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  • MANA 18(3): 511-538, 2012

    LIMITES, TRADUES E AFETOS: PROFISSIONAIS DE SADE

    EM CONTEXTOS INDGENAS

    Pedro Paulo Gomes Pereira

    Michel Taussig analisou, num artigo de grande influncia na rea de antropologia da sade (1992), o denominado processo de reificao da enfermidade. Reificao designa a coisificao do mundo, das pessoas e da experincia, e assinala o movimento pelo qual as relaes entre pessoas se transformam em coisas. Nas sociedades contemporneas tudo funciona de forma a negar as relaes humanas encarnadas nos sintomas, signos e terapias. As doenas e as tcnicas de cura, no entanto, no so apenas naturais, mas signos de relaes sociais disfarados em coisas naturais. Eis ento o dilema moderno: sustentar exaustivamente e por todos os meios que os rgos corporais so apenas coisas e, ao mesmo tempo, insistir sobre o significado social do mal-estar.

    As doenas como smbolos e os mdicos como intrpretes desses sm-bolos so denegados por uma ideologia que considera a enfermidade como coisa e substncia em si mesma. A prtica mdica maneira importante de manter a negao das relaes sociais e de operar a coisificao sob a gide da cincia.1 Essa negao produz grotescas confuses que transformam as relaes sociais em coisas e retiram o carter histrico e humano da enfermidade. Taussig discorre sobre: o sofrimento de pacientes; a leitura objetificadora dos mdicos e demais profissionais de sade; a incomunica-bilidade originada da no percepo dos enunciados; o isolamento, a perda da autonomia dos pacientes nos hospitais. A internao hospitalar torna-se uma zona de combate onde se desenrolam disputas de poder e definies sobre a doena processo que conduz alienao do enfermo. A organiza-o clnica canibaliza o potencial curativo que reside na intersubjetividade de paciente e curador. A realidade clnica mostra, enfim, a construo e a reconstruo clnica de uma realidade convertida em mercadoria. A medicina humanstica , portanto, um oximoro.

    No obstante a fora da poderosa narrativa de Taussig, que descreve a moderna coisificao e fetichizao mdica do corpo tomado como signo

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    social, e apesar do apelo de seus argumentos, no decorrer de uma pesqui-sa sobre tecnologias biomdicas, que venho desenvolvendo desde 2008, deparei-me com um insistente questionamento em relao a determinada viso que compreende os profissionais de sade unicamente como opresso-res. A universidade da qual fao parte, Universidade Federal de So Paulo (Unifesp), colabora na assistncia sade dos povos indgenas do Parque Indgena do Xingu (PIX) desde 1965, reunindo profissionais de diversas reas no Projeto Xingu. Desde essa poca, equipes multidisciplinares in-tegradas por mdicos, enfermeiras, nutricionistas, dentistas promovem aes de sade, tais como: enviar profissionais ao PIX com o objetivo de realizar vacinaes e atender a ocorrncias clnicas; estreitar vnculos com o Hospital So Paulo (HSP) na busca de suporte aos casos que necessitam de cuidados clnicos ou cirrgicos especializados; administrar o Ambulatrio do ndio em So Paulo, entre outras.

    Os profissionais de sade ligados ao Projeto Xingu e ao Ambulatrio do ndio passaram a me procurar com o objetivo de narrar suas experincias e debater sobre seu papel e sua atuao na sade indgena. Resolvi levar a srio o que tinham para me dizer e, alterando o foco inicial da pesquisa, concentrei meus esforos em compreender as indagaes e os problemas dos profissionais que trabalhavam com sade indgena (Pereira 2012). Pas-sei ento a registrar sistematicamente as narrativas muitas em extensas entrevistas e depoimentos que foram se sucedendo em distintos locais, como Ambulatrio do ndio, dependncias do Projeto Xingu, Departamentos da Universidade, polos de formao em sade indgena, entre outros. Participei tambm de vrios eventos: palestras, oficinas e um curso de Especializao em Sade Indgena, organizado pelo Projeto Xingu. Realizei a pesquisa do incio de 2008 ao final de 2011, por meio de observao participante, entre-vistas e acompanhamento da vida cotidiana dos profissionais de sade.

    Logo no incio das investigaes, um mdico me disse algo que eu iria escutar repetidas vezes ao longo da pesquisa: a sensao que neste tipo de discurso ora somos opressores, ora no existimos. Certo dia, por exem-plo, distribu o mencionado texto de Taussig para um grupo composto por mdicos sanitaristas, nutricionistas, psiclogas, enfermeiras, que se mostrou animado com a discusso. Se houve consenso sobre as crticas medicina e objetivao da doena, fui alertado para a ausncia, no referido texto, de profissionais de sade como atores do processo de sade. Segundo eles, mdicos e enfermeiras quando apareciam no artigo de Taussig estavam sempre sob suspeita. O texto construa um paciente (no caso, uma mulher) envolto numa multiplicidade de participaes e de interpretaes sobre o adoecimento e sobre a vida, enquanto a imagem dos profissionais de sade permanecia

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    esttica e vinculada a atitudes autoritrias. Esse tipo de argumentao abor-recia meus interlocutores que no se enxergavam na narrativa de Taussig nem nas aes dos profissionais de sade nela descritas.2

    Esse questionamento era recorrente. Fui interpelado pelas indagaes de meus interlocutores que se recusavam a pensar suas atuaes apenas como forma de operacionalizao da reificao da enfermidade. Essas interpelaes dos profissionais que trabalhavam com sade indgena si-nalizavam que esse tipo de experincia com a alteridade proporcionava modificao em seus modos de pensar e de agir sobretudo se comparados aos encontrados nos hospitais. E eles insistiam nessa diferena. Distante da paisagem desenhada por Taussig, pouco a pouco foram surgindo diante de mim: mdico que, acometido por enfermidade grave e tendo que se sub-meter interveno cirrgica, s aceitou o procedimento com a presena de Encantados Pankararu; enfermeiras que dedicaram a vida profissional e pessoal tarefa de atuar em sociedades indgenas; mdicos que realizavam curas espirituais e outros que seguiram eles prprios terapias propostas por xams; e assim por diante.

    Esse quadro me levou s seguintes perguntas: O que acontece com profissionais de sade que se veem diretamente relacionados a concepes diferenciadas de corpo, sade e doena? O que sucede quando as prticas de sade se do num processo de traduo da prpria conceituao do que seja sade? De que forma esses profissionais so afetados por essa experincia com a alteridade radical? Sem qualquer inteno de ser exaustivo ou de abordar todas as nuances dessas indagaes, e assumindo antecipadamente a parcialidade da empreitada, este texto busca refletir sobre estas pergun-tas. Trata-se de voltarmo-nos simetricamente (Latour 1997) queles que, presentes na paisagem geral da sade indgena, por vezes desaparecem em nossos relatos ou so enquadrados de forma homognea, sem o cuidado com suas especificidades. A esperana que esse movimento permita apresentar um pouco da complexidade dos profissionais de sade, dos problemas que abarcam suas atuaes em sociedades indgenas e de suas concepes do que seja o prprio trabalho a ser efetuado.

    No que se segue, vou explorar essas indagaes, dividindo o texto em quatro sees. Nas duas primeiras, vou me deter nas histrias de uma mdica e de uma enfermeira.3 Na seo subsequente, analiso a experincia dessas profissionais, destacando em suas narrativas motivos constantes, que nos contam algo sobre limitaes, limites e processos de traduo. Discusso esta que me conduz, em seo imediatamente posterior, a levar a srio a possibilidade de os profissionais que trabalham com sade ind-gena serem afetados. Por fim, sustento que o cenrio descrito talvez possa

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    matizar a percepo de uma biomedicina homognea e de profissionais de sade exclusivamente vinculados ao poder sempre envoltos em relaes reificadas e reificadoras.

