Pelo Espaco

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Texto da Doreen Massey sobre o espaço

Transcript of Pelo Espaco

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  • pelo espaouma nova poltica da espacia lidade

    Doreen Massey

    TraduoHilda Pareto Maciel

    Rogrio Haesbaert

    BBERTRAND BRASIL

  • Copyright 2005, Doreen MasseyPublicado mediante contrato cot|t-6A23ir^uWlfi5iJt) i^s f London" Thousand Oaks and New Delhi

    Ttulo original: For Space

    Capa: Leonardo Carvalho

    Editorao: DFL

    K )5 O2008Impresso no Brasil Printed in Brazil

    CIP-Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    M37p Massey, Doreen B.Pelo espao: uma nova poltica da espacialidade/Doreen Massey;

    traduo Hilda Pareto Maciel, Rogrio Haesbaert. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

    312p.

    Traduo de: For space Inclui bibliografia ISBN 978-85-286-1307-0

    1. Percepo geogrfica. 2. Geografia poltica. 3. Globalizao. 4. Regionalismo - Filosofia. I. Ttulo.

    CDD - 304.20108-0042 CDU-911.3

    Todos os direitos reservados pela:EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.Rua Argentina, 171 lfi andar So Cristvo20921-380 Rio de Janeiro RJTel: (0xx21) 2585-2070 Fax: (0xx21) 2585-2087

    No permitida a reproduo total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prvia autorizao por escrito da Editora.

    Atendemos pelo Reembolso Postal.

  • sumrio

    Agradecimentos 7

    Apresentao edio brasileira 9

    Prefcio edio brasileira 15

    Parte Um Estabelecendo o cenrio 19

    Trs consideraes 19

    1 Proposies iniciais 29

    Parte Dois Associaes pouco promissoras 39

    2 Espao/representao 43

    (Confiar na cincia? 1) 57

    3 A morada-priso da sincronia 64

    Os "espaos" do estruturalismo 64Depois do estruturalismo 71

    4 As horizontalidades da desconstruo 81

    5 A vida no espao 89

    Parte Trs Vivendo em tempos espaciais? 97

    6 Espacializando a histria da modernidade 99

    (Confiar na cincia? 2) 112 (A representao, mais uma vez, e as geografiasda produo do conhecimento l) 115

  • " ifvro

    * ,l' pelo espao sumrio ,

    7 Instantaneidade/sem profundidade 118

    8 Globalizao a-espacial 125

    9 (Ao contrrio da opinio popular) o espao no pode ser aniquilado pelo tempo 137

    10 Elementos para alternativas 149

    Parte Quatro Reorientaes 157

    11 Recortes atravs do espao 159

    Caindo nas armadilhas do mapa 159O acaso do espao 165Imaginaes viajantes 173

    (Confiar na cincia ? 3) 185

    12 O carter elusivo do lugar 190

    Rochas migrantes 190O lugar como eventualidade 199

    (Geografias da produo do conhecimento 2:lugares da produo do conhecimento) 206

    Parte Cinco Uma poltica relacional do espacial 211

    13 Acabar juntos: a poltica do lugar como eventualidade 213

    14 No h regras de espao e lugar 231

    15 Construindo e disputando tempo-espaos 250

    Notas 275

    Bibliografia 287

    ndice 305

  • agradecimentos

    Este livro foi escrito, e reescrito, durante muitos anos, nos interstcios, cada vez mais apertados, da vida como "acadmica". Seria impossvel agradecer a cada um que influenciou minhas idias, durante esse perodo, em conversaes de vrias direes e intensidades, mas eu gostaria de agradecer a algumas delas. O Departamento de Geografia da Open University est constantemente nos incitando a novas reflexes. Dentro do departamento, John Allen, Dave Featherstone (agora em Liverpool), Steve Pile e Arun Saldanha (agora em Minnesota) fizeram-me, realmente, comentrios muito teis sobre todo o manuscrito ou em algumas de suas partes. De maneira mais geral, lucrei muito com a discusso destas idias em seminrios em vrias universidades e, principalmente, no Departamento de Geografia de Queen Mary, Universidade de Londres, e na Universidade de Heidelberg. Uma reunio anual do Fim de Semana de Estudos dos gegrafos de lngua alem foi uma fonte de inspirao e amizades. Muitas das discusses deste livro tiveram sua origem e foram testadas no mundo alm da academia nas coisas comuns da vida e em toda uma gama de envolvimentos polticos. No processo de produo fui beneficiada com a ajuda especializada da equipe da SAGE, Robert Rojek, David Mainwaring, Janey Walker e Vanessa Harwood, e com a colaborao de secretariado de Michele Marsh na Open University. Gostaria de agradecer, especialmente, a Neeru Thakrar, tambm da Open University, cuja habilidade em produzir o manuscrito digitado e apoio administrativo profissional foram inestimveis. Finalmente, a mais longa conversa foi com minha irm, Hilary Corton, tambm gegrafa por educao, imaginao e paixo, e com quem, durante muitas andanas, conversas e viagens comuns, foram desenvolvidos muitos dos pensamentos aqui expostos.

  • pelo espao agradecim entos

    A autora e os editores agradecem a permisso do uso de material com copyright:

    Ilustraes

    Ilustrao 1.1a: Cortesia da Bodleian Library, Universidade de Oxford, MS. Arch. Seiden. A. I, foi. 2r

    Ilustrao 1.1b: Cortesia da Newberry Library, Chicago Ilustrao 1.2: Cortesia da Bibliothque nationale de France, Paris Ilustraes 11.1,12.1a e 12.2: Obrigada ao cartgrafo John Hunt, da

    Open University Illustrao 11.2: Tim Parfitt (www.hertfordshire.com)Ilustraes 12.1a e 12.4: Blackwell Publishing Ltd, Oxford Ilustrao 12.3: The Palaeontological Association Ilustrao 13.1: Design Steffan Bhle; usado com a gentil permisso

    de Ulla Neumann Na p. 202 a imagem do de Peter Pedley Postcards, Glossop,

    Derbyshire

    Imagens no incio das sees

    Parte Um Cortesia da Bancroft Library, Universidade da Califrnia, Berkeley

    Parte Dois The MC Escher Company Parte Trs Steve Bell Parte Quatro Ann BowkerParte Cinco Design Steffan Bhle; usado com a gentil permisso

    de Ulla Neumann

    Textos

    O texto no box da p. 232 cortesia do Greenpeace (http: / / www.greenpeace.org)

    A Parte Trs desenvolve argumentos primeiro esboados em "Imagining Globalisation: Power-Geometries of Time-Space", Captulo 2 de Global Futures: Migration, Environment and Globalization, publicado por Atvar Brah, Mary J. Hickman e Mirtin Mac an Ghaill. Agradeo British Sociological Association e BSA Publications Limited.

  • apresentao edio brasileira

    Rogrio Haesbaert

    No final de 2002 encontrei Doreen Massey em Londres, na estao ferroviria de Euston, a caminho do campus da Open University, em Milton Keynes, onde ela trabalha desde 1982. Eu vinha para um estgio ps-doutoral de 10 meses, depois de contatos no muito fceis (e com certa insistncia minha), intermediados por amigos (especialmente Felix Driver e Luciana Martins) ou pela internet. Doreen, em seu estilo muito prprio, foi logo revelando sua surpresa: "Ento voc real..." Num mundo de realidades virtuais, os contatos pessoais diretos ainda nos permitem surpresas: "ser real..." Ou melhor, revelam at mais do que no passado, quando, durante muito tempo, constituam praticamente o nico contato possvel atravs do qual se fazia a comunicao entre as pessoas. Doreen justamente uma entusiasta desses "contatos face a face", sensveis-afetivos, que fazem do espao e das contingncias simultneas, enquanto veculos da multiplicidade o locus do aparecimento do efetivamente novo. Muitos novos contatos teramos a partir da, no apenas no agradvel campus da Open University, mas tambm no mbito da British Library, em Londres, que ela considerava "nossa catedral", freqentada quase toda semana, com alguns papos acalorados durante os intervalos para um caf.

    Nosso encontro foi fruto de um desses incontveis entrecru- zamentos de trajetrias que, sem que se planeje muito (ou nem um pouco), acabam ocorrendo e produzindo outros, completamente inesperados, percursos (literalmente: Doreen veio ao nosso encontro de ps-graduao em geografia em 2005; retorno a Londres para reencontr-la; planejamos outras viagens...). O espao, Doreen enfati-a za, justamente isto: uma imbricao de trajetrias, sempre aberto ao| inesperado, ao acaso, e que, enquanto locus da coexistncia contempo-| rnea ou da "coetaneidade", como ela prope , marcado pela* multiplicidade, apesar de todas as tentativas e os discursos vos daf homogeneizao e da padronizao generalizadas.

    Doreen dispensa apresentaes, tamanha a seriedade e o reconhecimento de seu trabalho no mundo acadmico geogrfico e das cincias

  • pelo espao apresentao edio brasileira

    sociais como um todo. Infelizmente, contudo, seu trabalho no Brasil ainda pouco divulgado. Apenas trs artigos, pelo que sabemos, encontram-se traduzidos em portugus.4 Ainda que de forma breve, interessante relembrar alguns momentos de sua trajetria intelectual. Professora de geografia na Faculdade de Cincias Sociais da Open University, em Milton Keynes, Inglaterra, onde orienta vrios estudantes de doutorado, Doreen formada em geografia pela Universidade de Oxford e ps-graduada em Regional Science pela Universidade da Pensilvnia. Em 1998, na Frana, recebeu o prmio Vautrin Lud, correspondente ao Nobel de geografia. E fundadora da revista Soundings: a journal of politics and culture.

    Foi professora visitante da London School of Economics, da Universidade de Berkeley, na Califrnia, e do Instituto de Investigaciones Econmicas y Sociales, na Nicargua. Participou de varias consultorias de planejamento e atua em vrios comits editoriais de revistas de renome internacional.

    Dentro de sua volumosa obra destacamos, entre mais de 20 livros publicados, individuais e como organizadora:

    Spatial Divisions of Labour (1984) Geographies Matters! (com John Allen, 1984) Space, Place and Gender (1994) Re-thinking the Region (com John Allen e Allan Cochrane, 1998) Human Geography Today (organizadora, 1999) Power-geometries and the politics o f space-time (Hettner-Lectures,

    1999) For Space (2005), aqui traduzido para o portugus

    Alm da grande figura intelectual, no entanto, cabe ressaltar tambm a grande pessoa humana que Doreen, filha da classe operria de Manchester, na tradicional regio industrial do noroeste da Inglaterra, engajada, politicamente compromissada tanto no sentido da poltica das desigualdades, como filha de operrios, quanto da poltica das diferenas, como mulher e que, ao lado de todo o seu esprito

    * Trata-se de: Regionalismo: alguns problemas atuais. Rev. Espao & Debates n" 4,1981; O sentido global do lugar (in Arantes, A. [org.] O espao da diferena. Campinas: Papirus, 2000) e Filosofia e Polticas da Espacialidade (revista GEOgraphia, n" 12, 2004), alm de recente entrevista publicada na revista Geo-Sur (n" 42).

  • crtico, tambm no perdeu a esperana num mundo em que os lugares sejam efetivamente de encontro, lugares do convvio das multiplicidades.

