PELBART Peter Pál_Vida e Morte em Contexto de Dominação Biopolítica

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    Vida e Morte em Contextode Dominao Biopoltica

    Peter Pl Pelbart

    Texto disponvel em www.iea.usp.br/textos

    As opinies aqui expressas so de inteira responsabilidade do autor, no refletindo necessariamente as posies do IEA/USP.

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    Vida e Morte em Contexto deDominao Biopoltica1

    Peter Pl Pelbart2

    Seria preciso comear pela nova relao entre podere vida tal como ela se apresenta

    hoje. Por um lado, uma tendncia que poderia ser formulada como segue: o poder "tomou de

    assalto" a vida. Isto , o poder penetrou todas as esferas da existncia, e as mobilizou

    inteiramente, pondo-as para trabalhar. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o psiquismo, at

    a inteligncia, a imaginao, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado,

    quando no diretamente expropriado pelos poderes, quer se evoque as cincias, o capital, o

    Estado, a mdia. Os mecanismos diversos pelos quais tais poderes se exercem so annimos,

    esparramados, flexveis, rizomticos. O prprio poder se tornou "ps-moderno", ondulante,

    acentrado, reticular, molecular. Com isso, ele incide mais diretamente sobre nossas maneiras

    de perceber, de sentir, de amar, de pensar, at mesmo de criar. Se antes ainda imaginvamos

    ter espaos preservados da ingerncia direta dos poderes (o corpo, o inconsciente, a

    subjetividade), e tnhamos a iluso de preservar em relao a eles alguma autonomia, hoje

    nossa vida parece integralmente subsumida a tais mecanismos de modulao da existncia.

    At mesmo o sexo, a linguagem, a comunicao, a vida onrica, mesmo a f, nada disso

    preserva j qualquer exterioridade em relao aos mecanismos de controle e monitoramento.

    Para resum-lo numa frase: o poder j no se exerce desde fora, nem de cima, mas como que

    por dentro, pilotando nossa vitalidade social de cabo a rabo. No estamos mais s voltas com

    um poder transcendente, ou mesmo repressivo, trata-se de um poder imanente, produtivo. Um

    tal biopoder no visa barrar a vida, mas se encarrega dela, intensifica-a, otimiza-a. Da

    tambm nossa extrema dificuldade em resistir, j mal sabemos onde est o poder e onde

    estamos ns, o que ele nos dita e o que dele queremos, ns prprios nos encarregamos de

    administrar nosso controle, e o prprio desejo se v inteiramente capturado nessa dinmicaannima. Nunca o poder chegou to longe e to fundo no cerne da subjetividade e da prpria

    vida.

    1 Conferncia proferida no dia 3 de outubro de 2008 no Ciclo "O Fundamentalismo Contemporneo emQuesto", organizado pelo Instituto de Estudos Avanados (IEA) da USP.2 Professor Titular do Departamento de Psicologia da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP)

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    onde intervm o segundo eixo que seria preciso evocar, sobretudo em autores

    provenientes da autonomia italiana. Podemos resumir este eixo da seguinte maneira: quando

    parece que est tudo dominado, como diz um rap brasileiro, no extremo da linha se insinua

    uma reviravolta: aquilo que parecia submetido, controlado, dominado, isto , a vida, revela

    no processo mesmo de expropriao, sua potncia indomvel. Tomemos apenas um exemplo.

    O capital precisa hoje, no mais de msculos e disciplina, porm de inventividade, de

    imaginao, de criatividade, de fora-inveno. Mas essa fora-inveno, de que o capitalismo

    se apropria e que ele faz render em seu benefcio prprio, no emana dele, e no limite poderia

    at prescindir dele. o que se vai constatando aqui e ali: a verdadeira fonte de riqueza hoje a

    inteligncia das pessoas, sua criatividade, sua afetividade, e tudo isso pertence, como bvio,

    a todos e a cada um. Trs adolescentes e um pc, e j esto reunidas as condies para a

    inveno de um software que lhes render bilhes. No necessitam de um capitalista que junteos meios de produo e a fora de trabalho. Isso significa, mais profundamente, o seguinte.

    Tal inteligncia, tal potncia de vida disseminada por toda parte nos obriga a repensar os

    prprios termos da resistncia. Poderamos resumir tal movimento do seguinte modo: ao poder

    sobre a vida responde a potncia da vida, ao biopoder responde a biopotncia, mas esse

    responde no significa uma reao, j que o que se vai constatando que tal potncia de

    vida j estava l desde o incio. A vitalidade social, quando iluminada pelos poderes que a

    pretendem vampirizar, aparece subitamente na sua primazia ontolgica. Aquilo que parecia

    inteiramente submetido ao capital, ou reduzido mera passividade, a vida, aparece agora

    como reservatrio inesgotvel de sentido, manancial de formas de existncia, germe de

    direes que extrapolam as estruturas de comando e os clculos dos poderes constitudos.

