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Foucault por uma análise pragmáti ca do dis curso Rosane da Conceição Pereira Mestranda em Comunicação, Imagem e Informação UFF Resumo Este trabalho apresenta uma abordagem do discurso como prática, com as noções foucaultianas de campo discursivo (dados históricos) e formação discursiva (enunciados de um saber). Concerne igualmente á tematização dos discursos no âmbito das práticas sociais e atos de fala. Elementos inclusos no paralelo possível entre Análise do Discurso e Pragmática, no que diz respeito à valorização da linguagem em uso e em seu aspecto social. Abrange o rompimento entre essas duas disciplinas, em relação á intenção de comunicar. Culmina, enfim, ria definição do que seja uma análise pragmática do discurso, em que a prática discursiva social, em Michel Foucault, malgrado um certo apoio na perspectiva da Pragmática quanto ao uso e ao aspecto social da lingua- gem, não supõe a intencionalidade consciente do sujeito. O discurso/ ato. como parte da complexidade do processo comunicacional e como é aqui explanado. não pressupõe a expectativa social nem a exclusividade desta esfera. Está submetido ao devir da história. Possui antes o poder de edificar os estados de coisas e os regimes de verdade, que o de representá-los. Introdução  (...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (M ichel Foucualt, A ordem do discurso, 1996. 10 9

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  • Foucault: por uma anlisepragmtica do discurso

    Rosane da Conceio PereiraMestranda em Comunicao, Imagem e Informao

    UFF

    Resumo

    Este trabalho apresenta uma abordagem do discurso como prtica,com as noes foucaultianas de campo discursivo (dados histricos) eformao discursiva (enunciados de um saber). Concerne igualmente tematizao dos discursos no mbito das prticas sociais e atos de fala.Elementos inclusos no paralelo possvel entre Anlise do Discurso ePragmtica, no que diz respeito valorizao da linguagem em uso e emseu aspecto social. Abrange o rompimento entre essas duas disciplinas,em relao inteno de comunicar. Culmina, enfim, ria definio doque seja uma anlise pragmtica do discurso, em que a prticadiscursiva social, em Michel Foucault, malgrado um certo apoio naperspectiva da Pragmtica quanto ao uso e ao aspecto social da lingua-gem, no supe a intencionalidade consciente do sujeito. O discurso/ato. como parte da complexidade do processo comunicacional e como aqui explanado. no pressupe a expectativa social nem a exclusividadedesta esfera. Est submetido ao devir da histria. Possui antes o poderde edificar os estados de coisas e os regimes de verdade, que o derepresent-los.

    Introduo"(...) o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os

    sistemas de dominao, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder doqual nos queremos apoderar."

    (M ichel Foucualt, A ordem do discurso, 1996. 10)

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  • O presente trabalho consiste em uma abordagem do discurso em seucarter de acontecimento, de atividade, sob uma anlise pragmtica efoucaultiana. Ser o esforo de mostrar a linguagem em uso como umaespcie de ato instaurador. Como prtica discursiva social que produz ed suporte aos regimes de verdade, dos quais decorrem as expectativassociais e os estados de coisas.

    A primeira parte da abordagem ser dedicada a delimitar o discursocomo prtica, confrontando a perspectiva da Anlise do Discurso com ade Michel Foucault. Procurar apresentar o que o filsofo traz de novopara sua antiga filiao acadmica, com as noes de campo e formaodiscursivos. Em seguida, a segunda parte, concernente s prticas soci-ais e atos de fala, traar um paralelo entre a Anlise do Discurso e aperspectiva da Pragmtica, quanto ao uso e ao aspecto social da lingua-gem, distanciando as duas disciplinas respectivamente da Lingstica edo Positivismo Lgico. Trar, como ponto evidente de divergncia en-tre as duas disciplinas anteriormente associveis, a inteno de comuni-car presente na Pragmtica. Por fim, a terceira parte definir a anlisepragmtica do discurso, correspondente tomada do discurso como pr-tica, ou linguagem em uso como uma espcie de ato produtor. Contu-do, ser esclarecido que a prtica discursiva social, a despeito da contri-buio da Pragmtica, em Foucault, no supe a inteno de comunicarconsciente do sujeito, uma vez que est submetida ao devir histrico.Nem tampouco pressupe a esfera social e a primazia desta.

    O discurso ser ento compreendido como aquilo que, muito mais doque documentar ou representar, tem o poder de edificar ou construir.

