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5/11/2018 Perec,emdesenvolvimento-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/perec-em-desenvolvimento 1/16 O efeito de real em  Éspéces d’espaces : da descrição e seus absurdos. Henrique de Oliveira Lee 1 1. Introdução A pergunta teórica que move este trabalho surgiu de uma breve mas curiosa menção que se encontra na contracapa de uma edição inglesa intitulada: Species of Space and other pieces. Tal edição é a primeira aparição do trabalho de George Perec 2 em língua inglesa, nela, John Sturrock, tradutor e crítico inglês, apresenta o livro como: “(..) essa generosa seleção da obra não-ficcional de Perec (…)” 3 . O que há de curioso nessa menção é o fato de que ela afirma - ou se preferirmos, sugere - um estatuto não-ficcional  para Espèces d’espaces de George Perec, bem como para outros de seus trabalhos. O foco de interesse incide aí não tanto na questão da exatidão ou a coerência dos critérios classificatórios que John Sturrock utiliza ao definir  Espèces como uma não-ficção, mas muito mais na surpresa que esta forma de classificar proporciona. E através desta surpresa, a constatação das possibilidades de problematização que esta obra oferece do  próprio estatuto do ficcional. O livro  Espèces d’espaces , enceta questionamentos sobre os estratos que sustentam a oposição binária entre discursos ficcionais e referenciais, e entre narração e descrição. Assim como boa parcela da literatura contemporânea, o livro de Perec encontra-se num certo regime de inclassificabilidade quanto às questões de gênero. 1 Doutorando em Literatura Comparada, UFMG, bolsista FAPEMIG. 2  Georges Perec nasceu no ano de 1936, em Paris, e morreu em Ivry, 46 anos depois. Viveu em Paris na maior parte de sua vida. Seu pai lutou na Segunda Grande Guerra e foi morto em 1940. Sua mãe morreu em Auschwitz e Perec, órfão aos 6 anos, foi criado por parentes próximos. 3 Contracapa.

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O efeito de real em  Éspéces d’espaces: da descrição e seus absurdos.

Henrique de Oliveira Lee1

1. Introdução

A pergunta teórica que move este trabalho surgiu de uma breve mas curiosa

menção que se encontra na contracapa de uma edição inglesa intitulada: Species of Space

and other pieces. Tal edição é a primeira aparição do trabalho de George Perec 2 em

língua inglesa, nela, John Sturrock, tradutor e crítico inglês, apresenta o livro como: “(..)

essa generosa seleção da obra não-ficcional de Perec (…)”3. O que há de curioso nessa

menção é o fato de que ela afirma - ou se preferirmos, sugere - um estatuto não-ficcional

 para Espèces d’espaces de George Perec, bem como para outros de seus trabalhos. O foco

de interesse incide aí não tanto na questão da exatidão ou a coerência dos critérios

classificatórios que John Sturrock utiliza ao definir  Espèces como uma não-ficção, mas

muito mais na surpresa que esta forma de classificar proporciona. E através desta

surpresa, a constatação das possibilidades de problematização que esta obra oferece do

 próprio estatuto do ficcional.

O livro   Espèces d’espaces, enceta questionamentos sobre os estratos que

sustentam a oposição binária entre discursos ficcionais e referenciais, e entre narração e

descrição. Assim como boa parcela da literatura contemporânea, o livro de Perec

encontra-se num certo regime de inclassificabilidade quanto às questões de gênero.

1 Doutorando em Literatura Comparada, UFMG, bolsista FAPEMIG.2 Georges Perec nasceu no ano de 1936, em Paris, e morreu em Ivry, 46 anos depois. Viveu em Paris namaior parte de sua vida. Seu pai lutou na Segunda Grande Guerra e foi morto em 1940. Sua mãe morreu emAuschwitz e Perec, órfão aos 6 anos, foi criado por parentes próximos.3 Contracapa.

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Certamente, o que há de inclassificável nesses textos da literatura contemporânea não é

nenhum caráter intrínseco, ou algo que possa ser pensado fora da relação com os modos

de classificação através da qual uma certa tradição de teoria literária demarcou e

classificou o espaço artístico da literatura.