    Seria o caso de percorrer essas duas vias maiores como numa fita de Moebius, o

    biopoder, a biopotncia, o poder sobre a vida, as potncias da vida 3. Mas poderamos faz-lo

    aqui sob um crivo particular, o do corpo. Pois tanto o biopoder como a biopotncia passam

    necessariamente, e hoje mais do que nunca, pelo corpo. Assim, proponho trabalhar aqui trs

    modalidades de "vida", isto , trs conceitos de vida, acompanhados de sua dimenso corporal

    correspondente, percorrendo de um lado a outro a banda de Moebius mencionada. Talvez com

    3 No rastro de Foucault, Deleuze, Negri, Lazzarato e outros, tal mapeamento foi tentado por mim em VidaCapital, So Paulo, Iluminuras, 2003.

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    isso eu consiga tornar mais tangvel e o mais concreto possvel aquilo que nos desafia hoje em

    dia.

    O muulmano

    Eu gostaria de comear pelo mais extremo o "muulmano". Retomo brevemente a

    descrio feita por Giorgio Agamben a respeito daqueles que, no campo de concentrao,

    recebiam essa designao terminal4. O "muulmano" era o cadver ambulante, um feixe de

    funes fsicas nos seus ltimos sobressaltos5. Era o morto-vivo, o homem-mmia, o homem-

    concha. Encurvado sobre si mesmo, esse ser bestificado e sem vontade tinha o olhar opaco, a

    expresso indiferente, a pele cinza plida, fina e dura como papel descascado, a respirao

    lenta, a fala muito baixa, feita a um grande custo... O "muulmano" era o detido que haviadesistido, indiferente a tudo que o rodeava, exausto demais para compreender aquilo que o

    esperava em breve, a morte. Essa vida no humana j estava excessivamente esvaziada para

    que pudesse sequer sofrer.6 Por que muulmano, j que se tratava sobretudo de judeus?

    Porque entregava sua vida ao destino, conforme a imagem simplria, preconceituosa e

    certamente injusta de um suposto fatalismo islmico: o muslim aquele que se submete sem

    reserva vontade divina. Em todo caso, quando a vida reduzida ao contorno de uma mera

    silhueta, como diziam os nazistas ao referir-se aos prisioneiros, Figuren, figuras, manequins,

    aparece a perverso de um poder que no elimina o corpo, mas o mantm numa zona

    intermediria entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano: o sobrevivente. O biopoder

    contemporneo, conclui Agamben torcendo um pouco a concepo de Foucault, reduz a vida

    sobrevida biolgica, produz sobreviventes. De Guantnamo Africa, isso se confirma a cada

    dia.

    Ora, quando cunhou o termo de biopoder, Foucault tentava discrimin-lo do regime

    que o havia precedido, denominado de soberania. O regime de soberania consistia em fazer

    morrer, e deixar viver. Cabia ao soberano a prerrogativa de matar, de maneira espetacular, os

    que ameaassem seu poderio, e deixar viverem os demais. J no contexto biopoltico surge

    uma nova preocupao. No cabe ao poder fazer morrer, mas sobretudo fazer viver, isto ,

    4 G. Agamben, Ce qui reste dAuschwitz, Paris Payot&Rivages, 1999.5 J. Amry, Par del le crime et le chtiment, Arles, Actes Sud, 19956 P. Levi, isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 2000.

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    cuidar da populao, da espcie, dos processos biolgicos, otimizar a vida. Gerir a vida, mais

    do que exigir a morte. Assim, se antes o poder consistia num mecanismo de subtrao ou

    extorso, seja da riqueza, do trabalho, do corpo, do sangue, culminando com o privilgio de

    suprimir a prpria vida7, o biopoder passa agora a funcionar na base da incitao, do reforo e

    da vigilncia, visando a otimizao das foras vitais que ele submete, cuidando da natalidade,

    epidemias, mortandade, longevidade, etc. Ao invs de fazer morrer e deixar viver, trata-se de

    fazer viver, e deixar morrer. O poder investe a vida, no mais a morte da o desinvestimento

    da morte, que passa a ser annima, insignificante. Claro que o nazismo consiste num

    cruzamento extremo entre a soberania e o biopoder, ao fazer viver (a "raa ariana"), e fazer

    morrer (as raas ditas "inferiores"), um em nome do outro.