    Daniela e os limites da biomedicina

    Daniela nasceu em 1967, na cidade de So Paulo. Mdica, formada na Unesp de Botucatu, optou por uma especializao em Sade da Famlia. A vinculao de Daniela com a temtica indgena uma constante. Em todos os momen-tos, procura explicaes para seu desejo de se dedicar causa indgena. Os sinais j estavam presentes desde criana. Com mais ou menos 11 anos, em plena poca da Ditadura Militar, na escola municipal onde estudava, os professores de histria subitamente desapareciam. Esses professores entraram na imaginao de Daniela de forma fantasiosa e incitante. E foi um deles que comentou sobre os dilemas dos ndios no Brasil, falando sobre a dizimao das populaes indgenas. Lembro-me de ter que sair da sala com um grande mal-estar quando [o professor] abordou o tema da questo indgena, asse-verou Daniela. Assim, suas narrativas tecem uma histria na qual o vnculo com a temtica indgena a acompanhou desde a infncia. Da as constantes tentativas de elucidar esse vnculo: a memria busca uma explicao que remete a um tempo anterior s mencionadas aulas.

    De famlia grande, mesmo pobre, eu viajava muito para a casa de tios, irmos

    de minha me. Um deles, muito querido, morava no Mato Grosso e passei

    muitas frias junto com nove primos numa casa de madeira de poucos cmodos

    sem forro. Apesar de estar na capital, naquele tempo o Mato Grosso era terra

    de ningum... Lembro-me de ouvir alguns vizinhos do meu tio contarem que

    matavam jacars com quatro palmos de olho a olho e, ao mesmo tempo, diziam

    quantos bugres tinham alvejado. S mais tarde eu atinaria que bugre no era

    um tipo de peixe, mas ndios.

    As imagens reconstrudas pela memria associam ndios e necessida-de, e esto repletas de cenas de violncia. As imagens indicam situaes de vulnerabilidade nas quais urge intervir. no processo de interveno que surge a medicina. Se desde a juventude Daniela afirmava o desejo de trabalhar com ndios, em algum perodo de sua histria acredita que, se fosse mdica, poderia contribuir melhor, j que os ndios estavam morren-do. A medicina , assim, posterior deciso de se voltar para a temtica indgena, associada ideia de resgate e com tom de misso.

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    Lembro-me do momento exato da deciso. Eu era muito, muito nova. O pen-

    samento se encaixou com perfeio. [...] Algumas outras influncias tambm

    contriburam: minha me era esprita, e fizemos muitas visitas a instituies

    de assistncia. Cresci com grande interesse sobre a questo indgena e tudo

    sobre o assunto me atraa. Provavelmente me fujam outros fatores que fizeram

    a medicina e a questo indgena entrarem na minha vida, mas durante toda a

    faculdade mantive a inteno.

    Essas narrativas, de tom marcadamente soteriolgico, constroem firme deciso e moldam a vida profissional de Daniela: uma semana aps receber o diploma pela Unesp j estava no Acre e, a partir da, esteve sempre envol-vida com sade indgena. Depois da experincia no Acre, inicia um trabalho no Xingu. Permaneceu tambm algum tempo trabalhando na formao de Agentes Indgenas de Sade. Prestou residncia em Sade Pblica em Bo-tucatu, mas acabou se dirigindo a Rondnia para trabalhar num projeto com os Suru e os Cinta Larga. Ao voltar a So Paulo, chegou Aldeia Guarani do Jaragu, onde est trabalhando at hoje. Esse tour de force nem de longe d conta de uma rica trajetria. De qualquer forma, a opinio dela clara: sempre estive vinculada sade indgena, mesmo quando no estava.

    Pensando nesse envolvimento, nas narrativas que insistem em alar na memria um vnculo com a temtica indgena, e com a inteno de indagar como o contato com a alteridade radical se manifestaria num profissional de sade, solicitei a Daniela que me contasse um evento importante, que considerasse significativo de sua experincia com sociedades indgenas. Ela narrou a seguinte histria.

    Para mim difcil escolher dentre tantas histrias vivenciadas a que melhor exem-

    plificasse as crenas como aspecto relevante para interveno, pois minha vivncia

    em comunidades indgenas me ensinou muito sobre a importncia de conhec-las

    e experimentar um olhar a partir delas. No momento, gostaria de compartilhar um

    episdio que comeou numa famlia e acabou por se disseminar pela aldeia toda.

    Daniela estava trabalhando com os Caiap, na aldeia Kapoto. Ela ti-nha 26 anos. Era noite e dormia nas ocas devido ao medo dos alojamentos distantes das aldeias sempre sujeitos a ataques de ona. Acordou sonolenta no meio da noite. De incio, no conseguia compreender a cena que via: uma jovem adolescente se debatendo na rede e cercada de vrias pessoas. Viu-se impelida a levantar, pois a cena no manifestava sinal de terminar. Pensou de incio se tratar de uma crise epilptica ou alguma enfermidade por ela conhecida, e perguntou se poderia ajudar.

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    Soergueu-se para enxergar melhor. Percebeu que a moa se debatia e muitas pessoas tentavam cont-la com dificuldades. Nesse instante, um homem mais velho disse Daniela que no se preocupasse, porque era doena de n-dio. Essa categoria doena de ndio trata das coisas, afirmou Daniela, que ns mdicos no conseguimos entender nem resolver.4 Mas, ainda assim, a mdica buscou entender a situao e o porqu de estarem tentando conter aquela moa. A explicao recebida ampliou a sua curiosidade, dado o seu carter genrico e inconcluso: se no a contivessem, [a jovem caiap] iria para o mato e no voltaria mais, e seria perigoso para ela. Como a situao perdurou por mais algum tempo, Daniela retornou rede, mas no conseguiu dormir, preocupada. No dia seguinte examinou a moa. A jovem caiap no fa-lava portugus, e o tradutor indgena dizia que ela nada sentia e nem conseguia descrever o que acontecera noite. Uma realidade que intrigava Daniela.

    O trabalho da mdica era voltado deteco de tuberculose, pois havia muitos casos na aldeia naquela poca. Daniela era a nica mdica ali, e os agentes indgenas falavam pouco o portugus situao que a levava a de-pender de traduo para quase todos os afazeres. Era uma poca conturbada. Muitos avies de garimpeiros assediavam as lideranas com o objetivo de procurar ouro na regio. Traziam pilhas, carne de frango e outros produtos de escambo. Diante da situao, o trabalho na rea de sade era intenso.

    To intenso que Daniela dormia em funo do cansao. Despertou no meio da noite, no dia subsequente ao ocorrido com a jovem caiap, com a mesma cena envolvendo a adolescente. Nesse instante, porm, deixaram-na examinar a enferma. Daniela constatou que a jovem estava sem liberao de esfncter, sem febre, com semblante assustado, mexendo-se muito. Mais um dia se passou e, com o correr das horas, novo exame, nova conversa com o intrprete e, outra vez, nenhuma resposta. noite a situao se repetiu pela terceira vez. Passa-ram-se dois dias e outra adolescente apresentou quadro idntico. Mais alguns dias e j se contabilizavam cinco adolescentes com o mesmo sintoma. Daniela comeou a formular hipteses: arbovirose? encefalite? Mas no encontrou algo sustentvel. O que a intrigava naquela ocasio era: por que durante o dia todos estavam bem e no apresentavam nenhum sintoma?.

    As noites se repetiam, at que os sintomas atingiram alguns homens jovens. Se para segurar uma moa eram necessrios mais ou menos cinco adultos, imagine um homem!, ponderou Daniela. Toda a aldeia estava paralisada.

    Fiquei com medo de que eles decidissem fugir todos para o mato. Com certeza

    eu no conseguiria acompanh-los. No dormimos a noite toda e a velha que

    cuidava de mim me alertou para no chegar muito perto, pois um dos homens

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    havia tentado atirar no grupo que o segurava. No dia seguinte, a mesma ten-

    tativa de examinar e conversar. Ento, o homem da espingarda que falava bem

    o portugus me explicou: na hora a gente no v os parentes, doutora; na

    hora o que eu vi foi muita coisa feia e eles queriam levar meu esprito, por isso

    d vontade de fugir ou atirar.

    Foi nesse momento que lideranas indgenas disseram Daniela que pretendiam pedir o auxlio de um paj de outra etnia. A assistncia, parecia significar tal solicitao, no deveria vir de mdicos, dispensveis nesse caso. Enquanto isso a situao de sade da aldeia se agravava, o que fez a mdica interromper o trabalho de tuberculose planejado.