    Graas a seu espanhol excelente, praticado na Nicargua sandinis- ta e em temporadas no Mxico, Doreen nos ajudou muito nas diversas dvidas que permearam esta traduo. Seu ingls criativo, "inventando" novas palavras capazes de dar conta da complexidade das relaes socioespaciais contemporneas, obrigou-nos muitas vezes, eu e a tradutora Hilda Maciel, a criar palavras, embora o portugus no tenha tanta facilidade quanto o ingls para, simplesmente acrescentando um sufixo, por exemplo, dar outra conotao ou mesmo identificar uma nova propriedade. Assim ocorreu com expresses como elusiveness ou throwntogetherness...

    A traduo de Hilda Maciel e meu trabalho subseqente, inicialmente de reviso tcnica e depois, tambm, como tradutor, dadas as dificuldades do texto, foi uma empreitada e tanto. Em alguns casos, recorremos a amigos gegrafos, que nos deram preciosas sugestes, especialmente Lia Machado e Maurcio Abreu, a quem agradecemos. Agradeo tambm a Hilda pela sua pacincia, em meio a alguns momentos de tenso, reformatando constantemente o texto e o ndice, e pela formulao de muitas das notas de esclarecimento.

    Uma das caractersticas que marcam constantemente a abordagem de Doreen a superao das dicotomias, como aquelas entre "cincia" e poltica e entre teoria e prtica. Assim, ao longo do texto, alm da freqente preocupao, explcita, com as implicaes polticas de suas propostas conceituais, encontramos uma srie de aluses empricas que ilustram o denso debate terico. E no apenas de espaos distantes (como a prpria Amaznia), mas sobretudo de seus "espaos vividos", a Londres (com vrias referncias City londrina), ao seu prprio bairro, Kilburn, seu percurso de trem at Milton Keynes, aos "science parks" (traduzidos aqui como "tecnopolos"), s suas prprias frias no Lake District, no noroeste da Inglaterra, e viagens com sua irm. Doreen capaz de extrair toda uma reflexo terica a partir de fatos simples, corriqueiros, como o momento em que sua me abandonou uma antiga receita de bolo, to apreciada por ela e sua irm, e ofereceu um novo bolo, que estava longe de atender s expectativas das filhas. Da vem uma discusso sobre o tempo-espao que no possvel reconstituir, e que no podemos impor aos outros ou exigir deles. Aliam-se em alguns momentos o rigor terico e o prazer de uma certa escritura potica.

  • A autora, neste trabalho, amplia, de certo modo, seu "sentido global do lugar", incorporando agora de maneira explcita a dimenso natural, dialogando, como j faz h algum tempo, com a prpria (assim chamada) geografia fsica. O lugar, a, no apenas produto de relaes sociais cuja singularidade marcada pela combinao especfica de mltiplas redes, o "lugar-encontro", sempre dinmico e em aberto, conectado ao mundo; ele est tambm mergulhado na densa espao- temporalidade da prpria natureza, nunca esttica, que se reconstri permanentemente em sua indissocivel vinculao ao igualmente complexo mundo dos homens.

    Mas Doreen tambm no daqueles intelectuais que se envolvem totalmente e abraam quase que mecanicamente, sem restries, uma nova proposta terica. Ela dialoga tanto com clssicos mais tradicionais (como Bergson e muitos estruturalistas) como com contemporneos altamente inovadores (Deleuze e Guattari, Derrida, De Certeau, Laclau, Latour e os "ps-colonialistas"). Muito crtica forma com que os estruturalistas focalizam o espao e sua contraposio em relao ao tempo , nem por isso ela ignora a importncia de muitas de suas colocaes. O mesmo ocorre com a chamada teoria da complexidade contempornea (ver, a este respeito, especialmente "Confiar na cincia? , Parte Trs). Da resultam colocaes muito pertinentes, como:

    Os que adotam o que Robbins v como "O desprezo irrefletido pela modernidade entre os intelectuais ocidentais" (1999, p. 112) deveriam estar conscientes de que a mesma rejeio pode aguardar sua prpria posio, uma ou duas geraes depois (p. 73).

    De cada Zeitgeist, de cada estrutura de percepo que acolhemos e empregamos, certamente necessrio indagar: est de acordo, no apenas com "a poca" (e da?), mas com o modo como desejamos (socialmente, politicamente) nos dirigir a essa poca? Pode ser que desejemos, precisamente, subverter as tendncias culturais dominantes do momento (p. 127, destaque da autora).

    Colocaes como essas revelam sobretudo um(a) intelectual preocupado^) com a formulao de um pensamento prprio, com sua forma particular de ver o mundo, realizando suas prprias "snteses", suas propostas tericas inovadoras sempre, verdade, fruto do entrecruzamento de mltiplas influncias que, sem carem no "ecletismo" simplista, inauguram uma nova forma de pensar de forma crtica e com coerncia a aparente confuso das coisas e dos homens.

  • Este livro, sem dvida, pode representar mais um estmulo para o repensar de nossa prpria forma de ver o mundo, geogrfica e historicamente contextualizada na "periferia" latino-americana e/ou na, para alguns, "semiperiferia" brasileira (com toda a controvrsia que estes conceitos implicam). E a prpria autora que nos incita a reler seu trabalho com nossos prprios olhos. E no poderia ser diferente. Parte desse processo foi um pouco o que j tentamos em alguns trabalhos, como na prpria concepo de "multiterritorialidade" que propusemos, e que em determinado momento se viu reforada pela concepo de "lugar" de Doreen Massey. "Lugar" na geografia anglo-saxnica, "territrio" na geografia latino-americana, as palavras podem mudar, mas muitos de seus contedos conceituais so compartilhados./ Talvez a hegemonia do "lugar" revelada nos trabalhos de Doreen '(e mesmo na geografia inglesa) se deva, em parte, fora da dimenso

    '^cultural-identitria no contexto geogrfico ingls, assim como a do "territrio" no nosso meio talvez se deva fora das disputas territo-

    j riais num ambiente em que a "terra-territrio" ainda um recurso (eI um abrigo, diria Milton Santos) a ser apropriado e usufrudo por uma parcela cada vez mais ampla da sociedade. Alis, o usufruto comum ou partilhado, uma efetiva "multiterritorialidade", tem muito a ver com o "lugar mltiplo" e "de encontro" a que Doreen se refere. Mas isto, para encerrar, apenas um dos mltiplos dilogos possveis a aprofundar e que Pelo espao nos convida a praticar. Num mundo em que, para alm da clausura dos muros, das fronteiras e das fixaes rgidas mas tambm para alm da mobilidade irrestrita e compulsria , esteja sempre em aberto a possibilidade da partilha, do usufruto comum do territrio e do encontro com o "lugar" do efetivamente outro e que, por ser "outro", coloca-nos permanentemente o desafio para o novo.

  • prefcio edio brasileira

    Sinto-me honrada e muito satisfeita que este livro esteja sendo publicado no Brasil. O pas tem uma longa histria de significativas contribuies geografia e uma longa histria, tambm, de dilogo com a Europa. Espero que este trabalho possa ser mais um elemento neste intercmbio. Certamente, em visitas recentes ao Brasil (como, por exemplo, ao congresso da ANPEGE Associao Nacional de Ps- Graduao em Geografia , em 2005, em Fortaleza) ficaram evidentes as oportunidades para um intercmbio produtivo e estimulante. Uma das formas atravs das quais isto ocorre que um livro escrito em um lugar possa ser utilizado e lido de forma diferente, ou similar, em outro (a geografia tambm importa neste caso!). Assim, espero descobrir que tendncias e direes do debate podem emergir da interseo desta obra com os caminhos que vm sendo percorridos pelas geografias lusfonas.

    O argumento fundamental deste livro que importa o modo como pensamos o espao; o espao uma dimenso implcita que molda nossas cosmologias estruturantes. Ele modula nossos entendimentos do mundo, nossas atitudes frente aos outros, nossa poltica. Afeta o modo como entendemos a globalizao, como abordamos as cidades e

    ( desenvolvemos e praticamos um sentido de lugar. Se o tempo a di-I menso da mudana, ento o espao a dimenso do social: da coexis- * tncia contempornea de outros. E isso ao mesmo tempo um prazer e

    um desafio.O fato de que esta traduo tenha sido realizada se deve conside

    ravelmente energia e generosidade de Rogrio Haesbaert. Ele props o projeto, ajudou a negoci-lo e colocou-o em execuo. No tenho palavras suficientes para agradecer-lhe por isso. Nossa amizade desenvolveu-se quando Rogrio estava na Open University, escrevendo seu prprio livro, O Mito da Desterritorializao. Posso ler suficientemente portugus, e de alguma forma falei com Rogrio sobre isso,

  • reconhecendo que seu livro representa uma grande contribuio para o nosso campo. O fato de que, pelo menos at este momento, ele no tenha ainda sido traduzido para o ingls um lamentvel reflexo das desigualdades geogrficas (as desiguais geometras de poder) da indstria editorial e, sem dvida, dos prprios mundos universitrios.

    Estou, tambm, profundamente consciente de que foi um verdadeiro desafio traduzir este livro. Isto se deve em parte ao fato de que eu quis mesclar discusses tericas bastante abstratas com estrias do cotidiano e, algumas vezes, pessoais, bem como com poltica. Isto no uma presuno. Deve-se, por um lado, a uma profunda convico de que as conceitualizaes implcitas que temos do espao modulam todas essas esferas e, por outro, ao fato de que esta forma como eu (e creio que muitos de ns) realmente trabalho. Para mim, freqentemente atravs da reflexo sobre algum "acontecimento comum", um artigo de jornal ou um debate poltico aparentemente insignificante que chego a novos entendimentos "tericos". A "teoria" surge da vida. Mas a outra razo pela qual este livro foi um verdadeiro desafio para traduzir foi que, para evocar o que eu estava tentando alcanar, de fato recorri ao que Rogrio generosamente chamou de "ingls criativo" (em momentos crticos, ele deve ter chamado meu ingls de "exasperante"). Acho que ningum jamais pensa, quando escreve em sua prpria lngua e eu certamente no o fiz , que podemos estar criando problemas terrveis para qualquer tradutor. Neste caso, Hilda Pareto Maciel fez a traduo inicial, com Rogrio retrabalhando-a numa verso final. Somente quando o processo j estava em andamento que eu percebi a magnitude dessa empreitada. Comearam a chegar e-mails que indagavam o que exatamente eu queria dizer com determinada palavra ou expresso. Usamos a intermediao do espanhol e, pelo menos para mim, isto produziu algumas reflexes interessantes sobreo que eu quis exatamente dizer! O cuidado, ateno e tempo envolvidos nesta tarefa foram enormes, bem mais do que se pode razoavelmente esperar de uma traduo. Quero aproveitar esta ocasio para agradecer a Rogrio por ter levado a cabo este vasto trabalho e pela generosidade de sua amizade ao assim faz-lo.

    Recordando o momento em que a primeira carta chegou, propondo que Rogrio passasse um tempo em nosso Departamento de Geografia na Open University, eu hoje me dou conta, com um sorriso, de que no tinha idia do que poderia resultar desse encontro. Rogrio

  • tornou-se, durante sua visita, um membro valioso e estimado do departamento, e eu, pessoalmente, ganhei um verdadeiro amigo e companheiro intelectual. Como sempre acontece quando o encontro de trajetrias bem-sucedido, aquele momento levou a novos e inesperados acontecimentos. Eu serei sempre grata por isso.