    Mas qual a pequena divergncia de Agamben em relao a Foucault? que segundo

    ele, o biopoder contemporneo j no se incumbe de fazer viver, nem de fazer morrer, mas defazersobreviver. Ele no investe a vida, nem a morte, mas cria e gere sobreviventes. E produz

    a sobrevida.8 Fiquemos pois, por ora, nesse postulado inusitado. O poder faz sobreviver,

    produz um estado de sobrevida biolgica, reduz o homem a essa dimenso residual, no

    humana, vida vegetativa, que o "muulmano" do campo, por um lado, o neo-morto das salas

    de terapia intensiva, por outro, encarnam em extremos opostos porm complementares. A

    sobrevida a vida humana reduzida a seu mnimo biolgico, sua nudez ltima, vida sem

    forma, ao mero fato da vida, ao que Agamben chama de vida nua. Mas engana-se quem v

    vida nua apenas na figura extrema do dito "muulmano" concentracionrio, ou nos refugiados

    de Ruanda, sem perceber o mais assustador: que de certa maneira estamos todos nessa

    condio terminal. At Bruno Bettelheim, sobrevivente de Dachau, quando descreve o

    comandante do campo, qualifica-o como uma espcie de "muulmano", "bem alimentado e

    bem vestido". Ou seja, o carrasco ele tambm, igualmente, um cadver vivo, habitando essa

    zona intermediria entre o humano e o inumano, mquina biolgica desprovida de

    sensibilidade e excitabilidade nervosa. A condio de sobrevivente, de muulmano, um

    efeito generalizado do biopoder contemporneo, ele no se restringe aos regimes totalitrios, e

    inclui plenamente a democracia ocidental, a sociedade de consumo, o hedonismo de massa, a

    7 M. Foucault, La volont de savoir, Paris, Gallimard, 1976, p 179.8 G. Agamben, Ce qui reste dAuschwitz, op. cit, p. 205.

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    medicalizao da existncia, em suma, a abordagem biolgica da vida numa escala ampliada,

    mesmo quando promovida num contexto de luxo e sofisticao biotecnolgica.

    O corpo

    Tomemos a ttulo de exemplo o superinvestimento do corpo que caracteriza nossa

    atualidade. Desde algumas dcadas, o foco do sujeito deslocou-se da intimidade psquica para

    o prprio corpo. Hoje, o eu o corpo. A subjetividade foi reduzida ao corpo, a sua aparncia, a

    sua imagem, a sua performance, a sua sade, a sua longevidade. O predomnio da dimenso

    corporal na constituio identitria permite falar numa bioidentidade. verdade que j no

    estamos diante de um corpo docilizado pelas instituies disciplinares, como h cem anos

    atrs, corpo estriado pela mquina panptica, o corpo da fbrica, o corpo do exrcito, o corpo

    da escola. Agora cada um se submete voluntariamente a uma ascese, seguindo um preceitocientfico e esttico, nas academias ou nos consultrios cirrgicos tema que nossa amiga

    Denise SantAnna vem trabalhando h anos9. tambm o que Francisco Ortega, no rastro de

    Foucault, chama de bioascese. Por um lado, trata-se de adequar o corpo s normas cientficas

    da sade, longevidade, equilbrio, por outro, trata-se de adequar o corpo s normas da cultura

    do espetculo, conforme o modelo das celebridades. A obsesso pela perfectibilidade fsica,

    com as infinitas possibilidades de transformao anunciadas pelas prteses genticas,

    qumicas, eletrnicas ou mecnicas10, essa compulso do eu para causar o desejo do outro por

    si, mediante a idealizao da imagem corporal, mesmo s custas do bem-estar prprio, apesar

    das mutilaes que o comprometem, substituem finalmente a satisfao ertica que prometem

    pela mortificao auto-imposta. O fato que abraamos voluntariamente a tirania da

    corporeidade perfeita, em nome de um gozo sensorial cuja imediaticidade torna ainda mais

    surpreendente o seu custo em sofrimento. A bioascese um cuidado de si, mas diferena dos

    antigos, cujo cuidado de si visava a bela vida, e que Foucault chamou de esttica da existncia,

    o nosso cuidado visa o prprio corpo, sua longevidade, sade, beleza, boa forma, felicidade

    cientfica e esttica, ou o que Deleuze chamaria a gorda sade dominante. No hesitamos em

    cham-lo, mesmo nas condies modulveis da coero contempornea, de um corpo fascista

    9 Denise Bernuzzi de SantAnna, Polticas do corpo, So Paulo, Estao Liberdade, 1995, e Corpos de passagem,So Paulo, Estao Liberdade, 2001.10 Jurandir Freire Costa, O vestgio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetculo, Rio de Janeiro,Garamond, 2004.

