Performance em Telepresença - dissertação de mestrado

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Dissertação de mestrado de Alice Stefânia Curi, defendida em 2000, pelo PPGArte da UnB.

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ALICE STEFNIA CURI

PERFORMANCE EM TELEPRESENA

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre. Curso de ps graduao em Arte e Tecnologia da Imagem, Departamento de Artes Visuais, Instituto de Artes, Universidade de Braslia. Linha de Pesquisa: Poticas Contemporneas. Orientadora: Prof. Maria Beatriz de Medeiros.

BRASLIA

Outubro de 2000

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A tua presena. Entra pelos sete buracos da minha cabea. A tua presena. Pelos olhos, boca, narinas e orelhas. A tua presena. Paralisa o meu momento, onde tudo comea. (...) A tua presena. Desintegra e atualiza a minha presena. A tua presena. Envolve meu tronco, meus braos e minhas pernas. (...) A tua presena. Transborda pelas portas e pelas janelas. (...) A tua presena. Se espalha no campo derrubando as cercas. (...) A tua presena. Coagula o jorro da noite sangrenta. A tua presena. a coisa mais bonita de toda a natureza. A tua presena. Mantm sempre teso o arco da promessa. A tua presena. negra, n egra, negra, negra. Caetano Veloso

Este trabalho dedicado ao Grupo de Pesquisa Corpos Informticos, seus membros efetivos e transitrios, destacando as incansveis Bia Medeiros, Carla Rocha e Malu Fragoso.

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Agradeo ao Del e ao Daniel, pela pacincia e pelo amor. Agradeo aos meus pais, pelo incentivo incondicional. Agradeo ao Grupo de Pesquisa Corpos Informticos, principal fonte de inspirao desta pesquisa, por tudo. Agradeo Cia. de teatro Piramundo, pe la amizade e pela compreenso. Agradeo queles professores e alunos do mestrado, que souberam ser generosos, em crticas e observaes, contribuindo, assim, para esta pesquisa. Agradeo CAPES, ao CNPq, FAP -DF e ao MinC pelo subsdio, em diferentes estgios e aspectos desta pesquisa.

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SUMRIO

RESUMO........................................................................................ p. 08

ABSTRACT................................................................ ........................ p. 09

1. PRINCPIOS........................................................................................ p. 10

2. ORIGENS............................................................................................ p. 15

3. FUNDAMENTAO TERICA

em sete mo(vi)mentos............... p. 18

preliminares......................................................................................... p. 18 lgicas transversas.......................................................................... .... p. 19 "outros" versos..................................................................................... p. 22 t(r)oca pblico...................................................................................... p. 23 mos obra: autoria.......... .................................................................. p. 25 efemeridade......................................................................................... p. 27 quadro...................................................................... ............................ p. 29

4. CONCEITOS

em trs mo(vi)mentos........................................... p. 31

preliminares......................................................................................... p. 31 o corpo impalpvel.......... ..................................................................... p. 31 presenas em novas consistncias .................................................. p. 38

5. TENDNCIAS

em trs mo(vi)mentos............................................ p. 40

preliminares.......................................................................................... p. 40 grupo: ns............................................................................................. p. 40 pblico: dono dos "sentidos"............ ..................................................... p. 43

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6. ASPECTOS DAS LINGUAGENS-FOCO

em seis mo(vi)mentos....... p. 51

tenso........................................................................................................ p. 51 atuao...................................................................................................... p. 57 ao........................................................................................................... p. 64 mediao................... ................................................................................ p. 70 simulao.................................................................................................. p. 75 quadro................................................. ...................................................... p. 78

7. TELEPRESENA

em quatro mo(vi)mentos...................................... p. 81

presena da ausncia............................................................................... p. 81 espaos e lugares..................................................................................... p. 85 corpos em telepresena............................................................................ p. 87 telepresena aurtica........................... ..................................................... p. 97

8. PBLICO

segundo mo(vi)mento........................................................ p. 100

9. POTICA DO CORPO PRESENTE........................................................... p. 104

10. EM FIM: PRINCPIOS..............................................................................p. 107

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................... p. 113

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1............................ .............................................................................. p. 46 Performance Balano, do Grupo de Pesquisa Corpos Informticos (GPCI), na Rodoviria de Braslia. 1996. Foto: Bia Medeiros Performer: Milton Marques Imagem 2........................................................................................................... p. 46 Performance Balano, do GPCI, no 13 Rio Cine Festival, no Rio de Janeiro. 1997. Foto: Bia Medeiros Performer: pblico Imagem 3 e 4......................................................................................................p. 48 Instalao performtica do GPCI, no Projeto Prima Obra, da Galeria de Artes da FUNARTE de Braslia. 1996. Fotos: Robiara Becker Imagem 5........................................................................................................... p. 50 Vdeo-instalao performtica, do GPCI, no Projeto Prima Obra, da Galeria de Artes da FUNARTE de Braslia. 1996. Foto: Carla Rocha Performer: pblico Imagens 6, 7, 8 e 9 .........................................................................................p. 58 -59 Vdeo-arte Um, dois, trs, de Alice Stefnia/GPCI. 1996. Fotos: Malu Fragoso Performers: Alice Stefnia e Pedro Augusto Imagens 10 e 11.................................................................................................. p. 62 Vdeo-arte Diminutu, de Alice Stefnia/GPCI. 1995. Fotos: Malu Fragoso Performer: Jos Delvinei Imagens 12 e 13............................................. ..................................................... p. 65 Vdeo-arte Bremeu de Pedro Augusto/GPCI, a partir de performances criadas na vivncia Construo da Persona Ritual. 1997. Fotos: Robiara Becker Performers: Carla Rocha e Alice Stefnia Imagens 14 e 15................................................................................................... p. 66 Vdeo-arte De 15 a 1, de Mnica Mello/GPCI, a partir de performance criada no Treinamento Psco -Fsico do GPCI. 1996. Fotos: Malu Fragoso Performer: Alice Stefnia Imagem 16............................................................................................................. p. 73 Performance Inersos, do GPCI, na Galeria de Artes Mario Schenberg, FUNARTE de So Paulo. 1995. Foto: Carla Rocha Performer: Alice Stefnia

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Imagens 17 e 18................................................................................................... p. 79 Performance Clios Azuis, de Alice Stefnia/GPCI. 1996. Fotos: Malu Fragoso Performer: Alice Stef nia Imagens 19 e 20................................................................................................... p. 80 Vdeo-arte A Comedora, de Cila MacDowell/GPCI, a partir da performance Clios Azuis. 1997. Fotos: Malu Fragoso Performer: Alice Stefnia Imagem 21, 22 e 23 ........................................................................................ p. 89 -90 Vdeo-instalao performtica Cabina Dlmata, de Alice Stefnia/GPCI na exposio Incubadora, Galeria da CEF, Braslia. 1998. Fotos: Bia Medeiros Performers: Pblico, Alice Stefnia e Sheila Campos Imagem 24............................................................................................................ p. 95 Performance em telepresena Corpos na Rede II, do GPCI, na Internet. Bienal do Merco -Sul, Porto Alegre,1999. Fotos ( frames): Carla Rocha, Malu Fragoso, Bia Medeiros, Alice Stefnia Montagem: Bia Medeiros Performers: GPCI, pblico da bienal e pblico da Internet . Imagem 25.......................................... ................................................................. p. 111 Performance sem ttulo com projeo de slides, do GPCI. 1995. Performer: Alice Stefnia Foto: Robiara Becker Performer: Alice Stefnia Imagem 26 e 27................................. .................................................................. p. 112 Vdeo-instalao performtica Nebulizadores, do GPCI, no IV Salo MAM-Bahia e na Exposio Incubadora, na Galeria de Artes da CEF, em Braslia. 1997/1998. Fotos: Bia Medeiros Performers: GPCI e pblico

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RESUMO

A presente dissertao se prope a investigar aes performticas em telepresena, a partir das poticas produzidas em experincias envolvendo o corpo, redimensionado por meios tecnolgicos. A pesquisa compreende Pe rformance enquanto linguagem artstica transdisciplinar, cujos procedimentos de atuao (relativo ao intrprete) e de ao (relativo estrutura), contrastam com os procedimentos observados em abordagens convencionais das linguagens cnicas (em especial a linguagem teatral). A telepresena entendida como um processo interativo entre dois ou mais corpos, vivel pela presena de meios tecnolgicos que ampliam o alcance da percepo, tornando possvel a deteco, em tempo real, da presena da ausncia - presena de algo que, no mediado, se torna distante (ausente) da capacidade perceptiva. A telepresena investigada, ainda, luz da noo de aura. O presente estudo se destina, tambm, a redimensionar abordagens conceituais, flexibilizando campos de significncia, e a refletir sobre tendncias recorrentes na Arte Contempornea: o trabalho em grupo e a relao artista -obra-pblico. Pontuando alguns momentos do texto, esto inseridas menes e reflexes sobre obras e processos criativos vividos pelo Grupo de P esquisa Corpos Informticos, do qual sou membro desde sua criao, em 1992. Fundamentando teoricamente as reflexes desta dissertao, esto presentes referncias a estudos de autores como: Gilles Deleuze, Flix Guattari, J. F. Lyotard, Jean Baudrillard, G eorges Didi-Huberman, Walter Benjamin, entre outros, e, ainda, autores brasileiros, especialmente Renato Cohen, Suely Rolnik, Ricardo Basbaum, Nzia Villaa e Fred Ges. No decorrer da investigao foram realizadas experincias performticas em telepresen a, envolvendo tecnologias como telefones, cmeras de vdeo analgicas e digitais, monitores, computadores e diferentes softwares. Ao concluir a dissertao, observa -se que aes performticas em telepresena so experincias capazes de explorar e metaforiz ar, conceitos e tendncias que povoam o zeitgeist contemporneo. A presena do corpo e de tecnologias no fazer artstico, e a explora o das dinmicas deste cruzamento, trazem novas possibilidades de ao e leitura, ligadas nossa vivncia contempornea.

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ABSTRACT

This works main proposal is to investigate Performance Art through telepresence acts from material gathered through experimentations involving the body, after being re dimensioned by technological means. The research is focused on Performance Art as an transdisciplinary artistic manifestation, which has its actuation procedures (relative to the interpreter) as well as its action procedures (relative to the structure) contrasting with the procedures observed in more conventional statements of dramatic manifestation, specially theatrical. The term telepresence can be translated as the process of interaction between two or more bodies, made possible by the presence of technological media that amplify the extent of perception making possible real-time detection of the presence of absence presence of something that, not mediated, turns itself distant (absent) from perceptive capability. telepresence can also be investigated through the notion of aura. This work is also meant to re-dimension conceptual statements, making the areas of significance more flexible, and reflecting about recurrent tendencies in Contemporary Art: group work and relationship between artist-work-spectator. Sorting out some moments of the text, can be ment ioned reflections about works and creative processes experienced by the Corpos Informticos research group, of which I am a member since its foundation in 1992. The theoretical foundation of this work includes references to studies by authors like: Gilles Deleuze, Flix Guattari, J. F. Lyotard, Jean Baudrillard, Georges Didi -Huberman, Walter Benjamin amongst others, including Brazilian authors like Renato Cohen, Suely Rolnik, Ricardo Basbaum, Nzia Villaa and Fred Ges. Throughout the investigation were performed experiments through telepresence involving technologies like telephones, analog and digital video cameras, monitors, computers and different software. In concluding this work is observed that telepresence performances are experiences capable o f exploring and morphing concepts and tendencies that populate the contemporary zeitgeist. The presence of the body and the technologies in artistic exercise, also as the exploration of this combination, creates new possibilities of action and interpretation referent to our contemporary living experience.

