PERCEPÇÕES DE ESTRANGEIROS SOBRE A CULTURA...
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UNIVERSIDADE TECNOLGICA FEDERAL DO PARAN
DEPARTAMENTO ACADMICO DE COMUNICAO E EXPRESSO
DEPARTAMENTO ACADMICO DE LNGUAS ESTRANGEIRAS MODERNAS
LICENCIATURA EM LETRAS PORTUGUS-INGLS
GISELE DOS SANTOS DA SILVA
PERCEPES DE ESTRANGEIROS SOBRE A CULTURA
BRASILEIRA DURANTE O CURSO DE PORTUGUS PARA
FALANTES DE OUTRAS LNGUAS DA UTFPR
TRABALHO DE CONCLUSO DE CURSO
CURITIBA
2012
GISELE DOS SANTOS DA SILVA
PERCEPES DE ESTRANGEIROS SOBRE A CULTURA
BRASILEIRA DURANTE O CURSO DE PORTUGUS PARA
FALANTES DE OUTRAS LNGUAS DA UTFPR
Trabalho de Concluso de Curso apresentado
como requisito parcial obteno do ttulo de
Licenciado em Letras Portugus-Ingls, do
Departamento Acadmico de Comunicao e
Expresso e do Departamento Acadmico de
Lnguas Estrangeiras Modernas, da Universidade Tecnolgica Federal do Paran.
Orientadora: Profa. Dra. Miriam Sester
Retorta.
CURITIBA
2012
TERMO DE APROVAO
PERCEPES DE ESTRANGEIROS SOBRE A CULTURA BRASILEIRA DURANTE O
CURSO DE PORTUGUS PARA FALANTES DE OUTRAS LNGUAS DA UTFPR
por
GISELE DOS SANTOS DA SILVA
Este Trabalho de Concluso de Curso (TCC) foi apresentado em 05 de junho de 2012 como
requisito parcial para a obteno do ttulo de Licenciado em Letras Portugus-Ingls. A
candidata foi arguida pela Banca Examinadora composta pelos professores abaixo assinados.
Aps deliberao, a Banca Examinadora considerou o trabalho aprovado.
Miriam Sester Retorta
Profa. Orientadora
Ana Valria Bisetto Bork
Membro titular
Maristela Pugsley Werner
Membro titular
- O Termo de Aprovao assinado encontra-se na Coordenao do Curso -
Ministrio da Educao
Universidade Tecnolgica Federal do Paran
Campus Curitiba
Diretoria de Ensino
Coordenao de Curso de Graduao - Licenciatura
Letras Portugus-Ingls
Ao meu amigo e fiel companheiro, Jorginho,
por me fazer sorrir nos momentos difceis,
estando sempre ao meu lado durante a
trajetria desse trabalho, mas que,
infelizmente, no resistiu aos ltimos passos
dessa jornada.
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas estiveram ao meu lado durante essa etapa de minha vida, ajudando-
me a concretizar esse sonho. Meus sinceros agradecimentos
Miriam S. Retorta, minha orientadora, amiga, conselheira e guia. Pessoa dedicada,
que ama sua profisso e que faz de seus alunos seus filhos. Por ser a mo amiga nos
momentos tristes e felizes, por estar sempre disposta a ajudar. Agradeo imensamente por
confiar em meu trabalho e por me mostrar o caminho a seguir.
Aos meus companheiros e amigos da primeira turma de Letras da UTFPR, pelo
apoio e amizade nos momentos de alegria e de angstia; por serem minha segunda famlia
durante esses quatro anos.
A todos os professores do curso de Letras, do DACEX e do DALEM, pela dedicao
e pelos ensinamentos que, juntos, cada um em sua rea especfica, me ensinaram a ter uma
viso crtica sobre o mundo que est a minha volta e me levaram a seguir a carreira docente.
s professoras Marcia R. Becker e Ana Valria B. Bork, por tornarem realidade o
meu desejo de aprender ingls; pela contribuio no curso de PFOL e por darem incio ao
Grupo de Estudos de PFOL, dando subsdios para a realizao desse trabalho.
professora Regina H. U. Cabreira, por todo o cuidado, carinho e amizade durante
esses anos; por me ensinar a refletir sobre as questes da vivncia humana e sobre mim
mesma a partir do estudo das literaturas inglesa, irlandesa e norte-americana; por nos
confortar nos momentos de desespero e por chamar nossa ateno nas horas de exacerbao.
Ao meu pai e minha me, alicerces da minha vida, pelo amor, o apoio e a
compreenso durante essa jornada. E, acima de tudo, por viverem esse sonho junto comigo.
minha famlia, pelo incentivo.
Aos meus sobrinhos, Rafael, Gustavo, Felipe e Thiago, por compartilharem o esprito
da infncia comigo.
Aos colegas de Letras e professores, que participaram e dividiram a experincia de
ensinar portugus como lngua estrangeira no curso de PFOL da UTFPR.
s colegas Valria S. Queiroz e Mariana Galli, pelas barreiras enfrentadas e pelo
trabalho maravilhoso que, juntas, conseguimos desenvolver na turma de PFOL do primeiro
semestre de 2011.
Ao Departamento Acadmico de Lnguas Estrangeiras Modernas, por me acolher
durante dois anos e por proporcionar o meu primeiro contato com a sala de aula durante a
graduao, ao participar do curso de PFOL.
Aos alunos do curso de Portugus para Falantes de Outras Lnguas da UTFPR, pela
contribuio para a realizao dessa pesquisa.
Agradeo, ainda, a todas as pessoas queridas que conheci na UTFPR, entre elas os
colegas de outros perodos do curso de Letras, os companheiros do PIBID-Ingls e demais
professores.
Muitas vezes, contudo, preferimos viver na
iluso de um mundo homogneo, sem conflitos, sem diferenas, sem movimento; (...).
(JORDO, Clarissa Menezes, 2007)
verdade que voc pode ser um exilado de
alguma espcie, mas sua alma est abrigada.
Ocorre um estranho fenmeno quando a
pessoa tenta se adequar e no consegue.
Muito embora a criatura diferente seja
rejeitada, ela ao mesmo tempo empurrada
para os braos dos seus verdadeiros
companheiros psquicos, quer se trate de uma
linha de estudo, de uma forma de arte, quer de um grupo de pessoas.
(ESTS, Clarissa Pinkola, 1994)
RESUMO
SILVA, Gisele dos Santos da. Percepes de estrangeiros sobre a cultura brasileira
durante o curso de Portugus para Falantes de Outras Lnguas da UTFPR. 2012. 88
pginas. Trabalho de Concluso de Curso de Licenciatura em Letras Portugus-Ingls -
Universidade Tecnolgica Federal do Paran. Curitiba, 2012.
Esse Trabalho de Concluso de Curso (TCC) teve por objetivo analisar como a cultura
brasileira percebida por outros pases, de acordo com as atitudes e discursos de alunos
estrangeiros do curso de Portugus para Falantes de Outras Lnguas (PFOL) da Universidade
Tecnolgica Federal do Paran. Tais atitudes apresentam averso para com outras culturas e a
percepo cultural estereotipada do Brasil. Nessa pesquisa, procurou-se investigar se o ensino
de Portugus como Lngua Estrangeira adotado durante o curso de PFOL corroborou para que
os alunos construssem uma nova percepo sobre os brasileiros ou se suas percepes
continuaram sendo estereotipadas. Em outras palavras, por meio de pesquisa-ao, verificou-
se a eficcia do curso em proporcionar um espao para que esses estrangeiros, a maioria com
atitudes iniciais xenfobas, aceitassem, entendessem e respeitassem a cultura brasileira. Sendo
assim, esse estudo examinou se o ensino de Portugus para Falantes de Outras Lnguas,
baseado na abordagem do letramento crtico, transformou as atitudes e discursos xenfobos
em relao a diferentes culturas, presenciados em sala de aula, em atitudes de afeto, respeito e
empatia, e como essa mudana possibilitou aos alunos a autopercepo como indivduos que
interagem e agem com determinado grupo scio-histrico, cultural e ideolgico.
Palavras-chave: Portugus lngua estrangeira. Percepes culturais. Esteretipos. Xenofobia. Letramento crtico.
ABSTRACT
SILVA, Gisele dos Santos da. Foreigners perceptions of Brazilian culture in the Portuguese for Speakers of Other Languages course at UTFPR. 2012. 86 pages. Trabalho
de Concluso de Curso de Licenciatura em Letras Portugus-Ingls - Federal University of
Technology - Paran. Curitiba, 2012.
The objective of this extended paper is to analyze how Brazilian culture is perceived by other
countries, according to attitudes and discourses of foreign students in the Portuguese for
Speakers of Other Languages course at the Federal University of Technology - Paran. These
attitudes show aversion to other cultures, and the stereotyped cultural perception of Brazil.
We intended to investigate whether the teaching of Portuguese as a Foreign Language adopted
during the course corroborated to students construction of a new perception of
Brazilians or if their perceptions continued being stereotyped. In other words, through action
research, we verified the efficacy of the course because it provided a space for these
foreigners, mostly with initial xenophobic attitudes, to accept, understand and respect the
Brazilian culture. Therefore, this study examined whether the teaching of Portuguese for
Speakers of Other Languages, based on the critical literacy approach, transformed the
xenophobic attitudes and discourses related to different cultures seen in the
classroom into attitudes of affection, respect and empathy and how these exchange
students were able to perceive themselves as individuals who interact and act within a
particular socio-historical, cultural and ideological group.