Em outro livro,  Pensar Classificar , Perec argumenta que sua obra literária pode

ser dividida da seguinte forma:

Os livros que escrevi se associam com quatro campos diferentes, quatro modos de

interrogação formulados, e no fim das contas, a mesma pergunta. A primeira das

interrogações se pode qualificar como “sociológica”: como observar o cotidiano; ela deu

origem a textos como   As coisas,   Espécies de Espaços; a segunda é de ordem

autobiográfica: W ou a memória das coisas, A boutique obscura, Eu me lembro, Lugares

onde já dormi, etcétera; a terceira, lúdica, remete a meu gosto pelas restrições, pelas

 proezas, pela “gama”, por todos os trabalhos pelos os quais as investigações do OuLiPo

me deram a idéia e os meios: palíndromos, lipogramas, pangramas, anagramas,

isogramas, acrósticos, palavras cruzadas, etcétera; a quarta, por último, concerne ànovela, ao gosto por histórias e por peripécias, ao desejo de escrever livros que se

devorem de bruços na cama; A vida modo de usar é um exemplo típico dele.

Esta divisão é algo arbitrária e poderia ser muito mais precisa: quase nenhum de meus

livros escapa de todo a certa marca autobiográfica (por exemplo, somente inserir ilusões e

acontecimentos cotidianos no capítulo que estou escrevendo); quase nenhum, de outra

forma, deixa de recorrer às restrições estruturais “oulipiana”. 4 

Perec, ao comentar sua própria obra, relaciona o  Espéces de espaces com um tipo

de indagação que ele denomina sociológica, forneceria justificativas para que se

4 PEREC. p. 11

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classifique essa obra como não-ficcional, assim como proposto por John Sturrock, tal

modo de classificar parece confirmar a hipótese de Wolfgang Iser 5, segundo a qual o

ficcional seria definido pelo saber tácito como aquilo cujo atributo de realidade se

encontra ausente. Ainda assim, a afirmação de Sturrock nos leva à seguinte pergunta:

como a descrição está relacionada aos atributos de realidade?

Uma parte considerável das primeiras correntes teórico-críticas, entre elas o

formalismo russo, dedicaram-se à tentativa de delimitar os aspectos formais da

literaridade do literário6. Essas tentativas de definir o objeto literário, muitas vezes

 baseando-se em aspectos imanentes ao texto (e transcendentes no que diz respeito aoscontextos históricos culturais), nos fornecem um bom exemplo de como a descrição teria,

 por certas vezes, sido tomada como o avesso daquilo que pertenceria ao campo literário.

Iuri Lotman, teórico comprometido com a leitura estruturalista do formalismo

russo, em sua formulação sobre a estrutura do texto artístico, coloca grande ênfase na

função modelizante do espaço e da representação espacial no texto artístico. Pois o

espaço é, dentro deste modelo teórico, uma condição de possibilidade da ocorrência de

um acontecimento no texto literário.

O acontecimento no texto é o deslocamento da personagem através da fronteira do campo

semântico. (…) Mas na medida em que, ao lado de uma disposição semântica geral do

texto, há lugar também para disposições locais, de que cada um tem a sua fronteira

conceptual, o acontecimento pode ser realizado como uma hierarquia de acontecimentos

de planos mais particulares, como uma cadeia de acontecimentos, isto é, como uma

trama.7 5 Ver ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. p. 96 LIMA. A teoria da literatura em suas fontes vol.I p. 197 LOTMAN. A estrutura do texto artístico p. 379

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 No esquema proposto por Lotman, o acontecimento e, por conseqüência, a trama,

são os dois operadores que caracterizam o texto literário. Faz-se necessário um

movimento de transgressão das fronteiras dos campos semânticos dispostos no texto

literário para ocasionar a emergência do acontecimento, e as cadeias de acontecimentos

constituem uma trama. Mas para compreender o funcionamento do texto com trama,

Lotman recorre primeiramente à compreensão do texto sem trama. Os modelos a que

Lotman recorre para exemplificar o texto sem trama são: o mapa, o calendário e a lista

telefônica, pois tratar-se-iam de textos cujo espaço de distribuição dos objetos é regido pela funcionalidade classificatória, portanto, sem acontecimento. “Os textos sem trama

têm um caráter nitidamente classificador, eles afirmam o mundo e sua disposição”.8 