    1 - Foucault e a Anlise do Discurso: o discurso como prticaO que analisar um discurso e como faz-lo sem incorrer em uma

    mera anlise literria ou numa teoria hermtica destacada da realidade?Preocupado com questes nada ingnuas corno essa, um grupo de estu-diosos franceses comeou a pensar a linguagem e a comunicao segun-do suas condies de produo, especialmente com os significantes quepem e regem os sentidos, as relaes sociais e os sujeitos. Provenien-te de um grupo de estudos formado basicamente por Michel Pcheux,Fany Gadet, Paul Henry e sobretudo Michel Foucault, e inspirada nasteorias de Zellig Harris em 1940-50, a decorrente Anlise do Discursofoi considerada politicamente perigosa para sua poca (1969), justamen-te porque se propunha a intervir na esfera social'. Mas o que seria um

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  • discurso do ponto de vista da Anlise do Discurso? No seria a /angue(lngua) nem aparo/e (fala) estudadas pelo lingista Saussure. Mais doque um objeto formal restrito a um sistema estruturado por regras inter-nas, o discurso entendido, todavia, como urna instncia de constituioentre a langue e aparo/e. No por menos que Foucault o define comoconjuntamente formado pelo carter lingstico dos fatos de linguagem,e pelo jogo estratgico e polmico inerente histria dos domnios desaber relacionados s prticas sociais. Corno jogo estratgico e polmi-co, o discurso envolve perguntas, respostas, dominaes, desvios e con-flitos em uma mesma esfera. E atravs do discurso que os domnios desaber (como a medicina, a escola, a religio, o jornalismo, a publicida-de e o cinema) engendram (e so sustentados pelas) prticas sociais(como o tratamento mdico, a educao, a catequese, a suposta docu-mentao da verdade, a persuaso para o consumo e a criao de olha-res, respectivarnente). 2 De maneira geral, o discurso ento concebidocorno a linguagem em uso, assumida pelo sujeito que fala, mediante agnese que a condiciona no rnundo.Se acompanharmos Foucault acercado que um discurso, podemos dizer que: um enunciado que s ad-quire significao no contexto histrico-social e de acordo com o sujei-to, aquele que ocupa urna posio vazia na enunciao. Dizer que o su-jeito ocupa urna posio vazia afirmar que ele um efeito entreinterlocutores historicamente assinalveis, no sendo a fonte a priori dodiscurso - iluso do sujeito. Por conseguinte, o sentido do que enun-ciado pelo sujeito tambm um efeito, no havendo significao porcausa de um sujeito (que seria entendido, no caso, como indivduo) queinterprete, mas conforme as relaes de poder que se estabelecem nocontexto histrico-social e produzem o saber - iluso do sentido.

    Vale lembrar que iluso do sujeito e do sentido referem-se a formula-es de Michel Pcheux, analista do discurso, apoiado em Althusser.Para ambos o discurso um resultado histrico, fabricado, sem causadeterminstica. De modo que o sujeito efeito de relaes sociais cons-titudas historicamente, enquanto o sentido efeito de crenas que insti-tuem verdades. No entanto, Althusser concebe uni sujeito ideolgicoque pode ocupar posies ideolgicas diferentes, no necessariamenteantagnicas nem contraditrias. Pcheux. de sua parte, concebe o sujei-to como efeito ideolgico elementar. ou seja. corno aquele que possui ailuso de ser a fonte do sentido e do discurso na forma de prtica polti-ca passando pela ideologia. Por outro lado. Foucault no trabalha com

  • as noes de ideologia, sujeito ideolgico e sujeito como efeito ideol-gico elementar. Ao contrrio, ele critica parte da tradio acadmicamarxista, aquela ancorada na ideologia como discurso de encobrimentode uma verdade objetiva, como se fosse dada naturalmente. ParaFoucault, os textos so sempre vazios de sentido, isto , as palavras nun-ca significam em si nem literalmente. Por conseguinte, o sujeito dediscurso ou conhecimento, responsvel por ocupar necessariamente umaposio enunciativa em um mundo cujas instituies so constitudascom seus discursos ou enunciados.' O mrito da Anlise do Discurso,diferentemente da Lingstica, consiste em no postular que um sujeitopreexistente tem inteno de comunicar algo atravs de um sistema fe-chado de signos, a lngua. Uma abordagem foucaultiana do discursomostraria mesmo que ele construdo junto com a linguagem e a comu-nicao, medida que gere e sustente relaes macro (nucleares; soci-ais; institucionais) e micro (perifricas; de grupos exclusos; gestos;polissemias; no necessariamente humanas). O discurso como prticasocial e sua gnese (condies de produo) seriam, ento, parte do queFoucault melhor definiu como campo discursivo e formao discursiva.O campo sendo constitudo por todos os dados histricos em um certointervalo de tempo, a formao compreende todos os enunciados queapresentam pontos caractersticos de um saber, para alm damultiplicidade de objetos e autores de tais enunciados em tal perodo .4