Keywords: Portuguese as a foreign language. Cultural perceptions. Stereotypes. Xenophobia. Critical literacy.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Pressupostos do letramento crtico ...................................................................... 37
Quadro 2 - Instrumentos de coleta de dados ......................................................................... 47
SUMRIO
1 INTRODUO ............................................................................................................... 12
2 O PORTUGUS PARA FALANTES DE OUTRAS LNGUAS NO BRASIL: A SALA
DE AULA COMO UM LUGAR DE REFLEXO SOBRE A RELAO ENSINO E
PODER ............................................................................................................................. 14
2.1 O ENSINO DE PLE NO CENRIO BRASILEIRO ....................................................... 14
2.2 O LUGAR DA CULTURA BRASILEIRA NO CURSO DE PORTUGUS PARA
FALANTES DE OUTRAS LNGUAS ................................................................................ 15
2.2.1 Afinal, o Que Cultura? Uma Revisitao do Conceito ............................................... 15
2.2.2 Linguagem, Identidade Cultural e a Relao de Poder ................................................. 18
2.2.3 O Pas do Futebol, do Carnaval e do Samba: Repensando o Esteretipo Brasileiro ...... 21
2.2.4 O Ensino de Lngua Como Ensino de Cultura .............................................................. 27
2.3 SITUAES XENFOBAS: QUANDO O COTEJO CULTURAL CHEGA SALA DE
AULA DE PFOL ................................................................................................................. 28
2.3.1 Da Rejeio Adorao: os Conceitos de Xenofobia e de Xenofilia ............................ 29
2.3.2 A Cultura de Meu Pas Melhor de que a Cultura de Seu Pas!: o Estranhamento
Cultural na Sala de Aula....................................................................................................... 30
2.4 LETRAMENTO CRTICO E A TRANSFOMAO DA AVERSIVIDADE NO CURSO
DE PFOL ............................................................................................................................. 34
3 O DESENHO E A METODOLOGIA DE PESQUISA .................................................. 40
3.1 A ESCOLHA DA METODOLOGIA DE PESQUISA .................................................... 40
3.1.1 Pesquisa Qualitativa .................................................................................................... 40
3.1.2 Pesquisa-ao .............................................................................................................. 41
3.1.2.1 Fases da pesquisa-ao ............................................................................................. 43
3.2 CENRIO: O ENSINO DE PORTUGUS PARA FALANTES DE OUTRAS LNGUAS
NA UTFPR .......................................................................................................................... 45
3.3 SUJEITOS DA PESQUISA ........................................................................................... 46
3.4 PROCEDIMENTOS E COLETA DE DADOS............................................................... 47
3.4.1 Turma de PFOL do Primeiro Semestre de 2011 ........................................................... 48
3.4.2 Turma de PFOL do Segundo Semestre de 2011 ........................................................... 50
4 ANLISE DE DADOS E RESULTADOS ..................................................................... 51
4.1 EU QUERO O ESPREMEDOR DE LIMO .............................................................. 51
4.1.1 Dirio de Observaes ................................................................................................. 51
4.1.2 Prova-diagnstico ........................................................................................................ 55
4.1.3 Questionrio de Percepes Iniciais ............................................................................. 56
4.1.4 Questionrio Avaliativo do Curso de PFOL ................................................................. 58
4.1.5 Questionrio de Percepes Iniciais e Finais ................................................................ 60
4.2 A VISO COMPLETAMENTE DIFERENTE: EU DIRIA QUE H VRIOS
BRASILS ENTRELAAMENTO DE DADOS E RESULTADOS ................................. 64
5 CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 69
REFERNCIAS ................................................................................................................. 71
APNDICE A - Prova-diagnstico .................................................................................... 73
APNDICE B - Questionrio avaliativo do curso de PFOL ............................................ 78
APNDICE C - Questionrio de percepes iniciais e finais ........................................... 81
APNDICE D - Questionrio de percepes iniciais ........................................................ 85
12
1 INTRODUO
Comumente, ao se deparar com o outro, com o diferente, grande parte das
pessoas demonstra estranhamento e averso quilo que pouco sabe a respeito ou no conhece.
Esse pode ser o estranho fenmeno citado por stes (1994)1 na epigrafe desse trabalho: em
certas situaes, o sujeito pode se sentir um exilado de alguma espcie por no conseguir se
adaptar ao diferente. Assim, a sada encontrar algo que o faa se sentir acolhido. Essa
atitude de rejeio ao estranho est presente em todas as partes do mundo, independentemente
de etnia, idade, posio social, sexo ou religio. Quando o diferente se trata de outro povo e
sua cultura, a situao pode gerar conflitos e indisposio.
Considerando a proposio anterior, neste Trabalho de Concluso de Curso (TCC),
analisou-se a viso de alunos estrangeiros de uma turma do curso de Portugus para Falantes
de Outras Lnguas (PFOL), da Universidade Tecnolgica Federal do Paran (UTFPR)
Cmpus Curitiba, sobre a cultura e a nao brasileira, antes e aps o contato destes com a
lngua portuguesa e com o seu contexto social de uso. Em geral, no incio de cada semestre do
curso de PFOL, alguns alunos apresentam certa averso no s lngua e cultura brasileira,
como tambm lngua e cultura de alguns dos outros pases com os quais j tenham tido
contato. Paralelamente a esse fato, estes tambm chegam ao pas com uma viso do indivduo
brasileiro ligada a esteretipos difundidos internacionalmente. Ao entrarem em contato com
as pessoas e os costumes de nosso pas, muitas vezes os intercambistas se deparam com o
diferente que, por sua vez, se afasta do esteretipo conhecido, ocasionando situaes de
cotejo cultural e xenofobia, situaes essas que so notadas em sala de aula.
Sendo assim, quando atitudes xenfobas por parte dos alunos so percebidas, o
professor precisa adaptar seu trabalho para preparar os aprendizes para o confronto com todo
e qualquer tipo de diferena que possam encontrar no convvio social, encarando este
confronto como uma situao positiva e construtiva, no apenas como algo que precisa ser,
necessariamente, extinto. Uma maneira de se alcanar esse objetivo est calcada no
letramento crtico. Segundo Souza (2011, p. 01), partindo do conceito de letramento crtico, o
confronto gerado pela aproximao e justaposio de culturas e povos diferentes no mundo
globalizado poderia ser solucionado se todas as partes envolvidas nos conflitos tentassem ler
1 STES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histrias do arqutipo da mulher
selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 234.
13
criticamente suas posturas, procurando compreender suas prprias posies e as de seus
adversrios (...).
Dessa maneira, tem-se como objetivo maior neste trabalho, averiguar se no final de
um semestre letivo do curso de PFOL houve a transformao do ponto de vista dos alunos em
relao s diferenas do outro, ou seja, verificar se as atitudes que no incio eram sinais de
repulsa e xenofobia se transformaram em atitudes de empatia com relao ao Brasil e sua
cultura, aps uma prtica embasada no letramento crtico.
Para isso, no captulo 2, alm de uma breve contextualizao do ensino de Portugus
para Falantes de Outras Lnguas no cenrio brasileiro, so apresentadas as teorias e os
principais conceitos que do sustentao s informaes e problemtica analisada no
decorrer desse trabalho, como a apresentao do que se entende por xenofobia, xenofilia e
etnocentrismo; as questes de identidade cultural, carter nacional e ralao de poder; a
discusso do que ensinar lngua como cultura; a reflexo a formao de esteretipos sobre
uma cultura; alm da descrio das premissas que compe a abordagem do letramento crtico,
que ir orientar essa pesquisa.
J no captulo 3, encontra-se a explicao das fases das metodologias adotadas
pesquisa qualitativa e pesquisa-ao e o porqu da escolha dessas metodologias; o cenrio
da pesquisa, que o curso de PFOL da UTFPR Cmpus Curitiba e os sujeitos da pesquisa.
Tambm so apresentados detalhadamente os procedimentos de coleta de dados, por meio de
questionrios e dirio de observaes.
No captulo 4, realiza-se a anlise dos dados coletados por meio do entrelaamento
das informaes obtidas, justificando-as segundo a abordagem do letramento crtico e as
questes que envolvem o ensino de lngua como cultura. Destacam-se ainda os resultados
encontrados durante o entrelaamento e anlise de dados.
Por fim, no captulo destinado s consideraes finais, a problemtica e o objetivo
desse estudo so retomados, destacando-se as constataes referentes s possveis
transformaes proporcionadas pela prtica de ensino adotada no curso de PFOL da UTFPR
para o grupo de alunos estrangeiros, no que diz respeito relao e compreenso da cultura
brasileira, assim como em relao mudana das situaes de estranhamento presenciadas em
sala de aula, resultando em um ambiente de respeito e interao entre diferentes culturas.
14
2 O PORTUGUS PARA FALANTES DE OUTRAS LNGUAS NO BRASIL: A SALA
DE AULA COMO UM LUGAR DE REFLEXO SOBRE A RELAO ENSINO E
PODER
Neste captulo, ser apresentada, primeiramente, uma breve contextualizao do
ensino de Portugus Lngua Estrangeira (PLE) no Brasil e, logo em seguida, sero abordadas
as implicaes a respeito da cultura, como, por exemplo, a questo da identidade, do carter
nacional, do cotejo cultural e de esteretipos, em um vis de ensino de lngua como cultura no
curso de Portugus para Falantes de Outras Lnguas (PFOL). E ainda, sero apresentadas as
premissas da abordagem de letramento crtico para o ensino de lnguas estrangeiras e como
essa abordagem ser relacionada problemtica desse Trabalho de Concluso de Curso.
2.1 O ENSINO DE PLE NO CENRIO BRASILEIRO
Antes de se tratar especificamente de como acontece o ensino de Portugus para
Falantes de Outras Lnguas (PFOL)2 na UTFPR, importante rememorar como a lngua
portuguesa passou a ser ensinada como uma Lngua Estrangeira em nosso pas e como essa
rea acadmica vem ganhando espao no Brasil e em alguns outros pases, tornando-se um
campo promissor para futuras pesquisas.
Voltando-se para os primrdios de nosso pas, na poca em que o Brasil passa a ser
colonizado pelos portugueses, tm-se indcios das primeiras manifestaes do ensino de
portugus para falantes de outras lnguas. Os ndios que aqui habitavam e tinham sua prpria
lngua indgena (Tupi ou Tupinamb) foram catequizados pelos jesutas, aprendendo o
portugus como uma segunda lngua. Logo em seguida, com a fundao do Colgio de
Salvador em 1550, o portugus passou a ser ensinado no colgio e por padres (ALMEIDA
FILHO, 2011).
2 Aqui, adotou-se a nomenclatura Portugus para Falantes de Outras Lnguas (PFOL) tendo em vista que o
ensino do Portugus Brasileiro tambm pode se destinar a alunos brasileiros que no tem o portugus como
primeira lngua (por exemplo, alunos brasileiros que vivem em regies fronteirias, mas no falam o portugus
como lngua materna, sendo esta, ento, aprendida como segunda lngua; ou ainda, alunos de comunidades
indgenas que falam uma lngua indgena e aprendem portugus como uma L2 ).
