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A LEITURA COMO PROCESSO INTERTEXTUALO constrangimento positivo

António Fernando CascaisDepartamento de Ciências da Comunicação, Universidade Nova de Lisboa

,

O processo de leitura realiza o sentido de um texto. A pragmática não pode porém dar cabalmente conta dos fenómenos de cooperação textual cuja descrição, por Wolfgang Iser, permite compreender que o texto fornece ao leitor as condições fundamentais da sua leitura mediante a constituição, no seu interior, de um leitor implícito, tornando-se assim o leitor uma estrutura textual e a leitura um acto estruturado. A indeterminância textual aponta, por um lado, para uma fuga tendencial ao sentido que impede que se fixe ao texto uma verdade última, prolongando por outro lado, no processo de leitura, a transformacionalidade que caracteriza o próprio texto. O texto constrange positivamente ao jogo intertextual em que se dá à leitura, deste modo remetendo o leitor para a textualidade característica de toda a experiência.

«La lecture fait seulement que le livre, l’oeuvre, devienne – devient – oeuvre par-delà l’homme qui l’a produite, l’expérience

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qui s’y est exprimée et même toutes les ressources artistiques que les traditions ont rendues disponibles. Le propre de la lecture, sa singularité, éclaire le sens singulier du verbe ‘faire’ da

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ns l’expression: ‘elle fait que l’oeuvre devient oeuvre’.»

Mauric

e Blanchot, L’espa

ce littérair

e

Não é nova a ideia de que o processo de leitura realiza o sentido de um texto. Ideia cara a Sartre que, em «Qu’est-ce que la littérature», sublinha o apelo que o texto dirige ao leitor para que este faça passar à existência objectiva o desvelamento que pressupõe o compromisso do autor com a escrita, ideia não menos valorizada por um outro crítico-escritor, Maurice Blanchot, para quem a leitura «faz com que a obra se torne obra» (Blanchot, 1982 [3], p. 257). Do mesmo modo, para Gadamer, a obra literária apela essencialmente à leitura e «o conceito de literatura não é inteiramente desprovido de referência àquele que recebe a obra» (Gadamer, 1976, p. 91), ideia por sua vez central na Estética da recepção de Hans Robert Jauss. Será porém Umberto Eco quem se terá debruçado mais atenta e longamente sobre o problema da cooperação textual, concebendo-o no quadro de uma dupla Pragmática do código e do texto.

Para Eco, o texto é expansão de um semema: «numa semântica orientada para as suas actualizações textuais o semema deve aparecer como um texto virtual, e um texto não é outra coisa senão a expansão de um semema» (Eco, 1979, p. 26), cabendo ao leitor colaborar na sua expansão semiósica. O texto aparece como extracodificado, a um tempo hipercodificado – apresentando dados não contemplados pelo código preexistente que obrigam o intérprete a avançar hipóteses interpretativas, alargando a sua competência –; e hipocodificado – apresentando porções macroscópicas que o leitor começa por admitir como unidades pertinentes de um código ainda em formação de modo a atribuir-lhes novas funções