    II - Anlise do Discurso e Pragmtica: prticas sociais e atos defala

    Conceber o discurso como linguagem em uso, assumida pelo sujeitofalante na esfera social, incita uma espcie de paralelo entre a Anlisedo Discurso e a Pragmtica. Paralelo que, no entanto, compreende algu-mas elucidaes fundamentais, a fim de eliminar uma aparente confusoentre uma e outra disciplina.

    No que diz respeito ao paralelismo sugerido, tanto a Anlise do Dis-curso quanto a Pragmtica empreendem o estudo da linguagem em usoem em seu aspecto social. Mas qualquer confuso nesse sentido se dis-sipa, exatamente, no que se refere s especificidades de cada uma emrelao ao uso e ao aspecto social da linguagem.

    Em primeiro lugar, em relao ao uso, os integrantes da Anlise doDiscurso mostraram distanciar-se da Lingstica ao abordarem a lingua-gem praticada pelo sujeito falante, ao ultrapassarem a viso das lnguas

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  • como objetos formais ou sistemas se signos descolados do mundo.` Osestudiosos da Pragmtica, por sua vez, constituram-na ao tomarem dis-tncia do Positivismo Lgico, ou seja, ao tratarem a linguagem como arealizao de atos de fala no contexto das lnguas, ao desconsiderarem alngua ideal fundada na representao de estados de coisas para a garan-tia do sentido.

    Os membros da Pragmtica (Austin e Searle notadarnente) tomam alinguagem como a realizao de atos e a lngua em uso, vinculada aocontexto (linguagem ordinria): enquanto aqueles do Positivismo Lgi-co (Russell e Frege eminentemente) tomam a linguagem como a repre-sentao de estados de coisas e a lngua como ideal (logicamente for-mal). vinculada ao sentido. Particularniente, os estudos de Austin emPragmtica possuem dois momentos fundamentais. No primeiro, eledistingue na linguagem ordinria enunciados chamados performativos(que so atos. como o ato de felicitar: "Felicidades!") e constatativos(que exprimem estados de coisas, como: "O ch est servido."). No se-gundo. ele admite que todos os enunciados so portadores de uma di-menso performativa para alm da puramente constatativa, de modo quehaveria trs atos em um mesmo enunciado: ato locutrio (o que dito:"A gente estamos estudando uma proposta."), ato ilocutrio (o que re-alizado ao dizer: a declarao sarcstica da professora Maria Cristinade Morais, presidente da Andes, acerca da greve nas universidades e emaluso ao futuro da educao no pas). e perlocutrio (o efeito do que realizado ao dizer: risos, indiferena, o assentimento ou a discordnciados leitores da revista Veja de 23/1 2/98. p. 17. em relao ao nada ing-nuo descuido vocabular da professora). Em segundo lugar. em relaoao aspecto social, a Anlise do Discurso. especialmente sob uma abor-dagem foucaultiana. a tentativa de inscrever a linguagem em uso pelosujeito (o discurso) no apenas no plano nuclear das instituies sociais.mas tambm no plano perifrico das relaes microfisicas entre e paraalm das instituies humanas . 7 A insero do discurso mais detida-mente no plano institucional, todavia, coube ao exame em Pragmtica,uma vez apoiada nos modelos do direito (contrato social entre emisso,contexto e recepo legtimos), do teatro (papis sociais) e do jogo (re-gras sociais constitutivas).' Mas o paralelismo traado at aqui entreAnlise do Discurso e Pragmtica desfaz-se. contudo. no que concerne aum elemento inerente s condies de produo do discurso: a intenode comunicar atravs da linguagem. O mesmo equivale a dizer que. no

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  • mbito da Anlise do Discurso, no possvel falar em intencionalidadedo sujeito. Isto, porque este no um indivduo preexistente ao discur-so que pretende enunciar, mas um "lugar", uma instncia vazia, somen-te preenchida depois que um indivduo interpelado a assumir umaidentidade (uma posio enunciativa nem sempre coincidente com seupapel na esfera social) a partir de sua enunciao que, portanto, o cons-titui enquanto o assujeita. Pelo vis da Pragmtica o sujeito falante eminente e preexiste ao campo social, cujas "condies de felicidade" -circunstncias pragmticas como: emisso, contexto e recepo legti-mos - viabilizam a comunicao e a realizao bem sucedida dos atosde fala.