    Doreen Massey Inglaterra, maro de 2007

  • Tenochtitln. Tierra del nopal. Entrada de Hernn Cortez, la cual se verific el 8 de Noviembre de 1519.

    Cortesia da Bancroft Library, Universidade da Califrnia, Berkeley

  • Parte Um Estabelecendo o cenrio

    H muito tempo venho pensando sobre o "espao". Mas, geralmente, chego a ele indiretamente, atravs de algum outro tipo de envolvimento: as batalhas em torno da globalizao, a poltica do lugar, a questo da desigualdade regional, o envolvimento com a "natureza" enquanto caminho pelas colinas, a complexidade das cidades. Apontando coisas que no parecem muito corretas. Perdendo debates polticos porque os termos no se adaptam ao que estou lutando para dizer. Encontrando-me perdida em sentimentos aparentemente contraditrios. Foi atravs dessas constantes reflexes que, s vezes, parecem no conduzir a lugar algum, mas em outras sim que me convenci de que no s os pressupostos implcitos que fazemos em relao ao espao so importantes, mas tambm que, talvez, fosse produtivo pensar sobre o espao de maneira diferente.

    Trs consideraes

    1 Os exrcitos se aproximavam da cidade pela regio chamada de o junco ou o crocodilo a direo em que o sol nasce. J se sabia muito sobre eles. Os relatos vinham de provncias distantes. Coletores de impostos da cidade, recolhendo tributos dos territrios conquistados, tinham-se encontrado com eles. Emissrios tinham sido enviados para iniciar conversaes e descobrir mais. E agora, grupos das vizinhanas, desgastados por sua longa submisso cidade asteca, tinham-se aliado aos invasores estrangeiros. Porm, apesar de todos esses contatos anteriores, do constante fluxo de mensagens, rumores, interpretaes que alcanavam a cidade, os exrcitos que se aproximavam eram ainda um mistrio. ("Os estrangeiros sentavam-se em 'coras da altura de

  • c T tfi4* ' W , j spelo espao estabelecen do o cenarw

    Figura 1.1a Tenochtitln Representao asteca Fonte: The Bodleian Library

    telhados'. Seus corpos estavam completamente cobertos, 'apenas seus rostos podiam ser vistos. Eram brancos como que feitos de cal. Tinham cabelos amarelos, embora os de alguns fossem pretos. Longas eram suas barbas.'" *) E eles chegavam da direo geogrfica que, nesses tempo-espaos, era considerada como sendo aquela do poder.

    Era tambm o Ano 1 Junco, um ano de significado tanto histrico quanto cosmolgico: um ponto especfico na escala do ciclo dos anos. Durante ciclos passados a cidade tornara-se, vigorosamente, prspera. Fora apenas h alguns ciclos que os as tecas/mexicas tinham-se estabelecido, pela primeira vez, nesse imenso vale nas alturas. Eles tinham vindo da direo da pedra de fogo depois de muito vagar; um povo sem

  • cultura, na opinio das cidades j estabelecidas ao redor do lago. Mas desde sua chegada e da fundao dessa cidade de Tenochtitln, os aste- cas tinham acumulado sucesso sobre sucesso. A cidade, agora, era a maior do mundo. Seu imprio, agora, se estendia para o oceano, em duas direes, atravs de conquistas e violenta e contnua subordinao.

    At ento os astecas tinham conquistado tudo sua frente. Mas esses exrcitos que se aproximavam eram um pressgio. Os imprios no duram para sempre. H apenas pouco tempo, Azcapotzalco, margem do lago, fora destruda aps um breve lampejo de glria. E Tula, sede dos venerados toltecas, agora jazia deserta, como as runas de Teotihuacn. Todas essas so lembranas de antigos esplendores e de sua fragilidade. E agora, esses invasores estranhos vinham da direo de acatl e era o Ano 1 Junco.

    Essas coisas so importantes. Coincidncias de eventos formam as estruturas do tempo-espao. Para Montezuma elas se somavam a todo esse deplorvel enigma de como reagir. Poderia ser um momento de crise para o imprio.2

    Os homens do exrcito que se aproximava dificilmente podiam acreditar em seus olhos quando primeiro divisaram a cidade, do alto, com

    Figura 1.1b Tenochtitln Representao espanhola Fonte: The Newberry Library

  • superioridade. Tinham ouvido dizer que era esplndida, mas ela era cinco vezes o tamanho de Madri, na Europa em mutao, que eles tinham deixado para trs havia apenas alguns anos. E essas viagens dirigiam-se, originariamente, em direo ao oeste, na esperana de eles encontrarem o Oriente. Quando, alguns anos antes, Cristvo Colombo "dirigira-se atravs do enorme vazio a oeste da cristandade, aceitara o desafio da lenda, tempestades terrveis jogaram com seus navios como se fossem cascas de nozes e os lanaram dentro das mandbulas de monstros; a serpente do mar, vida por carne humana, estava espreita, nas profundezas escuras e tenebrosas ... os navegadores mencionavam estranhos cadveres e peas de madeira com estranhas esculturas que flutuavam, ao vento oeste..."3 Era ento o Ano de Nosso Senhor de 1519.4 Esse pequeno exrcito, sob o comando de Ferno Corts, e seus poucos cavalos e suas armaduras tinha velejado desde o local que seus lderes tinham decidido chamar de Cuba, no princpio do ano, e agora era novembro. A viagem desde a costa tinha sido difcil e violenta, com batalhas e a construo de alianas. Finalmente, agora, eles tinham chegado, com grande esforo, ao topo desse passo entre dois vulces coroados de neve. Para Corts, esquerda e ao alto acima dele, o Popocatepetl fumegava sem cessar. E abaixo dele, a distncia, estendia-se essa incrvel cidade, diferente de tudo que ele tinha visto antes.

    Decorreram dois anos de negociao enganosa, erros de clculo, derramamento de sangue, derrotas, retiradas e novos ataques, antes que Femo Corts, conquistador espanhol, conquistasse a cidade dos aste- cas, Tenochtitln, que hoje chamada de la ciudad de Mxico, Cidade do Mxico, Distrito Federal.

    O modo em que, hoje em dia, freqentemente, contamos essa histria, ou qualquer um dos relatos de "viagens de descoberta", em termos de cruzamento e conquista do espao. Corts viajou atravs do espao, encontrou Tenochtitln e tomou-a. "Espao", nesse modo de falar, uma grande extenso atravs da qual viajamos. Isso, talvez, parea muito bvio.

    Mas o modo como imaginamos o espao tem seus efeitos como teve, para Montezuma e para Corts, de formas diferentes para cada um. Conceber o espao como nas viagens de descobertas, como algo a ser atravessado e, talvez, conquistado, tem implicaes especficas.

  • Est implcito que se considera o espao como solo e mar, como a terra que se estende ao nosso redor. Implicitamente, tambm, faz o espao parecer uma superfcie, contnuo e tido como algo dado. Ele faz diferena: Femo, ativo, um construtor de histria, viaja sobre sua superfcie e encontra, sobre ela, Tenochtitln. uma cosmologia impensvel, para usar o termo mais brando, mas leva consigo efeitos sociais e polticos. Portanto, esse modo de conceber o espao pode assim, facilmente, nos levar a conceber outros lugares, povos, culturas, simplesmente como um fenmeno "sobre" essa superfcie. No uma manobra inocente; desta forma, eles ficam desprovidos de histria. Imobilizados, esperam a chegada de Corts (ou a nossa, ou a do capital global). L esto eles, no espao, no lugar, sem suas prprias trajetrias. Tal espao toma mais difcil ver, em nossa imaginao, as histrias que os aste- cas tambm estavam vivendo e produzindo. O que poderia significar reorientar essa imaginao, questionar esse hbito de pensar o espao como uma superfcie? Se, em vez disso, concebssemos um encontro d histrias, o que aconteceria s nossas imaginaes implcitas de tempo e espao?

    2 Os atuais governos do Reino Unido e dos Estados Unidos (alm de muitos outros governos hoje) contam-nos uma histria da inevitabilidade da globalizao. (Ou, talvez, apesar de, naturalmente, no fazerem essa distino, contam-nos uma histria da inevitabilidade daquela forma especfica de globalizao capitalista neoliberal que experimentamos num determinado momento aquela dupla combinao da glorificao do (desigualmente) livre movimento do capital, por um lado, com o firme controle sobre o movimento do trabalho, por outro. De qualquer forma, dizem-nos que inevitvel.) E se apontarmos para as diferenas ao redor do mundo, para Moambique, ou Mali, ou a Nicargua, eles diro que tais pases esto apenas "atrasados"; que, eventualmente, seguiro o caminho que o Ocidente capitalista abriu. Em 1998 o prprio Bill Clinton declarou que "ns" j no podemos mais resistir s atuais foras da globalizao, como no podemos resistir lei da gravidade. Deixemos de lado as possibilidades de resistir fora da gravidade e notemos apenas que esse homem passa grande parte de sua vida voando de um lado para outro em aeronaves... Mais seriamente, esta proposta nos foi feita por um homem que passou boa parte de sua carreira recente tentando proteger e promover (atravs do

  • Gatt, da OMC, da acelerao do Nafta/TLC)* essa, supostamente, implacvel fora da natureza. Conhecemos o contra-argumento: a "globalizao" em sua forma atual no o resultado de uma lei da natureza (ela prpria um fenmeno em questo) um projeto. O que declaraes como as de Clinton esto fazendo tentar nos persuadir de que no h alternativa. Essa no uma descrio do mundo como ele , mas uma imagem atravs da qual o mundo est sendo feito.

    Isto em grande parte, agora, est bem estabelecido nas crticas sobre a globalizao contempornea. Mas se toma, talvez, menos freqentemente explcito que uma das manobras cruciais em ao dentro dela, para nos convencer da inevitabilidade dessa globalizao, um truque enganoso, em termos da conceituao de espao e tempo. Essa proposio transforma a geografia em histria, o espao em tempo. E isto, novamente, tem efeitos sociais e polticos. Afirma-se que Moambique e a Nicargua no so, realmente, diferentes de "ns". No devemos imagin-los como tendo suas prprias trajetrias/ suas prprias histrias especficas e o potencial para seus prprios, talvez diferentes, futuros. No so reconhecidos como outros coetneos. Esto, meramente, em um estgio anterior, na nica narrativa que possvel fazer. Esta cosmologia de "nica narrativa" oblitera as multiplicidades, as heterogeneidades contemporneas do espao. Reduz coexistncias simultneas a um lugar na fila da histria.

    Ento, em resposta: e se...? JEjse nos recusssemos a expressar espao em tempo? E se amplissemos a imaginao da nica narrativa para oferecer espao (literalmente) a uma multiplicidade de trajetrias? Que tipos de conceituao de tempo e espao e de suas relaes isso poderia revelar?

    3 E, assim, existe "lugar". No contexto de um mundo que , certamente, cada vez mais interconectado, a noo de lugar (geralmente citado como "lugar local") adquiriu uma ressonncia totmica. Seu

    v..

    valor simblico , incessantemente, mobilizado em argumentos polticos. Para alguns, a esfera do cotidiano, de prticas reais e valorizadas, a fonte geogrfica de significado, vital como ponto de apoio, enquanto

    * Gatt = A cordo Geral de Tarifas e Com rcio; OMC = O rganizao Mundial do C om rcio; N afta /T L C = N orth A m erican Free Trade A greem ent/A co rd o de Livre Comrcio. (N.T.)