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sígnicas. Eco recolhe de Peirce o conceito de abdução como modalidade de inferência privilegiada que trabalha um texto ora concebido como modelo de relação pragmática: «A definição semiótica do texto estético provê, pois, o modelo estrutural de um processo não estruturado de interacção comunicativa… O texto estético torna-se assim fonte de um acto comunicativo imprevisível, cujo autor permanece indeterminado, ora sendo o emissor ora o destinatário que colabora na sua expansão semiósica» (Eco, 1976, p. 233). A compreensão do texto baseia-se, para Eco, «numa dialéctica de aceitação e repúdio dos códigos do emissor e de proposta e controlo dos códigos do destinatário» (idem, p. 233); a abdução estética representa a proposta de códigos que tornem o texto compreensível numa dialéctica de fidelidade e de liberdade interpretativas que constitui uma experiência que não pode ser prevista nem totalmente determinada e que decorre da estrutura multinivelar, «aberta», do próprio texto. As linhas de fuga que essa estrutura precipita não são, porém, incontroláveis: o idiolecto estético age como seu disciplinador e limita, por outro lado, os efeitos perversos de uma interpretabilidade ilimitada por parte do leitor: «a obra de arte é um texto que é adaptado pelos seus destinatários de modo a satisfazer vários tipos de actos comunicativos em diversas circunstâncias históricas e psicológicas, sem nunca perder de vista a regra idiolectal que a rege» (idem, p. 233). A cooperação requerida pelo processo textual da semiose ilimitada levanta o problema da não coincidência das competências do destinatário e do emissor. A competência deste deve reger, pelo menos parcialmente, a competência do destinatário, agenciando o texto de tal modo que, sendo ele potencialmente infinito, possa gerar exclusivamente as interpretações que a sua estratégia previu. Deste modo, «um texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do seu próprio mecanismo generativo: gerar um texto significa actuar segundo uma estratégia que inclui as previsões dos movimentos do outro» (Eco, 1979, p. 57). O autor deve prever um Leitor-modelo capaz de cooperar na actualização textual, movendo-se interpretativamente da mesma maneira que ele, autor, se moveu generativamente. O leitor, por sua vez, deve encontrar-se em condições de conceber um Autor-modelo mediante um percurso inferencial que propõe «topics» que lhe permitam identificar, abdutiva, metatextualmente, a estratégia de escrita que corporiza o texto. A cooperação textual realiza-se assim entre duas «estratégias discursivas – de escrita e de leitura –, não entre dois sujeitos individuais. O leitor deve sair do texto e a ele regressar com um reservatório intertextual que lhe é proporcionado por uma enciclopédia semântica ou, como lhe chama Eco, um Sistema Semântico Global ideal que precede todas as suas actualizações textuais e sem o qual não seria possível a uma sociedade registar uma informação enciclopédica, uma vez que ela teria de ser fornecida por textos precedentes – «a enciclopédia ou thesaurus é o destilado (sob a forma de macroproposições) de outros textos» (idem, p. 26). Finalmente, se «uma teoria semiótica não pode negar que existem actos concretos de interpretação que produzem sentido (Eco, 1976, p. 121), e que atrás foram sumariamente descritos, a circularidade intertextual não deve, em contrapartida, e devido ao terreno dúctil para o qual remete, «desencorajar uma investigação rigorosa: o problema consiste, apenas, em estabelecer processos rigorosos para dar conta desta circularidade» (idem, p. 26).

1. A cooperação textual: semântica ou pragmática?

A Pragmática tradicional não pode porém dar conta, em termos de produtividade teórica, da complexidade dos fenómenos de cooperação textual que concentraram a atenção do autor d’A obra aberta e a quem se

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deve, aliás, uma das primeiras e mais interessantes rupturas com as visões puramente «pragmaticistas» dos efeitos da obra literária. Veremos adiante que a problemática da leitura envolve muito mais que os simples efeitos da obra. As críticas de Jacques Derrida e de Gilles Deleuze aos limites da pragmática, além de muito próximas, parecem-nos, a este respeito, particularmente interessantes se as articularmos com a notável perspectivação que Wolfgang Iser nos dá das questões levantadas pela cooperação textual e a leitura.