    Nesse meio tempo, lideranas indgenas chamaram Daniela. Afirmaram, dessa vez, que a Funai s liberaria recursos para fretar o avio e trazer os pajs necessrios para resolver a situao na aldeia se o pedido fosse dela, a mdica responsvel. A situao era difcil. De um lado, a Funai fornecia apoio com a condio de tirar as decises das mos dos Caip, num misto de desconfiana e autoritarismo. Do outro, Daniela no conseguia desenvolver seu trabalho e via o quadro se complicar, sabendo que seu chefe no apro-varia tal procedimento. Pedir a pajs um auxlio sobre questes de enfermi-dade poderia ser lido como incompetncia, temia a mdica. No obstante o dilema de se encontrar com o dever de mediar dois universos diferentes, com implicaes diretas na sua imagem profissional, Daniela escreveu um radiograma para quem liberava o recurso com um discurso nos moldes dos pensados para os altos funcionrios da Funai. O texto do radiograma foi descrito da seguinte forma:

    Estamos enfrentando uma situao que foge da minha competncia e que as

    lideranas e comunidade definem como doena de ndio. A comunidade pede a

    presena de pajs que, tenho certeza, sabero conduzir o problema e amenizar

    o sofrimento da aldeia.

    Com esse documento, o avio foi liberado. Mas, sem sucesso, pois rusgas antigas impediram a ida dos pajs aldeia caiap. A situao se prolongou por mais alguns dias, mas foi controlada localmente. Da mesma forma que surgira abruptamente, assim desaparecera. A nica explicao que Daniela recebeu sobre a resoluo foi que outros pajs haviam intercedido distn-cia, e que eles haviam curado todos. Daniela costuma contar essa histria quando instada a falar de seu trabalho em sade indgena. Quem sabe seja esta uma histria, como irei argumentar adiante, que nos conte algo sobre zonas de opacidade e de limites da prpria compreenso?

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    Carla e a mquina da vida

    Carla nasceu em So Paulo, capital, em 1977. Formou-se em enfermagem pela Faculdade do Hospital Albert Einstein. O desejo de infncia de ser mdica direcionou-se enfermagem. Essa mudana deveu-se ao acaso e possibilidade que, segundo ela, o curso de enfermagem oferecia: uma maior aproximao com o cuidar. A propenso juvenil para atuar na rea da sade se somou curiosidade com culturas exticas, curiosidade esta atribuda a uma insatisfao com o meio urbano.

    Na faculdade, ela se preocupava com o papel social do profissional, pensando em extrapolar a assistncia. Os estudos universitrios desenvol-vidos propiciaram um contedo mais voltado para a tcnica e com espao pequeno para os temas de sade coletiva, de poltica, de antropologia. As pessoas eram educadas para atuar direta e tecnicamente num ambiente hospitalar. Carla fez estgios nos Hospitais Albert Einstein e Emlio Ribas, o que a levou certeza de sua inadequao para atuar em hospitais. A ideia era trabalhar com sade coletiva e conhecer outras culturas. Comeou a procurar instituies como Mdicos Sem Fronteiras, Cruz Vermelha, entre outras. Mas foi no Projeto Xingu que se encontrou.

    Carla estava fazendo uma capacitao na Unifesp e percebeu um car-taz com as comemoraes dos 35 anos do Projeto Xingu. Ela foi ao evento e encontrou os dirigentes do Projeto e lideranas indgenas. Identificou-se com a poltica de sade ali proposta. Escutou os indgenas presentes fa-larem como viam a medicina e discorrerem sobre a mudana do contato, as doenas, aquela dizimao toda, e atualmente essa mudana do ndio querer saber as coisas do branco pra poder se defender, pra poder lutar. A empatia foi imediata, e Carla se deixou enfeitiar. Eu me encantei, repetiu diversas vezes a enfermeira. Esse encantamento conduziu-a ao incio de suas atividades no Projeto Xingu. Tudo seria novo para a en-fermeira formada no Einstein. Assuntos como doena de ndio, feitio, xamanismo eram constantes nas pautas das discusses preparatrias para as atividades de campo.

    Apesar dessa preparao, Carla considera sua primeira viagem ao Xingu dura. Esse primeiro contato o mais intenso, e nele que se avaliam as propenses do novio para o trabalho, colocando-o fsica e emocionalmente prova. Na sua autoavaliao, conseguiu se adaptar com facilidade. Mas esses no foram seus maiores problemas, nem a parte mais difcil. Percebeu, medida que convivia e trabalhava no Xingu, que o mais difcil consistia em aprender a lidar com os prprios valores, como pessoa ocidental, catlica e profissional de sade. A questo que mais a incomodava era a compati-

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    bilizao da histria da valorizao da vida a todo custo, o salvar a vida a todo custo com os valores indgenas sobre a vida.

    a tal da velha histria de salvar a vida da pessoa. A gente acaba carregando

    isso. Acho que isso o que mais a gente tem que trabalhar, porque a gente

    formado pra salvar, formado pra que o sopro de vida [permanea], o corao

    continue batendo e a pessoa continue respirando. Aquela coisa, quase uma

    mquina que temos que manter funcionando. Eu lembro de ressuscitar uma

    criana num barco. Eu estava completamente ensandecida, porque no queria

    que aquela criana morresse na minha mo. Como se eu tivesse a responsabili-

    dade e todo o poder na minha mo. Isso eu acho que foi o que mais eu precisei

    trabalhar, trabalhar o tempo todo. Eu no chegava a intervir com as pessoas e

    dizer faa isso, faa aquilo, no pode. Mas eu sofria por dentro!

    Essa vontade de lutar pela vida essa mquina de manter funcionan-do [o corpo humano] transformou-se num dos maiores dilemas de Carla. Como lutar pela sade e pela vida se no se compreende o que sade e o que vida para quem as prticas de sade so direcionadas? Solicitei a Carla que falasse um pouco mais sobre esse dilema. Ela me contou a histria da morte de um beb.

    Uma vez participei de uma histria que bem ilustrativa dos problemas que

    enfrentamos [os profissionais de sade] quando trabalhamos com populaes

    indgenas. Foi um processo de luto, numa morte de um bebezinho, muito pe-

    quenininho.

    Quando Carla chegou aldeia Tanguro, dos Kalapalo, o beb deveria ter apenas 15 dias de vida. Naquela poca, ela contabilizava somente seis meses de Xingu. Ao entrar na aldeia, percebeu que todos estavam de luto. J dentro da oca, notou um choro constante, que associou dor extrema. Os Kalapalo pranteavam a criana. S depois entendeu que os pais do beb eram muito jovens e haviam quebrado uma regra importante de quarente-na. Pelos seus clculos, o casal teria entre 13 e 14 anos de idade. No soube exatamente o que havia acontecido, mas ouviu rumores sobre o casal ser jovem demais, sobre atividades interditas, mas realizadas, e que acabaram por desembocar no quadro acima.

    Ela soubera da situao pelo agente indgena de sade. A criana, no diagnstico de Carla, havia contrado meningite e apresentava a cabea inchada, febre alta e convulses. Foi uma cena chocante para Carla. Era a primeira vez que se deparava com morte no Xingu. Ao lado da enfermeira

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    colocaram-se trs pajs, chamados para acompanhar o velrio. O av da criana, segundo Carla, era o cacique, e chorava copiosamente. Ao fundo da cena, uma ladainha das mulheres. A cena foi descrita como bonita e triste: uma cena muito bonita assim, triste e forte, todo mundo pintado.

    Carla havia chegado no final da tarde e passou a noite acordada, ten-tando fazer alguma coisa. Todavia, ela s fazia o que os pajs permitiam: dava um remedinho pra febre, tentava um sorinho... tentei dar um soro nela, a perdeu a veia. Um paj cochichou para o agente indgena de sade (e Carla pediu para que ele traduzisse): est vendo como a alma da criana j foi, no adianta a enfermeira querer botar no sangue dela, no tem mais, se ela furar vai sair de novo. Carla, novia no Xingu que era, ficou deses-perada. No conseguia lidar com a morte daquela criana. Todos na aldeia j estavam de luto, mas Carla percebia vida naquela criana e achava que devia fazer algo. Ela iniciou um dilogo com os pajs sobre o assunto, indagando sempre sobre a possibilidade de interveno.