  • n"o global" tece suas teias, cada vez mais poderosas e alienantes. Para outros, "um refgio no lugar" representa a proteo de pontes levadias e a construo de muralhas contra as novas invases. Lugar, atravs dessa leitura, o local da negao, da tentativa de remoo da invaso/diferena. um refgio, politicamente conservador, uma essencia- lizadora (e, no final, invivel) base para uma resposta, que falha ao dirigir-se s reais foras em ao. Tem sido essa, sem dvida, a imagi-

    \ y- nao por detrs de alguns dos piores conflitos recentes. As revoltas,i / qI- 'yS - em 1989, em vrias partes da velha Europa comunista, trouxeram o J s retomo, numa nova e diferente escala e com uma nova intensidade, de

    y7 nacionalismos e paroquialismos territoriais, caracterizados por pretenses de exclusividade, por afirmaes da autenticidade nativa enraiza-

    f . ; da de especificidade local e por hostilidade pelo menos contra alguns daqueles que so designados como outros. Mas, ento, como fica a defesa do lugar pelas comunidades das classes trabalhadoras nas gar-

    - ; ' . ras da globalizao, ou por grupos aborgines agarrando-se a um ltimo pedacinho de terra?

    O lugar tem um papel ambguo em tudo isso. O horror s exclusividades locais equilibra-se, precariamente, em relao ao apoio luta vulnervel pela defesa de seu pequeno torro. Enquanto o lugar reivindicado ou rejeitado, nesses debates, de formas incrivelmente distintas, h, muitas vezes, pressuposies subjacentes compartilhadas: de lugar como algo fechado, coerente, integrado, como autntico, como

    - "lar", um refgio seguro; de espao como, de algum modo, originalmente, regionalizado, como sempre-j dividido em partes iguais.5 E, mais do que isso, ainda, eles instituem, implicitamente, mas inserida

    j : dentro dos prprios discursos que eles mobilizam, uma contraposio, j. s vezes at mesmo uma hostilidade, certamente uma imaginao

    implcita de diferentes "nveis" tericos (do abstrato versus o cotidiano e assim por diante) entre espao, por um lado, e lugar, por outro.

    E se, ento, recusarmos essa imaginao? E se, ento, recusarmos no apenas os nacionalismos e os paroquialismos que gostaramos de ver assim, minados, mas tambm a noo de lutas locais ou da defesa do lugar em sentido mais geral? E se recusarmos essa distino,, por mais sedutora que parea, entre lugar (como sentido, vivido e cotidiano) e espao (como o qu? o exterior? o abstrato? o sem significao?)?

    v -,

  • E nesse contexto de inquietao com perguntas como essas que estes argumentos se desenvolveram. Sobre alguns dos momentos que geraram o pensamento aqui exposto j escrevi antes 1989, os conflitos de classe e a etnicidade no leste de Londres, a ilusoria francesidade de sentar em um caf parisiense , mas eles persistiram e brotaram nova- mente aqui, levados um pouco adiante. Encontros com o aparentemente familiar, mas em que algo continua a perturbar e inesperadas linhas de pensamento lentamente se desenrolam. Acima de tudo, os argumentos que se seguem tomaram forma, terica e politicamente, no contexto pernicioso dos localismos exclusivistas e das desigualdades sombras da atual forma hegemnica de globalizao; e, tambm, frente s dificuldades de reao. Foi a luta com a formulao dessas questes polticas que me levou a forar a abertura de seus modos, muitas vezes ocultos, de conceber o espao.

    A imaginao do espao como uma superfcie sobre a qual nos localizamos, a transformao do espao em tempo, a clara separao do lugar local em relao ao espao externo so todos meios de controlar o desafio que a espacialidade, inerente ao mundo, apresenta. Na maioria das vezes, ela no pensada. Aqueles que argumentam que Moambique est apenas "atrs" no o fazem (presumivelmente) como conseqncia de uma ponderao profunda sobre a natureza e a relao entre espao e tempo. Sua conceituao do espao, sua reduo a uma dimenso para a exposio/representao de diferentes momentos no tempo, est, conclui-se, implcita. Nesse sentido, eles no esto sozinhos. Um dos temas recorrentes no que se segue , simplesmente, como de fato se pensa to pouco explicitamente sobre o espao. No entanto, as constantes associaes deixam efeitos residuais. Desenvolvemos meios de incorporar uma espacialidade s nossas maneiras de ser no mundo, aos modos de lidar com o desafio que a enorme realidade do espao projeta. Produzidos por e envolvidos em prticas, das negociaes cotidianas s estratgias globais, esses engajamentos implcitos de espao retroalimentam e sustentam entendimentos mais amplos do mundo. As trajetrias de outros podem ser imobilizadas enquanto prosseguimos com as nossas; o desafio real da contempora- neidade dos outros pode ser desviado ao os relegarmos a um passado (retrgrado, antiquado, arcaico); os fechamentos defensivos de um lugar essencializado parecem permitir um descomprometimento mais amplo e fornecer um alicerce seguro. Nesse sentido, cada uma das consideraes anteriores fornece um exemplo de algum tipo de fracasso (deliberado ou no) da imaginao espacial. Fracasso no sentido de ser

  • p ro p o s i es in ic ia is

    es?

    Figura 1.2a Pegadas astecas no Cdice Xolotl Fonte: Bibliothque nationale de France

    No Ano 1 Junco/Ano de Nosso Senhor de 1519, entre os muitos aspectos de alteridade radical que se enfrentaram no vale do Mxico, estava o modo de imaginar o "espao". Corts carregava consigo aspectos de uma viso incipiente das imaginaes ocidentais vigentes no incio de seu progresso triunfante, mas imaginaes ainda crivadas de mito e emoo. Para os astecas tambm, embora de modo muito diferente, deuses, tempo e espao estavam inextricavelmente ligados. Um "aspecto bsico da viso de mundo dos astecas" era "uma tendncia a enfocar as coisas no processo de se tornarem outras" (Townsend, 1992, p. 122) e "o pensamento mexica no reconhecia um tempo e espao abstrato, dimenses separadas e homogneas, mas, antes, complexos concretos de espao e tempo, eventos e stios heterogneos e singulares.... " lugares-momentos" (Soustelle, 1956, p. 120).

    O Cdice Xolotl, uma construo hbrida, conta estrias. Os eventos so ligados por desenhos de rastros e linhas pontilhadas entre lugares. "L-se o manuscrito localizando-se a origem das pegadas e decifrando os signos dos lugares medida que apareceni nesses itinerrios" (Harley, 1990, p. 101). Enquanto o pressuposto geral acerca dos mapas ocidentais, hoje em dia, que eles so representaes do espao, esses mapas, como os mapa-mndi europeus, eram representaes de tempo e espao conjugados.

  • pelo espao estabelecendo o cenrio

    inadequada para enfrentar os desafios do espao, fracasso por no incluir suas multiplicidades coetneas, por no aceitar sua contempo- raneidade radical, por no lidar com a complexidade de sua constituio. O que aconteceria se tentssemos nos desvencilhar de tais com- preenses, entretanto quase intuitivas?

  • 1 6 i/*Vr' V
  • i pelo espao estabelecendo o cenrio

    especfico pode perturbar a maneira em que certas questes polticas

    podem ser concluidas j a partir da breve declarao de proposies. Assim, apesar de que seria incorreto e por demais rigidamente restritivo propor qualquer mapeamento simples uma a uma, possvel esclarecer, a partir de cada uma, um aspecto ligeiramente distinto do rol potencial de conexes entre a imaginao do espacial e a imaginao do poltico.

    Assim, primeiro, entender o espao como um produto de inter- relaes combina bem com a emergncia, nos anos recentes, de uma poltica que tenta comprometer-se com o antiessencialismo. Em lugar de um liberalismo individualista, ou de um tipo de poltica de identidade, que considere essas identidades j, ou para sempre, constitudas e defenda os direitos ou reivindique a igualdade para essas identidades j constitudas, essa poltica considera a constituio dessas prprias identidades e as relaes atravs das quais elas so construdas como sendo um dos fundamentos do jogo poltico. As "relaes" aqui so compreendidas como prticas encaixadas. Em vez de aceitar e tra- balhar com entidades/identidades j constitudas, essa poltica enfati- za a construtividade relacional (incluindo as chamadas subjetividade poltica e clientelas polticas). E cautelosa, portanto, a respeito de reivindicaes de autenticidade baseadas em noes de identidade imutvel. Em vez disso^prope um entendimento relacional do mundo e uma poltica que responda a tudo isso.

    Ajpoltia, de inter-relaes reflete, portanto, a primeira proposio, de que o espao, tambm, um produto de inter-relaes. O espao no existe antes de identidades/entidades e de suas relaes. De um modo mais geral, eu argumentaria que identidades /entidades, as relaes "entre" elas e a espacialidade que delas faz parte so todas co- constitutivas. Chantal Mouffe (1993, 1995), particularmente, escreveu sobre como poderamos conceituar a construo relacional de subjetividades polticas. Para ela, as identidades e as inter-relaes so constitudas juntas. Mas a espacialidade pode ser, tambm, desde o princpio, integrante da constituio dessas prprias identidades, incluindo as subjetividades polticas. Alm disso, identidades especificamente

    r> L> ' so formuladas, pode contribuir para argumentaes polticas j em v curso e mais profundamente pode ser um elemento essencial na

    CV^ estrutura imaginativa que permite, em primeiro lugar, uma abertura \ ' 1 para a genuna esfera do poltico. Algumas dessas possibilidades

  • espaciais (lugares, naes) podem, igualmente, ser reconceitualizadas em termos relacionais. Questes das geografias de relaes e das geografias da necessidade de sua negociao (no mais amplo sentido deste termo) esto sempre presentes neste livro. Se nenhum lugar/espao uma autenticidade coerente e contnua, ento uma questo que

    levantada a de sua negociao interna. Se as identidades, tanto as especificamente espaciais quanto as outras, so, de fato, construdas relacionalmente, ento isto coloca a questo da geografia dessas relaes de construo. Levanta questes da poltica dessas geografias e de nosso relacionamento e responsabilidade com elas, e faz surgirem, de modo contrrio e, talvez, de maneira menos esperada, as geografias potenciais de nossa responsabilidade social.

    Segundo, imaginar o espao como a esfera de possibilidade da existncia da multiplicidade combina com o que, com maior nfase, em anos recentes, em discursos polticos da esquerda, tem sido colocado como "diferena" e heterogeneidade. A forma mais evidente que isso tomou foi a insistncia de que a estria do mundo no pode ser contada (nem sa geogrH elaborada) como a estria apenas do "Ocidente", ou a estria, por exemplo, daquela figura clssica (irnica e freqentemente, ela prpria essncializada) do macho branco, heterossexual e que essas eram estrias particulares, entre muitas outras (e sua compreenso atravs dos olhos do Ocidente ou do macho heterossexual ela prpria especfica). Tais trajetrias foram parte de uma complexidade, e no os universais que elas, por tanto tempo, propuseram ser.