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PRINCPIOS

Refletir sobre aes artsticas que envolvam atuao performtica em telepresena o principal objetivo que norteia a presente dissertao. Para isso, atentos atuao das novas tecnologias sobre o mundo, estaremos pensando novas leituras para velhos conceitos e refletindo sobre as poticas que se produzem a partir de propostas que envolvam corpo e alguns dispositivos tecnolgicos.

Presenciamos uma certa crise conceitual, defla grada a partir do surgimento de uma realidade virtual, implementando um universo imaterial que vai se tornando igualmente presente, influente e vivencivel, quando comparado ao seu paralelo no plano concreto. Conceitos como corpo, presena, espao, conte mporneo, e outros, sofrero, ao longo do texto, reavaliao e flexibilizao, no sentido de ampliar seu espectro de significncia e eficcia de operao, evitando, no entanto, que se esvaziem de contedo.

grande desejo, e desafio, da arte contemporne a1 envolver as pessoas deslocando as de uma realidade cotidiana e normativa, de um territrio de segurana mxima para um outro" estado, de deriva, de ateno e de concentrao de intensidades, de exposio a devires, um plano sensvel onde abordagens p oticas, novas leituras e olhares transversais, sobre os mais variados aspectos da vida e da existncia, tornem possvel repensar realidades e redimensionar atitudes.

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O termo contemporneo, ao longo do texto, no pretende em hiptese alguma designar uma escola ou estilo artstico. J que estamos em pleno exerccio de revisitao de conceitos, interessante repensar o sentido de "contemporneo". Em sua decomposio nos deparamos com o conceito "tempo", fundamentando o termo contemporneo. Buscando sua "redefinio", pensamos ento em uma idia de tempo relativo, subjetivo, psicolgico, redimensionando o conceito fechado de tempo comum, objetivo, consensual. Nesse sentido, podemos dizer que no o fato puro de coisas acontecerem em uma mesma data que vai significar contemporaneidade, mas sim a consonncia entre questes abordadas por uma obra artstica e as inquietaes de seu pblico e do mundo em que ambos esto inseridos.

11

Em nosso tempo, o uso ou referncia de tecnologias nas aes artsticas ocorre por um desejo de proporcionar questionamento e, talvez, posterior compreenso sobre a presena e influncia dessas na (in)formao do indivduo contemporneo. Especialmente por que as novas tecnologias, para muitos, suscita um

deslumbramento que, por vezes, in ibe a faculdade crtica.

No texto a seguir, sempre que utilizarmos os termos Performance, performer, performtico, e outras variaes, estaremos nos referindo s especificidades da linguagem artstica Performance, sobre a qual discorreremos ao longo do te xto, e no s questes relativas a performatividade, que remetem a conceitos das cincias da linguagem 2. Tambm no estaremos nos referindo a questes de "desempenho", que remonta ainda a outra leitura deste termo, que no objeto desta dissertao.

Traaremos um percurso que, inicialmente, far uma brevssima visita s origens das manifestaes artsticas que consideramos "pilares" do que hoje se configura como Performance em telepresena, que so a Arte da Performance, as Artes do Vdeo, e a Arte Telemtica.

No capitulo seguinte ser feito um mapeamento de conceitos e idias de alguns pensadores que ganham eco e se retroalimentam nas manifestaes artsticas contemporneas. As reflexes suscitadas pela obra destes autores nos proporcionam uma compreenso das relaes entre o Zeitgeist 3 contemporneo e sua expresso artstica.

A partir da estaremos revisitando conceitos chaves para as reflexes que seguiro ao longo do trabalho, a comear com um enfoque especial na noo de Corpo e de Presena.

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Conceito da Lingustica, trabalhado por Austin. Esprito de poca.

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No captulo "Tendncias" estaremos trabalhando dois temas de grande relevncia para a arte contempornea, de modo geral, trata -se da questo do Pblico e da questo do trabalho em Grupo.

Quando, no captulo seguinte, utilizarmos o termo Linguagens -foco estaremos nos referindo s linguagens artsticas que nos serviram de fonte para o desenvolvimento desta dissertao, por terem, atravs da anlise e analogias sobre seus aspectos, proporcionado os parmetros para as reflexes que resultam no texto a seguir. So elas: Performance, Teatro, Linguagens do Vdeo. Em comum, essas linguagens contam com um atuante 4, termo que se refere, aqui, ao artista (ator ou performer), cuja presena e ao corporal estejam envolvidos de forma indispensvel obra, no apenas no processo de criao, como tambm no momento em que esta obra oferecida apreciao pblica 5. (O enfoque em linguagens que envolvam atuao se justifica pela minha formao em interpretao teatral, e pela experincia como performer desde 1992, junto ao GPCI, Grupo de Pesquisa Corpos Informticos 6 coordenado pela professora da Universidade de Braslia, Maria Beatriz de Medeiros grupo que, em seu percurso contou inmeras vezes com o apoio do CNPq.). No decorrer deste captulo, a partir de um confronto entr e as especificidades da linguagem teatral em seu formato estabelecido e as apropriaes e transformaes geradas pela linguagem performtica, sero trabalhados aspectos como: a natureza da atuao nestas linguagens; a forma como a ao artstica se process a; as modificaes e novas leituras geradas pela presena do "olhar" de um dispositivo que intermedia a ao; e uma reflexo sobre o conceito de simulao, que se torna inevitvel quando falamos em mediao.

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Nem toda a obra videogrfica opera por meio de um atuante, mas, no caso do presente estudo, estaremos pensando nas obras em vdeo que envolvam atuao, como aqui a definiremos. 5 Deliberadamente deixaremos a linguagem cinematogrfica fora desta pesquisa, pelo fato de que as linguagens que nos interessam aqui so as que podem proporcionar aes em tempo real, cuja transmisso pode se dar ao vivo, o que no vivel atravs da captao de imagens por pelcula. 6 Utilizaremos a sigla GPCI ao nos referirmos ao Grupo de Pesquisa Corpos Informticos.

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As reflexes sobre nossa prtica potica, a par tir das relaes entre esta e o teor terico da presente dissertao estaro permeando todo o texto. As aes performticas e mediadas em que atuei, junto ao Grupo de Pesquisa Corpos Informticos, proporcionaram um entendimento maior sobre aes artsticas de

natureza performtica e telepresente. Ao longo da dissertao sero feitas referncias a instalaes, exposies, performances e espetculos do Grupo.

Finalmente nos dedicaremos a pensar estritamente a telepresena. Iniciaremos com uma definio, ou p elo menos uma delimitao do campo de significncia da telepresena em sua expresso artstica. Passaremos por reflexes sobre a natureza desta "categoria de presena" (que, ao nosso ver, difere e pode complementar e acrescentar presena, dita, real), e identificaremos algumas implicaes nas noes de lugar e de espao, quando refletimos sobre aes na Internet. Remeteremos, ento, experincia do Grupo de Pesquisa Corpos Informticos, na prtica da telepresena. E, finalmente, nos permitiremos, atravs de uma leitura menos rgida, lanar um olhar potico sobre possveis encontros e relaes com alguns conceitos apropriados e revisitados, emprestados, principalmente, de Walter Benjamin e Georges Didi-Huberman.

Em seguida, no captulo "Pblico

segundo mo(vi)mento" a leitura potica iniciada no

ltimo mo(vi)mento do captulo "Telepresena" se desdobrar num olhar, em certo sentido, psicolgico sobre a questo da recepo na arte.

Aps esse trajeto, no devaneio intitulado "Potica do Corpo Presente" , proporemos um jogo mais livre de idias e palavras, onde alguns assuntos trabalhados na dissertao sero tratados mais artisticamente, sob a forma de um manifesto potico.

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Abraando o procedimento Work in Progress , (ou Work in Process como prefere Renato Cohen7, e como veremos no captulo "Aspectos das Linguagens -Foco"), como o mecanismo pelo qual se opera nossa prpria criao e entendendo que, em se tratando de pesquisa em arte, essa dissertao pode e deve abrigar inmeras licenas poticas, reservaremos, sim, um espao para fechar e concatenar idias, sintetizando os aspectos principais do texto, mas no sob o desgastado e questionvel ttulo de Concluso, mas sim, sob a expresso (que se quer provocativa): "Em fim: Princpios".

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COHEN, Renato. Work in Progress na Cena Contempornea - Criao, Encenao e Recepo So Paulo: Ed. Perspectiva, coleo Estudos, 1998.

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ORIGENS

Performances em telepresena se configuram como uma ao artstica na fronteira entre a Arte da Performance, as Artes do Vdeo e a Arte Telemtica, linguagens contemporneas, que operam por vrios aspectos em comum, ligados a conceitos que trabalharemos no captulo Fundamentao Terica. Entre outros pontos em comum, Renato Cohen atentou para o fato de que "os novos mdias e suportes tecnolgicos apontam interseces com a arte -performance, viabilizando e amplificando a escritura do hipertexto(... )".8

Performances em telepresena so aes performticas pensadas e realizadas tendo o suporte TV 9ou a tela do computador como espao de visibilidade e viabilidade dessa ao, como espao onde se dar a troca e a incorporao do pblico nesta ao. No se deve confundir essa proposta com a mera documentao ou registro de performances em suportes tecnolgicos.

Como a discusso fundamental que permeia esta pesquisa no reside em aspectos histricos das linguagens artsticas aqui trabalhadas, no nos esten deremos em uma abordagem histrica aprofundada. Apenas faremos meno s origens das linguagens chamadas "pilares", ou seja, as linguagens de cujo cruzamento tornaram -se possveis aes performticas em telepresena. Alguns livros foram fontes preciosas pa ra esta pesquisa, em relao tanto historicidade quanto ao aspecto conceitual da mesma, e podem ser consultados em caso de maior interesse por estes aspectos 10.