    Eu fui ao paj considerado assistente. Cheguei nele devagarzinho assim e disse

    pra ele o que eu pensava daquela doena e da possibilidade que eu podia ofe-

    recer da criana ir logo cedo pro posto. L havia um mdico, e de l eu podia

    pedir um avio pra aquela criana ir direto pra cidade. Ele olhou pra mim assim

    com uma cara de, tipo assim, fora de cogitao. Assim: No. Deixa pra l, voc

    j fez o seu trabalho. Este aqui e botou a mo no peito este aqui no tem

    mais alma, falou outro nome l, esprito, , foi, acabou, morreu. Imagina se

    eu entendi aquilo. Falei: no, paj, mas olha, veja, o nenezinho, est vendo ,

    est respirando. Olha aqui, eu posso levar, tem mdico no posto, tem mdico.

    E ele disse: no vai minha filha, voc vai perder tempo.

    Carla no se conformou. Passou a noite em trabalho de convencimento. Percorreu o que classificou de hierarquia dos pajs. Chegou ao paj que considerou de maior prestgio. Demorou a conseguir falar com ele. Quando finalmente se aproximou, com toda a deferncia, contou sua verso, argu-mentando que havia vida naquela criana. Ao que o paj retrucou: Minha filha, est bom. Voc j trabalhou (rindo). Agora no d mais, pode descansar, vai dormir, amanh voc trabalha, v outro, outro, outro. Esse aqui no, que este j foi. Menina [apontou para me da criana enferma], menina ainda no sabe ter filho. Mama levou embora.

    A conversa sobre o tema com o primeiro paj foi realizada com o auxlio do agente indgena de sade, que traduzia para a lngua nativa o que Carla perguntava e, na sequncia, traduzia as formulaes do paj.

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    Posteriormente, a enfermeira passou a estabelecer conversaes em portu-gus, em frases bem resumidas e sempre perguntando. Por que a criana morre?; Por que no posso tentar salv-la?. As respostas, tambm em portugus, insistiam em que a criana no tinha vida, que o esprito havia partido: Mama levou embora. O quadro poderia ser telegraficamente caracterizado da seguinte forma: tradues entre lnguas; busca sistemtica de comunicao; interlocues difceis, auxiliada por gestos e expresses; gramticas culturais diferentes em conexo.

    A imagem impressionava Carla: os dois meninos o casal de pais do pequeno enfermo de cabea baixa, a ladainha, as pinturas corporais, o choro insistente, a pacincia dos pajs, o beb de cabea inchada, febril e com convulses. Ela no se conteve e pela manh procurou o av da crian-a. Tanto fez que conseguiu convenc-lo a levar o doente ao Polo Base, o Posto de Sade Leonardo. No barco surge outra imagem que Carla jamais esqueceu: o av dirigindo o barco a motor, chorando; a me com o beb no colo, ao lado de Carla; o paj sentado na proa. Este, de meia em meia hora, virava-se para a enfermeira e perguntava: e a, minha filha, j morreu?. E Carla retrucava: no, ainda no. Carla olhava o beb, que j estava entrando num processo de morte cerebral, contorcendo-se, virando o brao. Mais meia hora e o paj se virou e perguntou com naturalidade: ento, minha filha, j morreu?. Carla, o av e a me da criana choravam.

    O barco descia o rio Kuleune. Estavam na poca de seca e sempre perigoso conduzir a embarcao nesse perodo. Aps trs horas nas grandes guas do rio Kuluene, o barco teve que serpentear pelos tortuosos igaraps do Tuatuari, estreito e cheio de curvas. Seria mais uma hora nos labirintos do igarap, mas o av, que conduzia o barco, perdeu-se, atrasando a via-gem. Ainda nos igaraps, faltando pouco para chegar ao posto de sade Leonardo Villas Bas, o paj voltou-se e repetiu a pergunta: e a, minha filha, j morreu?. Carla ento respondeu: no, mas vai morrer, vai morrer. O senhor estava certo. A criana morreu ali, antes de chegar ao posto, no centro sinuoso do Tuatuari.

    Cheguei no posto e desabei! Desabei tanto por ter vivenciado aquela morte

    como por ter vivenciado aquela morte no lugar errado, do jeito errado. E a eu

    me acabei de chorar por ter tirado ela [a criana] do processo mais importante

    pra ela naquele momento. Era a coisa mais importante pra ela e pra famlia

    dela: morrer dentro da casa dela, com aquele luto, com aquela cena bonita, com

    aquela coisa toda do povo dela, e no num barco, correndo. Enfim, naquele

    momento eu percebi que s eu no tinha me dado conta. No tinha entendido.

    S eu no me conformava com a morte.

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    Carla ainda atua no Projeto Xingu. Essa histria vem servindo para orientar sua conduta com comunidades indgenas. Em situaes semelhan-tes, como veremos mais frente, a enfermeira teve atitude diferente.

    Limitaes, limites e prticas de traduo

    Neste artigo acabei por me concentrar nas narrativas de Daniela e Carla porque, alm da maior proximidade estabelecida no transcorrer da pesquisa, elas deixam claros alguns motivos (Deleuze 1997) que se repetem, frequen-tes na composio geral da forma de perceber a interveno e de lidar com concepes de sade diferenciadas.

    Nas narrativas de Daniela e Carla, a escolha pela profisso deu-se segundo o desgnio de fazer algo para mudar a sociedade. Daniela descreve imagens de sua infncia nas quais a temtica indgena aparece sempre vinculada situao de vulnerabilidade. Ser mdica surge como opo de interveno em populaes necessitadas. Carla manifesta-se crtica das relaes no meio urbano e busca na profisso uma forma de cuidar. Em ambas, s imagens das populaes indgenas consideradas vulnerveis, necessitando de aes que possam amenizar os problemas e a penria soma-se a ideia da biomedicina como instrumento eficaz de interveno. Medicina e enfermagem so compreendidas como meios disciplinares que possibilitam agir. No h como se desviar aqui da relao direta entre vulnerabilidade e salvao, entre crenas indgenas e uma soteriologia racionalizada de uma salvao tcnica; nem como se esquivar da percepo da profisso como lcus de batalha entre populaes que sofrem e profissionais que cuidam a profisso idealizada como um combate apaixonado em nome dos que sofrem. Esse tom soteriolgico configura-se em motivo habitual nas narrativas dos profissionais de sade com os quais mantive contato (Good 1994; Fller 2004:134). Todavia, minhas pesquisas indicam que acontece alguma coisa no meio do caminho que provoca uma toro nas narrativas, assinalando a existncia de outros motivos.

    Essa toro pode ser observada no movimento das prprias narrativas, que vo de um discurso de salvao mdica de populaes vulnerveis a outros que abordam as limitaes da biomedicina. Estamos diante de dis-cursos que realam as limitaes e apresentam situaes em alguma medida refratrias s intervenes dos profissionais de sade. Talvez Daniela seja a mais incisiva em mostrar uma histria da limitao. Ela fala de zonas obs-curas nas quais seus saberes so incapazes de alar aos saberes indgenas. Os limites de sua ao indicam que no h uma equao na qual mdico

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    e biomedicina so igualados. Sua atuao no se circunscreve aos ditames de uma cincia que supostamente englobaria toda a sua ao. A linguagem de Daniela permanece tributria do vocabulrio composto por termos como crena e interveno, mas nem a descrio de crenas nem a potncia da interveno se destacam em sua narrativa, que aborda a incapacidade de intervir ou uma ao que s obtm algum xito descolando-se da biome-dicina. No caso de Daniela, o mdico atua em face do enfermo sancionado pela cincia, mas a atuao no se ancora na cincia.

    Carla fala de si como algum profundamente abalada pela resistncia de outro tipo de concepo de vida. Ressente-se pela ao de uma mqui-na da vida que aprendera com seu ofcio, mas que, ao mesmo tempo em que a impele a agir, obsta a capacidade de perceber outras formas de vida. Quando estimulada a discorrer sobre sua profisso, com um equvoco que resolve exemplificar.5 O seu limite, portanto, se localiza naquilo que acreditava ser a potncia de sua interveno. a mquina da vida que sua histria dilacera. Sua narrativa indica que o limite da atuao deve se pautar na radical diferena sobre a concepo da prpria vida. Aquele beb e todo o funeral kalapalo sugerem a existncia de percepo sobre vida e enfermidade que Carla no conseguiu entender. Foi preciso se aventurar pelo rio Kuluene e se adentrar nos igaraps do Tuatuari para enfim compreender seu prprio limite de compreenso. Esse espao de passagem, esse limbo no qual se meteu com o av da criana um paj que insistia no que j sabia desde o incio daquela histria e a tmida me do beb, foi revelando a ela algo impressionante: todo mundo j sabia o que iria acontecer, exceto ela. Sua incapacidade de escutar o que diziam os pajs na noite anterior descida do rio assinala os limites da atuao de profissionais de sade em comunidades indgenas.