    A relao entre esse aspecto de uma poltica mutvel (e de um modo de fazer teoria social) e a segunda proposio sobre espao de natureza bem diferente da primeira proposio. Neste caso, o argumento de que a simples possibilidade de qualquer reconhecimento serio da multiplicidade e heterogeneidade em si mesmas depende de um reconhecimento da espacialidade. O corolrio poltico de que uma genuna e completa espacializao da teoria social e do pensa- mnto politico pode forar, na imaginao, um reconhecimento mais compteto da coexistncia simultnea de outros, com suas prprias trajetrias e com sua prpria estria para contar. A imaginao da globalizao como uma seqncia histrica no reconhece a coexistncia simultnea de outras histrias com caractersticas que sejam distintas (o que no implica estarem desconectadas) e futuros que, potencialmente, tambm possam s-lo.

    Terceiro, imaginar o espao como sempre em processo, nunca como um sistemajfechado, implica insistncia constante, cada vez maior, dentro dos discursos polticos, sobre a genuna abertura do futura E

  • pelo espao estabelecendo o cenrio

    uma insistncia baseada em tentativa de escapar da inexorabilidade^ ) que, to freqentemente, caracteriza as grandes narrativas ligadas modernidade. As estruturas do Progresso, do Desenvolvimento e da Modernizao ^e a sucesso de modos de produo elaboradas dentro do marxismo, todas elas propem cenrios nos quais as direes gerais da histria, inclusive o futuro, j so conhecidas. Conquanto muito tenha sido necessrio lutar para que acontecesse, entrar em batalhas para que fosse realizada, havia sempre, no entanto, uma convico implcita da direo em que a histria se movia. Muitos, hoje/j^e_itam tal formulao e defendem, em vez disso, uma abertura radical do futu- ro, quer o faam por meio de uma democracia radical (por exemplo, Laclau, 1990; Laclau e Mouffe, 2001), quer atravs de noes de experimentao ativa (como em Deleuze e Guattari, 1988; Deleuze e Pamet, 1987) ou atravs de certas abordagens dentro da teoria queer* (ver, como exemplo, Haver, 1997). Certamente, como Laclau, em particular, fortemente defenderia, apenas se concebermos o futuro como aberto poderemos, seriamente, aceitar ou nos engajar em qualquer noo genuna de poltica. Apenas se o futuro for aberto haver campo para uma poltica que possa fazer diferena.

    Agora, aqui novamente como no caso da primeira proposio h um paralelo com a conceituao de espao. No apenas a histria, mas tambm o espao aberto.6 Nesse espao aberto interacional h sempreLonexes ainda por serem feitas, justaposies ainda a des- brochar em interao (ou no, pois nem todas as conexes potenciais

    .ir**

    tm de ser estabelecidas), relaes que podem ou no ser realizadas. ^Aqui, ento, o espao , sem dvida, um produto de relaes (primei- J

    ra proposio), e para que assim o seja tem de haver multiplicidade (segunda proposio). No entanto, no so relaes de um sistema coe- rente, fechado, dentro do qual, como se diz, tudo (j) est relacionado com tudo. O espao jamais poder ser essa simultaneidade completa, -n na qual todas as interconexes j tenham sido estabelecidas e no qual todos os lugares j esto ligados a todos os outros. Um espao, ento, ^

    ; que no nem um recipiente para identidades sempre-j constitudas ' i j nem um holismo completamente fechado. um espao de resu ltad os 1 imprevisveis e de ligaes ausentes. Para que o futuro seja aberto, o

    espao tambm deve s-lo.

    * Queer inicialmente uma gria significando estranho", hoje se refere a comunidadeshomossexuais, bissexuais e de transgneros.

  • Todas estas palavras arrastam consigo inmeras conotaes. Escrever sobre o desafio da oposio entre espao e lugar poderia provocar, legitimamente, pensamentos heideggerianos (mas no isto que estou querendo dizer). Falar de "diferena" pode produzir pressuposies sobre alteridade (mas no ao que quero chegar). Mencionar multiplicidades evoca, entre outros, Bergson, Deleuze, Guattari (e haver, mais tarde, uma ligao com essa linha de pensamento). Alguns esclarecimentos preliminares podem ajudar.

    "Trajetria" e "estria" significam, simplesmente, enfatizar o. processo de mudana em um fenmeno. Os termos so, assim, temporais em sua nfase, apesar de que, eu defenderia, sua necessria espacialidade (seu posicionamento em relao a outras trajetrias ou histrias, por exemplo) inseparvel e intrnseca ao seu carter. O fenmeno em questo pode ser um coisa viva, uma atitude cientfica, uma coletividade, uma conveno social, uma formao geolgica. Tanto "trajetria" quanto "estria" tm outras conotaes que no adotamos aqui. "Trajetria" um termo presente em debates sobre representao, que tiveram influncias importantes e duradouras nos conceitos de espao e tempo (ver a discusso na Parte Dois). "Estria" traz consigo conotaes de alguma coisa relatada, ou de uma histria interpretada; mas eu me refiro, simplesmente, histria, mudana, movimento, das prprias coisas.

    Este monte de palavras diferena/heterogeneidade/multiplicidade/pluralidade j tambm provocou muita controvrsia. Tudo o qne^u^uis^dzer a esse respeito a existncia coetnea/1 de uma plura- I fd M r d trajetrias, uma sim ultaneidade de estrias-at-agora. Assim, a mnima diferena ocasionada pelo fato de tomar uma posio j suscita o fato de sua unicidade.* Isto no , ento, "diferena" con-

    *

    trastando com classe, como em algumas velhas batalhas polticas. E, simplesmente, o princpio de heterogeneidade coexistente. No a natureza especfica das heterogeneidades, mas a realidade delas, que intrnseca ao espao. Certamente isto coloca em questo quais poderiam ser as linhas pertinentes de diferenciao em qualquer situao particular. Essa "diferena" no , tambm, como aquela no movimento desconstrutivo de espaam ento: como na desconstruo de discursos de autenticidade, por exemplo. Isso no quer dizer que tais discursos no sejam significativos na modelagem cultural do espao, nem que no deveriam ser censurados. Romantismos de nacionalidade coeren-

    * " U niqueness" (q u alid ad e ou estad o de nico, e no de unitrio) no original. (N .T.)

  • te, como na terceira considerao, podem agir, precisamente, sobre tais princpios de identidade/diferena constitutiva. David Sibley (1995, 1999), entre outros, explorou tais tentativas de purificao do espao. Sem dvida, elas so, precisamente, um meio de lidar com suas heterogeneidades sua real confiplexidade e abertura. Mas o ponto em discusso aqui outro: no a diferena negativa, mas a heterogeneidade positiva. Isto se liga ao j m encionado argum ento poltico contra o essencialism o. A medida que tal argum ento adotou uma forma de construcionismo social que estava confinada ao mbito discursivo no oferecia, em si, uma alternativa positiva. Dessa form a, para o caso especfico do espao, ele poderia nos ajudar a expor algumas das suas presumidas coerncias, mas isso no recobraria, propriam ente, a sua conscincia. E aquele carter vvido/ a complexidade e a abertura da prpria configurao, a multiplicidade positiva, que importante para a apreciao do espacial.

    Este livro um ensaio sobre o desafio do espao, os mltiplos artifcios atravs dos quais esse desafio tem sido to persistentemente evitado, as implicaes polticas de pratic-lo de maneira diferente. Nessa busca h um inevitvel engajamento com muitos outros tericos e abordagens tericas, inclusive muitas cujo foco explcito nem sempre a espacialidade. Elas esto referenciadas no texto. Mas, provavelmente, importante dizer agora, meu argumento no segue, simplesmente, os moldes de qualquer uma delas. No trabalhei a partir de textos sobre o espao, mas atravs de situaes e engajamentos com os quais a questo do espao est, de alguma forma, entrelaada. Pelo contrrio, minha preocupao com a refutao do espao/poltica moldou posies sobre filosofia e sobre uma srie de conceitos. Os debates sobre heterogeneidade/diferena e construcionismo social/discurso so alguns exemplos. Equivalncias entre representao e espacializao me incomodaram, associaes de espao com sincronia me irritaram, constantes pressuposies do espao como o oposto do tempo me fizeram refletir, anlises que permaneceram dentro do discursivo no foram suficientemente positivas. Tratou-se de um envolvimento recproco. Estou interessada em como poderamos imaginar espaos para estes tempos, como poderamos buscar uma imaginao alternativa. Penso que o que necessrio arrancar o "espao" daquela constelao de conceitos em que ele tem sido, to indiscutivelmente, to freqentemente, envolvido (estase, fechamento, representao) e estabe-

    * " I.vrliiicss" (a lg o co m o "v iv a c id a d e ") no origin al. (N .T .)

  • lec-lo dentro de outro conjunto de idias (heterogeneidade, relaciona- lidade, coetaneidade... carter vvido, sem dvida) onde seja liberada uma paisagem poltica mais desafiadora.

    Houve, como relatado agora com freqncia, uma longa histria de entendimento do espao como "o morto, o esttico, o fixo" na famosa rememorao de Foucault. Mais recentemente, e em completo contraste, tem havido uma verdadeira extravagncia no-euclideana, de buracos negros riemanniana... e uma variedade de outras antes improvveis evocaes topolgicas. Em algum lugar entre essas duas esto os argumentos que desejo colocar. O que vocs encontraro aqui uma tentativa de despertar o espao do longo sono engendrado pela falta de ateno no passado, mas que permanece, talvez de forma mais prosaica, embora no menos desafiadora, em algumas formulaes recentes. Isto foi o que considerei mais produtivo. Este um livro sobre o espao ordinrio, o espao e os lugares atravs dos quais, na negociao de relaes dentro da multiplicidade, o social construdo. , neste sentido, uma proposio modesta, porm a prpria persistncia, a aparente obviedade de outras m obilizaes de "espao" apontam para sua necessidade permanente.

    Foram muitos os que consideraram os desafios e encantos da temporalidade. Algumas vezes isso foi feito atravs das lentes daquela corrente do miserabilismo filosfico antropocntrico, que se preocupa com a inevitabilidade da morte. Sob outros disfarces, a temporalidade foi louvada como a dimenso vital da vid, da prpria existncia. O argumento aqui que o espao igualmente vivo e igualmente desa- 'fador, e que, longe de ser morto e fixo, a prpria enormidade de seus desafios significa que as estratgias para domin-lo tm sido muitas, variadas persistentes.