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Ibidem, p. XXX. Usaremos a abreviao TV ao nos referirmos ao aparelho televiso. 10 Em relao Arte Performtica, quanto questo da historicidade remetemos a RoseLee Goldberg, Auslander e Morell. Glusberg e Cohen se detiveram mais atentamente fundamentao conceitual desta linguagem artstica. O Performance by Artists, de Bronson e Gale, bem como A Art and Design Magazine, no. 38, possuem muitas fotos e ilustraes de aes performticas. Em relao s Artes do Vdeo sugerimos Hall e Fifer com Iluminating Video, e o brasileiro Arlindo Machado. Sobre Arte Eletrnica em geral, remetemos a Andr Parente, Virilio, Druckerey e Frank Popper. Especificamente em relao Arte Telemtica ainda h pouca bibliografia disponvel, as fontes usadas so geralmente catlogos de eventos, sites, revistas etc. Uma boa referncia, tambm, o Theories and Documents of

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A Arte da Performance se desenhou por meio de aes e eventos que envolviam artistas de diferentes reas ao longo do sculo XX 11. Dos cruzamentos entre Msica, Literatura, Artes Plsticas e Cnicas se originou esta arte de fronteira. A partir de um discurso anti-linear, anti -logicista e anti -previsvel, emprestado, principalmente, do movimento Dadasta, a Arte Performtica props suas estruturas de ao e de atuao. A Performance e outras linguagens derivadas, como Happenings, Live art, Body art, fazem cair por terra limites tangveis entre as linguagens artsticas tradicionais. Com forte tendncia contaminao - infiltrar e infiltrar -se, influenciar e influenciar-se - a Performance faz juz ao ttulo de expresso artstica promscua .

Por volta dos anos 60/70, as Artes do Vdeo, como a Vdeo -Arte e a Vdeo-Instalao, surgem como alternativas ao uso comercial e institucional do sistema vdeo/TV. As emissoras de TV so detentoras da tecnologia nessa rea, logo quem domina e dita os rumos de sua utilizao. As Artes do Vdeo vm trabalhando as especificidades da imagem analgica e seus "rudos"; ex plorando a possibilidade de construo de pequenas redes de transmisso, munidas dos circuitos de captao, manipulao e transmisso de imagens; criando instalaes envolvendo esses dispositivos, inseridos e confrontados aos mais variados ambientes, propo rcionando diferentes leituras; e realizando tantas outras possibilidades, que se fizeram viveis com a larga produo, distribuio e o barateamento da aparelhagem videogrfica. Assim, busca -se ao menos uma reflexo sobre a hegemonia e manipulao das gran des redes e produtoras, e sobre a explorao meramente utilitarista, pragmtica e de entretenimento, destes dispositivos.

Contemporary Art, organizado por Stile e Selz, que remete todas essas linguagens, sob o ponto de vista de diferentes artistas. As referncias completas esto disponveis na bibliografia da presente dissertao. 11 Remetemos ao sculo XX, mas tambm poderamos dizer que os ritos ancestrais sejam, por excelncia a real origem da performance, e que o desejo por esta linguagem artstica no seja outro que o de voltar aos ritos. Isto porque a arte, em sua pr-histria, era fundamentalmente transdisciplinar, envolvendo expresses de dana, musica, teatralidade, plasticidade, com um fundo, ao mesmo tempo, cientfico e religioso, profundamente intuitivo, no limiar entre o subjetivo, o mtico e o coletivo. No nos estenderemos nessa viso.

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Telemtica, segundo o dicionrio, "o conjunto de tcnicas e de servios que combinam os meios da informtica com aqueles das telec omunicaes" 12. Da mesma forma que o vdeo, experimentaes artsticas envolvendo dispositivos telemticos comeam a se configurar na medida em que os equipamentos vo se aperfeioando, e tornando mais acessveis. H muito pouco tempo se comea a esboar o que vir a ser uma histria da Arte Telemtica. So propostas artsticas e conceituais, que vm se apresentando em alguns sites, e a partir da experimentao em telepresena e telerobtica em aes na Internet.

A natureza interativa e anti -linear da Perf ormance, aliada s experimentaes e especificidades artsticas das Artes do Vdeo e da Telemtica, e aos seus meios de transmisso, manipulao e captao, proporcionaram a realizao de

teleperformances 13.

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FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira S. A, 1975. 13 Teleperformance uma outra denominao de Performance em Telepresena.

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FUNDAMENTAO TERICA

em sete mo(vi)mentos

preliminares

Entender e defender a Arte da Performance associada telepresena enquanto manifestao emblemtica de nosso tempo passa por um mapeamento de atitudes, idias e conceitos deste sculo. Neste propsito foi inevitvel abordar o insol vel debate Modernidade/Ps -modernidade, que, ainda que em desuso, e sem a menor pretenso de solucion -lo, pode proporcionar uma viso bastante clara do Zeitgeist contemporneo e dos paradigmas e parmetros que vm norteando a produo artstica e filosf ica das ltimas dcadas. A trajetria desta pesquisa atravessou definies do que caracterizaria um pensamento e uma atitude ps -moderna, para em seguida tentar compreender que elementos fariam uma obra de arte, ou linguagem artstica ps-moderna. Finalme nte pode-se traar paralelos entre aspectos do

Moderno e do Ps -moderno.

Os autores escolhidos para essa cartografia no se posicionam necessariamente como modernos ou ps -modernos. Alguns, inclusive, no chegam sequer a utilizar tais termos em seus textos. Em determinados casos a definio de seus projetos ou idias como modernistas ou ps-modernistas atribuda por um outro autor, e, em outros casos, por mim mesma, a partir de analogias entre os pensamentos desses diferentes autores.

Como poder ser no tado nas prximas pginas, os elementos que compem a linguagem Performtica tem profunda afinidade com conceitos usualmente atribudos ps-modernidade. Da mesma forma que o elemento tecnolgico , por motivos bvios, indissocivel do Zeitgeist contemporneo. Essas duas constataes nos proporcionaram concluir o quo contempornea, no sentido que j demos ao termo, uma ao performtica em telepresena.

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lgicas transversas

Dentre tericos, filsofos e at cientistas mais recentes (sculo XX), muitos de screvem uma forma de pensamento, e de produo de conhecimento, no convencional, no "logocntrica". Trata -se de uma lgica no linear, sensvel e cambiante.

Gilles Deleuze e Flix Guattari 14, filsofos ps-estruturalistas, muitas vezes referenciados como ps-modernos, propem, como alternativa lgica convencional (para a qual usam a metfora de uma rvore, cuja raiz pivotante indica uma investigao unidirecional), uma lgica rizomtica. Rizomas so organismos vegetais, como a grama, nos quais no se id entifica nem o princpio (origem, raiz) nem o fim (objetivos, copa). "Um rizoma no comea nem conclui se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter -ser, intermezzo "15. O conceito rizoma, para estes filsofos, pode ser entendido como um encadeamento n o rgido de idias, uma teia de conhecimento sem finalidades a priori, sem ordem preestabelecida, sem hierarquia, permeada de conexes, agenciamentos, links, configuraes inesperadas, que opera privilegiando o processo e o percurso. Esta noo remete ao conceito de hipertexto e, sendo assim, uma metfora que se aplica perfeitamente Internet, reportando ainda idia de inter e transdisciplinaridade (linhas de conhecimento que se tocam, se hibridizam e se redimensionam).

Segundo outro filsofo ps -estruturalista, Jean-Franois Lyotard 16, as cincias psmodernas evoluiriam por instabilidades, e no por mecanismos lineares de desenvolvimento. Uma cincia ps -moderna procuraria o contra -exemplo, o

ininteligvel em seu processo de pesquisa. Sua legitima o seria pela paralogia 17, lgica do paradoxo, segundo o autor a lgica dos inventores. Sendo a inveno algo

14

DELEUZE, G e GUATARI, F. Mil Plats - Capitalismo e Esquizofrenia. Vol 1. Rio de Janeiro: 34, 1995. p. 11-37. 15 Ibidem, p. 37. 16 LYOTARD, J. F. O Ps-moderno. Rio de Janeiro: Jos Olympio. 1993. p. 99-110.

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que envolve criatividade, podemos entender essa lgica como sendo a que rege o fazer artstico, tambm inventivo e criativo. paralogia, Lyota rd contrape a homologia, lgica dos experts (especialistas), entendida como consensual (homo igual, o mesmo) e situada na modernidade. Antecipando uma discusso que despontar no captulo corpo impalpvel, importante frisar desde j, que os pensamentos que se do por paralogia, ou seja, que evoluem por paradoxos, diferem essencialmente de uma viso dicotmica, j que nesta ltima, o foco, como salientou Georges Didi-Huberman18, a escolha entre duas posies de um dilema e no a compreenso e aceit ao da existncia de verdades distintas e, por vezes, at conflitantes, mas possivelmente complementares.

Ainda que sem tocar no termo ps -moderno, o ganhador do Prmio Nobel de Qumica de 1977, Ilya Prigogine tambm partilha conceitualmente dos aspectos que compem esse tipo de pensamento. Em entrevista a Guitta Pessis -Pasternak19, ele sugere que para haver tanto vida, quanto produo de conhecimento ou ainda fluxo de energia preciso um longe do equilbrio, noo ligada a leis particulares (por extens o, subjetivas) e mutveis. Prigogine vai ainda mais longe fundamentando o

funcionamento do universo com essa noo do longe do equilbrio. No contraponto desta, regida por leis universais (logo consensuais), estaria a idia de um prximo do equilbrio, que, em ltima instncia, inviabilizaria a experincia vital. Nosso corpo, por exemplo, s possvel por ser gerado e gerador de instabilidades diversas. A estabilidade, o equilbrio, a perfeio, segundo essa noo de Prigogine, seriam a prpria morte, o fim de qualquer movimento, um estado inanimado. Aplicando essa idia ao mbito do conhecimento, podemos entender a estabilidade como o fim da investigao, e o consenso, como o fim do debate. 20 Podemos notar pontos

17

18

Ibidem, p. xv-xviii, p.111-120. DIDI-HUBERMAN, G. O que Vemos o que nos Olha. So Paulo: Ed 34, 1998. p. 77, 154. 19 PESSIS-PASTERNAK, G. Do Caos Inteligncia Artificial. So Paulo: UNESP. 1993 p. 35-49. 20 O dramaturgo Nelson Rodrigues, em uma de suas crnicas, provoca reflexes nesse sentido, com o sarcasmo mordaz que lhe prprio, afirmando que "toda unanimidade burra". In RODRIGUES, N. A Vida Como Ela , O Homem Fiel e Outros Contos. So Paulo: Companhia das Letras. 1992. p. 99.

21

convergentes entre estas idias de Prigog ine e as de Lyotard, Deleuze e Guattari, anteriormente expostas. Assim como o rizoma mapeado por um nmero ilimitado de idias que se cruzam e operam sob uma estrutura de hipertexto21

, o qumico Prigogine

fala em estruturas dissipativas que proporcionam a ordem por meio da desordem e produzem o longe do equilbrio 22, um topos de instabilidades de onde brotam paradoxos e dissenso, assim tambm como na paralogia proposta por Lyotard. Certamente nesse longe do equilbrio existem regras, no entanto estas no so estticas, mas entremeadas por imprevistos, por eventos que as transcendem.