15
No entanto, somente em 1957 se deu incio a um curso especfico para o ensino de
Portugus como Lngua Estrangeira, na Universidade Catlica do Rio Grande do Sul,
juntamente com a criao de um material didtico direcionado a esta rea, este intitulado O
Ensino de Portugus para Estrangeiros3, de Mercedes Marchand. Este seria o primeiro
material didtico destinado ao ensino de PLE criado e utilizado no Brasil.
Em seguida, na dcada de 60, o ensino de Portugus adentra as universidades
estadunidenses, impulsionando a produo de outro manual didtico, o livro Modern
Portuguese4, criado por uma equipe que reunia especialistas do ensino de lnguas norte-
americanos e brasileiros, dentre eles o linguista aplicado Francisco Gomes de Matos.
Na dcada seguinte, em 1976, registra-se a implantao de dois novos cursos de PLE
na Unicamp e na USP. Mesmo assim, s na segunda metade dos anos 80 que surge a
primeira coletnea de artigos sobre o ensino de PLE5, organizada pelo professor doutor em
lingustica aplicada, Jos Carlos Paes de Almeida Filho. J no limiar dos anos 90, no decorrer
do II Seminrio Nacional de Lingustica Aplicada, funda-se a Sociedade Internacional para o
Portugus Lngua Estrangeira (SIPLE). No mesmo ano, em 1993, implanta-se o Celpe-Bras,
Exame de Proficincia em PLE, conforme conjecturas comunicativas de ensino de lnguas,
marcando um passo diante no estudo e ensino de PLE no Brasil. Todo esse processo
possibilitou maior visibilidade da rea de especializao em PLE no s em nosso pas, como
tambm no exterior, tornando-se essa uma rea cada vez mais desenvolvida e promissora no
ensino de lnguas.
2.2 O LUGAR DA CULTURA BRASILEIRA NO CURSO DE PORTUGUS PARA
FALANTES DE OUTRAS LNGUAS
2.2.1 Afinal, o que Cultura? Uma Revisitao do Conceito
3 O material didtico O Ensino de Portugus para Estrangeiros, de Mercedes Marchand, foi publicado pela
editora sul-rio-grandense Editora Sulina, em 1957.
4 O projeto para a elaborao do livro Modern Portuguese teve incio em 1966, em Austin, na Universidade do
Texas, com o apoio da Modern Language Association of America, tendo como principais autores Fred P. Ellison
e Francisco Gomes de Matos.
5 ALMEIDA FILHO, JCP e LOMBELLO, LC. O ensino de Portugus para estrangeiros: pressupostos para o
planejamento de cursos e elaborao de materiais. Campinas: Pontes Editores, 1989.
16
No campo do ensino de Lngua Estrangeira, a questo cultural se faz quase sempre
presente, ocasionando debates e reflexes a respeito de sua importncia e de seu lugar no
processo de ensino e aprendizagem. Contudo, para se pensar em cultura preciso, primeiro,
delimitar o que se entende por este conceito. Vrias so as vises de cultura difundidas,
apresentando diferentes caractersticas de acordo com a rea de especializao. Temos, ento,
o conceito de cultura defendido pelos psiclogos, pelos antroplogos, pelos socilogos, pelos
linguistas e assim sucessivamente. Destacar-se-, a seguir, vises de alguns estudiosos a
respeito do conceito de cultura.
Primeiramente, a origem do termo cultura, como apontam Ortz lvarez; Santos
(2010, p.194) de acordo com os estudos de Chau (1997), este vem do verbo latino colere que
indica cultivar, cuidar, tomar conta de, podendo ser relacionado com o homem em relao
natureza - por exemplo, a agricultura -, ou o homem em relao ao culto religioso culto aos
deuses.
Numa viso antropolgica, encontramos a famosa concepo introdutria de Tylor,
como aponta Geertz (1989, p. 14), em que a cultura seria o todo mais complexo; ou ainda, a
tentativa de definio do termo posta por Clyde Kluckhohn6 apresentadas sob os seguintes
itens como:
(1) o modo de vida global de um povo; (2) o legado social que o individuo
adquire do seu grupo; (3) uma forma de pensar, sentir e acreditar; (4) uma
abstrao do comportamento; (5) uma teoria elaborada pelo antroplogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente; (6) um celeiro de
aprendizagem em comum; (7) um conjunto de orientaes padronizadas para os
problemas recorrentes; (8) comportamento aprendido; (9) um mecanismo para a
regulamentao normativa do comportamento; (10) um conjunto de tcnicas para
se ajustar tanto ao ambiente externo como em relao aos outros homens; (11) um
precipitado da histria.
Calcado nessas duas caracterizaes, o antroplogo Geertz (1989) apresenta sua
perspectiva sobre o significado de cultura, em que aponta princpios essencialmente
semiticos de uma teoria interpretativa do termo, em que cultura indicaria teias de
significao. Posto isso, ao acreditar que o homem um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, Geertz (1989, p.15) assume a cultura como sendo essas
teias e suas anlises; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas
como uma cincia interpretativa, procura do significado. Essa viso da teoria interpretativa
6 A famosa frase de E.B. Tylor e os onze itens que definem cultura para Clyde Kluckhohn so citados por
Clifford Geertz em sua obra A Interpretao das Culturas (1989).
17
de cultura de Geertz (1989) est, ainda, relacionada com a prtica etnogrfica. Prtica essa
que acontece por meio de estabelecimento de relaes, a seleo de informantes, transcrio
de textos, levantamento genealgicos, mapeamento de campos, utilizao de dirio, entre
outros procedimentos.
Por outro lado, numa concepo vigotskiana de cultura, essa pode ser entendida
como um aspecto inerente ao processo de transformao do homem sendo este considerado
um ser histrico que se d por meio da interao desse com o social, sendo assim a cultura
algo integrante da natureza de cada pessoa. Em outras palavras, na viso psicolgica de
Vigotsky, o aspecto cultural parte integrante do processo de desenvolvimento humano, j
que a dinmica interna presente nas relaes pessoais totalmente mediada pela cultura
(ORTIZ; SANTOS, 2010).
Apesar de todas essas noes sobre cultura apresentadas anteriormente serem
vlidas, para este trabalho foi adotado o conceito de cultura proposto por Kramsch (1998, p.
10) em que o termo pensando como contexto em seus vrios desdobramentos (contexto de
tempo, contexto de espao, contexto metafrico da imaginao, etc). Em suma, a autora
aponta que
Resumindo, cultura pode ser definida como associada a uma comunidade do discurso que compartilha um mesmo espao social e histrico e uma mesma
imaginao. Mesmo quando eles deixam essa comunidade, seus membros mantm
onde quer que eles estejam um sistema de modelos de percepes, crenas e aes.
Esses modelos so que geralmente chamado de sua cultura.i
Nessa perspectiva, pode-se considerar a cultura como convenes sociais,
significados estabelecidos socialmente, assim como signos que permitem que falantes de uma
determinada lngua atribuam sentido ao contexto social em que se encontram. Sendo assim, a
significao cultural ou modo de enxergar e compreender a cultura acontece por meio de
aes e interaes dos falantes de uma lngua com seu contexto social de uso.
Kramsch (1998, p. 06) destaca, ainda, a ao da cultura sobre o indivduo:
Cultura tanto liberta as pessoas do esquecimento, do anonimato, e da aleatoriedade
da natureza, quanto s restringem, impondo-lhes uma estrutura e princpios de
seleo. Este duplo efeito da cultura sobre o indivduo - tanto libertador quanto
restringente - ocorre nos planos social, histrico e metafrico.ii
Tem-se, ento, que a cultura libera e restringe o indivduo simultaneamente, pois
permite que este seja livre do anonimato e da falta de caractersticas socioculturais, mas, ao
mesmo tempo, lhe impe uma srie de estruturas e princpios daquele grupo identitrio.
18
Ento, a autora afirma que essa relao entre cultura e indivduo se d em trs diferentes
planos (ou contextos) o social (sincrnico), o histrico (diacrnico) e o metafrico, como j
foram citados anteriormente e que sero retomados na prxima seo.
Para resumir o amplo conceito de cultura, listam-se, a seguir, cinco aspectos sobre o
termo, que Kramsch (1998, p. 10) destaca em seu trabalho:
1) A cultura sempre o resultado da interveno humana nos processos
biolgicos da natureza. 2) Cultura tanto liberta quanto restringe. Ela liberta,
investindo na aleatoriedade da natureza com significados, ordem e racionalidade
e pela proviso de garantias contra o caos, que restringe, ao impor uma estrutura sobre a natureza e ao limitar a gama de significados possveis criadas pelo
indivduo. 3) A cultura o produto de comunidades discursivas situadas
socialmente e historicamente , que so em grande extenso comunidades
imaginadas, criadas e moldadas pela linguagem. 4) A linguagem da
comunidade e suas realizaes materiais representam um patrimnio social e um
capital simblico que servem para perpetuar as relaes de poder e dominao; eles
distinguem insiders de outsiders. 5) Mas porque as culturas so
fundamentalmente heterogneas e mutveis, so um local de luta constante pelo
reconhecimento e legitimao.iii
2.2.2 Linguagem, Identidade Cultural e a Relao de Poder
A noo de identidade cultural est intimamente ligada s caractersticas que
determinam um indivduo como pertencente a um grupo social especfico e no a outro. Para
exemplificar, possvel reconhecer um indivduo como cidado italiano por meio da relao
de suas aes com os costumes, crenas e prticas sociais caractersticas do povo italiano,
alm, claro, por meio de sua lngua nativa, de seu vocabulrio, de seu discurso, de suas
caractersticas fsicas, de suas aes de acordo com as convenes de seu grupo de origem,
etc. Segundo Kramsch (1998, p. 67), identidade grupal no um fato natural, mas uma
percepo cultural, (). Nossa percepo da identidade social de algum muito
determinada culturalmente.iv
Junto a essa afirmao de que a identidade social determinada culturalmente, a
autora ainda nos apresenta a ideia de communities of language users que so responsveis
pelas convenes sociais e as normas de apropriao social de um grupo falante de uma
determinada lngua. Em outras palavras, essas comunidades dos usurios da linguagem so
responsveis pelas significaes e convenes socioculturais que fazem com que as pessoas
se identifiquem como pertencentes a certo grupo social, compartilhando das mesmas vises e
19
pensamentos sobre o mundo, a partir da interao com membros de seu grupo, alm do uso de
um mesmo idioma.