    Quando eu era criana, costumava brincar girando um globo terrestre ou folheando rapidamente um mapa e, abaixando um dedo, tocava um lugar, sem olhar para onde. Se ele tocasse terra, eu tentava imaginar o que estava acontecendo "l" "ento". Como as pessoas viviani a paisagem, qual era a hora do dia e qual a estao do ano. Meu conhecimento era extremamente rudimentar, mas eu era completamente fascinada pelo fato de que todas essas coisas estavam acontecendo naquele momento, enquanto eu estava ali, em Manchester, na cama. Mesmo agora,

  • cada manh, quando chega o jornal, dou uma olhada na previso do tempo no mundo (38C e nublado em Nova Delhi, 8C e chuvoso em Santiago; 28C e ensolarado na Arglia). , em parte, um modo de imaginar como esto as coisas para amigos em outros lugares, mas tambm a continuao de um deslumbramento frente heterogeneidade contempornea do planeta. (Escrevi este livro com o ttulo provisrio de "Encanto Espacial" [Spatial delight].) Tudo era, e possivelmente ainda , espantosamente ingnuo, e, pelo menos, aprendi alguns de seus perigos. O carter grotesco dos mapas de poder atravs dos quais aspectos dessa "variedade" podem ser estabelecidos, os verdadeiros problemas de pensar e, ainda mais, de apreciar o lugar, o quanto muito mais fcil para alguns do que para outros esquecer a simultaneidade dessas diferentes estrias, a dificuldade, simplesmente, mesmo, de viajar. (A forma de contar as viagens de descoberta de uma forma que mantm o "descoberto" imvel, a verso da globalizao que relega outras ao passado...) Contudo, parece importante nos atermos a uma apreciao dessa simultaneidade das estrias. Parece que, algumas vezes, na corrida enlouquecida para abandonar a singularidade da formidvel narrativa modernista (a estria universal singular), o que foi adotado em seu lugar foi uma viso de uma instantaneidade de interconexes. Mas isso para substituir uma nica histria por uma no-histria da, como pretexto, a acusao de falta de profundidade. Sob esse pretexto, seria melhor recusar a "jvirada espacial". Em vez disso, deveramos, poderamos, substituir a histria nica por muitas. E aqui que entra o espao. Sob este aspecto, parece-me, bem razovel nos regozijarmos com as possibilidades que isto abre.

    A Parte Dois volta-se para algumas das imaginaes de espao que herdamos de um leque de discursos filosficos. Este no um livro sobre filosofia, mas nesta altura ele se envolve com algumas correntes da filosofia para poder argumentar que delas so derivadas algumas leituras e associaes comuns, que podem ajudar a explicar por que, na vida social e poltica, ns, com tanta freqncia, emprestamos ao espao algumas caractersticas. A Parte Trs retoma vrias maneiras em que o espao expresso na teoria social e em engajamentos polticos e prtico-populares, especialmente no contexto de debates sobre modernidade e globalizao capitalista. Em nenhuma dessas partes o objeti-

  • vo primordial o de crtica: antes, o de extrair os pontos positivos que permitam uma apreciao mais vigorosa do desafio do espao. A Parte Quatro, ento, elabora uma srie de reorientaes ligadas tanto a espao quanto a lugar. Atravs de todo o livro so desenvolvidas linhas da relevncia desses argumentos para o debate poltico, e a Parte Cinco volta-se diretamente para eles. Este livro, ento, no "pelo espao" de preferncia a alguma outra coisa; , antes, um debate para o reconhecimento de caractersticas particulares de espao e por uma poltica que possa ser sensvel a elas.

    Um nmero de subtemas tece seu caminho sotto voce* atravs das diversas partes. Alguns deles tm seus prprios ttulos. A srie "Confiar na cincia?" questiona alguns elementos da atual relao entre as cincias naturais e sociais em sentido amplo. "Geografias da produo do conhecimento" tece uma histria da conexo entre certas formas de praticar cincia e as estruturas sociais e geogrficas em que esto estabelecidas (certamente, de modo mais enftico, atravs das quais elas so constitudas). Em ambas as esferas, prope-se, no apenas h espacialidades implcitas, mas tambm ligaes tanto polticas quanto conceituais, com o argumento geral do livro.

    Outros temas vm tona, constantemente, como parte da tese mais geral. H uma tentativa de ir alm do especificamente humano. Existe um compromisso com o velho tema de que o espao importa, mas tambm um questionamento sobre algumas das formas coiruque, comu- mente, pensamos dar-lhe importncia. H uma tentativa de trabalhar em direo a um embasamento que em uma poca em que a globalizao to facilmente imaginada como um tipo de fora emanando sempre "de outro lugar" vital para a colocao de questes polticas. De forma relacionada, h uma insistncia na especificidade e em um mundo que no seja nem composto de atomismo individual nem fechado em holismo sempre-j completo. Trata-se de um mundo sendo feito, atravs de relaes, e a se encontra a poltica. Finalmente, h um impulso em direo a "uma mentalidade aberta"/* para uma positivi- dade e plenitude de vida, para o mundo alm do torro de cada um, quer seja a prpria pessoa, sua cidade ou as partes especficas do planeta em que vivemos e trabalhamos: um compromisso com essa con- temporaneidade radical que a condio de e para a espacialidade.

    * Sotto voce, em itlico no original: em voz suave e baixa, como para no ser ouvido. (N.T.)** "Outwarillookiiigness" , que tambm pode ser traduzido por mentalidade ou olhar voltado para fora". (N.T.)

  • Parte Dois Associaes pouco promissoras

    Henri Lefebvre mostra, nos argumentos iniciais de The production of

    \ promissoras cuja conotao priva o espao de suas caractersticasmais desafiadoras. As influncias a serem tratadas nesta parte so derivadas de algumas obras filosficas, no sentido mais amplo desse termo. A Parte Trs vai abordar mais formas de compreenso prtico-populares e terico-sociais do espao, particularmente no contexto da poltica da modernidade e da globalizao capitalista. O_objetivo.de ambas as partes revelar algumas das infLunias das imaginaes hegemnicas de "espao".

    O que se segue imediatamente, ento, uma tentativa de esquematizar algumas linhas especficas de argumentos queI exemplificam modos em que o espao pode-se apresentar, atravs de discursos filosficos significativos, por terem, associadas a eles, caractersticas que, em minha opinio, pelo menos, invalidam sua

    \ completa incluso na esfera do poltico. Este no um livro sobre filosofia, os argumentos aqui so particulares e focalizam, unicamente, o modo como certas posies comumente aceitas, ainda que no diretamente relacionadas com o espao, tm repercusses, todavia, no modo pelo qual o imaginamos. As correntes filosficas especficas aqui referidas servem como exemplos. Elas giram em torno de

    t aA '' A \.j : : vrt/ s Essa imaginao implcita alimentada por todo tipo de- .c,, J :j , influncias. Em muitos casos, quero afirmar, so associaes pouco

  • Henri Bergson, estruturalismo e desconstruo: uma seleo feita tanto por sua importncia enquanto linhas de pensamento quanto porque, em seus mais amplos argumentos, elas, de distintas formas, tm muito a oferecer ao tipo de projeto que este livro defende. Em outras palavras, elas esto envolvidas mais por suas promessas do que por seus problemas.

    Nenhum desses filsofos tem a reconceituao de espao como seu objetivo. Com mais freqncia, e no contexto de debates mais amplos, a temporalidade uma preocupao mais urgente. Muitas e muitas vezes o espao conceituado (ou supe-se que seja) simplesmente como o oposto negativo do tempo. Desejo argumentar que isso corresponde, certamente, em parte, quela lacuna em relao a pensar ativamente sobre o espao e as contradies que da derivam, o que pode fornecer uma pista de como quebrar aparentes limites de alguns dos debates na forma como agora so colocados. Um tpico o de que tempo e espao tm de ser pensados conjuntamente: que isso no um mero floreio retrico, mas que influencia o que pensamos sobre ambos os termos, que pensar tempo e espao conjuntamente no significa que eles sejam idnticos (por exemplo, em alguma quarta dimensionalidade indiferenciada); pelo contrrio,, significa que a imaginao de um ter repercusses (nem sempre inteiramente seguidas) para a imaginao do outro e que espao e tempo esto implicados um no outro, que isto revela alguns problemas que, at ento, pareciam (logicamente, intratavelmente) insolveis, e que isso tem conseqncias para o pensamento sobre a poltica e o espacial. Pensar sobre histria e temporalidade tem, necessariamente, implicaes (quer as reconheamos ou no) em relao ao modo como imaginamos o espacial. A rotulao contraposta dos fenmenos como temporais ou espaciais, envolvendo toda a carga da reduo do espao na esfera apoltica do fechamento causai ou dos redutos reacionrios do poder estabelecido, continua at hoje.

    Os principais propsitos das filosofias abordadas aqui esto amplamente de acordo com os argumentos apresentados neste livro. Louvo Bergson por seus argumentos sobre o tempo, aprovo a determinao do estruturalismo de no deixar a geografia ser transformada em histria, aplaudo a insistncia de Laclau na ligao ntima entre a desarticulao* e a possibilidade da poltica... ,

    * Dislocation, no original, ser sem pre traduzido com o "d esarticu lao", m as reconhecem os que tam bm caberiam sentidos com o "d esco n exo " e "d isju n o", no sentido de ausncia de racionalidade reguladora que d sentido ao arranjo espacial.

  • apenas, quando eles comeam a falar sobre espao, que surge a minha repulsa. E fico desconcertada pela falta de ateno explcita que do ao espao, irritada por suas suposies, confundida por uma espcie de duplo uso (em que o espao tanto o grande "exterior" quanto o termo de escolha para caracterizao da representao, ou do fechamento ideolgico) e, finalmente, satisfeita, algumas vezes, por encontrar as extremidades abertas* (e suas prprias desarticulaes internas), que tornam possvel o desembaraar dessas suposies e duplos usos, o que, por sua vez, provoca uma reimaginao do espao que poderia no ser simplesmente mais do meu gosto, porm mais de acordo com o esprito de suas prprias indagaes.

    H uma distino que precisa ser feita desde o incio. Foi argumentado que, pelo menos nos ltimos sculos, o espao tem sido menos valorizado e tem recebido menos ateno do que o tempo (na geografia, Ed Soja [1989] defendeu fortemente este argumento). Freqentemente advoga-se a "priorizao do tempo sobre o espao", e isto foi comentado e severamente criticado por muitos. No esta, no entanto, minha preocupao aqui. O que me preocupa o modo como imaginamos^) espao. Algumas vezes o carter problemtico dessa imaginao resulta, provavelmente, da despriorizao a conceituao de espao como uma reflexo a posteriori, como um resduo do tempo. o entanto, no se pode dizer que os primeiros pensadores estruturalistas deram prioridade ao tempo e, ainda, ou assim eu devo argumentar, o efeito de sua abordagem foi uma imaginao do espao altamente problemtica.

    Alm disso, a exumao dessas conceituaes problemticas de espao (como esttico, fechado, imvel, por oposio a tempo) traz tona outros conjuntos de conexes, para a cincia, a escritura e as representaes, para questes de subjetividade e sua concepo, em todos aqueles em que as imaginaes implcitas de espao tiveram um papel importante. Todas essas tramas esto, por sua vez, relacionadas ao fato de que o espao foi, muito freqentemente, excludo, ou inadequadamente conceituado em relao poltica e ao poltico, e, por esse motivo, tambm enfraqueceu nossas concepes de poltica e do poltico.

    O que se segue um embate com algumas dessas associaes debilitadoras. Cada uma dessas correntes da filosofia desenvolveu-se

    * "Loose ends" no original. Traduo sugerida pela autora. Refere-se tambm a "finaliza es em aberto". (N.T.)

  • em conjunturas histrico-geogrficas particulares. Elas prprias constituram intervenes em algo j em movimento. Algumas vezes o que est em jogo desenred-las, at certo ponto, das orientaes motivadas por seus momentos, pelos debates de que fizeram parte. Reorient-las para minhas prprias preocupaes pode produzir novas linhas de pensamento a seu respeito. Algumas vezes o que est em questo impulsion-las mais alm. O resultado, no final, espero, liberar o "espao" de algumas correntes de significado (que o ligam a fechamento e estase, ou cincia, escritura e representao) e que quase o sufocaram at a morte, para coloc-lo em outras cadeias (neste captulo, ao lado de abertura, heterogeneidade e carter vvido) onde ele possa ter uma vida nova e mais produtiva.