Observando seu histrico e pesquisando sua estrutura, podemos dizer que a Performance uma linguagem artstica cujas bases tem pontos em comum com as idias expostas de Del euze, Guattari e Lyotard, e que esta linguagem pode ser pensada a partir da teoria de Prigogine, apontada. A ao performtica pode at ser previamente roteirizada, mas o tempo/espao pblico (externo) e privado (do artista) de cada apresentao guarda ele mentos de imprevisibilidade. O performer pode vivenciar um mesmo roteiro por mais de uma vez, e, para que a ao gerada por este roteiro seja essencialmente performtica, esta deve estar pulsante, viva e aberta a imprevistos e improvisos. O que pode, e dev e, ser repetida a fora, o mote, o desejo de realizar e no a forma final do trabalho, j que esta deve estar receptiva s contribuies do pblico. O artista que consegue de fato perceber e catalisar em sua prpria presena (ou telepresena) os elemento s surpresa que encontra em si e ao seu redor no momento da apresentao, experimenta e proporciona uma troca real e intensificada com o pblico.

Cohen atenta para o desejo que se percebe expresso na cena contempornea, de "busca de parassentidos, de paralogismos (...) procurando sentidos e significaes

21 22

DELEUZE, GUATTARI, op. cit.., p.11-37. PESSIS-PASTERNAK, op. cit., p. 38.

22

que extrapolem a verossimilhana conhecida" 23, nos remetendo claramente s idias desenvolvidas por Lyotard.

"outros" versos

Ricardo Basbaum apresenta algumas idias de Foucault, segundo as quais a e ra moderna seria formada por reas de conhecimento isoladas, enclausuradas, ou seja, sem relao entre si 24 (rea das especialidades, dos experts, rea da homologia, apontada por Lyotard). Se assim, podemos dizer que a noo de rizoma uma noo posterior, que transcende o moderno, na medida em que dissolve as bordas dessas clausuras, dessas reas voltadas para si mesmas, propondo um projeto de multiplicidade, conexes, agenciamentos e transdisciplinaridade.

Foucault tambm aponta para uma relao entr e as reas de conhecimento, (o no enclausuramento), para o foco na fronteira, no limite entre campos heterogneos, para a relao, disjuno, confronto, tenso entre esses campos de conhecimento, essas linguagens 25. Essa proposta de Foucault envolve a idi a que, segundo Scott Lash 26, e ainda segundo o crtico espanhol Kevin Power 27, seria ponto chave no entendimento da ps-modernidade: a busca ou a vazo do "outro" (o excludo do discurso consensual da homologia, o excludo do "mesmo"). Foucault indica a tran sgresso como forma de o outro (o excludo: sexo, loucura, morte) ganhar voz e agir sobre o mesmo (o normativo, o consenso).

COHEN, R. op. cit., p. 7. BASBAUM, R. Arte como Tecnologia. Palestra proferida em Braslia em 04 de maio de 1998. 25 Foucault apud. Basbaum. Ibidem. 26 CASULLO, N. El Debate Modernidad Posmodernidad. Buenos Aires: El Cielo por Asalto, 1993. p.360-369. 27 POWER, K. Os Anos 80/90 - Vertentes Estticas na Europa e EUA. Conferncia proferida em Braslia em 14 de agosto de 1998.24

23

23

Concordamos com Cohen, ao referir -se Performance como linguagem hbrida 28, j que ela aglutina, se apropria e redimensiona ou tras linguagens. Operando na fronteira, espao a ser ocupado por projetos outros , a Performance inaugura uma srie de discusses e reflexes acerca das propostas artsticas estanques nas especificidades de suas linguagens originrias, e carentes de uma n ova, ou de uma abordagem outra, distinta, no consensual.

Em busca dessa "outra" abordagem das linguagens artsticas possvel perceber e compreender a necessidade e o desejo de entrar em contato e de redescobrir os sentidos da subverso e da perve rso. Versando (manejando, exercitando e poetizando) o que est sub (em baixo, oculto, em potencial), e o que est per ( margem, intenso, movendo -se atravs), encontram-se "outras" verses (tradues, interpretaes) para o fazer artstico que no a "mes ma", a normativa. Verses que transtornam, e assim alteram a ordem estabelecida. A vontade de versar por outros caminhos, intensificar o verso (o potico e o avesso).

t(r)oca pblico

No que tange questo artista -obra-pblico, Lyotard prope que qua nto menos representacional for uma obra de arte mais impulsos libidinosos sero provocados no espectador 29. Segundo Lash, Lyotard situa a representao pura no perodo Clssico, uma semi-representao e positividade energtica parcial no perodo Moderno e identifica a Ps-modernidade esttica como energia em pleno movimento livre e em metamorfose contnua 30. Esta ltima noo se encontra com a idia dinmica

COHEN, R. Performance como Linguagem : Criao de um Tempo-Espao de Experimentao. So Paulo: Perspectiva, 1989. p. 108. 29 Lyotard apud.. Scott Lash em CASULLO, op. cit., p. 360-377. 30 Ibidem, p. 370.

28

24

sustentada por Deleuze e Guattari, de rizoma e linhas de fuga

31

. Para Deleuze,

segundo Scott Lash 32, uma esttica ps-moderna se basearia nas noes de corpo e de fora. O filsofo concebe, ainda, uma lgica da sensao. Esta sensao teria lugar quando sobre o corpo atuassem foras. Ainda segundo Lash, Deleuze sugere que a pintura Clssica reproduziria form as, a Moderna as inventaria e a Ps -moderna tornaria as foras visveis. O Ps-moderno implementaria uma cultura da sensao, no apenas para o artista e a obra, mas tambm para o consumidor de arte e para a crtica. Percebemos em comum nesses autores, ao se referirem a uma esttica ps moderna, ou a uma manifestao consonante ao Zeitgeist contemporneo, um interesse maior na instaurao de foras, logo de vida, do que aluso, reproduo ou representao de modelos apriorsticos. E notamos ainda, que a p artir dessa abordagem que surge o elemento encantatrio, de seduo e impactao em relao ao pblico.

Para Jean Baudrillard o que interessa ao pblico justamente o que o atrai para fora de sua razo de ser, ou seja, o que o motiva o desconhecido, o segredo, a no revelao, o desafio irrazo 33. Para ele, o desconhecido e o desafio, nunca esbarram na recusa, ao contrrio, instigam, seduzem, logo proporcionam um maior envolvimento e cumplicidade do fruidor com a obra.

A arte da Performance tem demo nstrado, ao longo de sua existncia, incorporar esses elementos que, segundo os autores citados, fazem ps -modernas uma obra ou at mesmo uma linguagem artstica, sua apresentao e recepo. Performances rompem com o discurso lgico e com a narrativa line ar instaurando, onde se viam narrativas representativas, como veremos adiante, relatos poticos sob atuaes presentativas . O artista performtico costuma vasculhar em si, no que tem de mais subjetivo e

31

DELEUZE e GUATTARI, op. cit., p.17,18. CASULLO, op. cit., p. 377-379. Lash faz uma anlise do livro Francis Bacon, Lgica da Sensao, de Gilles Deleuze. 33 BAUDRILLARD, J. A Arte da Desapario. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997 p. 52,53.32

25

idiossincrtico, o material psquico e orgnico que v ai engendrar sua ao. Ao cuja inteno tocar o pblico, despertar seus sentidos "estreis". O pensamento

articulado, nesses casos, ganha espao depois da experincia sensvel. O fruidor experimenta uma nova forma de recepo do contedo da obra. O e spectador emerge assim de sua passividade retiniana para assumir uma postura ativa. Dessa forma, cada apresentao torna -se um momento indito e efmero, de intensa cumplicidade.

mos obra: autoria

Kevin Power destaca uma diferena bsica entre a m odernidade e a ps -modernidade no que se refere relao autor -autoria-obra34. Se no primeiro momento o ideal de autor era o do grande artista inspirado, cuja obra identificamos com facilidade, graas ao seu estilo inconfundvel, cujo talento tido quase como nato; no segundo momento emerge um artista mais humano, cuja genialidade est inclusive na capacidade de apropriaes e releituras de outros artistas, e que tem no trabalho, e no na inspirao pura e simples, as condies essenciais para criar sua ob ra.

A noo de rizoma - agenciamentos, conexes, interferncias, trocas de rotas e linhas que se cruzam 35- sugere a opo por releituras e apropriaes. Se no h fixao de territrio, em um estilo nico e absoluto, ento h a possibilidade de transitar por mltiplas experincias, o que se aproxima da idia de arte e artista ps -modernos.

Andr Comte-Sponville apresenta duas estticas que contrastam essencialmente

36

.O

autor no as situa como esttica moderna ou esttica ps -moderna, no entanto

34 35

POWER, op. cit.. DELEUZE e GUATTARI, op. cit.. 36 COMTE-SPONVILLE, A. Tratado do Desespero e da Beatitude, So Paulo: Martins Fontes. 1997. p. 236-243, 251-259.

26

possvel notar grandes semelhanas entre as caractersticas fundamentais destas, e entre o Kevin Power define como a postura do artista moderno e do artista ps moderno.

Comte-Sponville

aponta,

primeiramente,

uma

esttica

platnica

37

que

se

fundamentaria num id eal de transcendncia. Nesta a obra seria uma espcie de ddiva suprema oferecida por meio da inspirao ao artista. Necessariamente, o artista, a quem tal obra se destina, h de ser considerado algum superior, espcie de profeta, merecedor de tal revela o. Como alternativa a esta "esttica idealista" estaria uma esttica materialista ou esttica do desespero38

, pautada num ideal de

imanncia, cuja obra seria resultado no de inspirao ou ddiva, mas de trabalho e desejo do prprio artista 39. O autor, se referindo "esttica materialista", afirma que "a inspirao to somente o reverso do desejo (...)" 40, e diz ainda que: " o desejo que produz a obra, no a obra que 'inspira' o desejo"41

.

No tocante Performance, bastante clara a sua identifica o com essa esttica materialista, proposta por Comte -Sponville. O fato de o artista performtico cavar em si prprio o contedo de suas aes artsticas, j remete ao ideal de imanncia que permeia tal esttica. A relao do performer com o desejo, ou o t ornar desejo obra tambm aproxima ambas. E, finalmente, o performer, tal qual o autor ps -moderno apontado por Kevin Power, muitas vezes encontra material para seu trabalho em outras obras e artistas, atravs de apropriaes que ganham releituras em seu processo de criao.

37 38

Ibidem, p. 236-243. Comte-Sponville concebe o desespero como a atitude inversa expectativa. Se nesta ltima estamos sujeitos a decepes, e sempre lanamos nossa possibilidade de realizao e felicidade para um tempoespao a alcanar, no desespero nada esperamos, vivemos intensamente o aqui-agora e, assim, no nos expomos a frustraes. 39 COMTE-SPONVILLE, op. cit., p. 251-259. 40 Ibidem, p. 255. 41 Ibidem, p.256.