    Neste momento da reflexo no h como discordar de DominiqueMaingueneau, em Novas tendncias em anlise do discurso, para o quala Anlise do Discurso ", com freqncia, reticente em relao prag-mtica, por apresentar certas incompatibilidades no que tange aos seusprprios pressupostos tericos. A dificuldade gira essencialmente emtomo da questo da subjetividade enunciativa: muitos trabalhos de ins-pirao pragmtica repousam sobre as 'intenes' de falantes cuja cons-cincia seria transparente e a identidade estvel, ultrapassando os diver-sos 'papis' que desempenham."9

    III - Foucault e a linguagem: uma anlise pragmtica

    do discursoUma anlise foucaultiana do discurso, certamente, consiste na apre-

    enso da linguagem em uso como um ato. Mas esta talvez a nica se-melhana patente com a abordagem da Pragmtica, uma vez que nem ainteno de comunicar nem a predeterminao e exclusividade do cam-po social so levadas em conta na obra do filsofo francs. Especial-mente se, maneira de Foucault, compreendermos o discurso como umato que efeito de relaes de foras inconscientes e, ao mesmo tempo,o elemento constitutivo de cada formao discursiva, produtor de novasexpectativas sociais, as quais configuram estados de coisas de um novocampo discursivo.

    Compreender o discurso como um ato que efeito de relaes deforas inconscientes tom-lo como um ato sem (para alm do) sujeito.Este no estudado por Foucault como fazem os integrantes da Pragm-tica, isto , nem como sujeito que comunica nem como indivduo ou co-letividade social. O discurso como ato, embora advenha de uma instn-

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  • cia vazia (sujeito) quando um indivduo assume uma posioenunciativa (uma identidade), no pode ser localizado absolutamentecomo ato do sujeito. mas de uma srie de fatores correlatos com o sabere o poder em questo. Por conseguinte, alm de no supor uni sujeito, odiscurso como ato autnomo tambm no supe um sentido absoluto.localizvel. E assim que o discurso sobre a mulher, por exemplo, emconformidade com os aspectos de pocas diversas, ora a pe como sub-missa e mantenedora do lar ora como algum que pode estudar, traba-lhar. decidir ter ou no filhos etc.. Podemos dizer que o saber sobre amulher foi engendrado por formaes de campos discursivos que aconcernem de tal ou qual modo, antes e depois do feudalismo, da expan-so comercial, do capitalismo, das duas guerras mundiais. Nunca pode-remos, entretanto, definir uni ponto preciso que assegure o sentido dado,muito menos um responsvel pelo discurso (ato) que constitua a mulherocidental em nosso exemplo.

    Acerca da vacuidade do sentido, Foucault assevera: "a anlise dodiscurso, assim entendida, no desvenda a universalidade de um senti-do ela mostra luz do dia o jogo da rarefao imposta, com um poderfundamental de afirmao. Rarefao e afirmao, rarefao, enfim, daafirmao e no generosidade contnua do sentido. e no monarquia dosignificante." 1 Mas o discurso como um ato , alm disso, o elementoconstitutivo de cada formao discursiva. produtor de novas expectati-vas sociais, as quais configuram estados de coisas de um novo campodiscursivo. Compreender o discurso como ato. indo alm da perspecti-va da Pragmtica, afirmar que ele no satisfaz expectativas sociaisprvias nem reproduz ou representa estados de coisas. Alm disso, ul-trapassando a perspectiva da Anlise do Discurso, aquela de Foucaultpostula que a linguagem em uso (o discurso) no d visibilidade a umaverdade oculta sob uma ideologia, por exemplo, mas torna visvel, arti-cula o mundo que nos dado a ver e para o qual, esquecendo esse mo-mento, passamos a olhar com naturalidade, como se fosse desde sempreassim e no submetido ao devir histrico. No por menos que no s-culo XIX os visionrios medievais seriam classificados como loucos econfinados, enquanto em nosso sculo so ditos indivduos reintegrveis sociedade. Antes da Idade Mdia. seguramente. esses "comportamen-tos desviantes" para os padres cientficos da normalidade posterior.no foram tornados visveis (criados) como problemticos. Foucault.em A histria da loucura, por exemplo, procura mostrar que unia certa