São já clássicas as ideias de «écriture» de Derrida e de «mot d’ordre» de Deleuze, na sequência das críticas a Austin e a Searle. Para Austin, as noções de locução e de perlocução não designam o transporte de um conteúdo de sentido mas a produção de um efeito, a comunicação de uma força pela impulsão de uma marca, corporizada na performancecomunicativa que é todo o acto de discurso, com o que aliás Derrida não discorda; o conceito de comunicação não é porém puramente semiótico ou linguístico: o performativo é uma «comunicação» que não se limita a transportar um conteúdo semântico já constituído, a trocar duas intenções de querer-dizer, a conectar duas consciências. A comunicação possui um carácter grafemático, escritural, o seu horizonte apresenta-se já escrito, previamente ao – e como condição do – processo que a linguística descreve como a constituição em signo. Toda a marca se constitui em escrita («écriture») antes mesmo e exteriormente a todo o horizonte semio-linguístico. Significação e comunicação têm assim uma natureza fundamental citacional: «Cette citacionnalité, cette duplication ou duplicité, cette iterabilité de la marque n’est pas un accident ou une anomalie, c’est ce (normal/anormal) sans quoi une marque ne pourrait même plus avoir de fonctionnement dit ‘normal’» (Derrida, 1979b, p. 381). A palavra comunicação, dirá ainda Derrida, abre a um campo semântico que não se limita à semântica, à semiótica ou à linguística, designa igualmente movimentos não semânticos, uma disseminação nunca saturada que é também o conceito de escrita. Muito próximo(s) de Derrida, Deleuze (com Guattari) afirma(m) que «le langage n’est ni informatif ni communicatif, il n’est pas communication d’information, mais, ce qui est très différent, transmission de mots d’ordre, soit d’un énoncé à un autre, soit à l’intérieur de chaque énoncé, en tant qu’un énoncé accomplit un acte et que l’acte s’accomplit dans l’énoncé» (Deleuze e Guattari, 1980, p. 100). Entre o enunciado e o acto há uma relação de redundância que circunscreve o próprio conceito de palavra-de-ordem: «Nous appelons mots d’ordre (…) le rapport de tout mot ou tout énoncé avec des présupposés implicites, c’est à dire avec des actes de parole qui s’accomplissent dans l’énoncé et ne peuvent s’accomplir qu’en lui» (idem, ibid.) A palavra-de-ordem não reenvia à simplicidade de uma «voz de comando» emanada da consciência de um sujeito, antes corresponde à natureza de toda a comunicação. «Il n’y a pas d’énonciation individuelle, ni même de sujet d’énonciation» (idem, p. 101), a enunciação é agenciada colectivamente, traduzindo-se de imediato esse agenciamento colectivo por uma transformação incorporal precipitada pela palavra de ordem e mediante a qual os corpos individuais têm acesso à linguagem assim des-substancializada, des-ontologizada – «La fonction-langage est transmission de mots d’ordre, et les mots d’ordre renvoient aux agencements, comme les agencements aux transformations incorporelles qui constituent les variables de la fonction. La linguistique n’est rien en dehors de la pragmatique (sémiotique ou politique) qui définit l’effectuation de la condition du langage et l’usage des éléments de la langue» (idem, p. 109). A pragmática é uma «política da língua» e não se limita a um resíduo de uma linguística que não pode continuar a insistir nas constantes fonológicas, morfológicas ou sintácticas, no reenvio da linguagem a um eventual exterior (o enunciado a um significante, a enunciação a um sujeito, externos). Falamos às coisas, falamos as coisas, não delas, sem nunca

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podermos obter verdadeira resposta: as variações de expressão não se devem a hipotéticas alterações dos estados de coisas. «Un agencement d’énonciation ne parle pas des choses, mais parle à même des états de contenu» (idem, p. 1106). A pragmática terá deste modo por objecto as componentes (quatro, para Deleuze/Guattari: generativa, transformacional, diagramática e maquínica) da linguagem encarada como máquina abstracta: «L’ensemble de la pragmatique consisterait en ceci: faire le calque des sémiotiques mixtes dans la composante générative; faire la carte transformationnelle des régimes avec leurs possibilités de traduction et de création, de bourgeonnement sur les calques; faire le diagramme des machines abstraites mises en jeu dans chaque cas, comme potentialités ou comme surgissements effectifs; faire le programme des agencements qui ventilent l’ensemble et font circuler le mouvement, avec ses alternatives, ses sauts et mutations» (idem, p. 183).