  • espao/representao

    Existe uma idia com uma histria to longa e renomada, que chegou a adquirir o status de panacia indiscutvel para todos os males: a idia de que h uma associao entre o espacial e a fixao do significado. A representao certamente a conceituao foi concebida como espacializao. Os diversos autores que figuram neste captulo chegaram a essa posio por diferentes caminhos, mas quase todos a endossam. Alm disso, apesar de a referncia ser a "espacializao", h, em todos os casos, uma derivao; no se trata apenas de que a representao seja equiparada espacializao, mas que as caractersticas da derivadas so atribudas ao prprio espao. Alm disso, embora os desenvolvimentos posteriores dessas posies filosficas impliquem, quase sempre, um entendimento bem distinto do que o espao poderia ser, nenhuma delas se detm muito tempo ou explicitamente no desenvolvimento dessa alternativa, ou na explorao do curioso fato de que esta outra (e mais mvel, flexvel, aberta e vigorosa) viso do espao apia-se nessa simplria oposio em relao sua igualmente incontestvel associao entre representao e espao. Trata-se de uma velha associao; muitas e muitas vezes subjugamos o espao ao textual e ao conceituai, representao.

    Naturalmente, o argumento , em geral, bem o contrrio: que, atravs da representao, espacializamos o tempo. E o espao que, deste modo, diz-se, subjuga o temporal.

    A posio filosfica de Henri Bergson uma das mais complexas e definitivas a este respeito. Para ele, a mais urgente preocupao era com a temporalidade, com a "durao", com um compromisso com a experincia de tempo e com o resistir eviscerao de sua continuidade interna, seu fluxo e movimento. Trata-se de uma atitude que faz sentido hoje em dia. Em Bergsonism [Bergsonismo], Deleuze (1988) denuncia o que considera nossa preocupao somente com magnitu-

  • des extensivas custa das intensidades. Enquanto Boundas (1996, p. 85) desenvolve esse aspecto, a impacincia est com nosso foco, demasiado insistente, no discreto em detrimento do contnuo, nas coisas, em detrimento dos processos, no reconhecimento em detrimento do encontro, nos resultados em detrimento das tendncias... (e muitas outras coisas mais). Cada argumento proposto neste livro apoiaria tal esforo. E necessria uma reimaginao das coisas como processos (e, sem dvida, agora, amplamente aceita) para reconceituao dos lugares, de um modo que possa desafiar localismos exclusivistas, baseados em reivindicaes de uma autenticidade eterna. Em vez de coisas como entidades discretas preestabelecidas, h, agora, um movimento em direo ao reconhecimento do contnuo devir, que est na natureza de seu ser. O novo, ento, bem como a criatividade, uma caracterstica essencial da temporalidade. Em Time and free will (1910)* Bergson mergulha, diretamente, em um compromisso com a psicofsica e a cincia de sua poca, brandindo o argumento de que essa intelectuali- zao estava retirando a vida para fora da experincia. Pela conceituao, pela separao, pela descrio estava sendo obliterado aquele elemento vital da prpria vida.

    Para abordar o problema, ele trabalhou por meio de uma distino entre diferentes tipos de multiplicidades. Ambos, Bergson e Deleuze, que Boundas (1996) denomina, de forma conjugada, neste debate, Deleuze e Bergson, esto envolvidos com os significados de "diferena" e "multiplicidade". Para eles h uma distino importante entre diferena/multiplicidade discreta (que se refere a magnitudes extensivas e entidades distintas, o reino da diversidade) e diferena/multiplicidade contnua (que se refere a intensidades e mais evoluo do que sucesso). A primeira divisvel, uma dimenso de separao; a ltima um contnuo, uma multiplicidade de fuso. Tanto Bergson quanto Deleuze lutam para conceder a significncia e mesmo a primazia filosfica segunda forma (contnua) de diferena sobre a primeira (discreta). O que est em questo uma insistncia na abertura genuna da histria, do futuro. Para Bergson, a mudana (que ele equipara- va temporalidade) implica novidade real na produo do realmente novo, de coisas no ainda totalmente determinadas pelo arranjo de foras existentes. Mais uma vez, ento, h uma verdadeira coincidncia de aspiraes com o argumento deste livro. Porque o principal argu-

    * Ttulo original em francs: "Essai sur les donnes immdiates de la conscience". Paris: PUF, 1927. (N.T.)

  • mento da terceira proposio deste livro precisamente defender no apenas a noo de "devir", mas uma abertura deste processo de devir.

    No entanto, a irresistvel preocupao de Bergson com o tempo e seu desejo de defender sua abertura acabaram tendo conseqncias devastadoras para sua maneira de conceituar o espao. Isto foi, freqentemente, atribudo clssica (modernista?) priorizao do tempo. Na verdade, Soja (1989) afirma que Bergson foi um dos mais poderosos instigadores de uma desvalorizao e subordinao, mais geral, do espao em relao ao tempo, que aconteceu durante a segunda metade do sculo XIX (ver tambm Gross, 1981-2). E a clssica retratao de Foucault sobre a longa histria da difamao do espao destaca: "Teria comeado com Bergson ou antes?" (Foucault, 1980, p. 70). O problema, no entanto, mais profundo do que uma simples priorizao. Mais exatamente uma questo de modo de conceituao. No tanto porque Bergson "despriorizou" o espao, mas porque, na associao do espao com a representao, ele foi privado de dinamismo e, radicalmente, contraposto ao tempo. Assim:

    A verdadeira durao tem alguma coisa a ver com o espao? Certamente, nossa anlise da idia de nmero [que ele tinha acabado de discutir] no poderia deixar de nos fazer duvidar dessa analogia, para no dizer mais. Porque se o tempo, como a conscincia reflexiva o representa, um meio no qual nossos estados conscientes formam uma srie discreta, de modo a permitir ser contado, e se, por outro lado, nosso conceito de nmero acaba por espalhar no espao tudo o que pode ser diretamente contado, deve-se presumir que o tempo, compreendido no sentido de um meio em que fazemos distines e contamos, nada mais do que espao. O que confirma essa opinio que somos forados a tomar emprestado, do espao, as imagens com as quais descrevemos o que a conscincia reflexiva sente sobre o tempo e mesmo sobre sucesso; segue-se que a durao pura deve ser algo diferente. Tais so as indagaes que fomos levados a fazer pela prpria anlise da noo de multiplicidade discreta. Mas no podemos projetar nenhuma luz sobre elas, exceto atravs de um estudo direto das idias de espao e tempo em suas relaes mtuas (1910, p. 91).

    Uma das provocaes cruciais para Bergson e um constante ponto de referncia o paradoxo de Zeno. A mensagem em que o paradoxo costuma insistir que o movimento (um continuum) no pode ser fragmentado em instantes discretos. " ... porque o continuum no pode ser reduzido a um agregado de pontos que o movimento no pode ser

  • reduzido ao que esttico. Continua e movimentos implicam-se mutuamente" (Boundas, 1996, p. 84). Esta uma discusso importante, mas uma discusso sobre a natureza do tempo, sobre a impossibilidade de reduzir o movimento /devir real estase multiplicada ao infinito, a impossibilidade de derivar a histria de uma sucesso de recortes atravs do tempo (ver tambm Massey, 1997a).

    No entanto, a linha de pensamento confunde-se com a idia (inadvertida? Certamente no muito explcita) de espao. Assim, em Matter and Memory (Bergson, 1911) encontramos:

    Os argumentos de Zeno de Elea no tm outra origem alm desta iluso. Todos consistem em fazer o tempo e o m ovim ento coincidirem com a linha que subjacente a eles, atribuindo-lhes as mesmas subdivises da linha, enfim, tratando-os como essa linha. Nessa confuso Zeno foi encorajado pelo senso comum, que, geralmente, leva para os movimentos as propriedades de sua trajetria. E tambm pela linguagem, que sempre traduz movimento e durao em termos de espao (p. 250).

    O tempo rejeitado de recortes-de-tempo instantneos atrai o rtulo "espacial" como em: o que est em jogo para Bergson e Deleuze "a primazia do tempo heterogneo da diferena [temporal], sobre o tempo espacializado da metrificao, com seus segmentos e instantes quantitativos" (Boundas, 1996, p. 92). Imediatamente, essa associao interpreta o espao sob uma luz negativa (como falta de "movimento e durao"). E assim, lista de dualismos dentro da qual essas filosofias esto travando seus combates (continuum em vez de descontinuidades, processos em vez de coisas...) adicionado tempo em vez de espao (p. 85).

    Assim, esses argumentos esgotaram-se em situaes especficas. Um drago que tinha de ser vencido (mas que ronda ainda hoje) era o tempo vazio. Tempo vazio, dividido e reversvel, em que nada muda, em que no h evoluo, mas apenas sucesso, um tempo com uma multiplicidade de coisas discretas. A preocupao de Bergson era que o tempo, com demasiada freqncia, conceituado da mesma maneira que o espao (como uma multiplicidade discreta). Ns interpretamos mal a natureza da durao, ele argumentava, quando a "espacia- lizamos" quando pensamos nela como uma quarta dimenso da extenso. (H uma crtica presciente de uma tendncia corriqueira de falar de espao-tempo, ou de quarta-dimensionalidade, sem investigar a natureza da integrao de dimenses que est em jogo.) A natureza do drago levou forma da resposta. O corte instantneo, atravs do

  • espa o/rep r esen I a o

    tempo, era tomado como esttico, tal como ele aparece na forma pela qual invocado no paradoxo de Zeno. Recebeu ento o rtulo de "espacial". Finalmente, argumentou-se: de qualquer forma, se para haver um verdadeiro devir (a genuna produo contnua do novo), ento tais recortes atravs do tempo, supostamente estticos, seriam impossveis. Os recortes-de-tempo estticos, mesmo multiplicados ao infinito, no podem produzir o devir.

    No entanto, a discusso pode ser revertida. O argumento, na forma j referida, implica que o "espao" que acaba de ser definido, via uma conexo conotacional com a representao, tem de ser, da mesma maneira, impossvel? Em vez disso, no significaria que o prprio espao (a dimenso de uma multiplicidade discreta) pode, precisamente, no ser um recorte esttico atravs do tempo? Com esse tipo de espao seria, sem dvida, impossvel ter a histria como devir. Em outras palavras, o tempo no apenas no pode ser fragmentado (transformando-se de um contnuo em uma multiplicidade discreta), como mesmo o argumento de que isso no possvel no deveria se referir ao resultado como espao. A passagem aqui, de espacializao como uma atividade, para espao como dimenso, crucial. A representao vista tomando aspectos de espacializao, na ao desta ltima de colocar as coisas lado a lado, de disp-las como uma simultaneidade discreta. Mas a representao tambm compreendida, neste argumento, como que fixando as coisas, tirando o tempo de dentro delas. Assim, a equiparao entre espacializao e produo de "espao" empresta ao espao no apenas o aspecto de uma multiplicidade discreta, mas tambm a caracterstica de es tase.