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  • objetivao da doena mental nasce junto com o olhar mdico e que aloucura como sintoma torna visvel a manifestao necessria e espec-fica de um mal, na forma de um caso dotado de um histrico particu-lar." Em termos foucaultianos, uma anlise "pragmtica" do discursoconsistiria na apreenso da linguagem em uso como um ato, que cria esustenta regimes de verdade inerentes a estados de coisas e expectativassociais posteriores. Os publicitrios, por exemplo, dedicam-se a produ-zir desejo de consumo ou a criar necessidades em seu pblico-alvo. Soclebres os exemplos como a vontade de beber Coca-Cola, depois deanunciado o produto; de vestir jeans e camiseta como smbolos de rebel-dia, aps os filmes de James Dean; de falar como as personagens dasnovelas etc.. O discurso no mais entendido, ento, como documento(representao) da realidade e sim como monumento (construo) desta.Antes que exprimir acontecimentos, ele o acontecimento. 12

    ConclusoEntender o discurso como prtica, pelo vis da Anlise do Discurso,

    apreend-lo entre a langue e aparole, como linguagem em uso, assu-mida pelo sujeito que fala e conforme a gnese que a configura no mun-do. afirmar que o sujeito surge junto com o sentido, no opreexistindo com a inteno de comunicar algo atravs de um sistemafechado de signos como a lngua. Tambm pensar, de acordo comFoucault, que o discurso formado pelo carter lingstico dos fatos delinguagem e por um jogo estratgico e polmico, relativo histria dosdomnios de saber correspondentes s prticas sociais. Igualmente, consider-lo como enunciado, portador de significao apenas em umcontexto histrico-social e segundo o sujeito, que ocupa uma posiovazia na enunciao. E compreender o sujeito de discurso ou conheci-mento corno responsvel por exercer uma posio enunciativa, em ummundo cujas instituies nascem com os discursos ou enunciados. Domesmo modo, conceber o sentido como efeito de relaes de poderconstitudas no contexto histrico-social, fabricando e mantendo um sa-ber; antes que definir o sentido como mero efeito do enunciado de umsujeito ideolgico ou como encobridor de qualquer verdade. Uma abor-dagem foucaultiana do discurso, assim, o considera como constitudo,ao mesmo tempo, com a linguagem e a comunicao, medida que gerae sustenta relaes maiores (nucleares; sociais; institucionais) e meno-res (perifricas; de grupos exclusos; gestos; polissemias; no necessari-

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  • amente humanas). O discurso como prtica social e sua gnese (condi-es de produo) fazem parte, enfim, de um campo discursivo - todosos dados histricos num certo intervalo de tempo - e de uma formaodiscursiva - todos os enunciados que se apresentam como pontos carac-tersticos de um saber.

    As prticas sociais e atos de fala dizem respeito a um certoparalelismo entre Anlise do Discurso e Pragmtica. Ambas estudam alinguagem em uso e em seu aspecto social. com

    algumasespecific

    idades. Quanto ao uso. a Anlise do Discurso difere da Lu]-

    gstica, tomando a linguagem praticada pelo sujeito falante edesconsiderando as lnguas como objetos formais ou sistemas de sigilosdestacados do mundo. Enquanto a Pragmtica difere do PositivismoLgico, tratando a linguagem como a realizao de atos de fala 110 con-texto das lnguas e desprezando uma lngua ideal apoiada na representa-o de estados de coisas que assegurem o sentido. Em relao ao aspec-to social, urna abordagem foucaultiana da Anlise do Discurso tenta ins-crever a linguagem em uso pelo sujeito (o discurso) no plano perifricodas relaes microfsicas entre e para alm das instituies humanas.Por outro lado, a Pragmtica marcada pela insero do discurso noplano institucional, com base em modelos do direito (contrato entreemisso, contexto e recepo legtimos), do teatro (papis sociais) e dojogo (regras sociais constitutivas). Mas. a inteno de comunicar atra-vs da linguagem, inerente s condies de produo do discurso. oponto de divergncia entre a Anlise do Discurso e a Pragmtica. AAnlise do Discurso no observa a intencionalidade do sujeito, porqueeste no uni indivduo preexistente ao discurso que enunciar, mas uni"lugar'. uma instncia vazia, preenchida s depois que um indivduo chamado a assumir urna identidade (posio enunciativa nem sempreidntica a seu papel social), de maneira que sua enunciao, simultane-amente. o constitui e o assujeita. A Pragmtica. por seu turno, supe aintencionalidade do sujeito falante, o qual eminente e preexiste esfe-ra social, cujas circunstncias pragmticas (emissores, contexto e recep-tores legtimos) tornam vivel a execuo bem sucedida dos atos de falae a comunicao.