O uso da lngua um ponto importante para discusso aqui apresentada: os valores e
as crenas de um grupo social refletem na maneira como o indivduo ir usar a linguagem
para se fazer compreensvel o assunto a ser tratado, as palavras que ele ir utilizar, por
exemplo , em um momento especfico da interao em certo contexto social. Essa seria a
manifestao da relao uso da lngua e cultura no plano sincrnico, ou seja, num
determinado espao e momento. Mas possvel se perguntar: qual a relao do uso da lngua
no plano sincrnico e a identidade cultural? A relao se d pelo fato de cada grupo possuir
uma identidade cultural, em que seus membros advogam os mesmo pontos de vistas
socioculturais e ideolgicos, e compartilham o mesmo cdigo lingustico de acordo com suas
necessidades sociais, formando, assim, uma comunidade do discurso7.
Por outro lado, no plano diacrnico, a identidade cultural construda por meio de
manifestaes e objetos desenvolvidos pela sociedade no decorrer da histria. Para Kramsch
(1998, p. 7-8),
Essa viso diacrnica de cultura focaliza na maneira em que um grupo social se
auto-representa e como representa outros grupos por meio de sua produo material
ao longo do tempo seus aparatos tecnolgicos, seus monumentos, suas produes
artsticas, sua cultura popular o que pontua o desenvolvimento de sua identidade
histrica.v
Vale ressaltar que a combinao desses dois planos o diacrnico e o sincrnico resulta no
contexto sociocultural de estudo da linguagem.
O terceiro plano em que ocorre a relao da cultura com o indivduo est ligado
imaginao. Neste, a imaginao responsvel pelas representaes imagticas, dos ideais
que a comunidade do discurso tem em comum, que agem por meio da linguagem,
metaforizando a realidade cultural de um grupo social. Essa noo de imaginao corresponde
ideia daqueles objetos ou smbolos que so significativos e representativos para a cultura de
um povo ao longo de sua histria, como se fizessem parte daquilo que Jung chama de
inconsciente coletivo8.
7 Referente ao conceito de Kramsch (1998) para discourse community: a social group that has a broadly
agreed set of common public goals and purposes in its use of spoken and written language. 8 Para Carl G. Jung, em sua obra Os arqutipos e o inconsciente coletivo, o conceito de inconsciente coletivo
refere-se parte da psique construda por arqutipos (determinadas formas existentes na psique, que esto
presentes em todo tempo e em todo lugar) que no advm da experincia pessoal, isto , no so adquiridos
individualmente, pois so hereditrios. Segundo Jung (2000, p. 54), O inconsciente coletivo no se desenvolve
20
Todos esses trs planos de manifestaes da cultura permitem a construo da
identidade cultural de um grupo social e, consequentemente, de cada membro desse grupo.
Para corroborar com a delimitao de quem visto como membro de um determinado grupo
sociocultural em detrimento daquele que no membro desse mesmo grupo, a pesquisadora
da rea de aquisio da linguagem apresenta dois novos conceitos: o de insiders e de
outsiders. Nessa perspectiva, considera-se que para um grupo de pessoas se identificarem
como membros de uma comunidade especfica, essas pessoas devem se enxergar como sendo
semelhantes dentro de certa cultura (insiders) e como sendo diferentes ou contrrias quelas
pessoas consideradas outsiders, isto , aquelas que no fazem parte desse mesmo grupo
iderio. Em outras palavras, um indivduo que se identifica como pertencente sociedade
brasileira por agir, pensar e advogar dos costumes, iderios e discursos dessa nao, ele
considerado um insider desse grupo social se comparado com um chileno, que se identifica
com outra imagtica de sociedade, crenas e atitudes. Este seria, ento, um indivduo outsider
da sociedade brasileira, ou seja, o indivduo pode me identificar como pertencente a um povo
se comparado com o diferente, com o outro externo a esse povo.
Sendo assim, ao se pensar a cultura a partir dessa relao de incluso e excludo,
percebe-se que a cultura tambm um lugar em que se manifestam o poder e o controle. Com
essa relao de poder, em uma sociedade se encontrar aqueles que tm voz ativa e exercem
poder sobre aqueles que so silenciados pela falta de poderio. Em vista disso, assim como
questiona Kramsch (1998, p. 09) em seu estudo, quem realmente tem o poder9 de falar sobre
sua cultura e represent-la somente o indivduo que nasceu e foi criando em circunstncias
daquela cultura? E no ensino de lnguas, somente um nativo pode falar sobre a cultura do
idioma ensinado? De acordo com a autora,
(...) O estudo da linguagem sempre teve de lidar com a difcil questo
da representao e representatividade quando se fala de outra cultura. Quem tem
direito de falar para quem, de representar quem por meio da linguagem falada e
escrita? Quem tem autoridade para escolher o que representativo de uma
determinada cultura: o indivduo externo que observa e estuda aquela cultura, ou o
indivduo interno que vive e tem experincias naquela cultura? De acordo com o
qu e com quais critrios podem ser um aspecto cultura ser chamado
de representativo dessa cultura?vi
individualmente, mas herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arqutipos, que s secundariamente
podem tonar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos contedos da conscincia. 9 Aqui, poder deve ser entendido como permisso.
21
Como se pode ver, essa questo de poder sobre a cultura e, consequentemente, sobre
todos os aspectos a ela atribudos e dentre eles est o idioma uma questo relativa e
delicada. Portanto, considerando esse carter heterogneo da cultura e o fato de cada membro
de uma comunidade discursiva tambm ser um ser heterogneo, pois cada um possui biografia
e experincias prprias, pode-se pensar a identidade cultural do indivduo como relativa e
heterognea e, logo, mutvel. Mesmo assim, apesar de sua versatilidade, a identidade cultural
apresenta algumas caractersticas incisivas que permitem qualificar um indivduo como
pertencente a um grupo social e no a outros e, por pertencer a tal grupo, julga-se que esse
indivduo tem maior poder dentro de sua cultura, o que no significa dizer que ele tambm
tenha maior conhecimento sobre esta.
A seguir, abordar-se- a possvel existncia de um carter nacional brasileiro e os
esteretipos culturais difundidos como imagem do brasileiro.
2.2.3 O Pas do Futebol, do Carnaval e do Samba: Repensando o Esteretipo Brasileiro
Anteriormente, ao tratar da questo da identidade cultural, constatou-se que cada
indivduo tem sua identidade direta ou indiretamente moldada por aspectos scio-ideolgicos
do contexto cultural ao qual pertence. Quando se fala em identidade e em aprendizagem de
uma nova lngua em contexto de imerso, em geral, o aluno estrangeiro chega ao pas com
uma noo superficial do indivduo brasileiro gerada por algumas imagens ou categorias
que qualificam cada pessoa de nossa nao como brasileira, ou seja, como se todos os
habitantes desse pas pensassem e agissem da mesma forma ou muito semelhantes. Em outras
palavras, o Brasil pensado por grande parte das pessoas de outros pases segundo a
repetio de algumas ideias j formadas e fixadas a respeito do povo e da nao, em que
geralmente tais ideias esto ligadas a um sentimento pejorativo ou de preconceito, isto , o
que geralmente ocorre a repetio de esteretipos.
No entanto, o questionamento : a cultura brasileira se resume em meros
esteretipos, como o de ser o pas do carnaval, do futebol, do samba, da cordialidade, da
caipirinha, da corrupo, do jeito malandro e das mulheres voluptuosas? E se essas so as
caractersticas dos brasileiros, ento quem no corresponde a tais categorias no considerado
brasileiro? Sim no a resposta para essas indagaes. Sabe-se que o carter nacional do
Brasil no consiste em apenas esteretipos, mas que infelizmente ou no essa
22
categorizao est relacionada com a forma de percepo dos alunos estrangeiros sobre nosso
pas que acaba acontecendo por meio de esteretipos. Segundo Kramsch (1998, p. 67-68),
O que ns percebemos sobre a cultura e a linguagem de uma pessoa o que nossa
prpria cultura, e os modelos estereotipados j formados ao nosso redor, nos tm
condicionado a perceber. Identidade grupal uma questo de focalizao e difuso
de conceitos ou esteretipos tnicos, raciais e nacionais. vii
Dessa maneira, pode-se afirmar que esteretipos so formas de categorizao da
percepo as quais recorre o indivduo diante de um grupo estranho. E muitas vezes a
percepo do estranho acaba sendo deformada. A deformao da percepo de um grupo
estranho pode ocorrer por dois vieses: no primeiro, o observador10
capaz de perceber todos
os participantes de um grupo estranho de uma mesma maneira, como se fossem todos iguais;
no segundo, o observador pode dar um valor desproporcional s caractersticas diferentes do
grupo estranho (LEITE, 1983, p.105). Justificam-se essas deformaes da percepo pelo fato
de o observador esperar certa uniformidade no comportamento do grupo estranho e, ao entrar
em contato, ele percebe que em muitos casos no h uma unidade comportamental
estabelecida entre pessoas de um mesmo grupo.
Assim, no se deve esquecer como essa imagem estereotipada chega aos alunos
estrangeiros: para a maioria, ela chega por interferncia da mdia. A comunicao de massa
(rdio, televiso, jornal, etc.) se baseia, quase sempre, em fatos extraordinrios,
acontecimentos fora do comum e situaes de desequilbrio para construir suas principais
notcias. Por isso, muitas vezes a imagem de um povo difundida mundo afora construda a
partir de fatores negativos, atribuindo assim, esse carter negativo aos aspectos constitutivos
de uma nao. Para exemplificar, no preciso ir muito longe: pensando nos esteretipos que
se tem dentro do nosso prprio pas, quando se fala em comunidades do Rio de Janeiro, logo
se pensa em favelas, violncia e trfico de drogas, pois estas so as imagens recorrentemente
divulgadas pelos noticirios do pas sobre as comunidades cariocas de classe mdia e pobre,
assim como se fala de Copacabana, Ipanema e Leblon se o assunto for a classe alta do Rio.