Por seu lado, baseando-se também na teoria dos actos de fala de Austin, e que Searle desenvolveu, Iser afirma que a linguagem da literatura se assemelha ao modo do acto ilocutório, mas com uma função diferente: o sucesso de uma acção linguística depende da resolução das indeterminâncias («indeterminacies»), compresentes a todo o discurso, mediante convenções, procedimentos, garantias de sinceridade, que formam o feixe de referências dentro do qual o acto de fala pode ser resolvido num contexto de acção; os textos literários também requerem a resolução das indeterminâncias mas, por definição, não há para esses textos os feixes de referência que existem para os discursos quotidianos. Austin e Searle tinham aliás excluído a linguagem literária de uma possível análise pragmática por a considerarem vazia desse ponto de vista, isto é, sujeita a um uso não controlado, não invocando convenções e não se ligando com um contexto situacional que permita estabilizar o sentido das suas proposições e, consequentemente, a transparência e eficácia dos seus efeitos pragmáticos. Embora não deixe de ter a sua dimensão pragmática própria, que para Iser principia justamente quando «despragmatiza» as convenções seleccionadas pelo texto, obrigando desse modo o leitor a descobrir os mecanismos de tal selecção, processo este que corresponde à própria natureza da acção performativa. Em suma: «fictional language has the basic properties of the illocutionary act. It relates to conventions which it carries with it, and it also entails procedures which, in the form of strategies, help to guide the reader to an understanding of the selective processes underlying the text. lt has the quality of ‘performance’, in that it makes the reader produce the code governing this selection as the actual meaning of the text. With this horizontal organisation of different conventions, and its frustration of established expectations, it takes on an illocutionary force, and the potential effectiveness of this not only arouses attention but also guides the reader’s approach to the text and elicits responses to it» (Iser, 1978, pp. 61-62). O texto literário é constituído por signos icónicos que não denotam as qualidades de um objecto extra-literário empiricamente dado mas sim o próprio signo, ou melhor, as condições de concepção e percepção que habilitam o observador a constituir o objecto visado pelo signo. Os signos icónicos fornecem instruções ao leitor, induzindo-o a reconstruir o objecto representacional que é o texto, cumprindo-se deste modo a função textual mediante o envolvimento do leitor que actualiza a realidade potencial do texto. As componentes básicas da realização performativa do texto literário seriam então, para Iser, as convenções necessárias ao estabelecimento de uma situação que poderiam ser melhor designadas por repertório do texto; os procedimentos comummente aceites, que poderiam chamar-se estratégias textuais; e a participação do leitor, que se passará a designar realização.

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2. A leitura como processo intertextual: o constrangimento positivo.

O texto oferece-se como legível, como uma escrita legível, isto é, fornece ao leitor as condições fundamentais da sua leitura, as quais, como veremos, não decorrem exclusivamente da sua provável unidade como texto isolado mas da natureza escritural de todo o «real», de todos os textos que constituem o real e que «este» texto particular desloca, transforma, reescreve.

Iser diz-nos que o texto literário é um sistema que partilha a estrutura básica de todos os sistemas em geral, estrutura operativa não em relação ao modelo ordenado de sistemas com o qual o texto interfere. «Herein lies the unique relationship between the literary text and ‘reality’, in the form of thought systems or models of reality» (Iser, 1978, p. 72). O texto não copia esses sistemas nem se desvia deles, antes representa uma reacção aos sistemas de pensamento que incorporou no seu próprio repertório, tendo como resultado o re-arranjo e a redisposição dos modelos de sentido existentes. O texto age sobre o real transformando os (outros) textos em que o real se dá. O texto apresenta, segundo Iser, uma deformação coerente («coherent deformation») que aponta para a existência de um sistema de equivalências a ele subjacente e que é em larga medida idêntico ao que se chamou valor estético. O valor estético é aquilo que não é formulado pelo texto nem dado no repertório mas cuja existência se prova a partir da necessidade do seu efeito, isto é, na medida em que é ele que condiciona a selecção do repertório e induz ao movimento («drive») de leitura necessário ao processo de comunicação, iniciando assim o processo pelo qual o leitor estabelece o sentido do texto. O sentido tem pois de ser estabelecido no processo de leitura: «if meaning is imagistic in character then inevitably there must be a different relationship between text and reader from that which the critic seeks to create through his referential approach. Such a meaning must clearly be the product of an interaction between the textual signals and the reader’s acts of comprehension. And, equally clearly, the reader cannot detach himself from such an interaction; on the contrary, the activity stimulated in him will link him to the text and induce him to create the conditions necessary for the effectiveness of the text» (idem, p. 9). Iser serve-se aqui do conceito de disponibilidade textual («textual availability») que toma de Philip Hobsbaum: o texto apresenta-se deficientemente disponível ao leitor na medida em que lhe serve para aumentar o grau de projecção das suas próprias normas, o que confirma a suspeita de que a uniformidade de sentido do texto se deve mais à projecção compresente a todo o processo de leitura do que propriamente a um conteúdo oculto, latente, profundo, do texto.