    Uma anlise pragmtica do discurso corresponde apreenso do dis-curso como prtica, ou linguagem em uso como uma espcie de ato.No interior destas consideraes apoiadas no pensamento de Foucault.ultrapassando a perspectiva da Pragmtica, o discurso no supe a

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  • intencionalidade do sujeito, uma vez que de natureza histrica e in-consciente e no se associa predeterminao nem exclusividade daesfera social. Este discurso como ato efeito de relaes de foras in-conscientes, ou seja, um ato sem (para alm do) sujeito, j que no podeser localizado absolutamente como ato do sujeito, pois decorre de fato-res correlacionados ao saber e ao poder em questo. Como ato autno-mo, o discurso no supe tambm um sentido absoluto, localizvel, ob-jetivo, dado naturalmente. O discurso como ato , alm disso, aquiloque constitui cada formao discursiva e produz expectativas sociaisnovas que circunscrevem estados de coisas de um campo discursivonovo. Indo alm da perspectiva da Pragmtica, o discurso como ato(prtica social) no satisfaz expectativas sociais prvias de forma a re-presentar ou reproduzir, de fato, estados de coisas. Indo alm da pers-pectiva da Anlise do Discurso, o discurso como ato (prtica de instau-rao em sentido amplo) no d visibilidade a uma verdade encobertapor uma ideologia, tomando visvel (articulando) a realidade que nos dada a ver e para a qual lanamos nosso olhar, projetando-a como natu-ral, sem considerarmos o seu devir histrico ou o momento de sua ins-taurao.

    O discurso, a linguagem em uso como uma espcie de ato produtor, aprtica discursiva social, enfim, possui o poder de criar e sustentar regi-mes de verdade relacionados a posteriores estados de coisas e expectati-vas sociais. Antes que documentar a realidade (representacionalismo),a prtica discursiva social a edifica (construtivismo). Em outras pala-vras, sob a anlise pragmtica aqui explanada, o discurso muito maisum acontecimento que uma expresso deste.

    Notas

    Hak, T. & Gadet, F. (orgs.). Por uma Anlise Automtica do Dis-curso. Uma Introduo Obra de Michel Pcheux. So Paulo:UNICAMP, 1969. Pp. 13-38.

    2 A definio foucaultiana do discurso pode ser encontrada na Confe-rncia 1, realizada pelo filsofo na PUC, entre 21 e 25/05/73:

    "H alguns anos foi original e importante dizer e mostrar que o queera feito corri a linguagem - poesia, literatura, filosofia, discurso em ge-

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  • ral - obedecia a uni certo nmero de leis ou regularidades internas - asleis e regularidades da linguagem. O carter lingstico dos fatos de liii-guageni foi uma descoberta que teve importncia em determinada po-ca.

    Teria ento chegado o momento de considerar esses fatos de discur-so, no mais simplesmente sob seu aspecto lingstico, mas, de certaforma - e aqui me inspiro nas pesquisas realizadas pelos anglo-america-nos - como jogos (games), jogos estratgicos, de ao e de reao, depergunta e de resposta, de dominao e de esquiva, como tambm deluta. O discurso esse conjunto regular de fatos lingusticos eni deter-minado nvel, e polmicos e estratgicos em outro ( ... ).' - Cf. Foucault,Michel. A verdade e as formas jurdicas. Rio de Janeiro: Nau Editora,1996. p.9.

    A crtica de Foucault ideologia como o ocultamento de uma su-posta verdade objetiva, dada naturalmente, fica patente na chamada"fase arqueolgica do saber", com a eliminao do binmio cincia/ide-ologia em sua obra. Esta fase prima pelo exame do discurso como umtodo simultanearnente presente, contextual (sincrnico), com suas modi-ficaes histricas, sucessivamente no tempo (diacrnicas). Nas pala-vras do prprio Foucault:

    "as condies polticas, econmicas de existncia no so um vuou um obstculo para o sujeito de conhecimento mas aquilo atravs doque se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as rela-es de verdade. S pode haver certos tipos de sujeito de conhecimen-to, certas ordens de verdade, certos domnios de saber a partir de condi-es polticas que so o solo em que se formam o sujeito, os domniosde saber e as relaes com a verdade. S se desembaraando destesgrandes temas do sujeito de conhecimento, ao mesmo tempo originrioe absoluto, utilizando eventualmente o modelo nietzscheano, poderemosfazer uma histria da verdade." (Foucault, Michel, op. cit., p. 27).