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    que algo acontea, que escolhe a morte em vida?" No se trata, obviamente, de nenhuma

    conclamao ao terrorismo, mas de uma crtica custica ao que o filsofo esloveno chama de

    postura sobrevivencialista "ps-metafsica" dos ltimos Homens, e o espetculo anmico da

    vida se arrastando como uma sombra de si mesma, nesse contexto biopoltico em que se

    almeja uma existncia assptica, indolor, prolongada ao mximo, onde at os prazeres so

    controlados e artificializados: caf sem cafena, cerveja sem lcool, sexo sem sexo, guerra sem

    baixas, poltica sem poltica a realidade virtualizada. Para ele, morte e vida designam no

    fatos objetivos, mas posies existenciais subjetivas, e nesse sentido, ele brinca com a idia

    provocativa de que haveria mais vida do lado daqueles que de maneira frontal, numa exploso

    de gozo, reintroduziram a dimenso de absoluta negatividade em nossa vida diria com o 11

    de setembro, do que nos ltimos Homens, todos ns, que arrastam sua sombra de vida como

    mortos-vivos, zumbis ps-modernos. O autor chama a ateno para a paisagem de desolaocontra a qual vem inscrever-se um tal ato, num momento em que a vitalidade parece ter

    migrado para o lado daqueles que, numa volpia de morte, souberam desafiar nosso

    sobrevivencialismo exsangue. Baudrillard parece ir numa direo similar, ao tentar pensar o

    11 de setembro em funo da suspenso de sentido que ele suscita. "O que produz

    acontecimento aquilo que no tem equivalente", insiste ele. Pois no atentado suicida a morte

    se subtrai ao circuito das trocas, a singularidade irredutvel, que no pode ser negociada com

    nenhum sentido, j que ela o abole por isso a arma absoluta, que leva ao extremo a prpria

    potncia mortal do sistema ao qual se ope.13 Curiosamente, na esteira de Zizek, Baudrillard

    perscruta essa possibilidade "herica" e talvez pr-moderna, de respeitar, em si mesmo e no

    outro, mais do que a vida humana (afinal, "a existncia no tudo, at mesmo a menor das

    coisas"), os valores simblicos que superem de longe a existncia e a liberdade, tais como

    destino, causa, orgulho, sacrifcio.. Seja dito que, caucionado e reabsorvido na esfera da

    religiosidade, fica difcil compreender como um tal sacrifcio no receberia um equivalente

    transcendente, irrigando de sentido, pelo menos para os seus protagonistas, a presumida

    suspenso do sentido que gera em seu redor. A assertividade da f ali presente nos impede de

    entrever nesses atos qualquer trao de niilismo ativo, j que eles se realizam justamente sob o

    signo daqueles valores que a morte de Deus parecia ter inteiramente soterrado: a crena na

    verdade, na justia, na transcendncia, no absoluto, na finalidade, justamente num momento

    13 Jean Baudrillard, Power Inferno, Porto Alegre, Sulina, 2003, p. 30

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    em que esse edifcio moral e metafsico parece desmoronar estrepitosamente em volta deles.

    Ningum melhor do que Nietzsche para nos advertir sobre o sentido da "necessidade de f"

    sintoma de um adoecimento da vontade... A menos que no contexto geopoltico

    contemporneo, o sentido do ato seja inteiramente outro.

    No podemos deixar de lembrar da experimentao abissal que faz Dostoivski, seja

    com os extremos da vontade, com a exasperao da liberdade, ou com a "revolta metafsica",

    como o sugeriu Camus, quando aborda o terrorismo no contexto do anarquismo russo. Ele

    perscruta a tentao do Mal. Conhecemos a admirao que demonstrou o romancista pelos

    seus companheiros de priso na Sibria, que cometeram os piores crimes por vezes apenas

    pelo prazer de matar, e a quem ele se refere, no dia de sua liberao, da seguinte maneira:

    Quanta juventude aqui enterrada, que grandes foras pereceram em vo entre esses muros!