Outro exemplo da influncia da mdia na construo imagtica de um povo est na
indstria cinematogrfica. Pode-se pensar, por exemplo, no cinema nacional com os filmes
Tropa de Elite I e Tropa de Elite II.11
Nessas duas obras do cinema brasileiro, tem-se como
10 Aqui, o lxico observador pode ser substitudo por estrangeiro. Utilizou-se observador por ser o termo
empregado por Leite (1983) e por estar se referindo a seu estudo. 11
Tropa de Elite I. Filme dirigido por Jos Padilha. Durao: 118 minutos. Distribuio: Universal Pictures do Brasil / The Weinstein Company. Brasil, 2007 e Tropa de Elite II. Filme dirigido por Jos Padilha. Durao:
118 minutos. Distribuio: Universal Pictures do Brasil / The Weinstein Company. Brasil, 2010.
23
cenrio a sociedade carioca contempornea, enfocando o tema do trfico de drogas e a
violncia nos morros fluminenses. Mais uma vez, a imagem difundida do Rio de Janeiro diz
respeito corrupo e violncia mesmo que esse tipo de mdia esteja ligado fico, essas
obras so construdas como espelho da realidade daquela sociedade e, ainda, tem maior
alcance entre espectadores internacionais. Como aponta Leite (1983, p. 109-110), ao refletir
sobre a influncia da mdia na aquisio imagtica de povos estranhos,
As comunicaes de massa apresentam algumas figuras nacionais e, para o leitor ou
espectador, a partir delas se formam pelo menos alguns aspectos da imagem de um
povo. (...).
Em outros casos, a comunicao de massa pode no ser a nica fonte de
informaes a respeito de um povo, mas ainda nesse caso pode servir para organizar
e orientar as percepes mais complexas. Nesse sentido, a comunicao de massa
pode contribuir para a formao de predisposies (sets) intelectuais, j sugeridas no caso das descries antropolgicas.
Porm, a influncia das comunicaes de massa no extingue o problema da
percepo cultural de um grupo estranho. E ainda, vale ressaltar que nem sempre o prprio
grupo consegue identificar as caractersticas significativas de sua cultura.
Sendo assim, como o aluno estrangeiro pode compreender o carter nacional
brasileiro? Em uma tentativa de definio do carter nacional, poderiam ser considerados
como constitutivos desse carter os aspectos legtimos e nicos, pertencentes a uma cultura se
comparada a outras culturas. Primeiramente, seria tarefa difcil identificar esses aspectos, j
que existe uma interdependncia da cultura brasileira com outras culturas nacionais. Por outro
lado, no faria sentido descrever uma cultura brasileira paralela s relaes com outras
culturas nacionais, visto que existe um contato constante e direto entre culturas - basta pensar
nas questes materiais: existe uma padronizao nas vrias culturas nacionais contemporneas
em aspectos como livros, cinema, televiso, teatro, tipos de automveis, modelos de roupas,
princpios de tratamentos mdicos, entre outros aspectos compartilhados com outras culturas.
(LEITE, 1983).
O problema da definio de um carter nacional est na dificuldade de identificar um
fundamento cultural de um pas presente em vrias e diferentes manifestaes dessa nao,
sem salientar apenas alguns aspectos e se esquecer de outros aspectos tambm importantes.
Em outras palavras, para identificar esse carter nacional de um povo preciso encontrar um
aspecto cultural que seja vlido para a educao, para a filosofia, para as artes plsticas, para a
economia, e assim sucessivamente. Como exemplo dessa rdua tarefa, Leite (1983, p. 119)
faz uma comparao entre a cultura americana e a cultura brasileira:
24
Suponhamos a afirmao de que a cultura americana, embora tenha elementos
comuns com outras culturas nacionais, se caracteriza pelo fato de valorizar os aspectos prticos, isto , aquilo que mais til ou mais eficiente. fcil demonstrar
que, comparativamente, o servio pblico americano mais eficiente do que o de
vrios outros pases, que a escola americana acentua a formao profissional do
aluno, isto , d relativamente pouco valor formao clssica em lnguas, e assim
por diante. No entanto, um observador encontraria imediatamente aspectos bem
pouco prticos na cultura americana: por exemplo, a aceitao de um complexo e
tradicional sistema de pesos e medidas, em vez do sistema mtrico; a manuteno de
uma ortografia tradicional que dificulta a alfabetizao da criana americana. Sob
esses dois aspectos, a cultura brasileira muito mais prtica. Estes exemplos, que
naturalmente poderiam ser multiplicados, sugerem como difcil caracterizar uma
cultura nacional, se pretendemos deixar de lado os seus aspectos comuns com outras culturas e procuramos suas peculiaridades.
No entanto, a dificuldade de achar esse fundamento cultural de uma nao, que seja
comum s mais diversas manifestaes, no est apenas na comparao com diferentes
culturas nacionais, mas pode estar dentro de um prprio pas, como o caso do Brasil. Seria
possvel citar a questo de que todos falam a mesma lngua, mas isso s vlido se no
considerarmos as variantes lingusticas que distinguem diversos grupos, os dialetos de cada
regio e, ainda, as lnguas indgenas. Como observa Leite (1983), deve-se lembrar, a ttulo de
exemplo, a diferenciao das classes sociais brasileiras. No Brasil predominam trs grupos
sociais - classe alta, classe mdia e classe baixa que apresentam caractersticas distintas em
seus padres de vida, com pouca ou at nenhuma semelhana entre esses trs grupos. E tais
diferenas ocorrem em vrios aspectos, desde o local em que os indivduos de cada uma das
classes vivem at os horrios em que exercem suas atividades, por exemplo. Quanto a esses
aspectos discordantes dentro das classes sociais brasileiras, Leite (1983, p. 121) faz uma
comparao da forma de alimentao entre classes:
(...) Embora se possa dizer que alguns alimentos so comuns a vrias classes, pelo
menos de algumas regies, essa afirmao no leva em conta diferenas de
quantidade e variedade. Se a falta de alimento na infncia tem alguma influncia na
formao da personalidade, deve haver profundas diferenas entre a classe mais
pobre e as outras. Na primeira a criana pede alimento, frequentemente sem receb-
lo, e vrias camadas da populao vivem em estado crnico de desnutrio; a partir
da classe mdia, os adultos oferecem alimentos s crianas e insistem para que estas
comam. Se o processo de alimentao tem alguma influncia, da classe mdia para
cima h crianas alimentadas com mamadeiras praticamente desde o nascimento; na classe pobre, a criana amamentada ao seio.
Ou seja, onde est o aspecto comum na alimentao entre pessoas das diferentes
classes sociais brasileiras? Seria possvel citar, como o aspecto comum na alimentao dos
brasileiros, o feijo-com-arroz, apontado por DaMatta (1991, p. 56) como a comida
25
brasileira bsica, comida que vista como algo costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda
a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa,
comida que tambm se faz presente nas metforas do dia-a-dia do povo brasileiro. No entanto,
ser que todos os brasileiros consomem feijo-com-arroz diariamente? Poderia este ser um
aspecto peculiar do carter nacional brasileiro ou s mais um esteretipo do nosso povo?
Parece que esse argumento alimentcio tambm no vlido para caracterizar a unidade do
carter nacional do nosso pas, uma vez que, segundo anlise de Pesquisa de Oramentos
Familiares 2003 (POF), a alimentao do brasileiro mudou muito nos ltimos trinta anos,
havendo o aumento do consumo de alimentos prontos e industrializados e a reduo do
consumo de feijo e arroz, j que estes, considerados alimentos essenciais, continuaram a ser
consumidos com frequncia somente pela populao de baixa renda (NIEDERAUER, 2010).
Por isso, considera-se que dizer que a mesa do brasileiro s est completa quando se tem
feijo e arroz reafirmar um dos esteretipos sobre o povo brasileiro.
Sendo assim, a partir dessas reflexes sobre a existncia de um aspecto cultural
comum a todos dentro de uma nao, parece bem difcil definir uma unidade ou carter
nacional. Em uma viso superficial, possvel considerar a lngua e a organizao poltica
como padro para todos, mas sabemos que estas tambm tm suas peculiaridades em certas
circunstncias. Talvez seja vlida uma tentativa de caracterizar o brasileiro psicologicamente.
Isso o que Leite (1983) faz em grande parte de seu ensaio, ao verificar as caractersticas
psicolgicas atribudas ao brasileiro por alguns autores em diferentes pocas de nossa
sociedade, ao mesmo tempo em que analisa as influncias ideolgicas de cada autor estudado
ao atriburem tais traos psicolgicos ao brasileiro. Assim, Leite (1983, p. 152) desenvolve
sua anlise segundo o esquema a seguir:
I A fase colonial: descoberta da terra e o movimento nativista (1500-1822);
II O Romantismo: a independncia poltica e a formao de uma imagem positiva
do Brasil e dos brasileiros (1822-1880);
III As cincias sociais e a imagem pessimista do brasileiro (1880-1950);
IV O desenvolvimento econmico e a superao da ideologia do carter nacional
brasileiro: a dcada 1950-1960.
Para conhecimento dessas caractersticas psicolgicas atribudas por autores de
diferentes pocas da literatura brasileira apresentadas por Leite (1983), cita-se como exemplo
a viso de Srgio Buarque de Holanda12
presente em seu ensaio intitulado Razes do Brasil,
12 Srgio Buarque de Holanda (1902-1982) foi professor de Histria da Civilizao Brasileira na Universidade de
So Paulo. Publicou vrios estudos de crtica e histria da literatura, alm do ensaio Razes do Brasil (Srgio
Buarque de Holanda, Razes do Brasil, 2 Ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1948).
26
publicado em 1936, que traz por meio de informaes histricas e em uma perspectiva
sociolgica e psicolgica, a tentativa de aplicao de tipologias sociais vida brasileira,
destacando a cordialidade do brasileiro. Tm-se, ento, as seguintes caractersticas do
brasileiro (LEITE, 1983, p.335):
1. culto da personalidade 2. falta de hierarquia 3. desordem 4. ausncia de esprito de organizao espontnea 5. inquieto e desordenado 6. nsia de prosperidade sem custo, de posio e riqueza fceis 7. aventureiro 8. inteligncia como ornamento e prenda 9. cordialidade 10. individualismo
Na literatura contempornea, como demonstra Leite (1983, p.357), no h mais a
tentativa ideolgica de definir um carter nacional, mas h a revelao da situao do homem
brasileiro, como possvel verificar em obras como Grande Serto: Veredas, de Guimares
Rosa, e Morte e Vida Severina, de Joo Cabral de Melo Neto. No entanto, nesses exemplos
supracitados, encontra-se a tentativa de caracterizao do brasileiro a partir de uma viso
literria. Ao retomar a ideia de que para definir o carter nacional brasileiro preciso
encontrar um aspecto cultural caracterstico de nosso pas que seja comum em todos os tipos
de manifestaes e seja semelhante para todas as pessoas que fazem parte dessa nao,
conclu-se que as caractersticas psicolgicas do brasileiro afamadas na literatura tambm no
do conta de definir o carter nacional brasileiro.