    'Quanto s consideraes de Pcheux sobre Althusser, cf. "Sujeito,discurso e ideologia." iii Hak, T. & Gadet, F. (orgs.), op. cit., p. 30-34.

    'Quanto relao saber-poder, que se estabelece em meio a forma-es e campos discursivos, a seguinte afirmao de Foucault se faz con-dizente: "Tem-se o hbito de ver na fecundidade de um autor, namultiplicidade dos comentrios, no desenvolvimento de uma disciplina,como que recursos infinitos para a criao dos discursos. Pode ser, masno deixam de ser princpios de coero e provvel que no se possa

    um

  • explicar seu papel positivo e multiplicador, se no se levar em conside-rao sua funo restritiva e coercitiva." (Foucault, Michel. A ordemdo discurso. So Paulo: Loyola, 1996. Pp. 36). Aqui, o filsofo deslo-ca a referncia da noo de indivduo psicolgico (autor/intrprete) paraa noo de sujeito (produtor/assujeitado), cuja natureza da ordem dodiscurso, que o constitui ao mesmo tempo em que constitudo.

    6 Hak, T. & Gadet, F. (orgs.), op. cit.Para uma distino mais detalhada entre as duas temticas, cf.

    Austin, J. L. Quand dire, c'est faire. Paris: Seuil, 1970.8 Esse alargamento das consideraes de Foucault sobre o discurso

    alm do plano institucional , como segue, evidenciado pelo prprio fi-lsofo: "O desejo diz: 'Eu no queria ter de entrar nesta ordem arrisca-da do discurso; no queria ter de me haver com o que tem de categricoe decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparncia cal-ma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; euno teria seno de me deixar levar, nela e por ela, como um destroo fe-liz.' E a instituio responde: 'Voc no tem por que temer comear;estamos todos a para lhe mostrar que o discurso est na ordem das leis;que h muito tempo se cuida de sua apario; que lhe foi preparado umlugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, de ns, s de ns, que ele lhe advm.'

    Mas pode ser que essa instituio e esse desejo no sejam outra coi-sa seno duas rplicas opostas a uma mesma inquietao: inquietaodiante do que o discurso em sua realidade material de coisa pronunci-ada ou escrita; inquietao diante dessa existncia transitria

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  • destinada a se apagar sem dvida, mas segundo uma durao que nonos pertence; inquietao de sentir sob essa atividade, todavia cotidi-ana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imagina; inquietao desupor lutas, vitrias, ferimentos, dominaes, servides, atravs detantas palavras cujo uso h tanto tempo reduziu as asperidades."(Foucault, Michel. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 1996.Pp. 7-8).

    Sobre a insero do discurso no plano institucional, exposta emPragmtica, o seguinte trecho mostra-se pertinente: "Durante muitotempo a AD tomou como objeto os corpus por ela apreendidos inde-pendentemente dos atos de enunciao que os haviam tornado poss-veis. Ao proceder assim, no tinha o intuito de negligenciar as 'cir-cunstncias', o 'quadro' de enunciao, mas por entender tais fatosmais como um conjunto de elementos moduladores do que como umadimenso constitutiva do discurso. Atesta esta situao a maneiracomo era utilizada a noo de instituio: se a lngua era reconhecidacomo uma instituio, o mesmo no ocorria com o discurso. E sobre-tudo atravs das questes dos atos de fala que uma concepo diferen-te emergiu. Apoiando-se em modelos emprestados do direito, do tea-tro ou do jogo, a pragmtica tentou inscrever a atividade da linguagemem espaos institucionais." (Maingueneau, Dominique. Novas ten-dncias em anlise do discurso. Campinas, SP: Pontes/UNICAMP,1989. P. 29).

    Maingueneau, D., op. cit., p. 32. Foucault, Michel. A ordem dodiscurso. So Paulo: Loyola, 1996. P. 70.

    Cf. Foucault, Michel. A histria da loucura. So Paulo: Pers-pectiva, 1978. A propsito da crena no poder de explicao e classi-ficao da cincia, que associada poltica pode conduzir o homem aafastar-se de outros indivduos singulares, Machado de Assis mostra,em O Alienista, como a cincia revela o no sentido da mente humanae do funcionamento da sociedade.