27

efemeridade

O museu em seu formato tradicional, apontado por diferentes autores como museu moderno, tem mostrado exercer o papel de um forte, um espao seguro que "defende" a obra. Nele, teoricamente, a obra de arte no morreria e pr incipalmente, no seria esquecida. Este tipo de museu reflete um profundo temor do efmero e da mudana, e, em nome desse temor, tenta estancar ou ignorar um fluxo cada vez mais intenso de desterritorializao 42.

No entanto, este formato de museu, o m useu moderno de sedimentao e monumentao 43 da obra, que condena um trabalho artstico morte e ao fracasso, pois o leva ao esvaziamento de sua fora e contedo. Para Lyotard, "erigindo o resto bruto, o museu o institui como rastro, monta uma memria" 44. E o que acontece, que o processo de transformao de resto em rastro, essa memria imposta, significa a perda completa de vitalidade da obra. Isto por que a fora vital de um trabalho artstico se relaciona ao contexto espao -temporal, objetivo e subjeti vo, de sua gnese. o que Lyotard percebe ao acrescentar que "demente seria pretender restituir integralmente o agora de ento como se fosse o agora de agora. (...) omite -se que o que acontece de imediato adiado e distanciado, que lhe cabe ser esquecido .45

Esse tipo de instituio no satisfaz mais ao Zeitgeist contemporneo, pois remete ao que Deleuze e Guattari chamam memria longa, que " impresso, decalque ou foto" 46, conceitos relacionados representao da coisa, ao invs da coisa em si. A memria longa centralizada, histrica (relacionada famlia, civilizao, tradio)47

,

42 43

Termo cunhado por Deleuze e Guatarri.. LYOTARD, JF. Moralidades Ps-Modernas. So Paulo: Ed. Papirus. 1993. p. 154. 44 Ibidem, p. 155. 45 Ibidem, p. 155. 46 DELEUZE e GUATTARI, op. cit., p. 25. 47 Ibidem, p. 26.

28

visando monumentao e imortalidade. O museu moderno tem como paradigma essa espcie de memria, j que no convive com a possibilidade de esquecimento e com conceitos como efemeridade. Como alternativa a esta memria longa, um novo formato de museu deveria se pautar na noo de memria curta "da ordem de um minuto (...) de tipo rizoma (...) que no de forma alguma submetida a uma lei de continuidade" 48. Esta memria, rizomtica, encontra eco nas transformaes pelas quais o mundo vem passando, se desterritorializa, no se fixa, no sedimenta. "A memria curta compreende o esquecimento como processo" 49.

Fica claro que o museu da modernidade, esttico, difere do museu que desponta hoje, ou pelo menos deveria despontar: um espao disposto a acompanhar e incentivar as transformaes no mundo e na arte.

A Performance uma linguagem que vem invadindo esse novo museu. E ocupa esse espao porque se assemelha a ele conceitualm ente. Como este outro museu, a Performance no se interessa pela mera representao ou reproduo. A linguagem performtica efmera, sua trajetria de foras se constri ao fazer, no ato e em uma configurao tempo/espacial pontual e transitria. Em l tima instncia, no h repetio de performances. No h fixao de territrios, uma linguagem da ordem da memria curta, rizoma. A cada nova apresentao, em outros espaos e para outras pessoas, ela se desconstri e se reconstri, se desterritorializ a e reterritorializa permitindo e desejando interferncias, e se reconfigurando com estas.

48 49

Ibidem, p. 25. Ibidem, p. 26.

29

quadro

Tentar mapear aqui as idias desses autores, relacionando essas idias estrutura da linguagem performtica, tentar compreender um pouco mais o Zeitgeist

contemporneo, bero das manifestaes artsticas que so objeto deste estudo, e situar a performance e as linguagens artsticas por ela "contaminadas" como as mais emblemticas do nosso tempo.

Afirmar ou negar que, mais que uma simples conti nuidade do projeto da modernidade, a ps-modernidade instaura novos paradigmas, ligados aos conceitos aqui trabalhados, no tarefa a que se prope a presente pesquisa.

O quadro que segue tem por objetivo apontar algumas diferenas fundamentais entre o que caracteriza a modernidade e o que identifica a ps -modernidade. A forma escolhida para lanar um olhar sobre os valores e conceitos atribudos a estes termos, talvez seja excessivamente esquemtica. No entanto, este formato facilita a visualizao. importante esclarecer que com tal quadro no pretendemos exprimir plasticamente o ps -moderno, nem desejamos que esta sntese seja pensada como uma estrutura fechada, ao contrrio, o que desejamos que este esquema seja relido, revisto, efmero, mutante.

30

MODERNO homologia, consenso prximo do equilbrio, leis universais o "mesmo", o normativo obra de arte inspirao ideal de transcendncia, obra ddiva autoria estilo

PS-MODERNO paralogia, dissenso longe do equilbrio, leis particulares o "outro", o excludo obra de arte trabalho ideal de Imanncia, a obra sou eu autoria tambm apropriaes, releituras

REFERNCIA Lyotard Prigogine

Foucault, Lash, Power Comte-Sponville Comte-Sponville

Kevin Power

memria longa, imortalidade museu sedimentador reproduo, decalque, representao

memria curta, efemeridade museu vivo experimentao, mapa, apresentao/ presentao

Deleuze

Lyotard Deleuze

espectador, pblico passivo modelo de pensamento: rvore reas enclausuradas esttica platnica

interlocutor, pblico ativo modelo de pensamento: rizoma transdisciplinaridade esttica materialista Basbaum/Foucault Comte-Sponville Deleuze

.

31

CONCEITOS em trs mo(vi)mentos

preliminares

Dentre os conceitos que necessitaram sofrer uma flexibilizao no decorrer desta pesquisa, dois merecem especial destaque. O Corpo e a Presena ganham, neste captulo uma leitura diferenciada que permitir prosseguir com as anlises relativas s linguagens artsticas trabalhadas no presente texto.

o corpo impalpvel

A importncia de se deter de forma aprofundada na questo corporal se liga ao fato de que, nas linguagens que envolvem atuao ao vivo, como o teatro e a performance, guardadas as especificidades, o corpo tanto o instrumento para a cria o da obra quanto o suporte destas manifestaes artsticas. Mais que isso, muitas vezes, a prpria manifestao artstica. Um espetculo teatral ou uma performance, diferentemente de uma pintura ou escultura, por exemplo, no tero jamais "autonomia" em relao a seus a(u)tores, uma vez que s so possveis por meio destes (o mais prximo que poderiam chegar de uma certa independncia seriam os seus registros em vdeo, fotografia, etc.). O corpo , nestas linguagens artsticas, sujeito e objeto da obra 50.

A viso de mundo dicotmica, que tem dominado o pensar filosfico e o fazer artstico ao longo da histria ocidental, traz, desde debates da filosofia grega, a idia de um ser humano bipartido e polarizado. Nessa viso o homem seria constitudo por um organismo fsico, chamado corpo, foco de prazeres e/ou mazelas, e por uma organizao no fsica (ou metafsica), conhecida como mente, idia, esprito, ou algo

50

MEDEIROS, M B. L'Artiste Plasticen, Suject et Object de L'Art . Tese de Doutorado. Vol. I, Paris; e MILLIET, M. A, Lygia Clark - Obra e Trajeto. So Paulo: Edusp, 1992. p. 104.

32

que remeta sua racionalidade, sua capacidade de pensar, associar, conceituar, criar linguagens e transcender. Esta ltima instncia distinguiria o ser humano dos outros animais.

A problemtica desta questo reside, principalmente, no fato de que, em geral, as dicotomias sofrem abordagens que atribuem maior valor a um de seus plos em detrimento do outro. Assim, durante toda histria filosfica ocidental, possvel apontar representantes em ambos os plos deste, que poderia ser resumido basicamente como um debate entre Idealismo (ou Espiritualismo) e Materialismo. O corpo visto, ao longo da tradio filosfica ocidental, ora como possibilidade de satisfao e realizao, ora como empecilho evoluo do esprito e da mente. Nzia Villaa e Fred Ges comentam que "toda viso filosfica oscilaria, assim, entre uma denncia do corpo como obstculo, priso e lugar de alienao e a sua exaltao como espao de prazer, como meio de liberao individual e coletiva."51

No entanto, possvel notar um predomnio de vises idealistas ou espiritualistas, ou no mnimo perceber que estas sempre ocuparam um e spao mais legitimado pelo senso comum no Ocidente. H, como sabemos, um evidente privilgio da esfera mental e psquica do ser em detrimento de sua esfera fsica, corprea. Isso porque, na viso de mundo ocidental predominante, o corpo palpvel seria o qu e nos remete (nos relembra) nossa condio animalesca, vulnervel e mortal, abrigo de instintos, refm de desejos e medos, instncia a ser vencida, superada, sublimada, ao passo que a mente, entendida como a nossa capacidade de gerar, apreender e transmi tir conhecimentos seria o que nos aproxima do divino, do criador, da imortalidade/vida eterna, apontando no sentido que a humanidade tem almejado seguir, por significar lhe, neste ponto de vista, uma evoluo 52.

52

VILLAA, N e GES, F. Em Nome do Corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 23. No nos estenderemos na questo do feminino, por no ser este o objeto do presente estudo, no entanto, no podemos ignorar por completo esta questo. Ento diremos muito resumidamente que a discriminao que a mulher tem sofrido ao longo dos sculos se relaciona, entre diversas outras razes, a

51

33

Faz-se importante, nesse ponto, apontar o ju lgamento hierrquico presente em ambas as posies deste debate. O valor de uma instncia se fortalece na desvalorizao da outra. Esse movimento possibilitado e incentivado pela prpria viso dualista do ser e do mundo (sensvel/inteligvel, natureza/cu ltura, aparncia/essncia, diabo/deus, inferno/cu), noo que vem sendo debatida e revista por alguns filsofos no sculo XX, e desestruturada pelos novos rumos da cincia.

Nos ltimos anos temos assistido a uma dissoluo da dicotomia natureza e cultur a53, promovida pelas recentes conquistas cientficas, na medida em que essas novas pesquisas tm manipulado a gerao artificial de vegetais e de seres biolgicos mais complexos, promovido a implantao de dispositivos tecnolgicos em organismos vivos, entre outras aes. claro que o homem sempre interferiu na natureza, mas o que hoje presenciamos uma recriao artificial de animais, vegetais, meio ambientes, etc., tornando -se muito difcil apontar as fronteiras entre o que natural e o que cultural, ou ainda, dificultando atribuir a qualquer coisa o ttulo de genuinamente cultural ou artificial.