A falta de disponibilidade deste condiciona aliás o que Iser chama a «consistency-building» – e que nós optamos por traduzir como «estabelecimento de verosimilhança» – que atravessa ambos os processos de escrita e de leitura.

Uma vez que o sentido se ergue do processo de actualização da realidade potencial que o texto é, a nossa atenção deve debruçar-se preferencialmente sobre o processo que não sobre o produto: «It is in the reader that the text comes to life, and this is true even when the ‘meaning’ has become so historical that it is no longer relevant to us» (idem, p. 19). A obra tem um carácter virtual; deve tê-lo, na medida em que não pode ser reduzida nem à realidade do texto (isto é, de um possível sentido único, fixo) nem à subjectividade do autor, nem por outro lado à sua concretização na

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leitura – ela é deriva, actualizável no máximo à maneira de uma interacção entre texto e leitor. Estrutura de efeitos (o texto) e estrutura de resposta (o leitor) sobrepõem-se de tal modo que a descrição da interacção entre o aspecto verbal do texto (que guia a reacção impedindo-a de cair no puro arbítrio) e o aspecto afectivo (que preenche aquilo que é pré-estruturado pela linguagem do texto) tem de incorporar ambas «the meaning of a literary text is not a definable entity but, if anything, a dynamic happening» (idem, p. 22). O texto literário contém instruções intersubjectivamente verificáveis para a produção de sentido preestruturando a recepção por parte do leitor, de tal maneira que este é capaz de actualizar o potencial de significação nele contido de acordo com os seus próprios princípios de selecção. A performance de sentido precipitada pelo texto impede que o sentido desse mesmo texto se possa subsumir à sua eventual formulação explícita, ao mesmo tempo que dá indicadores do seu valor estético, que claramente não pode ser idêntico ao produto final, e que consiste na capacidade que o texto possui de suscitar a cooperação activa, produtiva, do leitor. O texto produz algo que ele não é, sendo essa a sua qualidade fundamental enquanto texto literário. Dá-se a ler, fornece as condições da sua legibilidade num processo nunca saturado. O texto constitui no seu interior o que Iser chama um leitor implícito («implied reader») que corporiza todas as predisposições necessárias para que o texto exerça o seu efeito e que não se confunda de modo nenhum com qualquer leitor real. «The concept of the implied reader is […] a textual structure anticipating the presence of a recipient without necessarily defining him: this concept prestructures the role to be assumed by each recipient, and this holds true even when texts deliberately appear to ignore their possible recipient or actively exclude him. Thus the concept of the implied reader designates a network of response – inviting structures, which impel the reader to grasp the text» (idem, p. 34). O leitor torna-se assim uma estrutura textual e a leitura um acto estruturado. O leitor implícito emana da estrutura do texto em primeiro lugar porque se topologiza sobre um ponto de vista proeminente, um eixo de deriva (simultaneamente convergência e dispersão) das perspectivas mutantes de algum modo formuladas no texto (pelo narrador, pelas personagens, etc.). O texto é, neste sentido, sobredeterminado, na medida em que, como assinala Iser, a constante mutação das perspectivas que constitui o jogo cooperativo em que o leitor se envolve aponta para um crescente grau de indeterminância («indeterminacy»): «an ‘overdetermined text’ causes the reader to engage in an active process of composition, because it is he who has to structure the meaning potential arising out of the multifarious connections between the semantic levels of the text» (idem, p. 49). O texto não apenas liberta o leitor da pressão da sua experiência normal. Pelo contrário, força-o a produzir o seu sentido em condições que estão fora dos seus hábitos: o interesse principal de um texto reside não no seu sentido mas no seu efeito; será justamente a partir daqui que é possível definir a função da literatura. É neste ponto que a teorização de Iser nos parece particularmente próxima do conceito de texto transformacional assim como do de ideologema de Julia Kristeva: «A interacção de uma organização textual (ou de uma prática semiótica) dada com os enunciados (sequências) que ele assimila no seu espaço, ou para os quais envia no espaço dos textos (práticas semióticas) exteriores, chamar-se-á ideologema. O ideologema é aquela função intertextual que podemos ler ‘materializada’ nos vários níveis da estrutura de cada texto, e que se estende ao longo de todo o seu trajecto, dando-lhe as suas coordenadas históricas e sociais» (Kristeva, 1984, p. 12). É a sua própria transformacionalidade que «abre» o texto à leitura, a qual não se limitará ao percurso inferencial descrito por Eco, se este guarda ainda um resquício da ideia de «fidelidade», porquanto a todo o momento somos remetidos, confrontados, com uma fuga tendencial ao sentido de que o autor é o primeiro a aperceber-se: o texto deixa imediatamente de ser coisa sua, irreconhecível espelho deformante cuja «verdadeira» imagem nem o