    Por mais de dois anos venho escutando mdicos e enfermeiros que trabalharam com sade indgena, principalmente os vinculados ao Projeto Xingu. Essa experincia me colocou diante de mltiplas histrias de limi-tao. Por exemplo: num encontro casual com profissionais envolvidos com sade indgena no se tardou a mencionar a histria de um mdico que se transformara num dos melhores especialistas de sua rea. Num dia no Xingu, tal mdico se deparou com um caso de feitiaria. Com uma repu-tao nacional, que ele considerou em jogo naquela ocasio, prontificou-se a acompanhar o paciente indgena. No parecia segredo para ningum que, na concepo desse mdico, ali se debatiam cincia e crenas locais (s por condescendncia, no denominada de superstio). Depois de trs dias de viglia, o ndio faleceu, sem que a interveno surtisse efeitos e sem qualquer explicao plausvel do ponto de vista biomdico. No importa

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    que a histria seja verdadeira ou que no tenha ocorrido tal qual me con-taram, at porque est envolta num tom de mistrio e sempre contada numa generalidade das histrias exemplares. E como histria exemplar, e isto que me interessa mais particularmente, findava sempre com a seguinte exclamao: isso acontece com todos ns!. Tudo se passa como se, para falar sobre a potncia de sua interveno, fosse necessrio apresentar os limites do empreendimento, e assinalar seus equvocos.

    Estranhos profissionais estes que, quando instados a falar sobre seu ofcio, acabam por discorrer no sobre seu alcance e sua potncia, mas sobre seus limites. Daniela no consegue compreender nem intervir nos casos de convulso dos Caiap. Sequer soube o que havia acontecido ou como foi resolvido. Apenas repete, sem compreender, a histria da interveno de outros pajs que teriam solucionado os distrbios na aldeia. Sua busca para identificar a enfermidade revelou-se incua. Embrenhada numa cos-mopoltica amerndia, na qual o medo dos espritos, somado a manifesta-es corporais identificadas (mal traduzidas) como convulses, em meio a rituais de cura, conflitos entre etnias, presena de garimpeiros, a mdica que sonhava com ndios antes da medicina e pensava a medicina como forma de ao descobre a fragilidade tanto para compreender como para encontrar equivalncia em sua gramtica cultural. Chegou a um ponto em que a medicina a abandonou.

    Carla, por sua vez, deparou-se com novas formas de vida. A enfermei-ra, crtica das relaes urbanas, que projetava seu ofcio como forma nobre de cuidar, aprende com os Kalapalo os limites de sua prpria condio de compreender e os efeitos pouco nobres que o cuidar pode tomar.

    Qual a razo de Daniela e Carla terem narrado justamente aqueles episdios nos quais suas formaes profissionais no as puderam ajudar? Ou, mais diretamente, por que selecionar num universo to grande de ex-perincias com a alteridade (que incluem prticas educativas, controle de epidemias, crescimento populacional do Parque do Xingu etc.) exatamente os pontos que no conseguiram ultrapassar? E qual o motivo de eleger his-trias exemplares de atuao em sade indgena selecionando experincias que sequer entenderam?

    Para tentar responder a essas indagaes talvez seja necessrio ampliar o conceito de limite. H a possibilidade de compreender limite como linde ou limiar, como algo que acontece entre dois universos e como aquilo que ocorre entre dois mundos. Nesse sentido, limite implica processos de traduo entre universos. E este o terceiro motivo das narrativas: a traduo. A atuao da mdica e da enfermeira est centrada numa busca de traduzir concepes, palavras, aes.6 O paradoxal da interveno desses personagens que ela

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    s consegue se efetivar num relativo afastar-se da biomedicina. Esses profis-sionais so chamados a atuar em nome de um conjunto de concepes e tec-nologias (a biomedicina), mas suas aes s podem se efetivar se mantiverem distncia relativa que permita processos de traduo.

    A questo no , portanto, s a dificuldade de estabelecer conversaes, embora seja tambm aspecto pungente nas experincias vivenciadas: Carla fala com a ajuda de tradutores, especialmente agentes indgenas de sade, e com pajs que dominam apenas algumas frases em portugus; Daniela est na mesma situao e necessita de auxlio de tradutores para compreender o quadro. Porm, a conjuntura seria mais bem caracterizada se pensssemos em imaginaes conceituais, convenes, formas de percepo de sade e doena em contato. A mdica procura na sua gramtica cultural, no seu vocabulrio, detectar doenas, interpretando determinadas experincias corporais dentro do quadro nosolgico biomdico. A classificao apre-sentada pelos Caiap como doena de ndio , nesse caso, uma tentativa caiap de traduzir suas prprias concepes dentro de um lxico mais ou menos compreendido pela mdica, um tipo de comunicao instrumental. Estavam em jogo ali formas diferenciadas de percepo de corpo e doena, alm de teraputicas distintas, numa linguagem possvel. Para Carla, o que estava em jogo naquela zona limite entre concepes diferenciadas de vida era o prprio conceito de vida. Os complexos conceitos kalapalo de corpo, a linguagem dos rituais (dos quais Carla s conseguiu perceber a beleza e a solenidade), as percepes e as relaes entre vida e morte constituram-se numa experincia pouco compreendida e mal traduzida, mas que interpelou a enfermeira a ponto de ela perceber sua no percepo.

    Tanto o idioma quanto o vocabulrio tcnico fornecido pela biomedicina no operaram a contento naquelas situaes. Termos como epilepsia, con-vulso, ataques foram tentativas dbias de traduo. As expresses utiliza-das nas narrativas da enfermeira e da mdica j so produtos de processos de traduo: pajs, chefe, pai, me, av. Configuraes de parentesco, instituies, sensaes foram imediatamente transcritas para a realidade dos profissionais de sade. Entretanto, as tradues se revelaram equvocas.

    H muito que se reconhece a impossibilidade de uma traduo integral. Persiste nos processos de traduo, argumenta-se, algo de intraduzvel; persistncia que evoca termos como indecibilidade, resto, equivoca-cidade, donde a mxima italiana traduttore traitore. E se traduzir trair, afirma Viveiros de Castro (2009:54), uma boa traduo seria aquela que trai a lngua de chegada e no a de partida. Uma boa traduo consegue fazer com que os conceitos estrangeiros subvertam os dispositivos conceituais do tradutor. Algo subsiste de intraduzvel que interpela os tradutores, existindo

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    a possibilidade (e o risco) de os processos de traduo seguirem o fluxo: traduo, traio, transformao. A agncia da estrangeiridade, no trabalhar contnuo das tradues, pode provocar transformaes nos conceitos, nas perspectivas e nas formas de percepo. Contudo, o processo de traduo no algo apenas conceitual.

    Conceito, para Deleuze (2007:171), comporta duas outras dimenses, as do afeto e do percepto, indispensveis para o movimento, para o devir. Apesar de conceito ser algo diferente, no tem nem sentido nem necessidade sem um afeto e um percepto correspondentes (Zourabichvili 2004:4). Se as tradues mobilizam as outras dimenses do conceito, podem alte-rar os afetos e os perceptos. E, ainda que no abalem totalmente esse algo diferente que conceito, podem implicar profundo movimentar de afetos e perceptos. O que estou tentando argumentar aqui que esse processo complexo de limitaes e limites, de equvocos e necessrias e incompletas tradues (que deslizam de simples tradues lingusticas a zonas de inco-mensurabilidade) pode afetar os profissionais de sade.