 Nota-se que há uma associação dos textos sem trama com textos de vocação

descritiva. Uma descrição “pura” seria aquela em que todos os elementos descritos

encontrariam-se em um mesmo nível de privilégio do ponto de vista da representação,

 portanto não há perspectiva, não há diferenciação entre figura e fundo, o que excluiria

necessariamente a idéia de trama, já que esta se dá a partir da hierarquização dos

acontecimentos . Além disso, subjaz a idéia de que essas afirmações de estado de mundo,

essas descrições “puras” não possuem “intencionalidade”, no sentido de que não há o

  posicionamento de uma perspectiva. No entanto, esta definição logo se revela

inadequada, como se a aleatoriedade não pudesse ser pensada também enquanto uma perspectiva intencionada. Todavia, o que seria importante reter disso por ora é o esforço

empreendido por Lotman para definir estes elementos estruturais, o “acontecimento” e a

“trama”, que caracterizariam um texto literário.

8 LOTMAN. p. 384

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Vale mencionar, para uma compreensão mais clara da forma como esses

elementos estruturais são compostos, os desdobramentos do exemplo do mapa. Um mapa

é um texto sem trama, mas se nele for acrescido uma seta ou uma marca, poderíamos

falar de um acontecimento, e, talvez, dos rudimentos de uma trama. Pois já haveria aí

estratificação de campos que fazem emergir os elementos mínimos para o

estabelecimento de uma trama. Para Lotman, “o texto com trama constrói-se na base do

texto sem trama enquanto negação deste”9.

Dessa forma, se utilizarmos os elementos estruturais propostos por Lotman como

 balizas de leitura para pensar a “ficcionalidade” ou a “literarialidade” em  Éspèces deespaces,  os resultados serão no mínimo surpreendentes. O que parece ser apenas a

descrição da aleatoriedade absurda dos espaços, sem acontecimento e sem trama, sofre

uma sutil transformação ao longo do livro: pois acúmulo de descrições formam séries

heterogêneas, de modo que própria heterogeneidade passa a ser um acontecimento. Ou

seja, uma “trama” se produz em  Espèces d’espaces através da saturação e do “fracasso”

da tentativa de empreender uma descrição exaustiva que apenas afirme o mundo e sua

disposição. Se “a trama é um elemento revolucionário relativamente à imagem do

mundo”10, então podemos concluir que ela se constrói de maneira paradoxal em  Espèces

d’espaces pois é na tentativa de ser o mais “fiel” possível a uma certa “imagem de

mundo”, através de sua descrição mesma, que Perec acaba por introduzir nela um

“elemento revolucionário”.Os inumeráveis exercícios de descrição conduzem sempre a uma espécie de

malogro, pois eles resultam quase sempre impossíveis de serem levados efetivamente a

9 LOTMAN p. 38510 LOTMAN p. 386

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cabo. Entretanto, esses exercícios precipitam a emergência da problematização da

disposição da fronteiras fixas dos espaços e objetos a serem descritos. As séries

descritivas levam ao questionamento da sensação de obviedade e evidência que cerca a

nossa experiência com o espaço, e com isso sublinha-se o caráter imaginário dessa

experiência.

Simulacre d’espace, simple prétexte à nomenclature: mais il n’est pas nécessaire

de fermer les yeux pour que cet espace suscité par les mots, ce seul espace de

dictionnaire, ce seul espace de papier, s’anime, se peuple, se remplisse.11 

 Nossa hipótese é que os procedimentos de escrita presentes em  Espèces d’espaces

subvertem os estratos que sustentam a oposição binária entre discursos ficcionais e

referenciais, e entre narração e descrição. Pois ao empreender o que parece ser simples

descrição e nomeação dos espaços, as noções mais básicas e óbvias começam a ser 

colocada em xeque. O objeto da descrição, por momentos é o próprio espaço do texto, o

que força a uma revisão da noção de descrição, pois nestes momentos não há objeto

referencial ou extraliterário a ser descrito, mas descreve-se o espaço mesmo onde a

descrição está acontecendo. Perec empreende tentativas de exaurir as formas de utilização

do espaço da Página. Muitas vezes de modo lúdico, outras atribuindo funções simples à

escrita, porém pouco habituais. Como no capítulo dedicado ao espaço da página:

de gauche d à droite

e

11 PEREC p. 27

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h

a

u

t

e

n

b

a

s 12 

 Nesse mesmo capítulo, Perec faz a primeira referência direta a Borges citando o Aleph.