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vulgar leitor nem o crítico se encontram em condições de alguma vez lhe restituir. A leitura refaz a intertextualidade característica do texto literário sem porém deixar intacto esse trabalho intertextual: prolonga o excesso (de sentido) que o texto já é. Não há texto tomado por si mesmo. Não há texto invulnerável nem leitura «inocente». A leitura é o jogo não de uma absoluta mas de pequena perversão, em que a força de um depara sempre com a resistência do outro.

Uma primeira conclusão que poderemos extrair da proposta de Iser será justamente a de que o texto induz ao processo de leitura como estabelecimento do sentido na medida em que regista em si as marcas (ele próprio é uma macro-marca) do deslocamento e da transformação de outros textos a partir dos quais se constitui. Cada texto – se é que se pode isolar «um» texto da rede intertextual que o constitui – se inscreve na cadeia da semiose ilimitada como interpretante possível (ou, se quisermos, funcional) de todos os outros textos que nela se inscrevem – como a partir de Peirce podemos compreender. Ou, como diria Derrida, o que enceta o movimento da significação é o que lhe torna a interrupção impossível sendo a própria «coisa» um signo. Deste modo, o texto não remete para uma experiência originária de cujo sentido ele seria o fiel viático. A única experiência implicada pelo texto é a experiência do deslocamento intertextual que de algum modo o caracteriza e que é a própria experiência da escrita, neste sentido não originária porque concebida como intratextual, apenas possível no mundo dos textos, na infinita cadeia de remetência de um para o outro, visto que «la trace n’est pas seulement la disparition de l’origine, elle veut dire ici […] que l’origine n’a même pas disparu, qu’elle n’a jamais été constituée qu’en retour par une non-origine, la trace, qui devient ainsi l’origine de l’origine. Des lors, […] il faut bien parler de trace originaire ou d’architrace» (Derrida, 1979a, p. 90). A escrita derridiana é escarificação, violência originária que é o próprio modo de acesso à linguagem (e logo, ao «real», à «linguagem do real»), ao apareSer dúctil em que o real se dá – para utilizarmos uma linguagem heideggeriana, mas subscrevendo a não-anterioridade do sentido com que Derrida afasta a sua noção de «écriture» da de Linguagem do Ser de Heidegger. A escrita é uma inscrita – não sobre um corpo fixo (do sentido, da verdade), mas à maneira de um palimpsesto, imagem hoje clássica, aliás, corporeidade esmagadora da «archi-écriture» que recobre todo o campo do real e da experiência, que nos permite igualmente compreender a performancecomunicacional do texto, tal como a supõe Iser, fora de um estrito paradigma comunicacional: «Toute écriture doit donc, pour être ce qu’elle est, pouvoir fonctionner en l’absence radicale de tout destinataire empiriquement détermine en général. Et cette absence n’est pas une modification continue de la présence, c’est une rupture de présence, la ‘mort’ ou la possibilité de la ‘mort’ du destinataire inscrite dans la structure de la marque» (Derrida, 1979b, p. 375). Ora o que vale para o destinatário também é válido para o emissor ou produtor, como prossegue Derrida: escrever é produzir uma marca que constituirá uma espécie de máquina por sua vez produtora que não cessará de se dar a ler e a reescrever. Outra coisa não pretende Iser quando diz que o repertório do texto como emissor e o leitor como receptor «saltam»: como o repertório é normalmente caracterizado por uma forma de recodificação, fornece o seu próprio contexto de possibilidades de sentido e o sentido torna-se a própria experiência do leitor na proporção do grau de ordem que ele consegue estabelecer à medida em que optimiza a estrutura. Através deste processo, o património de experiência do leitor pode sofrer uma reavaliação semelhante à contida no repertório. A relação entre texto e leitor é assimétrica, não há terceiro entre eles que possa ajuizar da justeza da interpretação. É impossível comunicar a totalidade da experiência individual (não posso experienciar a experiência do outro). Para Iser, há uma lacuna («gap») central na nossa experiência, o que não denota uma condição