    Pois preciso dizer tudo: esses homem eram verdadeiramente homens extraordinrios! Talvezsejam os homens mais ricamente dotados, os mais fortes de todo nosso povo". Muitos

    constatam com surpresa que o autor prefere mil vezes esses tipos a um Bielinski, Nekrssov,

    Turguniev..14 Dostoivski jamais se livrou do fascnio por esses homens monstruosos, e

    talvez a fronteira decisiva no seja entre os bons e os maus, mas como o diz o artigo de

    Raskolnikov em Crime e Castigo, entre os ordinrios e os extraordinrios, entre os que se

    submetem em sua mediocridade s leis morais, e os homens que criam para si mesmos as leis,

    e para quem tudo permitido, e cuja conscincia sanciona at o crime com o que os termos

    bem e mal deixam de ter importncia. Por um lado o ordinrio, associado banalidade,

    platitude, e por outro o extraordinrio a grandeza.. Raskolnikov se colocava j para alm do

    bem e do mal, quando Nietzsche ainda era estudante e todavia sonhava com ideais sublimes,

    comenta Chestov15. Eis uma concepo original de Dostoivski, que nem Shakespeare

    possua, em quem o crime e o mal ainda esto rodeados de remorso.. Ora, diz Chestov,

    Dostoivski lutava contra essa teoria do homem extraordinrio, mas o primeiro e nico terico

    dessa perspectiva, elevada a uma dimenso moral, era ele mesmo ele lutava contra si

    mesmo. Dostoivski s conseguia descrever e s se interessava pelos espritos revoltados,

    aventureiros, os inquietos experimentadores. Quando se punha a descrever os bondosos, caa

    numa banalidade decepcionante. No fundo, diz Chestov, os idealistas so lamentveis. Desde

    14 Lon Chestov, La philosophie de la tragdie. Dostoevsky et Nietzsche, Paris, Flammarion, 1966 (1 ed. de1926).15 Idem, p. 98.

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    que Hamlet gritou: o tempo est fora dos gonzos!, os poetas e escritores no pram de girar

    em torno dessas palavras. Mas ningum admite que no se pode mais tentar re-soldar as

    cadeias quebradas, que no preciso fazer entrar o tempo no eixo do qual ele escapou. Tenta-

    se ainda e sempre ressuscitar o fantasma da antiga felicidade; no pram de nos querer

    convencer que preciso voltar a crer, voltar atrs... Mas para consolidar o conjunto, tentam

    nos oferecer as mesmas velhas idias caducas, sem notar que justamente delas que nos

    advm todo o mal.. Em suma, niilistas talvez sejam menos esses experimentadores inquietos

    do que aqueles contra quem eles se destacam.

    no entanto curioso que autores esclarecidos tendam a confundir o mrtir islmico e o

    heri dostoievskiano, quando o abismo que os separa inquestionvel. Baudrillard chega a

    diz-lo explicitamente: o "terrorismo atual no descende de uma histria tradicional da

    anarquia, do niilismo". contemporneo da globalizao e, para caracteriz-lo, deve-se situ-lo em contraposio a uma cultura de homogeneizao e de dissoluo que fez tbula rasa de

    todas as diferenas e valores, na circulao integral, na equivalncia de todas as trocas, na

    violncia viral que expulsa de dentro do humano todas as metstases inumanas, inclusive a

    violncia e a morte16. Como Zizek, tambm ele chama a ateno para o contraste entre os

    sistemas "desencantados", "sem intensidade", de "existncia protegida" e "vida cativa", como

    o nosso, e as culturas de "alta intensidade", inclusive em suas formas sacrificiais. O que

    detestamos em ns, lembra o autor, aquilo que o Grande Inquisidor de Dostoivski promete

    s massas domesticadas, o excesso de realidade, de conforto, de realizao, o reino de Deus

    sobre a terra. Que Nietzsche, alis, julgaria igualmente como rebaixamento gregrio da

    humanidade, no processo histrico de dcadence que ele no cessou de analisar. Em todo

    caso, se o contexto atual no Ocidente propcio para evocar o niilismo passivo dos ltimos

    Homens, como o faz Zizek, ou mesmo detectar entre ns a realizao capitalstica e biopoltica

    do credo do Grande Inquisidor, onde o po, a servido e a gesto da morna felicidade nos

    livrariam da inquietude e da revolta, qualquer associao do terrorismo tal como surgiu a

    partir do 11 de setembro com o niilismo ativo um perfeito contra-senso. A morte do homem

    reivindicada por Nietzsche, na esteira da morte de Deus, no tem relao alguma com

    atentados genocidas ou suicidas. O alm-do-homem, por sua vez, na sua superao do

    niilismo, aponta para um novo modo de sentir, de pensar, de avaliar, para uma nova forma de

    16 Jean Baudrillard, idem, p. 56-7

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    vida, e at mesmo para um outro tipo de subjetividade, no extremo oposto da f sacrificial e da

    doutrina prvia que a move.