    O espao, ento, definido como a dimenso da divisibilidade quantitativa (ver, por exemplo, Matter atui Memory, 1911, pp. 246-53). Isto fundamental para a noo de que representao espacializao: "O movimento consiste, visivelmente, em passar de um ponto para outro e, conseqentemente, em percorrer o espao. Agora, o espao que percorrido infinitamente divisvel, e como o movimento , por assim dizer, aplicado linha ao longo da qual passa, parece fundir-se com essa linha e, igual a ela, ser divisvel" (p. 248). Esta caracterstica de espao como a dimenso da pluralidade, multiplicidade discreta, importante tanto conceituai quanto politicamente. Mas na formulao de Bergson, aqui, ela uma multiplicidade discreta sem durao. No apenas instantnea, esttica. Assim, "no podemos distinguir movimentos de imobilidades nem tempo de espao" (Time and free will,

  • pelo espao associaes pouco promissoras

    1910, p. 115). De vrios ngulos, esta proposio ser questionada no debate que se segue. Em Matter and Memory Bergson escreve: "A principal iluso consiste em transferir para a prpria durao, em seu fluxo contnuo, a forma das fragmentaes instantneas que fizemos nela" (1911, p. 193). Aplaudo este argumento em seu propsito, mas contestaria seus termos. Por que no poderamos impregnar essas seces instantneas com sua prpria qualidade vital de durao? Uma simultaneidade dinmica seria uma concepo bem diferente de um instante congelado (Massey, 1992a). (E ento, se persistssemos na nomenclatura de espacial" poderamos, certamente, "distinguir tempo de espao" exceto que no teramos partido, em primeiro lugar, de tal definio por oposio.) Por um lado, isso lana dvida sobre o uso da palavra "espao" nas citaes precedentes de Bergson; por outro, no entanto, mostra que o prprio mpeto de seu argumento possibilita um passo frente, um questionamento do uso do prprio termo espao. Trata-se de um questionamento j implcito na discusso de Bergson, mesmo em seus primeiros trabalhos.

    O problema que a caracterizao conotacional de espao atravs da representao, no apenas discreta, mas tambm sem vida, provou ser forte. Assim, Gross (1981-2) escreve sobre Bergson argumentando que "a mente racional, simplesmente, espacializa" e que ele conceituou a atividade cientfica em termos de "categorias imobilizantes (espaciais) do intelecto":

    Para Bergson, a mente , por definio, orientada espacialmente. Mas tudo o que criativo, expansivo e frtil no o . Da que o intelecto jamais pode nos auxiliar a alcanar o que essencial, porque ele mata e fragmenta tudo o que ele toca ... Temos, conclui Bergson, de fugir da espacializao imposta pela mente para poder recuperar o contato com o cerne de viver verdadeiramente, que subsiste apenas na dimenso do tempo ... (pp. 62, 66; itlico no original).

    Como Deleuze (1988) constantemente salienta, isto significa colocar algo em uma posio de vantagem ou desvantagem. Espao e tempo aqui no so duas tendncias iguais, mas opostas, tudo est empilhado no lado da durao. Essa "diviso bergsoniana fundamental entre durao e espao" (p. 31) fornece sua prpria direo atravs de seu desequilbrio. "No bergsonismo, a dificuldade parece desaparecer. Pois, dividindo a combinao de acordo com duas tendncias, com

  • apenas uma mostrando o modo em que uma coisa varia, qualitativamente, no tempo, Bergson se oferece, efetivamente, os meios para escolher o 'lado certo' em cada caso" (p. 32).

    Em Creative evolution (Bergson, 1911/1975),* a distino entre espacializao e espao levada a cabo. Embora mantendo a equiparao entre intelectualizao e espacializao ("Quanto mais a conscincia intelectualizada, mais a matria espacializada", p. 207), Bergson veio a reconhecer, tambm, a princpio sob a forma de pergunta, a durao em coisas externas, e isso, por sua vez, apontava para uma mudana radical na potencial conceituao de espao. Este reconhecimento da durao em coisas externas e assim a interpenetrao, embora no a equivalncia, entre espao e tempo um aspecto importante do debate

    y

    deste livro. E o que estou chamando de espao como a dimenso de trajetrias mltiplas, uma simultaneidade de estrias-at-agora. O espao como a dimenso de uma multiplicidade de duraes. O problema tem sido que a velha cadeia de significado-espao-representao-estase continua a exercer seu poder. O legado permanece.

    Assim, para Ernesto Laclau (1990), o desenvolvimento da argumentao bem diferente do de Bergson. Mas a concluso semelhante: "espao" equivalente representao que, por sua vez, equivalente ao fechamento ideolgico.1 Para Laclau a espacializao equivale hegemonizao: produo de um fechamento ideolgico, uma configurao do mundo essencialmente desarticulado como algo coerente. Assim:

    qualquer representao de uma desarticulao envolve sua espacializao. O modo de sobrepujar a natureza temporal, traumtica e irrepresen- tvel da desarticulao constru-la, como um momento, em relao estrutural permanente com outros momentos e, neste caso, a pura temporalidade do "evento" eliminada ... essa domesticao espacial do tempo ... (p. 72).2

    Laclau equipara "a crise de toda espacialidade" (como resultado da afirmao da natureza constitutiva da desarticulao) com "a impossibilidade final de toda representao" (p. 78) ... "a desarticula

    * Edio em portugus: A moltiao criadora. So Paulo: Martins Fontes, 25. (N.T.)

  • o destri todo o espao e, como conseqncia, a prpria possibilidade de representao" (p. 79) e assim por diante. Os indicadores em direo a uma reformulao potencial so evidentes e estimulantes (se todo o espao destrudo...?), mas eles no so mantidos, e a admisso de uma equivalncia entre espao e representao inequvoca e aconselhada com insistncia.

    Em contraste novamente com Laclau, que, de preferncia, tende apenas a admitir que representao espacializao, De Certeau, que tem a mesma posio, descreve com algum detalhe as suas razes. So muito semelhantes s de Bergson. Para De Certeau, o surgimento da escritura (enquanto distinta da oralidade) e do moderno mtodo cientfico implicou, precisamente, a obliterao da dinmica temporal, a criao de um espao em branco (un espace propre*) tanto do objeto do conhecimento quanto como um lugar para inscrio, e quanto o ato de escrever (nesse espao). Esses trs processos esto intimamente associados. Narrativas, estrias, trajetrias so todas elas suprimidas na emergncia da cincia como a escritura do mundo. E esse processo de escritura, mais geralmente, de fazer uma marca no espao em branco de uma pgina, que remove o dinamismo da "vida real". Assim, em sua tentativa, que , realmente, toda a inteno de seu livro, de inventar meios de retomar essas narrativas e estrias (precisamente para coloc-las de volta em alguma forma de "conhecimento" produzido), ele pondera se deve ou no usar a palavra "trajetria". O termo, ele pensa,

    sugere um m ovim ento, m as tambm envolve um a projeo plana, um achatamento. uma transcrio. Um grfico (que o olho pode dominar) substitudo por uma operao; uma linha que pode ser revertida (i.e., lida em ambas as direes) serve a uma srie temporal irreversvel, um traado para a ao. Para evitar essa reduo, recorro a uma distino entre tticas e estratgias (De Certeau, 1984, pp. xviii-xix; itlicos no original).

    Assim, essa associao de escritura cientfica com pressuposies de reversibilidade, e um desejo de inclinar-se pela irreversibilidade, retorna ao tema dos comprometimentos que Bergson tinha com a cincia de sua poca. A cincia-escritura retira a vida dos processos e os torna reversveis, ao passo que a vida real irreversvel. Uma primeira refle-

    * Hm francs no original. (N.T.)

  • xo sobre isto ser desenvolvida mais adiante: que no devemos mais lutar essa batalha contra a "cincia" no s porque a Cincia no uma fonte de verdade inexpugnvel (embora este seja, certamente, um discurso poderoso), mas tambm porque existem agora muitos cientistas que, de alguma forma, no manteriam mais essa posio.

    De Certeau continua:

    Por mais til que esse "achatamento" possa ser, ele transforma a articulao temporal de lugares em uma seqncia espacial de pontos (p. 35; itlicos no original).

    Alm do mais, a distino que De Certeau faz , uma vez mais, relacionada direta e explicitamente com representao:

    ... a oportunidade aquele instante indiscreto, que envenena foi controlada pela espacializao do [i.e., pelo] discurso cientfico. Como constituio de um lugar adequado, a escritura cientfica reduz, sem cessar, o tempo, aquele elemento fugidio, normalidade de um sistema observvel e legvel. Dessa forma, surpresas so evitadas. A sustentao prpria do lugar elimina esses subterfgios criminosos (p. 89).

    E, finalmente, ele escreve sobre:

    ... a propriedade (voraz) que o sistema geogrfico tem, de ser capaz de transformar ao em legibilidade, mas que, ao faz-lo, faz com que um modo de ser no mundo seja esquecido (p. 97).

    Ironicamente, baseado neste argumento que De Certeau decide contra o uso do termo "trajetria" e, em vez disso, recorre a uma distino entre tticas e estratgias, o que fixa no lugar, precisamente, o dualismo (inclusive entre espao e tempo) contra o qual o resto do livro est se opondo.3

    De uma maneira ou de outra, ento, todos esses autores equiparam espao representao. uma concluso notavelmente disseminada e no questionada. E tem, certamente, obviedade intuitiva. Mas como j foi indicado, talvez essa equivalncia entre representao e espacializao no seja algo que deva ser aceito como um dado. No mnimo, sua implacabilidade e suas repercusses poderiam ser perturbadas. E uma mudana extraordinariamente importante. Pois o que faz associar o espacial com estabilizao. Culpada por associao. O traado do espa-

  • pelo espao associaes pouco promissoras

    ciai como uma maneira de conter o temporal tanto seus horrores quanto seus encantos criativos. A espacializao, sob este ponto de vista, achata a vida fora do tempo. Quero, durante o decorrer deste livro, construir um argumento que levar a uma concluso muito diferente.

    Para comear, notem que h duas coisas acontecendo aqui: primeiro, a questo de que a representao, necessariamente, fixa e, portanto, amortece e deprecia o fluxo da vida; e, segundo, que o produto desse processo de amortecimento o espao. primeira proposio eu no me oporia inteiramente, apesar de a forma na qual ela usualmente expressa estar, atualmente, sendo modificada. No entanto, parece-me que no h de forma alguma defesa para a segunda proposio: a de que existe uma equivalncia entre espao e representao. Esta uma daquelas coisas aceitas que esto hoje to profundamente incrustadas, que raramente, ou nunca, so questionadas. Iremos, ento, question-las.

    Para poder fundamentar a discusso, preciso estabelecer alguns pontos preliminares.

    Primeiro, importante, por si s, reconhecer que este modo de pen-/

    sar tem uma histria. E derivado, como todas as posies, da insero social e do envolvimento intelectual/cientfico. Desde os primrdios da filosofia ocidental, a apreenso do tempo em uma seqncia numrica foi pensada como sua espacializao. O apelo desta argumentao j foi reconhecido. O problema est no movimento que vai da espacializao s caracterizaes do espao. Referncias traando a persistncia dessa imaginao seriam numerosas e cansativas. Talvez apenas uma, para indicar a essncia do caso: Whitehead (1927/1985) escreve sobre a "imediao presentacional" do espao que "permite ao espao fala