L’aleph, ce lieu borgésien ou lê monde entier est simultanément visibel, est-il autre chose

qu’un alphabet?13

O alfabeto é um conjunto limitado que contem em si as possibilidades de um

universo ilimitado, o Aleph. Assim também, pensarímos com Perec, do espaço limitado

das páginas podem emergir infinitas possibilidades de mundo.

Via de regra os procedimentos descritivos aparecem associados a discursos

referenciais e miméticos. Mas é interessante notar que o tipo de mimese realizada por 

12 PEREC. Espèces d’espaces . p. 2213 PEREC. Espèces d’espaces . p. 26

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Perec é distinta daquela cujo sentido é comumente atribuído a essa noção. Vemos aí algo

que poderíamos chamar de uma “mimese prospectiva”, ao invés de uma mímese

retrospectiva. Ela é prospectiva no sentido em que não há primazia ontológica do objeto,

do referencial a ser descrito, sobre a descrição, mas a descrição é simultânea ao objeto, ao

referente, senão que é, antes, através da descrição que o referente passa a existir. A

descrição performativa presente em  Espèces d’espaces lembra a injunção apontada por 

Foucault em “O pensamento exterior” como fundante do discurso literário: “eu falo” que

 pode ser desdobrado em “eu falo que falo”. De modo análogo, a mimese prospectiva de

Perec poderia ser resumida no enunciado “eu estou descrevendo uma descrição”.

2- Descrição e ilusão referencial

Parece-nos, após as considerações desenvolvidas sobre o estatuto da descrição em

 Espèces d’espaces, que Sturrock, ao classificar o livro de Perec dessa maneira, foi vítima

da armadilha daquilo que Barthes chamou a “ilusão referencial”.

Vamos procurar retratar aqui as relações entre os textos descritivos e a noção deilusão referencial, explicitada por Barthes em vários momentos de seu trabalho de análise

estrutural da narrativa, mas principalmente em um artigo chamado “O efeito de real”.

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A análise estrutural da narrativa tem por objetivo descobrir a função e o papel dos

diversos elementos do tecido narrativo. Dessa forma, Barthes procurou isolar alguns

elementos, de modo geral aqueles que forneciam as grandes articulações narrativas, por 

exemplo, que situavam pontos de mudança, os  shifters, que apontavam para uma escolha

narrativa que alterava irreversivelmente o seu destino. Por vezes, ele isola os elementos

estruturantes da temporalidade da narrativa.

  Na tentativa de sistematizar as possibilidades de função estrutural desses

elementos do tecido narrativo Barthes se deparou com alguns campos de exclusão,

 pormenores inúteis e supérfluos (com relação à estrutura). Esses pormenores inúteis são,invariavelmente, trechos de descrição, Barthes refere-se a eles como “luxo da narração”

que não fazem avançar em nada a informação narrativa. Apesar do caráter inútil, Barthes

reconhece nesses pormenores um fator inquietante e enigmático:

 (...) assim fica sublinhado o caráter enigmático de qualquer descrição, a respeito

da qual é preciso dizer uma palavra. A estrutura geral da narrativa, aquela, pelo

menos, que até agora tem sido analisada aqui e ali, aparece como essencialmente

 preditiva; esquematizando ao extremo, e sem levar em conta os numerosos

desvios, atrasos, reviravoltas e decepções que a narrativa impões

institucionalmente a esse esquema. (...) Bem diferente é a descrição: não tem

qualquer marca preditiva; “analógica”, sua estrutura é puramente somatória e não

contem esse trajeto de escolhas e alternativas que dá a narração um desenho de

vasto dispatching , dotado de uma temporalidade referencial (e não mais apenas

discursivas). (…) A descrição aparece assim como uma espécie de próprio das

linguagens ditas superiores, na medida, aparentemente paradoxal, em que ela não

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se justifica por nenhuma finalidade de ação e comunicação. A singularidade da