Filosoficamente, tambm percebemos um processo de questionamento de dicotomias. Georges Didi-Huberman afirma que:"os pensamentos do dilema so portanto incapazes de perceber seja o que for da economia visual como tal. No h que se escolher entre o que vemos (...) e o que nos olha (...). H apenas que se inquietar com o entre (...) tentar dialetizar (...) voltar ao ponto de inverso e de convertibilidade, ao motor dialtico de todas as 54 oposies."

esse predomnio da viso idealista ou espiritualista sobre a viso materialista. As mulheres abrigam diferentes processos, diria, selvagens, todos ligados possibilidade de gerao, reproduo. Menstruao, gravidez, parto, aleitamento, so signos muito fortes de referncia nossa condio animal. O raciocnio, simplificadamente, seria: se os processos corporais femininos possuem mais indicativos de animalidade do que os masculinos, ento as mulheres se aproximariam mais daquela instncia a ser vencida, superada, sublimada, e, consequentemente, se distanciariam da instncia inteligvel, j que nos pensamentos dicotmicos esto inscritas hierarquias que fortalecem um dos plos dicotmicos no enfraquecimento do outro. 53 Em ltima instncia a dicotomia Natureza/Cultura reproduz as mesmas idias inscritas na dicotomia Corpo/Mente. 54 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 77.

34

Didi-Huberman se refere aqui a uma questo especfica, do olhar, mas seu comentrio nos serve de alerta em relao reduo de possibilidades de compreenso e leitura a que nos levam pensamentos binrios. Enquan to o foco de preocupao estiver sendo escolher entre um dos plos de um dilema, perde -se a oportunidade de se questionar sobre a prpria existncia, e at validade, deste dilema. o que Didi Huberman reafirma ao defender que, em qualquer domnio a verdad eira questo consistiria, no em optar por uma posio de um dilema, mas em se construir uma posio capaz de ultrapass -lo.55

Renato Cohen utiliza a expresso "topos pluraltico" fazendo referncia diluio das dualidades e emergncia de um estado de pluralidade, e acrescenta que: "No d para pensar em apenas dois vetores, opostos, e sim numa multiplicidade de fatores contingenciais." 56

Gilles Deleuze e Flix Guattari propem, como vimos, uma lgica rizomtica. Segundo os autores um rizoma no comearia nem acabaria, mas se encontraria sempre no meio, entre as coisas, inter -ser57. Rizoma pode, ainda, ser entendido como um emaranhado de linhas que atravs de agenciamentos e conexes vo criando um mapa, uma teia de conhecimento. Os autores antecipam ass im a noo de rede de comunicao (Internet) e propem uma "imagem" na qual identificamos ainda uma idia de transdisciplinaridade (linhas de pensamento e de conhecimento que se cruzam, se chocam, se complementam). A noo filosfica de rizoma de Deleuze e Guattari, pe em cheque estruturas lineares de pensamento, baseadas, entre outras coisas, em vises dualistas e polarizantes, na medida em que privilegia o inter -ser, o percurso e no pontos fixos de chegada ou sada, que seriam as polarizaes. Ainda a partir da metfora do rizoma e como alternativa viso de mundo dual e polarizante,

55 56

Ibidem, p. 154. COHEN, op. cit., p. 23, nota 28. 57 DELEUZE e GUATTARI, op. cit.., p. 37.

35

Deleuze e Guattari levantam discusses a cerca da questo da multiplicidade no ser

58

.

Este manifestaria uma predisposio inata de mudar, se desterritorializar, e assumir e descartar facetas mltiplas, advindas de desejos mltiplos e das mltiplas possibilidades que a experincia de estar/ser vivo nos oferece. Deleuze e Guattari questionam o discurso freudiano na medida em que este demonstra uma tendncia a normatizar a condi o humana, seus conflitos, relaes e reaes, que teriam sempre, por exemplo, uma explicao, que os autores percebem por vezes forada, na teoria do complexo edipiano 59. Para os filsofos o ser humano no deveria ser encarado com o grau de previsibilidad e presente numa viso dicotmica, ou em Freud, mas ser compreendido, respeitado e aceito em sua multiplicidade, na pluralidade de aspectos que o abrigam, influenciam e que se renovam frequentemente. Sobre conceitos de Deleuze e Guattari, Nzia Villaa e Fr ed Ges comentam que:"o importante (...) a possibilidade da reconfigurao do estatuto do corpo enquanto singularidade como fluxo e multiplicidade e, portanto, desvinculado da unidade do 'eu'. A singularidade se d justamente, no lugar da heteronmia e do devir-outro e (...) na dissoluo do 'eu' e de suas figuras (psicolgicas, sociais, 60 morais, filosficas) que ela se constitui."

Consonante a essas reflexes emerge uma nova noo de corpo. Em lugar de designar puramente a parte fsica do ser, not a-se uma inclinao a pensar o corpo como o todo do ser humano, no como o abrigo da, mas como a prpria multiplicidade que a subjetividade de cada indivduo. Deleuze e Guattari falam de um corpo sem rgos, o que "no um corpo vazio e desprovido de r gos, mas um corpo sobre o qual o que serve de rgos (...) se distribui segundo movimentos de multides, (...) sob a forma de multiplicidades moleculares" 61. Os autores explicitam a viso do corpo como algo alm de uma mera concretude ou palpabilidade, e p ropem a idia de corpo enquanto linhas de fora, intensidades, afetos, em oposio ou

complementao ao corpo biolgico. Villaa e Ges, na linha de Deleuze e Guatarri,

Ibidem, p. 11-37. Ibidem, p. 39-52. 60 VILLAA e GES, op. cit.., p 52. 61 DELEUZE e GUATARRI, op. cit., p. 43.59

58

36

tambm comentam a respeito de um novo conceito corporal, ligado a um

novo

paradigma esttico onde o corpo surgiria como carne e imagem, matria e esprito simultaneamente 62 e complementam:" nesse cenrio que se estabelece uma nova ordem corporal da qual j no se pode falar de forma setorizada, mas dentro de uma viso antropolgica global, que considere os mltiplos mitos que atravessam a contemporaneidade, as invenes que revolucionam o conhecimento, apreendendo que ordem/desordem no so 63 excludentes e podem dar lugar ao novo."

Maurice Merleau-Ponty por sua vez, refletindo sobre a no o de corpo do ponto de vista fenomenolgico, afirma que a "animao do corpo no a juno, uma contra a outra, de suas partes - nem, alis, a descida no autmato, de um esprito vindo de outro lugar, o que ainda suporia que o corpo sem interior e sem 'si".64 O autor sugere ainda que a alma pensaria segundo o corpo, e que este seria para a alma o seu espao natal e a matriz de qualquer outro espao existente, complementando que deveramos ento conceber o pensamento como corporal 65. As palavras de MerleauPonty tambm nos levam a perceber o corpo de forma diferenciada da usual, no como uma massa de carne animvel ou dirigvel por uma alma e um pensamento, mas como um todo humano, pleno de subjetividade, definidor de seu pensamento e de sua alma, congregador e formador de todas as instncias que o compem.

Nzia Villaa e Fred Ges chamam ateno para a crtica indiferenciao homem/mquina sustentada pela corrente cognitivista, que amparada pela primazia do pensamento como raciocnio lgico, destitu do de aspectos corporais. Tal crtica sustentada pela idia de que "O corpo, habitualmente desconsiderado na tradio do pensamento ocidental, vai ser chamado para marcar a diferena da cognio humana" (em relao inteligncia artificial, lgica com putacional), acentuando que atravs

VILLAA e GES, op. cit., p. 29. Ibidem, p. 30. 64 MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Esprito. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 279. 65 Ibidem, p 289.63

62

37

do corpo as emoes participam da racionalidade, o que romperia com a dicotomia razo/emoo que caracteriza a neurologia moderna.66

O processo de compreender a condio humana pode ser ajudado, ento, ao percebermos o ser humano a partir da diferenciao entre este e os animais irracionais (possuidores de instintos, emoes e corporalidade selvagem, mas carentes de raciocnio lgico, matemtico) e entre o mesmo e a inteligncia artificial (que raciocina logicamente, mas no possui o corpo, seus sentidos e especificidades). Os homens seriam, ento, privilegiados possuidores de uma inteligncia especial, uma capacidade cognitiva muito superior dos computadores, por ser imbuda de aspectos no rgidos, no fixos (emoes, sensaes, intuies), e dos bichos, por possurem tambm raciocnio lgico, que, combinado aos outros aspectos humanos, os fez capazes de inventar computadores e dominar outros animais. Evidentemente h que se discutir vrios aspectos obscuros e questi onveis em relao inveno e uso de mquinas e dominao de outros animais, mas no desenvolveremos esta questo, j que a mesma nos distanciaria do objeto da presente dissertao.

Chegamos assim a uma noo abrangente de corpo: mais que uma estrutu ra fsica, a corporalidade envolve instncias como pensamentos e sentimentos. atravs do corpo que o ser /est no mundo Logo, o corpo no expresso de subjetividade, mas a prpria subjetividade do ser humano. O corpo no se detm nos limites da estrutura fsica de um ser, ele se projeta em sentimentos, pensamentos, percepes, palavras. O corpo se ultrapassa, no cabe em si. Ao mesmo tempo em que contm todo o organismo biolgico, tambm psquico e sensvel. nele que todas as instncias se ligam, para ele convergem e dele migram as necessidades e desejos que determinam estas instncias.

66

VILLAA e GES, op. cit., p.173.

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presenas em novas consistncias

Ao redimensionarmos o conceito de corpo, naturalmente somos levados a um conceito tambm revisto de presena. Se corporalidade tra nscende materialidade, ento detectar a presena ou ausncia de algo ou de algum no pode mais ser uma experincia a ser comprovada ou verificada unicamente por nossos cinco sentidos. Ainda que no se veja, no se toque, no se cheire, no se oua e no s e prove, ainda assim h a possibilidade de presena.

Didi-Huberman salientou a necessidade de se retrabalhar conceitos como presena e teatro ao sugerir que:"As palavras 'teatro', 'objetidade', 'presena' ou 'estar-presente' tambm no significam mais grande coisa, postas ou impostas - quando deveriam ser elaboradas, isto , desconstrudas filosoficamente, isto tensionadas e abertas, dialetizadas no no sentido da sntese transcendental, mas da ateno dada s cises em obra."67

O que o autor quer most rar a necessidade de no se ater a definies fechadas que apontem para consenso e sntese. Alguns conceitos, quando no redimensionados, provocam incoerncias e impasses, e, dessa forma, suas significaes se esvaziam de sentido.

O conceito filosfico e artstico de presena no deve tratar do fato puro de algo ou algum ocupar um espao fixo, "estar" num local, mas sim envolver um empenho pessoal, no um puro estar, mas um ser presente. Didi -Huberman aponta nesse sentido quando fala em duas qualid ades distintas de evidncias - a evidncia 'tica', e a evidncia da 'presena', as quais, "pelo prprio jogo de seu conflito, e por serem dadas, reivindicadas como evidncias, faro perder a cada termo sua verdadeira consistncia conceitual." 68 A constatao da existncia e da convivncia dessas duas evidncias pressupe que no designam uma mesma qualidade de percepo. Uma

67

DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.75.

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presena no se resume a uma experincia retiniana, nem tampouco se reduz a uma possibilidade ttil, mas envolve tambm relaes, an alogias, lembranas, afetos, medos e outras sensaes que despertem numa experincia de ver, e/ou numa outra experincia perceptiva/sensorial.

68

Ibidem, p. 74, 75.