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ontológica mas sim o que ele chama o carácter diádico da interacção (neste caso entre texto e leitor) e que nos parece, nas suas implicações, muito próximo do dialogismo bakhtiniano, nomeadamente a impossibilidade de firmar um metadiscurso que permita regular, do exterior, a relação dialógica. Aliás, a proposta de Iser realça o diferir contínuo que funda toda a comunicação, ideia que também não é alheia a essa outra, derridiana, de diferância («différance»): o sentido do texto, estabelecido no decurso do processo de leitura, releva não da sua formulação, como já vimos, mas da negatividade textual, do duplo não formulado que subjaz ao texto (mas que não se confunde com o que foi chamado a sua estrutura profunda, como deve ser neste momento evidente), como se o texto não estivesse escrito antes da leitura, no antes da leitura: «Negativity, then, embraces both the question and the answer, and is the condition that enables the reader to construct the meaning of the text on a question-and-answer basis».(Iser, 1978, p. 228).

Aqui se levanta, por outro lado, uma questão que atravessa toda esta problemática e que os teóricos de língua inglesa resumem no conceito de «indeterminacy» (frequentemente traduzido entre os franceses por «instabilité», mas de que o termo português «instabilidade» não reproduz toda a riqueza teórica e que já foi aliás transposto entre nós para o termo que temos vindo a utilizar no decurso deste trabalho: «indeterminância»). A indeterminância é um conceito operativo em Iser, já o sabemos: é ela que contribui para desencadear o próprio processo de comunicação. Vulgar nos meios de língua inglesa, parece-nos particularmente a propósito o que dela diz Geoffrey Hartman: «Indeterminacy as a speculative instrument should influence the way literature is read, but by modifying the reader’s awareness rather than imposing a method. To methodise indeterminacy would be to forget the reason for the concept. It does not doubt meaning, nor does it respond to an economy of scarcity and try to make reading more ‘productive’ of meaning. Quite the contrary: it encourages a form of writing – of articulate interpretation – that is not subordinated naïvely to the search for ideas» (Hartman, 1980, p. 269). O texto é «indeterminável» no sentido em que não há outro possível texto que lhe fixe a sua «verdade». Logo, o que se põe em causa é a «objectividade» do metadiscurso literário, a que a noção mesma de indeterminância obvia e que não se pode transformar por sua vez num método de acesso ao texto. Marcará, antes, os limites de todo o método: não desconhecendo a dívida de Hartman em relação a Derrida, de quem ele aliás se assume como um dos primeiros divulgadores nos Estados Unidos, poderemos inclusivamente ler aquela afirmação como uma tentativa de se demarcar da «metodização» do desconstrucionismo que o próprio Derrida ainda recentemente – e entre nós – deplorava nos seus divulgadores americanos.