    Seja como for, poderamos dizer que na ps-poltica espetacularizada, e com o

    respectivo seqestro da vitalidade social, estamos todos reduzidos ao sobrevivencialismo

    biolgico, merc da gesto biopoltica, cultuando formas de vida de baixa intensidade,

    submetidos morna hipnose, mesmo quando a anestesia sensorial travestida de

    hiperexcitao. a existncia de ciberzumbis, pastando mansamente entre servios e

    mercadorias, e como dizia Gilles Chtelet, Viver e pensar como porcos. Vida besta esse

    rebaixamento global da existncia, essa depreciao da vida, sua reduo vida nua,

    sobrevida, estgio ltimo do niilismo contemporneo.

    Giorgio Agamben havia resgatado a noo romana de Homo Sacerpara indicar aqueles

    que eram excludos da esfera do direito humano, mas tambm divino, banidos da comunidadepoltica e expostos a uma relao de exceo com o poder soberano, inclusive morte, sem

    que isso constitusse um crime17. Se essa noo serve para pensar a lgica do campo de

    concentrao, tornado paradigma poltico da contemporaneidade, mas tambm as zonas em

    que tal estado de exceo tornou-se corriqueiro, desde Guantnamo at fronteiras europias ou

    americanas, favelas, sans-papiers, ou mesmo pases inteiros submetidos ao arbtrio militar,

    como o Afeganisto ou o Iraque, num sentido mais profundo, nas prprias democracias

    representativas, com seu espao pblico seqestrado e esvaziado, com a poltica submetida a

    medidas administrativas, em suma, na ps-poltica espetacularizada, somos todos Homo Sacer,

    reduzidos ao sobrevivencialismo biolgico, vida nua, merc da gesto biopoltica e seus

    clculos estratgicos. Quando a vida reduzida vida besta em escala planetria, quando o

    niilismo se d a ver de maneira to gritante em nossa prpria lassido, nesse estado hipntico

    consumista do Bloom ou do Homo Otarius ou da gorda sade dominante, cabe perguntar o

    que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia, e se a catstrofe no estaria a instalada

    cotidianamente ("o mais sinistro dos hspedes"), ao invs de ser ela apenas a irrupo sbita

    de um ato espetacular atravs de um atentado contra a capital do Imprio.

    vida sem forma do homem comum, nas condies do niilismo, a revista Tiqqun deu

    o nome de Bloom18. Inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um tipo humano

    17 Giorgio Agamben, Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, v 1, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002.18 Tiqqun, Thorie du Bloom, Paris, La Fabrique, 2000 e a revista Tiqqun, 2001.

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    sobrevivencialista, seja no estado de exceo, seja na banalidade cotidiana. O "muulmano", o

    "ciberzumbi", o "corpo-espetculo" e "a gorda sade", "bloom", por extremas que paream

    suas diferenas, ressoam no efeito anestsico e narctico, configurando a impermeabilidade de

    um "corpo blindado"20 em condies de niilismo terminal.

    Diante disso, seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe mais prprio, sua dor no

    encontro com a exterioridade, sua condio de corpo afetado pelas foras do mundo, e capaz

    de ser afetado por elas: sua afectibilidade. Como o observa Barbara Stiegler, para Nietzsche

    todo sujeito vivo primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afeces, de

    seus encontros, da alteridade que o atinge, da multido de estmulos e excitaes que lhe cabe

    selecionar, evitar, escolher, acolher...21 Nessa linha, tambm Deleuze insiste: um corpo no

    cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxignio, os alimentos, os sons e as

    palavras cortantes um corpo primeiramente encontro com outros corpos, poder de serafetado. Mas no por tudo e nem de qualquer maneira, como quem deglute e vomita tudo, com

    seu estmago fenomenal, na pura indiferena de quem nada abala, a exemplo de nossos

    consumidores de cultura ou de lixo ou de luxo... Como ento preservar a capacidade de ser

    afetado? No seria preciso cultivar uma certa porosidade, at mesmo uma fragilidade, uma

    sensibilidade que nos devolvesse o poder de ser afetado? Mas como ter a fora de estar

    altura de sua fraqueza, ao invs de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a fora?