    Simo Bacamarte - a personagem principal que encorpora o esp-rito cientfico e cuja ambio era erradicar a loucura de ltagua e domundo a ttulo de caridade - busca e no consegue um critrio paraenquadrar a loucura; a ponto de internar radicalmente o povo da vilaquase inteira, solt-lo e, por fim, internar-se a si mesmo.

    No conto de Machado, a loucura e a sanidade fluem ao sabor dasrelaes afetivas, sociais e polticas envolvidas:

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  • "Trs dias depois, numa expanso ntima com o boticrio CrispimSoares, desvendou o alienista o mistrio do seu corao.

    - A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento,mas entra como tempero, como o sal das coisas, que assim que inter-preto o dito de S. Paulo aos Corntios: 'Se eu conhecer quanto sepode saber, e no tiver caridade, no sou nada'. O principal nesta mi-nha obra da Casa Verde estudar profundamente a loucura, os seusdiversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fe-nmeno e o remdio universal. Este o mistrio do meu corao.Creio que com isto presto um bom servio humanidade.

    ( ... ) Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cercade cinqenta aclamadores do novo governo. ( ... )

    ( ... ) Da em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem nopodia dar nascena ou curso mais simples mentira do mundo, aindadaquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que no fosselogo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enig-mas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os cu-riosos da vida alheia, os que pem todo o seu cuidado na tafularia, umou outro almotac enfunado, ningum escapava aos emissrios doalienista. ( ... )

    ( ... ) E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que fi-cou a vila, ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos serpostos na rua.

    ( ... ) Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessetemeses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcanar nada.Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco,alm dele, em Itagua; mas esta opinio, fundada em um boato quecorreu desde que o alienista expirou, no tem outra prova, seno oboato; e boato duvidoso, pois atribudo ao padre Lopes, que comtanto fogo realara as qualidades do grande homem. Seja como for,efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade." - Cf. "Oalienista" in Alves, Roberto (seleo e apresentao). Contos escolhi-dos. Rio de Janeiro: KlicklO Globo, s.d. (Col. Livros-17). Pp. 42,72, 74, 76 e 86.

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  • 2 No que diz respeito concepo contempornea do discurso,Foucault assinala: "H, sem dvida, em nossa sociedade e, imagino,em todas as outras mas segundo um perfil e facetas diferentes, umaprofunda logofobia, urna espcie de temor surdo desses acontecimen-tos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados,de tudo o que possa haver ai de violento, de descontnuo, decombativo, de desordem, tambm, e de perigoso, desse grande zumbi-do incessante e desordenado do discurso.

    E se quisermos, no digo apagar esse temor, mas analis-lo emsuas condies, seu jogo e seus efeitos, preciso, creio, optar por trsdecises s quais nosso pensamento resiste uni pouco, hoje em dia, eque correspondem aos trs grupos de funes que acabo de evocar:questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu carterde acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante."(Foucault, Michel. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 1996.p. 50-51).

    Bibliografia

    ALVES, Roberto (seleo e apresentao). Contos escolhi-dos. Rio de Janeiro: Klick/O Globo, s. d. (Gol. Livros-17).

    AUSTIN, J. L. Quand dire c 'es! faire. Paris: Seuil, 1970.

    FOUCAULT, Michel. A histria da loucura. So Paulo: Perspecti-va, 1978.

    A ordem do discurso. So Paulo: Loyola,1996.

    A verdade e as formas jurdicas. Rio deJaneiro: Nau Editora, 1996.

    HAK, T. & GADET, F. (orgs.). Por uma anlise automtica dodiscurso. Uma introduo obra de Ivfchel Pcheux. SoPaulo: UNICAMP, 1969.

    M ING U EN EA U, Dom i iii que. Novas tendncias em anlisedo discurso. Campinas, SP: Pontes/UN ICAMP, 1989.

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  • A revista contracampo permanecefiel ao propsito de estabeleceraberto dilogo entre as maisdiferentes abordagens nos camposda comunicao contempornea,conformando assim o necessrioespao para os debatestransdisciplinares.Neste terceiro nmero, a novidademaior fica por conta do incio dapublicao de artigos de alunos, o querepresenta passo decisivo para acompleta integrao dos corposdocente e discente do curso deMestrado em Comunicao,Imagem e Informao daUniversidade Federal Fluminense.

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