Não há pois factos para os quais o texto remeta em última análise; os factos não são dados, são produzidos, o texto é o produzi-los, na medida em que explora uma estrutura básica de compreensão, mas expandindo-a de maneira a que ela possa incorporar a efectiva produção de «factos», isto é, constrangendo o processo cooperativo, fazendo da leitura uma necessidade interna do próprio texto. Há, para Iser, schemata textuais construídos como estratégias no interior do texto e que têm a função de estimular o processo de leitura. Osschemata dão corpo a aspectos de uma «verdade» não verbalizada, oculta, segundo Iser, e estes aspectos devem ser sintetizados pelo leitor que, através de um permanente reajustamento do ponto de vista mutante do texto, é levado a idealizar uma totalidade de sentido. O ponto de vista mutante permite ao leitor viajar através do texto, desdobrando desse modo a multiplicidade de perspectivas que se interconectam. Este trabalho de conexão acompanha potencialmente todo o texto, mas o potencial significante nunca pode ser completamente realizado; pelo contrário, forma

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a base para as multas relações que têm de ser estabelecidos no decurso do processo de leitura, as quais, se bem que não sendo intersubjectivamente idênticas (como mostram as muitas diversas interpretações de um mesmo texto), não deixam contudo de permanecer intersubjectivamente compreensíveis enquanto tentativas para optimizar a mesma estrutura. O processo de leitura põe em jogo as expectativas modificadas (do leitor) e a memória transformada (do texto). O texto não formula, todavia, as expectativas ou sequer a sua modificação, nem especifica como implementar a conectabilidade das recordações. Este é o campo do leitor e é a sua actividade sintética que possibilita que o texto seja transferido para a sua própria mente, ponto este a que tende o que Iser chamou a optimização da estrutura. A este respeito, diz-nos Geoffrey Hartman: «One should not talk of understanding, therefore, as if it were a matter of rules or techniques that become intuitive and quasi-silent. There is, of course, an internalisation; but the life-situation on the interpreter has to deal with riddles as well as puzzles: what is sought is often the readiness to take and give words in trust, rather than the answer to a problem» (Hartman, 1981, p. 137). Diríamos, com Iser, que a «consciência» do leitor se torna então num devir-consciente, contra a concepção cartesiana; devir-consciente apenas no sentido em que a internalização das estratégias textuais, por parte do leitor, o habilitam a formular a sua «experiência» (a sua habituação textual) nos termos novos com que elas o enformam. O leitor envolve-se a si próprio e vê-se a si próprio a ser envolvido no texto, constituindo essa capacidade de cada um se aperceber do próprio envolvimento uma qualidade fundamental da experiência estética. Esta posição, diz-nos Iser, não é inteiramente não-pragmática, porque ela apenas é possível quando os códigos existentes são transcendidos ou invalidados: «The resultant restructuring of stored experiences makes the reader aware not only of the experience but also of the means whereby it develops» (Iser, 1978, p. 134). O texto surge deste modo como um ser viscoso que se prolonga muito para além da realidade tipográfica do livro. A escrita tem como sua condição de possibilidade a legibilidade do texto escrito, a qual age sobre o emissor transformando-o no primeiro leitor-destinatário e guiando a própria escrita tanto como constrange a leitura: não esta ou aquela leitura, prescrevendo este ou aquele sentido, segundo uma topologia censória de negação/afirmação, mas constrangendo positivamente ao jogo em que o texto – e unicamente nele – se dá; ou, recorrendo às palavras de Iser, aquilo a que o leitor implícito obriga e a que ele dá o nome de «interplay». Reencontramos a ideia de negatividade textual: o texto dá-se no envolvimento textual do leitor que se vê envolvido segundo linhas de fuga que constituem a virtualidade própria do texto e que indicam claramente que ele não se detém nos limites da página impressa mas remete para a textualidade de todas as relações humanas: «we read to understand, but to understand what? Is it the book, is it the object (in the world) revealed by the book, is it ourselves? Or some transcendental X?… We read, as we write, to be understood; yet what we gain is the undoing of a previous understanding. […] Reading itself becomes the project: we read to understand what is involved in reading as a form of life, rather than to resolve what is read into glossy ideas» (Hartman 1980, pp. 271-272).

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