    Gombrowicz referia-se a um inacabamento prprio vida,ali onde ela se encontra em estado

    mais embrionrio, onde a forma ainda no pegou inteiramente22, e a atrao irresistvel que

    exerce esse estado de Imaturidade, onde est preservada a liberdade de seres ainda por

    nascer... Isso poderia ser especialmente marcante no mbito da educao, se soubssemos

    enxergar esses seres ainda por nascer no tateamento que lhes cabe viver, na experimentao

    que deveria ser seu direito, na aposta em sua indeterminao, sem coib-los ou apenas

    domestic-los, sem insensibiliz-los para tudo aquilo que no serve a nossos desgnios de

    poder, de pressa, de produtividade, de institucionalidade, com todas suas blindagens e

    formataes e solues prontas. Num mbito mais geral, talvez por isso tantos personagens

    literrios, de Bartleby ao artista da fome, precisem de sua imobilidade, esvaziamento, palidez,

    no limite do corpo morto, numa espcie de greve branca. Talvez eles precisem dessa parada

    20 Juliano Pessanha, Certeza do Agora, So Paulo, Ateli Ed. 2002.21 Barbara Stiegler, Nietzsche et la biologie, Paris, PUF, 2001, p. 38.22 Witold Gombrowicz, Contre les potes, Paris, Ed. Complexe, 1988, p. 129.

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    para dar passagem a outras foras que um corpo excessivamente blindado ou performativo

    no permitiria23. Como diz Deleuze, preciso no mexer-se demais para no espantar os

    devires.

    Trata-se, em todo caso, de instaurar outra relao com a vida, e precisamente com esta

    vida "antes" que ela tenha ganho uma forma, ou com a vida que justamente se livrou de sua

    forma, ou com uma dimenso da vida aqum ou alm da forma que tende a adquirir. No

    ltimo texto escrito por Deleuze, intitulado Imanncia: uma vida, comparece um exemplo

    para ilustr-lo o de Dickens. O canalha Riderhood est prestes a morrer num quase

    afogamento, e libera nesse ponto uma centelha de vida dentro dele que parece poder ser

    separada do canalha que ele , centelha com a qual todos sua volta se compadecem, por mais

    que o odeiem eis a uma vida, puro acontecimento, em suspenso, impessoal, singular,

    neutro, para alm do bem e do mal, uma espcie de beatitude, diz Deleuze. O outro exemploest no extremo oposto da existncia: os recm-nascidos, que, em meio a todos os

    sofrimentos e fraquezas, so atravessados por uma vida imanente que pura potncia, e at

    mesmo beatitude. que tambm o beb, como o morimbundo, atravessado por uma vida.

    Assim o define Deleuze24: querer-viver obstinado, cabeudo, indomvel, diferente de

    qualquer vida orgnica: com uma criancinha j se tem uma relao pessoal orgnica, mas no

    com o beb, que concentra em sua pequenez a energia suficiente para arrebentar os

    paraleleppedos (o beb-tartaruga de Lawrence)"25. Com o beb s se tem relao afetiva,

    atltica, impessoal, vital, pois o pequeno a sede irredutvel das foras, a prova mais

    reveladora das foras. como se Deleuze perscrutasse um aqum do corpo emprico e da vida

    individuada, como se ele buscasse, no s em Kafka, Lawrence, Artaud, Nietzsche, mas ao

    longo de toda sua prpria obra, e tambm, poderamos dizer, dos efeitos que ela produziu nos

    mais diversos campos, como se ele buscasse aquele limiar entre a vida e a morte, entre o

    homem e o animal, entre a loucura e a sanidade, onde nascer e perecer se repercutem

    mutuamente, pondo em xeque tantas divises e dicotomias, legadas por nossa tradio.

    No que concerne ao nosso contexto concreto, resta a pergunta: como diferenciar a

    esplndida perplexidade de Espinosa, com o fato de que no sabemos ainda o que pode o

    corpo, abrindo-nos para uma experimentao inaudita, da voracidade com que os poderes, o

    23 Juliano Pessanha, Certeza do Agora, op. cit.24 G. Deleuze, Crtica e Clnica, So Paulo, 1997.25 G. Deleuze, Crtica e Clnica, op. cit., p. 151.

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    capital, a tecnocincia precisamente vo pesquisando e experimentando o que se pode com o

    corpo e com a vida, na produo da sobrevida? Como descolar-se da obsesso de pesquisar "o

    que se pode fazer com o corpo e com a vida" (questo biopoltica: que intervenes,

    manipulaes, aperfeioamentos, eugenias..), e retomar a questo vitalista e espinosista, "o

    que pode o corpo e a vida, nesse contexto? Como insistir nesse pequeno postulado trivial de

    que viver no sobreviver? Por um lado temos as potncias da vida que precisam desfazer-se

    de suas formas cristalizadas para se experimentarem, por outro temos o poder sobre a vida que

    precisa de um corpo ps-orgnico ou de uma vida ps-orgnica para anex-los axiomtica

    capitalistica.