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TENDNCIAS

em trs mo(vi)mentos preliminares

Das manifestaes artsticas que temos o bservado mais recentemente, dois aspectos tm se mostrado bastante recorrentes, configurando -se como tendncias da arte contempornea. A questo das associaes e colaboraes, do trabalho em grupo, que tem se mostrado uma forma bastante eficaz de criar e realizar aes artsticas, especialmente as transdisciplinares; e a mudana na relao entre pblico e obra, quando o primeiro ganha novas possibilidades de envolvimento e interao com a proposta artstica.

grupo: ns

A colaborao, condio si ne qua non para a concretizao de algumas propostas artsticas. Dependendo do grau de complexidade de um trabalho, haver a necessidade de colaboradores, s vezes, de diferentes domnios de conhecimento. A grande vantagem do grupo em relao s associaes ou c ontrataes temporrias (para uma nica realizao) o fato de que o grupo adquire ao longo do tempo de trabalho em comum uma sintonia que permite alar vos mais ousados, no caso de improvisos, imprevistos, e mesmo na concepo das idias.

O trabalho em grupo exige um exerccio e um equilbrio constante de confiana, troca, humildade, tolerncia, iniciativa e delegao. Esta mostra -se uma excelente oportunidade de entrarmos em contato com ns mesmos atravs da reflexo sobre como nos colocamos frente ao trabalho e aos outros membros do grupo.

O ponto de vista do ns, do coletivo, que est embutido no grupo, proporciona uma gama maior de possibilidades, multiplica e pluraliza foras, potencializa propostas, viabiliza aes fundamentalmente transdi sciplinares; o ns propicia um espao de

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reflexo e transformao de nossos ns pessoais, os ns amarrados, de cada ser humano, que no confronto produtivo e criativo com outros seres humanos, envolvidos num mesmo processo, podem ser melhor identifi cados, e at desatados. Assim trocamos nossos rgidos e apertados ns por novos laos, novas relaes interpessoais e transdisciplinares que fundam um ns maior, um ns capaz de grandes aes.

De fonte desconhecida ou perdida na memria, mas usada p elo GPCI h mais de cinco anos, pronia , para ns, a expresso que representa o sentimento de cada membro do coletivo, quando um trabalho verdadeiramente realizado em grupo. Se "parania" a sensao de perseguio, de que algo trama contra mim, pro nia vem a ser o sentimento de que algo ou algum conspira por mim, conspira comigo. Esta essncia da criao coletiva: conspiramos juntos, criamos, concebemos, viabilizamos juntos. Idias so cruzadas, opinies confrontadas, propostas so apropriadas e redimensionadas. No h autor, no h dono da idia, no h senhor da obra. O que ocorre so criaes conjuntas, contaminaes. O grupo, e cada membro deste, contaminante, contaminado e contaminador.

Num trabalho artstico consciente, ainda que o proce sso de criao se d de forma espontnea, ele est sempre prenhe de uma reflexo terica, e, no caso da opo pelo trabalho coletivo, surge a necessidade do grupo partir, junto, de pontos comuns. O levantamento de conceitos chaves de uma proposta tem sido, para o Grupo de Pesquisa Corpos Informticos, e para muitos outros, um bom ponto de partida para o percurso, tornando -se fonte abundante de inspirao e criatividade. Assim, as concepes estticas e as noes tericas dialogam de forma produtiva e instig ante durante todo o processo criativo, incentivando o grupo a, de fato, criar junto. Dessa forma, podemos chegar a parmetros, no rgidos, que tornam o processo criativo mais fluido, fundamentando e facilitando as opes, as avaliaes dos insights, e,

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principalmente, gerando maior compreenso de como, por que, e o que se quer refletir, questionar e proporcionar com a proposta artstica.

O GPCI possui uma prtica de trabalho, qual chamamos 48 horas, que consiste em dois dias de experimentao e pesquisa intensivas. O grupo passa este perodo imerso em propostas artsticas sugeridas pelos integrantes. As refeies so feitas em grupo e mantm a atmosfera performtica. Nesse processo cada pesquisador dispe de um tempo/espao especialmente pensado para pr em prtica junto ao restante do grupo idias artsticas que gostaria de desenvolver. Na semana anterior ao trabalho feito um primeiro brain storm, que vai gerar o programa de atividades. A partir deste momento o grupo passa a se concentrar nas idias e conceitos selecionados, e a coletar equipamentos, material terico, videogrfico, e outros que tornaro possveis as vivncias. Por minha formao cnica, muitas vezes me cabe, nos processos 48 horas, a elaborao de laboratrios corporais expressivos e pr opostas performticas. O 48 horas costuma ser realizado em fins de semana, em espaos diversos, a serem explorados em suas particularidades, onde dispomos vdeos, TVs, computadores, cmeras videogrficas e fotogrficas, entre outras coisas que sejam gerado ras de novas propostas criativas.

Essas vivncias vm gerando tanto produtos artsticos, como vdeos, fotos, performances, como idias para novos espetculos, instalaes, exposies e intervenes, como tambm apontam diretrizes de novos rumos de invest igao terica.

O trabalho em grupo vm permitindo ao GPCI atuaes mais complexas. Na Ocupao 69 do espao Galeria Mrio Schenberg em SP, em 1996, por exemplo,

69

A proposta da FUNARTE, na poca, era que os artistas ocupassem efetivamente a galeria por dois meses, por isso, o projeto denominou-se Galeria de Ocupao. Realizamos inicialmente uma vdeoinstalao, depois performances, conferncias, oficinas, e finalizamos com uma nova vdeo-instalao performtica.

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realizamos um "rodzio", ficando cada subgrupo de integrantes no espao em determinado momento da ocupao. Esta prtica tornou possvel a presena do Corpos Informticos em So Paulo por quase dois meses sem que outras atividades em Braslia deixassem de ocorrer. Essa e outras experincias reforam a nossa opo de trabalharmos associados, formando um ncleo de fazer artstico diversificado e rizomtico, onde possvel contar com uma intensa inter -colaborao.

pblico: dono dos sentidos

Espectador70 um termo que remete apenas viso. Os espectadores so o pblico tratado de forma convenciona l, fadado a assistir, acompanhar visual e

intelectualmente, um acontecimento artstico. com a interao do pblico com a obra, que, direta ou sutilmente, interfere e modifica -a por meio de sua experincia , que esta obra se completa e adquire uma gama mai or de "sentidos" (sensrios e semnticos71). A proposta de tornar cada espectador um co -autor em potencial, envolvido e cmplice da ao artstica, tem sido diretriz nos trabalhos da arte contempornea (da arte comprometida com seu tempo).

Buscando expressar essa cumplicidade e intimidade entre artista, obra e pblico, chamaremos este ltimo "interlocutor". Os interlocutores so convidados interferir, a dialogar, a tocar, a experimentar a obra. Experincia um conceito que se refere a uma vivncia subjetiva, e intransfervel, dessa forma, parece ser bastante adequado para designar o que acontece aos interlocutores, que, atravs de suas prprias leituras, escolhas, olhares, percursos e, principalmente, aes, propem uma efmera e singular configurao ou "saboreao" de uma proposta. Como salientou Maria Alice Milliet, sobre a recepo na obra de Lygia Clark: " da dialtica entre o indivduo e a

Spectatore um termo latino que remete ao ato de ver, assistir, acompanhar visualmente um ato ou espetculo. (FERREIRA, op. cit., verbete: espectador). 71 DIDI-HUBERMAN, op. cit..

70

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obra que nascem os significados, e no corpo como aparato de percepo e significao que essas relaes so r eveladas"72.

Os

interlocutores

tem

seus

corpos,

pulsantes/pensantes, inscritos

na

obra

proporcionando diferentes rotas de fruio. Corpos que, em maior ou menor grau, de acordo com o nvel de interatividade de uma proposta artstica, engendram aes que atualizam determinadas verses (per -verses e sub-verses) da obra, dentro de uma gama de possibilidades virtuais que existem potencialmente. Aqui o pblico co -autor. Suas aes/reaes/relaes, geradas em funo de uma configurao

tempo/espacial, especfica e efmera, sero determinantes para a atualizao das variveis poticas de uma obra artstica.

Algumas vezes, a participao num jogo artstico significa tornar -se obra e ser foco de olhares, qui de toques, o que retira cada pessoa de sua "natura lidade" cotidiana levando-a a um estado alterado. Num certo sentido, esses corpos so levados a performar, j que se deslocam de sua vivncia diria comum para uma experincia de ateno, foco, escolha de percursos e de configuraes, enfim, de emergncia de "sentidos".

Outra proposta que vem se configurando em aes artsticas contemporneas, visando proporcionar ao pblico novas formas de recepo, so intervenes, aes surpresa no intituladas, ou no previamente desvendadas, como arte. As pessoas so habituadas a, sob o ttulo explcito de manifestao artstica, serem provocadas com situaes estranhas, tornando -se resistentes. O fato de uma proposta artstica no ser anunciada como tal, pode proporcionar a quebra da previsibilidade cotidiana, instaurando uma inquietao, e intensificando a experincia, especialmente por parte do pblico.

72

MILLIET, op. cit., p. 92.

45

Nessa linha, em 1996, o GPCI realizou a instalao performtica Balano (imagem 1), na Rodoviria de Braslia 73, onde encontramos um pblico pouco habituado a esse t ipo de manifestao artstica. A ocupao na Rodoviria consistiu em um balano pendurado no teto (p direito de cerca de 9 metros), onde estavam fixados uma TV e um aparelho de vdeo cassete, postos em movimento por um performer, ao se balanar. s 7:00 h oras iniciamos o ciclo de performances sobre o balano, que seguiu at as 19:00 horas. Cada pesquisador performtico preparou uma ao, e se paramentou com figurinos e adereos. Novamente trabalhamos por "rodzio", enquanto um balanava, outro gravava em v deo, o terceiro fotografava e um quarto se encarregava da segurana dos equipamentos. Dessa forma, todos os integrantes do grupo, que nesta poca somavam cerca de oito, puderam experimentar diferentes funes na proposta.

A reao dos transeuntes frente ao foi bastante irregular. Em alguns momentos, imagens da prpria Rodoviria e do pblico, eram transmitidas, gerando, ora euforia, ora incmodo. Comentrios do tipo: "No entendi", "O negcio no tem explicao...", "O que representa?", "Crtica, cr tica ao condicionamento das pessoas", demonstraram necessidade de um sentido lgico, coerente, e at pragmtico, para ao. Nossa postura era, de um modo geral, a de no mencionar o carter artstico da ao, sugerindo apenas, em dados momentos, que a expe rincia e leitura daquela proposta deveria ser de carter individual. Parte do pblico ficou indignada por no conseguir compreender a natureza e a finalidade proposta. Outros se deixaram levar pelo carter ldico e potico da proposta. Houve quem arriscas se explicaes, criando verdadeiras performances a parte. Quando, por algum motivo, mencionvamos a origem artstica da proposta, o pblico demonstrava, ao mesmo tempo, alvio e frustrao. O fato de ser arte justificava a ao e acalmava os nimos. arte tudo se permite.