    O limite instncia do devir incessante de sentido e de sua suspenso, local de passagem e de conflitos, de afirmaes e reafirmaes de sentidos prvios, e de hesitaes constantes (Fller 2004). O profissional de sade, pressionado pela urgncia da traduo, por Outros que se lhe impem como condio mesma de realizar aquilo que acredita ser seu ofcio, atormen-tado por sua prpria linguagem e por seus prprios textos, dos quais no consegue se despregar facilmente, e com os quais tem que trabalhar para conferir sentido s experincias, no encontrando equivalentes, e muitas vezes despreparado para esse encontro e essas tradues, ora levado a tradues etnocntricas aquela traduo que nega a estranheza da obra estrangeira (cf. Berman 2002:18) ora afetado pelo Outro deixando-se levar, nesse caso, por esses encontros, alterando-se, modificando o prprio sentido dos encontros. Surgem nesses encontros imprevisveis ocasies em que a biomedicina j no mais suficiente, como vimos nos casos nar-rados por Daniela e Carla. Essa insuficincia na qual o profissional de sade parcialmente privado daquilo que seria, em tese, sua estrutura de pensar possibilita que esses encontros produzam mais do que uma traduo etnocntrica.

    certo que, nesses encontros, profissionais de sade vm produzindo sistematicamente tradues etnocntricas, como muito j se alertou. Todavia, na experincia com a alteridade, no se pode controlar tudo; e as histrias de Daniela e Carla apontam para essa instabilidade: algo afeta os profis-sionais que se veem na presena de um Isto sem nome, sem precedentes no vocabulrio e na sintaxe; um Isto que se impe no momento da atuao.

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    Acaba aqui a suficincia que diz: na biomedicina, Isto seria explicado de tal forma, deixando de funcionar a simples evocao: em minha lngua Isto se diria assim (Moraes 2008:234). No encontrando tradues equivalentes familiares, pois o repertrio conceitual deles no pode ser revelado como isomrfico em relao ao nosso (Holbraad 2003:43), aparecem ento as hesitaes, os equvocos, o gaguejar, as limitaes que afetam os profissio-nais de sade. Trata-se aqui, portanto, de pensar os afetos dos processos de traduo naquilo que possibilitam, nas tores que provocam.

    Afetos e afeces

    Foi assinalando um problema de traduo que Deleuze (1978), num de seus cursos em Vicennes, iniciou sua leitura de Espinosa. Deleuze alertava para a catstrofe de traduzir affectio e affectus para afeco, lembrando que em francs h os termos affect (afeto) e affection (afeco), mais prximos da forma utilizada por Espinosa.7 H uma distino entre afeto e afeco que o emprego de um s termo acaba por olvidar.

    Afeto estaria relacionado ao efeito de um corpo sobre outro, um corpo sofrendo aes de outro. Afeco seria uma mistura de dois corpos, um corpo que age sobre outro, que por sua vez recolhe traos do primeiro. Affectio assinala um estado do corpo afetado, implicando presena do corpo afetante; affectus indica a passagem de um estado a outro, tendo em conta a variao correlativa dos corpos afetantes. Cada afeco como uma interrupo na continuidade da potncia de um modo, tal como o que se produz em ns a partir de um encontro que aumenta ou diminui nossa fora de existir. O afeto no se reduz a uma comparao intelectual das ideias, antes constitudo pela transio vivida ou pela passagem vivida de um grau de perfeio a outro. A afeco, definida como uma mistura de corpos, indica a natureza do corpo modificado, a natureza do corpo afeccionado e afetado.

    Afetos tambm no so sentimentos, so foras que nos atravessam, ul-trapassando a distino entre sujeito e objeto, j que o homem se transforma noutra coisa em virtude de uma fuso, de um entrelaamento. Afetos so devires no humanos do homem; e devires so encontros, indiferenciaes; trata-se, portanto, de uma zona de indeterminao, de indiscernibilidade, como se coisas, animais e pessoas atingissem um ponto (embora no infini-to) que precede imediatamente sua diferenciao. Afetos no so, ainda, interiores: esto no interstcio, no entre, nas intercesses; so vibraes ou intensidades e, por isso, no se confundem com o que vivido numa inte-rioridade subjetiva. Sentimento s pode ser percebido a partir da dimenso

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    afetiva, construdo por mltiplos laos e encontros, mas unificados numa significao. De forma que sentimento aquilo que move, e o afeto o prprio movimento, num contnuo diferir.

    Para resumir: as afeces, embora aconteam de uma s vez, so efeitos de um corpo sobre outro no espao; os afetos so os efeitos de um determinado corpo sobre uma durao variaes de potncia. Afeto corresponde, portan-to, ao modo como problematizamos nossas afeces, nossas dores e prazeres; afeco tudo aquilo que o corpo absorve no encontro com outros corpos.

    Essa discusso sobre afetos e afeces est, por conseguinte, relacionada aos limites e aos processos de traduo, ao interstcio, aos encontros (bons e maus). A indagao que venho apresentando em que medida essas expe-rincias (essas misturas, essas afeces) com a alteridade radical, como as narradas por Daniela e Carla, possibilitam um afetar-se, permitem um devir outro. Esses profissionais de sade podem ser afetados? De que maneira? Qual a possibilidade de uma atitude de escuta do outro? Para prosseguir nessa reflexo podemos, por um instante, colocar as experincias de Daniela e Carla sobreimpressas (Almeida 2007) s comumente associadas biomedicina.

    As verdades e os conceitos da biomedicina possuem fora normativa que incide diretamente sobre as convices e os estilos de vida das pessoas. A medicina lida com perodos cruciais, como vida, morte, nascimento, enfer-midade, impondo-se como definidora das formas ponderadas de bem viver. As narrativas mdicas geralmente operam da seguinte maneira: supe-se um consenso da sade como valor fundamental e primrio e que as enfermidades so nocivas e devem ser combatidas, desejando delas todos escaparem; localizam-se, imediatamente, determinadas condutas como condies origin-rias das doenas e, assim, conclui-se que essas condutas devem ser evitadas, combatidas ou extintas. No necessrio muito para se detectar nos discursos biomdicos essas pretenses normativas, que se estendem por mltiplos cam-pos diettica, sexualidade, higiene, teraputica. Os pesquisadores da rea vm alertando para a dimenso normativa e prescritiva das narrativas dos pro-fissionais de sade, sustentando que na biomedicina etiologia e normatizao andam juntas, e que o poder normativo da biomedicina cresce com seus xitos e sua eficcia como tecnologia. Como cincia do normal e do patolgico, a biomedicina torna-se dominante entre as cincias, estabelecendo os padres de razoabilidade dos comportamentos (Canguilhem 1984).

    O encontro de profissionais de sade e comunidades indgenas coloca a fora das narrativas biomdicas, com seu poder e sua eficcia, ao lado de outras formas de perceber sade e doena, alm de outras teraputicas, proporcionando conflitos e disjunes j bastante e apropriadamente co-mentados (Langdon 2001; Fller 2004). Nesse encontro, as relaes entre

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    profissionais de sade e ndios so eminentemente hierarquizadas, pois colocam no polo valorado a biomedicina e os saberes ocidentais e, no polo desvalorizado, os saberes indgenas, considerados como manifestao do desconhecimento e da ignorncia, ou como crenas ineficazes. Quem tra-balha na rea percebe amide profissionais de sade classificando ndios de ignorantes sobre sade e doena; pacientes indgenas que no acatam as medidas teraputicas propostas so denominados de desobedientes. As histrias de Daniela e Carla, contudo, nos contam algo mais. Os motivos que compem as narrativas de Daniela e Carla em suas experincias em sade indgena demonstram um afetar. Daniela e Carla se direcionam, len-tamente, para uma distncia relativa de um tipo de saber. Seja verificando seus limites, seja questionando a prpria mquina da vida, esses encontros, essas afeces, alteram a potncia de agir desses profissionais de sade que, antes de se anularem diante do saber biomdico, acabam por se mobilizar.

    De alguma forma, narrativas que poderiam se voltar para a potncia da interveno (daqueles que mudam quadros epidemiolgicos), para seu car-ter heroico e exitoso (daqueles que trazem solues tcnicas e teraputicas para salvar vulnerveis), ou humanitrio (daqueles que buscam salvar vidas), acabam por se centrar nos equvocos e nas dificuldades. Essa toro produz e produto de novas subjetividades e novas formas de olhar. Dito diretamente: limitaes, limites e processos de traduo no s dizem algo sobre os profissionais, como podem ser simultaneamente produtos e produtores performticos de novas formas de agir e pensar a sade indgena. A experincia contnua e persistente em processos de traduo nessa zona de intermedicalidade, como aqui descrita, pode implicar esse afetar.