Por outro lado, poder-se-ia pensar ainda na construo da identidade social do
brasileiro sob um vis antropolgico, como prximo daquilo que seria o carter nacional to
difcil de definir a partir de afirmativas e negativas diante de determinas questes, como
supe DaMatta (1991). Ao comparar a identidade cultural do norte-americano com a do
brasileiro, DaMatta (1991, p.16-17) chega a seguinte constatao:
Sei, ento, que sou brasileiro e no norte-americano, porque gosto de comer feijoada
e no hambrguer; porque sou menos receptivo a coisas de outros pases, sobretudo
costumes e ideias; porque tenho um agudo sentido de ridculo para roupas, gestos e
relaes sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e no em Nova York; porque falo portugus e no ingls; porque, ouvindo msica popular, sei distinguir
imediatamente um frevo de um samba; porque futebol para mim um jogo que se
pratica com os ps e no com as mos; porque vou praia para ver e conversar com
os amigos, ver as mulheres e tomar sol, jamais para praticar um esporte; porque sei
que no carnaval trago tona minhas fantasias sociais e sexuais; porque sei que no
existe jamais um no diante de situaes formais e que todas admitem um
jeitinho pela relao pessoal e pela amizade; porque entendo que ficar
27
malandramente em cima do muro algo honesto, necessrio e prtico no caso do
meu sistema; porque acredito em santos catlicos e tambm nos orixs africanos;
porque sei que existe destino e, no entanto, tenho f no estudo, na instruo e no
futuro do Brasil; porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha famlia;
porque, finalmente, sei que tenho relaes pessoais que no me deixam caminhar
sozinho neste mundo, como fazem os meus amigos americanos, que sempre se vem
e existem como indivduos!
Mas ainda assim, com todas essas atitudes descritas sobre o jeito de ser do brasileiro,
possvel indagar: ser que tais atitudes so comuns a todos os cidados brasileiros a ponto
de conjecturar o nosso carter nacional?
Portanto, considera-se que trabalhar com os elementos que constituem o carter
nacional uma tarefa rdua. No fim, acaba-se apresentando, no s aos estrangeiros, mas
tambm em qualquer tentativa de definir o brasileiro, os aspectos que mais se destacam na
cultura do nosso povo. Mesmo que muito desses aspectos sejam esteretipos, eles no podem
ser desconsiderados, visto que geralmente tais esteretipos so frutos da histria de um pas e
carregam uma carga cultural muito importante. O ideal seria conhecer a origem desses
esteretipos e procurar compreend-los, para que cada indivduo possa, ento, construir seu
pensamento crtico a respeito daquilo que se diz ser caracterstico da cultura brasileira.
Na sequncia, ser apresentada uma reflexo sobre o lugar da cultura e sua
importncia no ensino de lnguas estrangeiras.
2.2.4 O Ensino de Lngua Como Ensino de Cultura
Constantemente, fala-se da importncia da incluso de aspectos culturais no ensino
de lnguas estrangeiras. Vrias so as abordagens que propalam o trabalho com a cultura da
lngua-alvo em sala de aula, porm o que acaba geralmente acontecendo o fato dessa
abordagem cultural ser transformada em a aula sobre cultura ou o dia da data
comemorativa do pas de origem da lngua estudada. Como observa Kramsch (2001, p. 08),
(...) a cultura geralmente vista como mera informao transmitida pela linguagem, no
como uma caracterstica prpria da lngua; a conscincia cultural se torna um objetivo
educacional em si, separada da lngua. viii
Se a cultura vista apenas como informaes adicionais, logo poderia ser
considerado, de acordo com a abordagem tradicional, que a lngua algo dissociado da
cultura e, por isso, pode ser ensinada separadamente, sem atentar para o seu contexto de uso e
seu papel social. No entanto, essa viso tradicionalista pode ser vista como ultrapassada, uma
28
vez que a lngua entendida como prtica social e, por essa razo, no pode ser separada de
sua carga sociocultural, visto que a forma lingustica, isto , a estrutura de uma lngua por si
s vazia e no tem valor semntico algum para o sujeito que a enuncia. Fazendo um
paralelo com essa ideia, destacam-se as consideraes de Bakhtin (1995, p. 96) acerca da
linguagem, pois ele acredita que a lngua, no seu uso prtico, inseparvel de seu contedo
ideolgico ou relativo vida. Ou seja, assim como a lngua no pode ser separada de sua
ideologia, esta tambm no pode ser dissociada de sua carga cultural e de seu contexto social
de uso.
Portanto, procura-se reconhecer que o uso da lngua acontece de maneira
indissocivel de seus aspectos culturais e, sendo assim, como enfatiza Kramsch (2001, p. 08):
Se, no entanto, a linguagem vista como prtica social, a cultura torna-se o cerne do
ensino de lnguas. A conscincia cultural deve ento ser vista tanto como o que
possibilita a proficincia lingustica, quanto como sendo o resultado da reflexo
sobre a proficincia na lngua.ix
Nesse sentido, o trabalho de ensino de uma lngua como cultura precisa ter como objetivo
que o estudante seja hbil a se enxergar e se comportar tanto como o indivduo de fora, que
tem sua prpria identidade e conscincia cultural, quanto como um sujeito participante
daquela outra comunidade lingustica em que ele/ela est se inserindo e aprendendo com as
situaes culturais contextualizadas.
Apresentou-se, aqui, uma breve discusso a respeito da relao entre ensino e cultura
na sala de aula de lngua estrangeira, pois esta uma questo que d base para este trabalho.
Esse tema tem gerado muitas discusses na rea de ensino-aprendizagem de segunda lngua e
poderia ser extensamente discorrido nessa subseo, mas retomar essa discusso no foco
dessa investigao, por isso se segue com a apresentao de alguns conceitos estritamente
ligados problemtica do estranhamento cultural no ensino de PFOL.
2.3 SITUAES XENFOBAS: QUANDO O COTEJO CULTURAL CHEGA SALA DE
AULA DE PFOL
Como se vem refletindo at agora, considera-se hoje uma viso de ensino de lngua
estrangeira arraigada noo de cultura da lngua-alvo, sendo que um no pode ser dissociado
29
do outro. Ensinar uma lngua estrangeira para um grupo de alunos da mesma nacionalidade
pode facilitar a discusso e reflexo acerca da cultura que rege a lngua estudada. No entanto,
ao se deparar com uma turma heterognea, com alunos das mais diferentes nacionalidades
possvel que se tenha que enfrentar alguns problemas com questes culturais relacionadas
tanto lngua-alvo quanto lngua materna dos estudantes. Portanto, o professor deve estar
preparado para possveis situaes conflituosas em sala de aula de lngua estrangeira13
e, para
tanto, importante conhecer alguns conceitos cruciais - como o de xenofobia e o de xenofilia,
por exemplo - para entender as questes relacionadas ao cotejo cultural.
2.3.1 Da Rejeio Adorao: os Conceitos de Xenofobia e de Xenofilia
Para se compreender as situaes de estranhamento ou averso ao diferente no
ensino de PFOL, preciso entender qual o sentimento que o diferente e desconhecido
provoca no indivduo. Quando uma pessoa entra em contato com uma circunstncia nova ou
com um grupo estranho, ela tender a admirar e aceitar as diferenas, buscando conhec-las
melhor, ou ir rejeitar e desprezar o diferente, mesmo sem conhec-lo devidamente. muito
frequente a ocorrncia de rejeio e medo de um grupo estranho, principalmente quando
envolve o aprendizado de uma nova lngua e cultura, ocasionando at certa resistncia ao
conhecimento desse novo grupo e de seus costumes.
Por isso, para se abordar o sentimento e as atitudes xenfobas presenciadas nas
turmas do curso de PFOL da UTFPR, preciso entender o que xenofobia. Em suma, o
termo xenofobia indica a rejeio absoluta de um grupo estranho e todos os costumes, crenas
e atitudes atreladas a esse grupo. Como indica Leite (1983, p. 02), mesmo que em um
primeiro momento, o estranho possa despertar curiosidade e atrao, em um segundo observar
o estranho provoca uma reao de medo mais ou menos intenso; outras vezes, essa reao
de asco ou repugnncia (...), ou ainda, alm das caractersticas negativas, pode-se associar
caractersticas msticas e sobre-humanas ao estranho, pois (...) embora sofra preconceito, o
estranho muitas vezes descrito como possuidor de alguma fora extraordinria, uma
habilidade acima do comum. Esses so alguns sentimentos que representam a xenofobia, ou
seja, o medo, o desprezo e o preconceito pelo desconhecido. Esse sentimento ocorre por ser
13
Nesse contexto, usa-se lngua estrangeira e no se refere somente ao ensino de portugus como lngua
estrangeira porque a ideia aqui apresentada vlida para a sala de aula de qualquer lngua estrangeira.
30
distinto daquilo que cada indivduo conhece ou acredita ser o correto, o padro, o melhor para
si, ou seja, o que faz parte de sua cultura visto como apropriado para o indivduo em
detrimento do estranho e esquisito da cultura alheia.
Por outro lado, vale expor outro conceito que funciona como oposto xenofobia:
este chamado de xenofilia. Este conceito indica situaes em que o indivduo sente forte
atrao pela cultura estrangeira, chegando a exalt-la, e tende a desprezar os costumes e
crenas de seu prprio pas. Portanto, Leite (1983, p. 03) sumariza as duas ideias:
Num caso, denominado xenofilia, a pessoa ter tendncia a desprezar o seu grupo e
seus padres, ao mesmo tempo que afirma a superioridade do grupo estranho. No
segundo, denominado xenofobia, o seu sentimento ser oposto, isto , tender a
rejeitar integralmente o grupo estranho e seus costumes.