descrição (ou do pormenor inútil) no tecido narrativo, a sua solidão, designa uma

questão de maior importância para a análise estrutural das narrativas. É a

seguinte questão: tudo, na narrativa, seria significante, e senão, se subsistem no

sintagma narrativo alguns intervalos insignificantes, qual é, definitivamente, se

assim se pode dizer a sua significância?14

A descrição figura para Barthes como um tipo de estrutura paratáxica, ou seja, na

qual não há hierarquia de elementos, apenas uma somatória. Enquanto para Lotman a

hierarquia entre os elementos presentes num texto é de vital importância para

caracterização da trama, Barthes vê neste tipo de linguagem não hierarquizada, na qual a

descrição está contida, uma “linguagem superior”.

Segundo Barthes, a descrição nem sempre foi subordinada ao realismo tal como

na literatura moderna. Uma certa tradição da descrição sobreviveu desde a Idade Média

na qual “não havia nenhum acanhamento em colocar leões e oliveiras numa região

nórdica; a verossimilhança aqui não é referencial, mas abertamente discursiva: são as

regras genéricas do discurso que fazem a lei”.15 Perec parece avançar em direção a essa

mesma constatação em certos momentos de Espèces:

 Nous vivons dans l’espace, e dans ces espaces, dans ces villes, dans ces

campagnes, dans ces couloir, dans ces jardins. Cela nous semble évident. Peut-

être cela devrait-il être effectivement évident Mais cela n’est pas évident, cela

ne va pas de soi. C’est réel, évidemment, et par conséquence, c’est

14 BARTHES. O efeito de real. p. 183-18415 BARTHES. O efeito de real. p. 185

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vraisemblablement rationnel. On peut toucher. On peut même se laisser aller à

rêver. Rien, par exemple, ne nous empêche de concevoir des choses qui ne seront

ni des villes ni des campagnes (ni de banlieues), ou bien des couloirs de

métropolitain qui seraient en même temps des jardin. Rien ne nous interdit non

 plus d’imaginer un métro en pleine campagne (…) 16 

A evidência do espaço é contestada. Apesar do caráter real e verossimilhante das

descrições dos espaços que habitamos, as leis do discurso não impedem que imaginemos

outras disposições espaciais. Portanto, vemos aqui um sutil deslocamento da preocupação

com a disposição dos objetos e do espaço em direção a um questionamento dos limites da

linguagem.

E curiosamente, assim como Barthes nota o “efeito de real” através de certos

elementos sem função do ponto de vista da estrutura narrativa, é através de um

experimento da tentativa de descrição de um espaço inútil que Perec alcança uma

conclusão chave para compreensão de todo o experimento com a linguagem que está

sendo empreendido em Espèces d’espaces.

Il m’a été impossible, en dépit des mes efforts, de suivre cette pensée, cette

image, jusqu’au bout. Le langage lui-même, me semble-t-il, s’est avéré

inapte à décrire ce rien, ce vide, comme si l’on pouvait parler que de ce qui

est plein, utile et fonctionnel.17

16 PEREC. Espèces d’espaces . p. 14 (grifo nosso)17 PEREC. Espèces d’espaces . p. 66

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Apesar da existência empírica de tal espaço inútil ser perfeitamente possível e até

verossimilhante, do ponto de vista discursivo, o texto de Perec aponta para a dificuldade

em imaginar e descrever o nada, o inútil, aquilo que não tem função. Para descrever o

não-funcional esbarra-se em algumas limitações da linguagem que parece constituída, ao

ver de Perec, de modo a poder falar do pleno, do útil, e do funcional.