    Afetos e afeces vo alm do reconhecimento dos limites e das dificul-dades de traduo o que por si j uma toro daquela fora normativa da biomedicina, como j abordado. Algo se transformou com as experincias vividas. O contato com formas diferenciadas de perceber sade e doena, a necessidade da traduo para poder atuar e os limites das aes alteram as prticas posteriores de Daniela e Carla. Esta ltima nos conta um episdio que resume bem o que venho argumentando:

    Aconteceu outra situao. Tnhamos uma criana ikpeng num hospital local com

    uma doena congnita. Sabamos que, se ela fosse encaminhada a Braslia, pode-

    ria sobreviver fazendo uma cirurgia. Mas os pajs pediram pra voltar pra aldeia.

    A, neste caso, eu estava na cidade, trabalhando neste meio de campo entre al-

    deia e hospitais da regio. Isso aconteceu quando eu tinha mais tempo de Xingu.

    Os pajs pediram para esta criana voltar. O pai decidiu. Eu esclareci minha posio.

    Disse pra ele que a criana poderia morrer. E a criana morreu l na aldeia.

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    Dessa vez Carla, que j havia experienciado aquele dramtico encontro com os Kalapalo, agiu de forma diferente. Algo daquele encontro se incorpo-rou na enfermeira, algo daquela afeco restou. Acompanhemos um pouco mais o desenrolar de sua histria:

    O mais curioso foi lidar com a raiva, com a indignao do mdico que trabalhava

    no hospital, que tinha indicado a criana pra Braslia. Ele me olhou, depois que

    eu disse pra ele que a famlia tinha decidido que a criana ia voltar e que no ia

    ter mais negociao. Disse que a gente j tinha esclarecido, tinha colocado tudo

    na mesa e que eles falaram: no, se for pra morrer, vai morrer l na aldeia!.

    A, ele [o mdico da cidade] falou com zombaria assim: impressionante como

    em pleno sculo XXI vocs ainda do corda pra essas crendices! Essa criana

    vai morrer!. E eu falei: pois , pelo menos que morra no lugar dela, na terra

    dela, com o povo dela, do que morrer num corredor de hospital. E isso!

    Entre o rio Tanguro e o hospital algo mudou. O afeto essa modificao. O afetar pode indicar que talvez os exerccios e as prticas dos profissionais de sade possam ser compreendidos para alm daquele quadro de reificao descrito por Taussig, ou para alm das malhas de um poder em que tudo controle por parte da biomedicina e dos profissionais de sade. Por mais precrios que sejam esses encontros, h a possibilidade de se insinuarem afeces e afetos que mudam a potncia de agir.

    De forma similar ao acontecido com Carla, algo daquele encontro com os Caiap dos corpos agitados, das manifestaes corporais que questionaram a biomedicina restou em Daniela. A mdica atualmente trabalha com os Guarani de So Paulo. Na ltima vez em que conversamos sobre o assunto, estava preocupada com a violncia contra a mulher, que vem se tornando prtica recorrente entre os Guarani. De incio, a m-dica vinculou violncia pobreza daquela populao. Em seguida, seu discurso passou a colocar indagaes sobre as especificidades de gnero, sobre como entender a violncia contextualizando-a e sobre as dificuldades de uma atuao sem conhecimento das especificidades. Suas indagaes terminam por solicitar auxlio de antroplogos para compreender aquele quadro: que ficamos sozinhos! Se pudssemos pensar juntos, iramos mais longe, cometeramos menos erros. Talvez os Caiap tenham lhe ensi-nado exatamente isso: os limites do conhecimento prprio e a necessidade de abertura a saberes outros.

    Esse quadro permite ainda algumas perguntas. Podemos nos questionar at que ponto esse afetar incidiria sobre o prprio saber biomdico, trans-formando-o. Se nessas experincias narradas, Daniela e Carla tiveram que

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    se afastar da biomedicina para alar minimamente outros saberes, podemos ento interrogar: como esses outros saberes, afeces e afetos interrogariam a prpria biomedicina? E, assim, pensando nalgum ponto no futuro, ser que a sade indgena poder transformar o prprio fazer biomdico e a forma de conceber e organizar a assistncia sade no Brasil? Evidentemente, no tenho condies de responder a estas indagaes. Mas, de qualquer forma, uma abordagem que apenas caracterize os profissionais de sade como meros implementadores da reificao desconsidera as fissuras e as disjunes caractersticas das experincias narradas neste texto. E nos leva a refletir sobre uma antropologia dos afetos.

    Notas finais

    A bibliografia sobre sade indgena no Brasil vem apontando, por diver-sos caminhos, as dificuldades enfrentadas e os limites do encontro entre profissionais de sade e comunidades indgenas, mas tambm vem indi-cando as possibilidades de comunicao (Langdon 1991, 2001, 2004, 2005; Fller 2004). As anlises se voltam para as concepes de sade, doena e teraputicas indgenas (Lagdon 2001, 2004, 2005); para perceber como as sociedades indgenas constroem o contato (Buchillet 1991; Garnelo 2003; Garnelo & Wright 2001; Perez Gil 2007); para quadros de intermedicalidade (Fller 2004). O contexto geral de intermedicalidade aponta mesmo para a convivncia de sistemas mdicos distintos, originando sistemas mdicos hbridos um espao de medicinas hbridas onde os agentes interagem na prtica e na teoria. Como dito anteriormente, no raro a interao ocorre numa conjuntura de conflitos, na qual os conhecimentos indgenas so con-siderados menos valiosos que a biomedicina e concebidos como obstculo ao desenvolvimento. Neste caso, a biomedicina percebida como ativadora de uma etnomedicina destituda de sua prpria agncia.

    As anlises supracitadas, no obstante, sustentam que os povos ind-genas esto longe da passividade; ao contrrio, num quadro de simultanei-dade de tradies epistemolgicas, incorporam artefatos e ideias e exercem agncia social, construindo algo novo. O conhecimento indgena dinmico, criativo e sujeito s influncias, perfazendo negociaes e renegociaes constantes entre as diferentes formas de saber mdico. O que busquei sublinhar aqui que a agncia indgena e os encontros em situaes de intermedicalidade, como as descritas neste artigo, podem propiciar que os profissionais de sade sejam tambm eles afetados no prprio processo de (re)negociao e traduo que a intermedicalidade enseja.

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    Num quadro como este, a simples crtica objetividade mdica, diferen-a de linguagem entre profissionais de sade e pacientes, ao exerccio do po-der mdico no consegue parecem dizer as experincias aqui analisadas abarcar todas as dimenses nas quais profissionais de sade se relacionam com cosmopolticas amerndias. Mesmo para contextos urbanos e mdico-hospitalares, essa crtica forma um quadro esttico e geral demais para dar conta daquilo que se passa nos dramas sociais que so as enfermidades. Levar a srio a possibilidade de os profissionais de sade serem afetados em situaes de alteridade radical uma tentativa de pens-los como agentes sociais, como seres histricos, capazes de serem afetados pelo outro.

    Um enfoque exclusivo nas relaes de poder ou nos processos de reifi-cao acaba por impedir uma aproximao com a complexidade da prpria experincia vivenciada. Admitir que a experincia com alteridade radical nada provoca em profissionais de sade principalmente aqueles por um perodo razovel de tempo interpelados por diferentes concepes de sade, de doena e de teraputicas, e que s podem atuar em processos de traduo, como nos casos de intermedicalidade seria atribuir um poder desmesurvel biomedicina, alm de uma homogeneidade aos sujeitos e, sobretudo, uma extrema debilidade indgena. Se acolhermos esta hiptese, a imagem seria mais ou menos esta: dois blocos homogneos, um empoderado e com potncia para agir e transformar o outro ainda que seja idntico a si mesmo do incio ao fim; outro, receptor, em perigo, em necessidade, vulnervel, sem qualquer capacidade de interao e sem afetar o outro, e igualmente sempre idntico a si.