Em certos casos, a existncia desses dois sentimentos pode ser explicada por fatores
sociais, histricos e ideolgicos envolvendo grupos diferentes. Por isso, importante
investigar quais os motivos que acarretam sentimentos de averso em sala de aula, por
exemplo. Investigar no quer dizer interrogar o aluno e pedir explicaes sobre porque ele
rejeita a cultura alheia. Aqui, investigar significa buscar informaes histrico-ideolgicas
referentes ao pas de origem do aluno e a relao dessa nao com o pas pelo qual o
estudante apresenta sentimentos xenfobos. Essa ao pode ajudar o professor a entender o
que gera as atitudes e os discursos belicosos em sala de aula.
Posto isso, preciso salientar, tambm, que nem todos os alunos estrangeiros
apresentam averso ou estranhamento para com outras culturas. No se pode generalizar que
todos os estrangeiros so xenfobos ou xenfilos, pois tal afirmao incorre no mesmo que
dizer que todos os brasileiros sabem sambar - o que se sabe que no verdade.
Portanto, importante o professor conhecer o que xenofobia e xenofilia e suas
implicaes, mas o mais importante no ensino de uma lngua estrangeira saber identificar a
origem dos sentimentos provocados por estes conceitos entre os alunos de culturas diferentes
e, a partir da, encontrar uma maneira de amenizar ou reverter esse quadro dentro da sala de
aula.
2.3.2 A Cultura de Meu Pas Melhor de que a Cultura de Seu Pas!: o Estranhamento
Cultural na Sala de Aula
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Como j foi assinalado anteriormente, o contato com o diferente e o desconhecido
pode gerar duas sensaes distintas no indivduo: ou de curiosidade e admirao, ou de medo
e rejeio. Um ambiente passvel da manifestao desses sentimentos pode ser uma sala de
aula que rene pessoas de diferentes nacionalidades, que trazem consigo uma formao scio-
histrica, cultural e ideolgica diferente dos demais estudantes e dos habitantes do pas
receptor. Esse pode ser um primeiro passo para a manifestao de xenofobia ou xenofilia.
Ambos os sentimentos so suscetveis de acontecer em qualquer espao social, porm na sala
de aula de PFOL, o sentimento mais comumente presenciado o de xenofobia. Mesmo
havendo a possibilidade de manifestaes xenfilas em aulas de lngua estrangeira, essa no
tem o mesmo impacto que tem a xenofobia, pois a xenofilia assume carter positivo e no
vista como um problema para a vida social, diferente do que acontece com a xenofobia que
muitas vezes entendida como sinnimo de conflitos.
As atitudes ou os discursos de rejeio proferidos em relao s culturas distintas
podem estar ligados a outro conceito importante: o de etnocentrismo. O etnocentrismo um
grau mais elevado do sentimento de xenofobia, manifestando-se pela auto-afirmao ou
supervalorizao dos costumes que distinguem a cultura de seu grupo social da cultura dos
demais grupos (LEITE, 1983, p. 07). Pensar em etnocentrismo pensar em seu grupo como
o mais importante, o ideal, o centro de tudo. Junto a esse conceito pode estar tambm a
ideia de patriotismo e chauvinismo, ou seja, uma auto-afirmao compulsiva e exagerada do
seu grupo social. Essa reao muito comum quando se entra em contato com o extico e o
diferente, pois, querendo ou no, o estranho incomoda, agride a identidade cultural e a
primeira atitude do indivduo a de proteo a qualquer custo de suas crenas, ideologias,
enfim, de seu grupo. Isso pode levar, ainda, a uma relao de poder entre grupos distintos.
Nesse ponto, o discurso assume papel de destaque quando se procura entender qual a
viso ou o pensamento daquele que o profere. Para entender melhor, preciso compreender o
conceito de discurso. Para Bakhtin (1995), o discurso entendido sob uma viso marxista de
linguagem. Sendo assim, Bakhtin (1995) v a lngua como fato social, partindo da perspectiva
de que a linguagem se faz num mago social e que todo discurso carregado de ideologia e
histria de um grupo social. Nesse vis, Bakhtin (1995) considera a lngua como um
processo, ou seja, ela est suscetvel ao contexto de produo, tomando sentido em cada
caso de produo, trazendo dentro do discurso toda uma carga ideolgica adquirida nesse
contexto. Por isso, considera-se que no existe um discurso (ou palavra) neutro, pois este
sempre ir remeter a outros discursos pr-existentes.
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J para Foucault (2002, 2010), o discurso tambm entendido como uma prtica
social localizada em um determinado contexto institucional e consumado historicamente,
medida que os dizeres (enunciados) que circulam socialmente so capazes de construir os
sujeitos e objetos da sociedade. O discurso no se resume a estruturas lingusticas, mas visto
como enunciaes que permeiam o pensamento de uma sociedade, em que existem
procedimentos controladores do discurso, regulando o que pode ser dito ou no naquele
contexto.
Mas qual a relao do discurso e as situaes de estranhamento nas aulas de PFOL?
Ao pensar o discurso como prtica social, que manifesta por meio da linguagem a ideologia e
os aspectos histrico-culturais de um grupo social, compreende-se que aquilo que os alunos
estrangeiros dizem, pode estar ligado sua sociedade de discurso14
, ou seja, seus discursos
so carregados das ideias defendidas por sua comunidade de origem e por isso muitas vezes
essa ideologia pode divergir das ideias e crenas do povo brasileiro, ocasionando o cotejo
entre culturas. Portanto, Foucault (2010, p. 08-09) alerta para o perigo ao qual pessoas
incorrem ao proliferar seus discursos indevidamente, pois
(...) em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm
por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio,
esquivar sua pesada e temvel materialidade.
E quando se est em uma sociedade do discurso diferente, que no advoga dos mesmos
procedimentos controladores estabelecidos em seu grupo social, o indivduo pode cair na
arapuca de seu prprio discurso. Em uma sociedade, sabe-se bem que no se tem o direito de
dizer tudo, que no se pode falar de tudo em qualquer circunstncia, que qualquer um, enfim,
no pode falar de qualquer coisa. (FOUCAULT, 2010, p. 09)
Contudo, o que acaba sendo perceptvel no discurso dos intercambistas participantes
do curso de PFOL aquilo que Foucault (2010) chama de vontade de verdade. A vontade de
verdade um mecanismo de excluso em que a oposio entre o verdadeiro e o falso se d
historicamente dentro de uma instituio social, valorizando e repassando o discurso
considerado verdadeiro, ou seja, h uma verdade que defendida pela instituio e esta deve
ser passada para o outro, independente dessa verdade ser verdadeira ou falsa. Em outras
palavras, a vontade de verdade aquilo em que se acredita. Portanto, os alunos demonstram
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Para Foucault (2010), as sociedades de discurso tm a funo de conservar ou produzir discursos que devem
circular em espaos fechados, de acordo com regras estritas desse contexto.
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essa vontade de verdade em seus discursos ao defender aquilo que considerado verdade
em sua instituio de origem (seu grupo social), ou mesmo, ao julgar o povo brasileiro por
meio de imagens destorcidas que acreditam ser a melhor representao de nossa cultura,
pensamento esse constitudo anterior ao contato real com o pas.
Entretanto, preciso ressaltar que no h uma cultura melhor do que a outra, h sim
culturas distintas que pensam, agem e se manifestam de formas diferentes, ou seja, a questo
cultural no pode ser definida por grau de superioridade ou inferioridade, pois cada uma o
que e merece seu devido respeito e, acima de tudo, compreenso.
Sendo assim, qual o papel do professor de PFOL nessa situao? O professor, alm
de mediador e facilitador no processo de aprendizagem da lngua portuguesa, tambm o
esclarecedor de aspectos culturais (NIEDERAUER, 2010, p.103). Em primeira instncia, o
professor assume a funo de modelo, para os alunos estrangeiros, de sujeito brasileiro,
tanto no quesito uso da lngua (pronncia, expresses, escolha lexical, etc.) quanto no modo
de agir, de se vestir, de interagir, e assim por diante.
Todavia, quando os estudantes apontam negativamente algum aspecto da cultura
brasileira, parece que o conflito cultural passa a ser concentrado entre o aluno e o professor
particularmente. No que essa suposio seja verdade irrevogvel mas tambm no
totalmente mentira. Quando se expe uma opinio negativa a respeito da nossa cultura, em
um primeiro impacto o professor tende a defender sua identidade cultural, pois se sente
ofendido com tal situao, afetando a interao entre professor e aluno. Porm, ao invs de
simplesmente tentar defender a sua cultura, o professor de PFOL precisa refletir sobre sua
posio em sala de aula visando desenvolver, tambm, a reflexo dos alunos sobre as questes
culturais, alm de buscar uma atmosfera mais favorvel para a discusso e desenvolvimento
do senso crtico destes sobre culturas em geral, lembrando que para que isso seja vivel, o
primeiro passo a ser dado a reflexo do que cada membro do grupo entende por cultura.
Por conseguinte, o professor tambm precisa buscar maiores informaes a respeito
da sua cultura de acordo com as mais diversas reas de conhecimento, no se restringindo
apenas ao conhecimento adquirido com suas prprias experincias, uma vez que, como
constata Niederauer (2010, p. 110), (...) nossas explicaes sobre cultura brasileira esto
mais baseadas no fazer do que no saber, no ouvir do que no observar, ler ou refletir. Assim,
aquela situao inicial de questionamentos e cotejo caracterizada como negativa pode ser
enxergada como algo positivo medida que leva o professor reflexo, transformao, ao
autoconhecimento e conscincia de sua prpria cultura e de outras culturas. Assim sendo, a
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respeito de estranhamentos culturais em sala de aula de portugus para estrangeiros e como
lidar com essa situao, Niederauer (2010, p. 121) conclui que:
(...) Trabalhar conceitos bsicos de cultura, identidade e diferenas pode ser
produtivo para fazer com que as questes de nossos alunos sobre cultura sejam
incitadas pela curiosidade sobre as diferenas e no em desejos de atacar o que lhes
parece inferior pelo simples fato de constiturem diferenas. Assim como para
vermos essas questes como estranhamento cultural natural e no como hostilidade
improdutiva no processo de ensino-aprendizagem de PLE. Muito se diz que
aprender uma lngua aprender cultura, mas no temos dado suporte para o aluno entender o que cultura, talvez porque ns mesmos no tenhamos desenvolvido esse
suporte. Alm disso, a meu ver, ensinar lngua estrangeira criar oportunidades de
refletir sobre a cultura do outro, tentar compreend-la sem julgamentos e
comparaes etnocntricas, dar ao aluno e ao professor - a oportunidade de
pensar sua prpria cultura por meio de outra. No estou certa de que seja possvel
ensinar culturas, mas sim vivenci-las, compreend-las, question-las e refletir sobre
elas.
