao da tridimensionalidade que lhe natural, mas que foi extirpada pela bidimensionalidade do cinema. Um dos planos, talvez o mais belo, mostra um pedao de janela de um apartamento, entrecortado pelas pilastras de um corredor. A colocao da cmera, porm, chapa toda a profundidade em uma nica dimenso; ao longo de toda a durao somos convidados a remontar essa imagem, buscando os nveis de profundidade que aparecem chapados na bidimensionalidade da tela, aguardando sempre por uma pequena ruptura que far a imagem esttica ser, novamente, uma imagem em movimento. Todo o tempo despendido na compreenso da imagem rapidamente abalado por um nico gesto, uma simples perturbao que faz com que cada plano deixe de ser uma imagem esttica: uma porta que abre, um movimento de cabea, uma variao de luz. E nessa surpresa do mnimo - pensemos aqui em Five, de Abbas Kiarostami -Permanncias vai ao mago da destituio do especfico cinematogrfico em relao fotografia ("as folhas se movem!", dizia Mlis, diante de um filme dos Lumire) promovido pelo cinema contemporneo para, enfim, resgat-lo.