73

Esta instalao foi realizada tambm na festa de abertura do 13 Rio-Cine Festival, em julho de 1997, (imagem 2).

46

47

Nosso objetivo era invadir o espao (do) pblico e causar estranheza, provocar nos interlocutores uma produo intensificada de sentidos. Por isso no realizamos nenhuma divulgao prvia da ocupao, na mai or parte das vezes, no esclarecamos a origem da proposta. Nossa prxima investida nesse sentido sero intervenes surpresas na Internet, atravs do bombardeamento de imagens, textos poticos e provocativos em chats e salas de videoconferncia, reservado s para entrevistas ou assuntos especficos, sem revelarmos a origem artstica da proposta. Como diz Baudrillard, "A seduo tem esse preo. O segredo no deve ser revelado, sob pena de recair numa histria banal" 74. So fortes fatores de seduo e envolvimento a dvida sobre o carter da atividade (artstica) e o mistrio que envolve a origem do "jogo" para qual os "passantes" desavisados (transeuntes e/ou navegantes) so convidados a participar.

Uma outra proposta do grupo, que obteve bastante impacto junt o ao pblico foi, em maro de 1996, a exposio na Galeria de Artes da FUNARTE Braslia. A proposta performtica da exposio foi realizar a montagem (previamente roteirizada) na presena do pblico (imagens 3 e 4). Assim, a galeria manteve -se imaculada at a hora da abertura da exposio. Ns, os membros do grupo, na hora marcada para o incio da vernissage , paramos nossos carros na frente da galeria e, aos poucos, fomos trazendo os monitores, os videocassetes, a ilha de edio, as fotos. Com escadas, estiletes, luvas e praticveis, realizamos a metamorfose do espao, na presena do pblico. Em aproximadamente 20 minutos, de neutro e branco, o espao tornou -se uma instalao com 15 TVs, 10 vdeos (veiculando produes do grupo), e cerca de 20 fotos ampliada s.

74

BAUDRILLARD, op. cit., p. 49.

48

49

Durante o coquetel a equipe gravou em vdeo o evento, e manipulou as imagens por meio de uma ilha de efeitos, onde estas sofreram mutaes diversas.

Simultaneamente ao tratamento, as imagens foram transmitidas por um monito r dentro do ambiente e um monitor de 29 polegadas localizado junto "vitrine" que separa a sala da rua, com a tela voltada para fora. Assim, o pblico se deparava constantemente com imagens "quase" familiares (as pessoas presentes, distorcidas). Aps testemunharem a transformao do ambiente, as pessoas presenciaram a prpria metamorfose, em tempo real. Rostos transformados, corpos mexidos, imagens maculadas, os interlocutores, tocados pela tecnologia, entraram, inevitavelmente, em comunho com o espao a rtstico75 (imagem 5).

Toda a mostra foi documentada em vdeo e foto. No fim da noite a performance consistiu na desmontagem da instalao. Retiramos quase tudo da sala, aos olhos do pblico, deixando apenas as fotos nas paredes, um monitor e um aparelho videocassete que passou a mostrar o que havia sido editado durante a noite. de

Interessante notar que as pessoas no ousaram penetrar o espao enquanto ele sofria transformaes. Isso demonstra que as pessoas (mesmo as mais habituadas a manifestaes artsticas, isto , diferentes do pblico da rodoviria) , ainda se posicionam de forma tmida frente s manifestaes artsticas. Distantes do ato de criao e execuo da obra, muitas vezes no se permitem experiment -lo nem quando so convidados a faz -lo. Para a maioria, ainda, hbito, ou conforto, a idia de manter a arte em uma redoma, intocvel, impenetrvel. O GPCI deseja um pblico interlocutor, ativo, pois cr que s possvel compreender o que se chega a compartilhar, o que j se sabe por lgicas transversas.

75

Tanto na exposio na Funarte Bsb, quanto na interveno performtica na Rodoviria, utilizamos o recurso da telepresena, ainda que sem termos assim chamado a ao. Como veremos adiante a transmisso em tempo real de imagens que no estariam sendo vistas a olho nu (imagem manipulada por ilha de efeitos, ou ngulos inusitados, por exemplo) caracteriza a telepresena.

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ASPECTOS DAS LINGUAGENS-FOCO

em seis mo(vi)mentos

tenso

As novas experimentaes da cena contempornea tornam inevitvel um confronto entre as especificidades da linguagem teatral em seu formato con vencional e as apropriaes e transformaes geradas pela incorporao da linguagem performtica.

No teatro, tradicionalmente, h um enfoque no discurso do ator, que ganha um peso maior no contexto de cena, em relao aos outros elementos cnicos. Adereo s, figurinos, luz, cenrio, vm apenas corroborar ou ilustrar o discurso centrado no(s) intrprete(s). O texto, que no teatro convencional tem importncia crucial na concepo e no entendimento da pea, exposto pela voz ator, o que intensifica -o. Podemos apontar, ento, no tratamento da linguagem no fazer teatral no contemporneo um forte senso hierrquico, na medida em que o discurso do ator "protagonista" na cena em relao aos outros elementos, o que, alm de segregar, imputa uma escala de valor aos componentes da obra artstica.

Na performance, alm do discurso verbal/textual, centrado no atuante, h o desejo de outras "falas", a busca de outras "vozes" na cena, discursos, paralelos ou "transversais", da mise-en-scne, que detm autonomia e tambm atuam como definidores do teor da obra, funcionando no necessariamente como acessrio, prolongamento ou reafirmao da ao do ator, mas plenos de um contedo prprio e fundamental para a compreenso da manifestao artstica como um todo. Nas palavras de Cohen, "orquestra-se uma cena polifnica e polissmica apoiada na rede do hipertexto" 76. A Performance ainda tem, muitas vezes, uma preocupao sinestsica com o pblico: chega pelo gesto, gosto, cheiro, pele... Rompendo com a

76

COHEN, op. cit., p. XXIV.

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atribuio de valores e a hie rarquia cnica, a performance possibilita aos "discursos", convergentes ou divergentes, coexistirem com igual intensidade e importncia para a compreenso total da obra.

Pensando o conceito de presena como algo alm de uma materialidade, algo que acrescente a uma presena puramente fsica, como uma espcie de latncia de sensaes, sentimentos, pulses, que sejam expressos pela projeo de elementos subjetivos, prprios do artista em sua obra, percebemos na performance uma intensidade, ou plenitude de pr esena muito mais marcante do que se percebe no teatro convencional. No teatro o intuito costuma ser o de tentar apagar os vestgios do ser do ator por trs da personagem, de qualquer trao ou caracterstica que no sejam desta personagem. H a tentativa d e impor uma "subjetividade" de fora para dentro, quando na performance percebemos o movimento contrrio.

Ainda em relao questo da presena corporal do ator em cena, tendo revisto a noo de presena, fica ntida a inadequao, seno a impossibilidad e, de um ser humano, corpo real, presente em cena, estar apenas parcialmente ou fisicamente ali. A busca dessa fragmentao parece ser pautada em noes rgidas, no redimensionadas, de corpo e presena, e numa viso dicotmica do ser, pois sugere e fomenta, em ltima instncia, a dissociao do corpo do ator de sua prpria histria, de sua subjetividade, na medida em que este treinado para "emprestar" seu aparato fsico a uma outra organizao mental, que vem a ser a da personagem.

A linguagem performt ica busca um jogo intersubjetivo com o pblico, implicando na existncia de interatividade (em maior ou menor grau). Contrariamente, o teatro, em sua forma convencional, se utiliza de comunicao unidirecional, linear, ou seja, no comporta a possibilidade de interferncias e respostas interativas por parte do espectador. A prova disso o termo, largamente utilizado no meio teatral, "quarta parede" (vedao imaginria que se localizaria entre o palco e o pblico, confinando a

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cena) que sugere uma espcie d e isolamento da ao dentro do palco, sugerindo aos atores na cena, em ltima instncia, que "ignorem" o pblico. O chamado palco Italiano, espao cnico elevado e distanciado, que facilita a atuao com "quarta parede" foi comparado por Milliet a um quadr o renascentista, que d uma viso de mundo, mantendo o spectatore a distncia. 77

O teatro convencional, estruturado sobre parmetros que, entre outras coisas, avaliam tanto mais qualidade na interpretao quanto menos semelhana a personagem tiver com o ator que a representa, nos parece um tanto inadequado enquanto manifestao artstica contempornea 78, ou seja, enquanto arte que traga em si questes e abordagens vinculadas s discusses de seu tempo, que tenha implcitos ou manifestos conceitos e contedo s contemporneos desde o teor e a abordagem temtica da obra at o prprio tratamento da linguagem artstica.

A linguagem performtica nos leva a repensar a questo da presena na performance, quando se percebe um empenho orgnico, pessoal, quando h a o po (ou conscincia) clara do artista por se projetar (ou buscar em si a matria vital da ao) no contedo e na realizao da ao, sendo que esse empenho pessoal vai ser muitas vezes definidor da fora, do impacto que a obra vai causar no espectador. Ta lvez seja melhor pensar tambm em pacto, e no apenas em impacto 79, j que o jogo intersubjetivo e a cumplicidade gerados/desejados nas aes performticas com seu pblico so, por si s, (im)pactantes.

Por isso o teatro contemporneo, preocupado e ate nto s problemticas de seu tempo, tem cada vez mais visitado e buscado referncias na linguagem performtica,

MILLIET, op. cit., p. 130. HUCHET, S. "Res Publica: Maquina(rias) Artsticas e Lgicas Estticas". In: Tecnocincia e Cultura, Ensaios Sobre o Tempo Presente. Org: Hermetes Reis de Arajo. So Paulo: Ed Estao Liberdade, 1998, p. 269. Ver aplicao do termo por Stphane Huchet: (...) pblico (...) compreenda que, na arte que lhe contempornea (...) esto presentes elementos de sua vida e de seu ser-no-mundo." 79 MEDEIROS, M. B. notas de aula.78

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e em outras linguagens artsticas de fronteira, no no intuito de virar performance e perder suas especificidades, mas, ao contrrio, por entende r que, em seu formato convencional, j no comporta certas questes e discusses ligadas ao momento atual do homem, do mundo e da arte, deseja se revitalizar e reencontrar o papel de linguagem questionadora, inquieta e inquietante que sempre manifestou.

Apresentando o livro de Cohen, Silvia Fernandes entende que "a fala disforme, o gesto avesso, a cena assimtrica e disjuntiva, a colagem estranha talvez componham as vicissitudes necessrias de uma arte que recusa a forma acabada e faz sua ontologia no territrio obscuro da subjetividade." 80 Essa tem sido a busca de notados nomes da cena contempornea como Gerald Thomas, Robert Wilson, Jos Celso Martinez Correia que, entre tantos outros, vm demonstrando considervel esforo e surpreendentes "resultados" 81 no processo de relei