Portanto, para que as aulas de PFOL seja um espao produtivo, mesmo quando
estranhamentos culturais so presenciados, preciso que tanto o professor quanto os alunos
estejam abertos para todo e qualquer tipo de questionamento, em busca de um olhar crtico
sobre sua prpria cultura e a cultura do outro. Ento, aborda-se, na sequncia, a noo de
letramento crtico.
2.4 LETRAMENTO CRTICO E A TRANSFOMAO DA AVERSIVIDADE NO CURSO
DE PFOL
Como foi discutido anteriormente, ao chegar a outro pas e ao se deparar com a
cultura extica desse grupo social diferente, o estrangeiro tende ou curiosidade ou
rejeio, pois o que sabe quando sabe sobre esse povo uma viso baseada em aspectos
preestabelecidos que muitas vezes diferem da realidade. O mesmo acontece com os alunos do
curso de PFOL da UTFPR: chegam ao pas com uma imagem j formada sobre o brasileiro e
quando se deparam com a realidade, percebem muitos aspectos convergentes daquilo que
conheciam sobre o Brasil. Certas vezes, tambm, esse contato com as diferenas culturais leva
ao cotejo cultural em sala de aula. Portanto, deve-se discernir esse estranhamento como algo
que pode ser produtivo, caso incentive o desenvolvimento de uma prtica de ensino que leve o
grupo reflexo sobre sua identidade cultural e sobre a cultura dos demais colegas, ao mesmo
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tempo em que os permita estabelecer uma nova viso sobre o povo brasileiro, medida que
esses alunos se percebam como sujeitos participantes desse contexto social.
Posto isso, partindo do pressuposto de que de acordo com as experincias e com a
interao com um novo contexto social que o aluno ir criar uma nova representao da
cultura brasileira, desenvolvendo um possvel sentimento de empatia ou, no mnimo, respeito
para com a sociedade que o acolhe, tomou-se como base a abordagem do letramento crtico
para justificar a prtica de ensino adotada no curso de PFOL. Na concepo de letramento
crtico defendida por Jordo (2007, p.29)
(...) existe o entendimento de que os sujeitos constroem suas idealizaes e representaes (narrativas e metanarrativas) socialmente, conforme sua interao
com diferentes comunidades interpretativas; estas narrativas que no devem ser
impostas aos outros, nem a eles apresentadas como se fossem vises essencialmente
melhores ou piores, mais prximas ou mais distantes de uma suposta verdade. Tais
julgamentos de valor so percebidos como atribudos social e culturalmente a essas
narrativas, e como tal sero considerados e questionados.
Em outras palavras, o letramento crtico defende o desenvolvimento do pensamento crtico no
aprendizado de uma lngua, considerando a lngua como prtica social e o discurso como
mecanismo de manifestao de poder, em que o pensamento crtico e a interpretao do
mundo acontecem medida que o sujeito se percebe como participante de um determinado
contexto social, histrico, cultural e ideolgico.
Contudo, antes de se discutirem os pressupostos da introduo do letramento crtico
no ensino de lngua estrangeira, preciso conhecer de onde vem essa abordagem. De acordo
com Cervetti; Pardales & Damico (2001), a abordagem conhecida como letramento crtico
deriva, em alguns aspectos, da teoria da crtica social, principalmente em relao a assuntos
ideolgicos que permeiam os textos. Fala-se em texto porque a utilizao do letramento
crtico pensada segundo o trabalho com diferentes textos verbal e no-verbal, de diferentes
suportes e mdias. Sendo assim, a viso sobre o que crtica, segundo a teoria da crtica
social, est embasada no pensamento de crtica opresso e explorao e na batalha por
uma sociedade melhor, j que se acredita que em uma sociedade existem constates embates
em busca de poder desejo de posse de conhecimento, de status, de bens matrias, etc.
gerando a desigualdade entre grupos sociais. Para aqueles que advogam a crtica social, esse
quadro de desigualdade ideolgica pode ser exposto e reconstrudo pela crtica e, em parte,
pelo uso da linguagem.
Uma segunda influncia do letramento crtico o estudo de Paulo Freire. A principal
preocupao de Freire diz respeito explorao econmica percebida entre os brasileiros.
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Esse estudioso brasileiro acreditava em uma reconstruo social por meio da linguagem e do
letramento. Para Cervetti; Pardales & Damico (2001, p. 06),
Ele [Freire] respondeu trabalhando no desenvolvimento de uma abordagem de
letramento para educao de adultos que poderia servir como um veculo para a
transformao social e econmica. Para Freire, muitas pedagogias de letramento tm
que ser transformadas em pontos centrais de justia e de luta por emancipao.x
Na proposta pedaggica de Freire h o engajamento de professor e alunos no
trabalho com a leitura, com a escrita e a discusso sobre temas gerais relacionados realidade
de mundo dessas pessoas, permitindo-os o conhecimento e a reflexo sobre seus contextos
sociais e suas necessidades. Assim, na viso de Freire, o principal objetivo da educao crtica
o desenvolvimento da conscincia crtica, uma vez que atravs da conscincia crtica,
estudantes podem vir a reconhecer e se sentirem dispostos a refazer suas prprias identidades
e suas realidades sociopolticas por meio de seus prprios processos de significao e por
meio de suas aes no mundo.xi (CERVETTI; PARDALES & DAMICO, 2001, p. 07).
Ainda nessa concepo crtica de ensino de Freire, assim como para a teoria crtica,
presumvel que pessoas de um determinado grupo social entendam, aceitem e vivam
amigavelmente com a diversidade cultural em relao diversidade de gnero, raa, classe
social e etnia, por exemplo que so frutos da sociedade.
Outro pensamento influente na abordagem do letramento crtico o ps-
estruturalismo. Nessa perspectiva, acredita-se que o texto por si s no possui sentido, ao
contrrio, o sentido do texto adquirido de acordo com sua relao com seu contexto
sociopoltico de produo. Segundo o ps-estruturalismo, autores criam seus textos e
indivduos os interpretam com sistemas discursivos que regulam o que o texto permite
conhecer em um contexto particular. Asseres e interpretaes so julgadas como
verdadeiras ou falsas conforme a lgica desse sistema discursivo (CERVETTI; PARDALES
& DAMICO, 2001, p. 07). Em outras palavras, o ps-estruturalismo sustenta a ideia de que o
sentido do texto atribudo scio-ideologicamente de acordo com o seu contexto scio-
poltico-histrico-cultural e ideolgico de produo, sendo esse sentido controlado pelo
sistema discursivo, ou seja, o sentido controlado por aquilo que Foucault (2010) chama de
procedimentos de controle do discurso.
Assim, na concepo de letramento crtico, os alunos precisam assumir uma atitude
crtica sobre a viso de mundo por trs de textos (discursos) diversos e quais dessas vises so
aceitveis e significativas para sua autopercepo como sujeito participante de um
determinado contexto social. Os estudantes precisam reconhecer que esses textos e discursos
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so frutos de certo momento histrico, de certa construo social e que podem ser
transformados. Para que haja a transformao, os alunos precisam compreender que cada
indivduo formado pela a interao com (con)textos, pela participao em determinadas
comunidades de discurso e pela representao que eles encontram no texto a partir de suas
experincias, pois s assim podero criar e rever essas representaes como algo significativo
para sua condio de sujeito participante de um grupo social especfico.
Em suma, como apontam Cervetti; Pardales & Damico (2001, p. 08),
() o letramento crtico combina perspectivas ps-estruturalistas, crticas e
Freireanas. Do ps-estruturalismo, o letramento crtico entende textos como
construes ideolgicas embasadas em sistemas discursivos e empresta mtodos da
crtica. Da teoria da crtica social, o letramento crtico compreende que textos, sendo
produtos de foras ideolgicas e sociopolticas, devem ser continuamente expostos
para mtodos da crtica social. Finalmente, de Freire, o letramento crtico apreende
que prticas de letramentos devem sempre ter como assunto central a justia social,
a liberdade e a igualdade. xii
Para melhor entender os pressupostos do letramento crtico, um quadro explicativo
apresentado na sequncia.
rea Letramento Crtico
Conhecimento
(epistemologia)
O que considerado conhecimento no natural ou neutro; o conhecimento sempre baseado nas
regras do discurso de uma comunidade particular e
, ento, ideolgico.
Realidade
(ontologia)
A realidade no pode ser conhecida
definitivamente e no pode ser capturada pela
linguagem; decises sobre a verdade, portanto, no
podem ser baseadas na teoria de correspondncia
com a realidade, mas deve sim ser feita
localmente.
Autoria
O significado textual sempre mltiplo,
contestvel, situado culturalmente e
historicamente, e construdo com diferentes relaes de poder.
Objetivos instrucionais Desenvolvimento da conscincia crtica
Quadro 1- Pressupostos do letramento crtico
Fonte: Adaptado de Cervetti; Pardales & Damico (2001)
Portanto, a abordagem do letramento crtico est estritamente relacionada a questes
de poder da a importncia do discurso e questes relacionadas a diferenas socioculturais,
como diferenas de raa, gnero, orientao sexual, classe social e assim por diante. Um dos
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principais objetivos dessa abordagem pedaggica o desenvolvimento do pensamento crtico,
em que o estudante no apenas um leitor crtico de textos, mas sim um agente transformador
da realidade social em que vive. E, como conclui Cervetti; Pardales & Damico (2001, p. 11),
essa abordagem educa por meio de diferentes significados e para diferentes fins xiii
. E
tambm, vale ressaltar que, conforme o letramento crtico, o ensino situado em um
determinado contexto, construdo socialmente e , ainda, uma prtica ideolgica.
No decorrer dessa pesquisa ser mostrado como uma prtica de ensino, baseada no
letramento crtico, pde transformar a viso de alunos estrangeiros do curso de PFOL sobre o
povo brasileiro aps participao nas aulas e interao com o nosso contexto social.
NOTA
iIn summary, culture can be defined as membership in a discourse community that shares a common social space
and history, and common imaginings. Even