    Nos dois casos, blocos anistricos. Todavia, se os contextos de interme-dicalidade demonstram como as comunidades indgenas so extremamente criativas na negociao com a biomedicina, e se, como vimos, esses contextos so caracterizados por complexos processos de tradues que expem tambm a sensibilidade do profissional de sade s dificuldades e s arma-dilhas das passagens entre cdigos que no so inteiramente equivalentes (Carneiro da Cunha 1998:14) no me parece estranho aventar a probabi-lidade de essas formas criativas de pensar e agir e os processos de traduo afetarem os profissionais de sade. Da a necessidade de se afastar de uma postura que homogeiniza a variedade de pessoas, desenha suas estratgias como meros exerccios de poder e controle, privilegiando apenas a vincula-o com a biomedicina (considerada tambm como discurso homogneo), ignorando-se a complexidade e a historicidade dos agentes.

    Este artigo tentou seguir um caminho diferente, argumentando na direo de uma antropologia dos afetos8 uma antropologia que possa ir alm da reificao e do poder. Se as relaes podem capturar e assujeitar

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    pessoas, inserindo-as em mecanismos de controle e coero, os afetos po-dem tambm mostrar disjunes, hesitaes, lapsos e movimentar devires centrados em para falar como Espinosa (2007), usando expresso cara a Deleuze (1968; ver Svrac 2005 e Hardt 1996) alegrias ativas. Em vez de uma focalizao exclusiva em campos rgidos e reificados, uma an-tropologia dos afetos que permita assinalar algo das realidades que fluem e escapam, compostas por linhas de fuga, e que se volte para subjetividades que excedem, resistem e esquivam (Deleuze 1986), no se configurando exclusivamente como instncias reificadoras. Uma antropologia dos afetos que ocorrem nesses encontros complexos com todos os seus limites, tra-dues, hesitaes.

    Recebido em 01 de abril de 2012

    Aprovado em 27 de novembro de 2012

    Pedro Paulo Gomes Pereira professor da Universidade Federal de So Paulo. E-mail: < [email protected]>

    Notas

    1 Taussig (1992) procura demonstrar que, como ser social total, a reificao e a alienao atingem os fenmenos de enfermidade. A objetividade ilusria (Lukcs 1974) conduz apropriao dos corpos dos doentes como se fossem coisas, como se fossem realidade exclusivamente fsico-biolgica. As prticas mdicas tornam-se exemplos do processo de reificao e de agncia das conscincias reificadas, produzin-do um homem alienado de si (de seu corpo e de sua doena) e dos outros homens.

    2 Nesse artigo, Taussig (1992) se refere realidade mdico-hospitalar. Mas, mesmo noutros trabalhos, como em sua anlise do terror e cura em Putumayo (Taussig 1993), os profissionais de sade aparecem apenas como operadores do processo de reificao (1993:273-279): mdicos que prescreviam receitas de frmacos extrema-mente caros para miserveis, que logo voltavam gua poluda e falta de comida; medicamentos produzidos por multinacionais qualificadas de abutres que se ali-mentam de lixo e tripas (1993:273). Existe uma persistncia na forma de descrever os profissionais de sade, pois a narrativa de Taussig sequer insinua a existncia de dilemas, dificuldades, limites ou ambiguidades nesses personagens, sempre vincu-lados ao poder e a atitudes autoritrias.

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    3 Optei por utilizar nomes fictcios.

    4 Sobre as categorias doena de ndio e doena de branco, ver Gallois (1991) e Barcelos Neto (2006).

    5 A afirmao dos limites de atuao do profissional que lida com sade indgena era diretamente proporcional ao tempo de campo. Quando iniciante, com pouco tempo em reas indgenas, o profissional tende a enfatizar as aes diretas realizadas, e a conversa gira em torno dos aspectos biomdicos. Todavia, quanto mais experiente, mais os aspectos se voltam para o que venho denominando de limites: o que no se consegue implementar, o que no se compreende, os equvocos, o incomensurvel.

    6 Traduo geralmente entendida como a interpretao do significado de um texto numa linguagem especfica, e a produo noutra lngua de um texto equivalente que comunica a mesma mensagem. Traduo , assim, uma busca de compreenso de sentidos por meio de tentativas de aproximaes de lnguas, mas tambm de di-versas esferas, instncias e modos de pensamento. Neste texto, alm dessa acepo geral, esto em jogo as regras e as convenes de cada tipo de linguagem, em suas especificidades culturais. Como a moderna teoria da traduo vem apontando, os agentes de traduo no so neutros. Ao contrrio, interferem no processo de tradu-o, criando no mesmo ato que simulam reproduzir, ou melhor, inventam simulando reproduzir. Sobre o tema existe uma bibliografia considervel: Asad (1986), Tambiah (1995), Latour (1989, 1997), Benjamin (2001), Derrida (2003, 2005), Ricoeur (2004), para citar algumas das mais destacadas contribuies. Importantes para este artigo so os seguintes trabalhos, presentes na composio geral de meu argumento mesmo quando no citados diretamente: Berman (1995, 2002, 2007), Goldman (1999), Car-neiro da Cunha (1998), Albert (2002), Albert e Kopenawa (2010), Viveiros de Castro (2000, 2004, 2009). Sobre traduo em Deleuze, ver Burchill (2007).

    7 A discusso sobre os conceitos de afeto e afeco central na composio geral da filosofia de Deleuze, perpassando boa parte de sua obra (1978, 1987, 1992, 1995, 1997). Busquei apenas pincelar o assunto.

    8 Sem condies de abordar mais detidamente o assunto, apenas apresento, muito sumria e despretensiosamente, a ideia de uma antropologia dos afetos, com a aspirao de desenvolver a discusso noutro lugar. Se sentimento aquilo que move e o afeto o prprio movimento, como sustenta Deleuze, s em parte uma antropolo-gia dos afetos se aproximaria da antropologia das emoes, tal como elaborada, por exemplo, por Lutz e White (1986) e por Rosaldo (1984). Similaridades mais diretas, que tambm pretendo explorar noutro espao, poderiam ser traadas com a ideia de ser afetado no trabalho de Jeanne Favret-Saada (1990; ver Goldman 2005). Acredito que, de uma forma geral, uma antropologia dos afetos est prxima daquilo que Viveiros de Castro (2002, 2009) vem propondo: a antropologia seria um experimen-to que envolve uma dimenso de fico, e que assume para si a tarefa de tomar as ideias indgenas como conceitos (2002:123). Como j ressaltado, conceito comporta duas outras dimenses, as do afeto e do percepto, indispensveis para o movimento, para o devir (Deleuze 2007).

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    Resumo

    Este artigo volta-se simetricamente para profissionais de sade que atuam em con-textos indgenas, elaborando as seguintes perguntas: O que acontece com profissio-nais de sade que se veem diretamente relacionados a concepes diferenciadas de corpo, sade e doena? O que sucede quando as prticas de sade se do num processo de traduo da prpria concei-tuao do que seja sade? De que forma esses profissionais so afetados por essa experincia com a alteridade radical? Na busca de refletir sobre essas indaga-es, o texto se detm nas histrias de uma mdica e de uma enfermeira, destacando motivos constantes em suas narrativas, que nos contam algo sobre limitaes, limites e processos de traduo. O cenrio descrito talvez possa matizar a percepo de uma biomedicina homognea e de profissionais de sade exclusivamente vinculados ao poder sempre envoltos em relaes reificadas e reificadoras.Palavras-chave Sade indgena, Inter-medicalidade, Traduo, Antropologia dos afetos.

    Abstract

    The present article symmetrically deals with health professionals who work in indigenous contexts, developing the following questions: what happens to health professionals who find themselves directly relating to different conceptions of body, health and disease? What hap-pens when health practices take place in the context of the process of translating the very concept of health itself? How are these professionals affected by the experience of contact with radical oth-erness? In seeking to reflect upon these questions, we focus upon the stories of a doctor and a nurse, highlighting points contained in their narratives which tell us something about constraints, limits and translation processes. The scenario described here might temper belief in a homogeneous biomedicine and health-care professionalism that is exclusively rooted in power: always wrapped in rei-fied and reifying relations.Key words Indigenous health, Inter-medicality, Translation, Anthropology of affect.