Ao acompanharmos o deslocamento efetuado em Espéces, dos objetos a serem

descritos, para as leis do discurso que tornam possíveis as descrições, e cotejamos

 juntamente com as questões ligadas à funcionalidade da linguagem vislumbramos o que

Barthes chamou de “ilusão referencial” e como ela se liga às linguagens descritivas:através da ilusão mesma de que uma notação é inútil ou insignificante do ponto de vista

da estrutura da narrativa. Ao tentar empreender uma descrição pura, como nos vários

exercícios de descrição citados por Perec, somos levados a acreditar que é possível que

um objeto seja denotado por uma única palavra, quando na verdade o signo puro não

existe, os itens do apartamento que Perec relaciona não existem em si mesmos, mas são

situados num sintagma ao mesmo tempo referencial e sintático.

 No momento mesmo em que se julga denotarem tais detalhes diretamente do real,

nada mais se faz, de maneira escamoteada, do que significá-los.

É a categoria do real (e não os seus conteúdos contingentes) que é significada;

noutras palavras é a própria carência de significado em proveito só do referente

torna-se um significante mesmo do realismo: produz-se um efeito de real,

fundamento dessa verossimilhança inconfessa que forma a estética de todas as

obras correntes da modernidade.18 

18 BARTHES. O efeito de real. p. 190

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A aparente ausência de sentido e função do objeto descrito no conjunto do tecido

narrativo, como se ele fosse apenas citado para referir-se a uma certa concretude, é o

truque retórico que engendra o “efeito de real”.

 No romance A vida modo de usar , realiza-se um inventário exaustivo de todos os

habitantes do prédio. “Um inventário que – pelo excesso de ordenação e detalhamento – 

acaba também por perder sua própria eficácia enquanto procedimento taxonômico diante

da proliferação excessiva dos objetos e detalhes que se acumulam enquanto “materiais da

vida” dos personagens”19

. Já no livro  Pensar/Classificar , Perec dedica-se a umateorização não-convencional de classificação mostrando sua fixação por listas, glossários,

índices e várias modalidades de ordenação do mundo. Em suas palavras:

Lamentavelmente não funciona, nunca funcionou, nunca funcionará. O que não impedirá

que sigamos durante muito tempo classificando os animais pelo seu número ímpar de

dedos ou por seus chifres ocos.20 

Dessa forma, os exercícios descritivos e classificatórios de Perec, marcados

sempre pelo malogro, abrem questionamentos sobre o estatuto da ficcionalidade e da

representação, assim como parte da literatura da arte contemporânea dedicada à

serialização: os inventários, os conjuntos, as séries fragmentárias, as colagens. Talvez

todas essas expressões provoquem uma contestação do valor referencial, introduzindo a

dimensão necessariamente ficcional de qualquer discurso, em oposição ao saber tático

que considera, de maneira inversa, o ficcional como um sub-tipo de discursivo.

19 MACIEL. p. 1520 PEREC. Pensar/Classificar. p. 111

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O ficcional aí não comparece como “contrário de realidade”, mas no seu aspecto

de invenção, artefato, algo fabricado. Estes questionamentos, abertos pela literatura de

Perec, tomam contornos mais nítidos quando os situamos em relação a uma tradição de

 pensamento que apostou na vocação descritiva da ciência, na possibilidade de criar um

texto “neutro”, que apenas afirme uma disposição de mundo, como ideal científico. Esta

noção de descrição participa de uma “epistemologia da recognição” e da descoberta, ao

contrário, os procedimentos de Perec apontam para uma noção de descrição que

 participaria de uma “epistemologia da invenção”.

Talvez o que tenha escapado a John Sturrock seja esta sutileza ficcional de Espéces d’espaces, sutil como uma pequena seta em um mapa. É no procedimento de

levar às últimas conseqüências o imperativo descritivo de uma “epistemologia da

recognição”, que Perec demonstra a inescapável relação da descrição com o ficcional.

Absurdo também explorado por Borges em um texto que poderia ter valor de epígrafe

 para este artigo, mas que preferimos deixar como a última palavra:

... Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal perfeição que o mapa duma só

Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Com o

tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos

levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto por 

  ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes

entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às

inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste subsistem despedaçadas

Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo o País não resta outra

relíquia das disciplinas geográficas.21

21 BORGES p. 311

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MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas. Rio de Janeiro. Lamparina Editora, 2004.

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