    Mas talvez para que um aparea preciso que o outro seja combatido, ou ao menos

    deslocado. Por exemplo, para que aquilo que Deleuze chamou de uma vida possa aparecer na

    sua imanncia e afirmatividade, preciso que ela se tenha despojado de tudo aquilo quepretendeu represent-la ou cont-la. Toda a tematizao do corpo-sem-rgos uma variao

    em torno desse tema biopoltico por excelncia, a vida desfazendo-se do que a aprisiona, do

    organismo, dos rgos, da inscrio dos poderes diversos sobre o corpo, ou mesmo de sua

    reduo vida nua, vida-morta, vida-mmia, vida-concha. Mas se a vida deve livrar-se de

    todas essas amarras sociais, histricas, polticas, no ser para reencontrar algo de sua

    animalidade desnudada, despossuda? Ser que essa vida desnudada dessas amarras o

    mesmo do que aquela vida nua da qual fala Agamben? Talvez o melhor fosse retomar Artaud,

    com o belo comentrio de seu tradutor e intrprete japons, Kuniichi Uno. Diz Uno: "Mas ele

    [Artaud] nunca perdeu o sentido intenso da vida e do corpo como gnese, ou auto-gnese,

    como fora intensa, impermevel, mvel sem limites que no se deixaria determinar nem

    mesmo pelos termos como bios ou zo (dois nomes dados para vida pelos gregos, um que

    designa a forma de vida, outro que designa apenas o fato da vida). A vida para Artaud

    indeterminvel, em todos os sentidos, enquanto a sociedade feita pela infmia, o trfico, o

    comrcio que no cessa de sitiar a vida e sobretudo a do corpo" 26. Bastaria meditar a frase

    enigmtica de Artaud: "Eu sou um genital inato, ao enxergar isso de perto isso quer dizer que

    eu nunca me realizei./ H imbecis que se crem seres, seres por inatismo./ Eu sou aquele que

    para ser deve chicotear seu inatismo". E Uno comenta que um genital inato algum que tenta

    nascer por si mesmo, fazer um segundo nascimento, para alm de sua natureza biolgica dada.

    26K. Uno, "Pantoufle dArtaud selon Hijikata, indito.

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    Por isso poderamos dizer, com Artaud, que somos inatos, ainda no nascemos, no sentido

    forte do termo. Pensemos em Beckett ouvindo Jung dizer, sobre uma paciente: O fato que ela

    nunca nasceu. E ele transporta essa frase para o contexto de sua obra. Ali, Beckett constri um

    eu que no nasceu, e este eu que no nasceu escreve sobre aquele outro que j est nascido e

    dado. Essa recusa do nascimento biolgico no a recusa proveniente de um ser que no quer

    viver, mas daquele que exige nascer de novo, sempre, o tempo todo. O genital inato a

    histria de um corpo que coloca em questo seu corpo nascido, com as suas funes e todos os

    rgos, representantes das ordens, instituies, tecnologias visveis ou invisveis que

    pretendem gerir o corpo. Trata-se de um corpo que tem a coragem de desafiar esse complexo

    scio-poltico que Artaud chamou de juzo de Deus, e que ns chamaramos de um biopoder,

    de um poder que se abate sobre nosso corpo... Essa recusa do nascimento em favor de um

    autonascimento no equivale ao desejo de dominar seu prprio comeo, mas de recriar umcorpo que tenha o poder de comear, diz Uno. A vida este corpo, insiste ele, desde que se

    descubra o corpo em sua fora de gnese, por um lado, e desde que ele se libere daquilo que

    pesa sobre ele como determinao guerra biopoltica... Talvez esse seja um dos poucos

    pontos em que concordamos com Badiou, quando afirma que para Deleuze o nome do ser a

    vida, mas a vida no tomada como um dom ou um tesouro, nem como sobrevida, antes como

    um neutro que rejeita toda categoria. Diz ele: "Toda vida nua. Toda vida desnudamento,

    abandono das vestimentas, dos cdigos e dos rgos; no que nos dirigimos para um buraco

    negro niilista. Mas ao contrrio para sustentar-se no ponto em que se intercambiam atualizao

    e virtualizao; para um ser criador "27 Mas ser que Badiou tem razo em designar essa vida

    como nua? Em todo caso, essa vida desnudada a que se refere ele no pode ser, como j Uno o

    havia notado, simples zo, aquele nome dado pelos gregos para designar o fato da vida, a vida

    como mero fato biolgico ou animal, o fato animal da vida, ou a vida reduzida a esse estado de

    nudez biolgica anexada ordem jurdica pelo estado de exceo, ou destinada manipulao

    tecnocientfica pelo movimento niilista do capital. Uma vida tal como Deleuze a concebe a

    vida como virtualidade, diferena, inveno de formas, potncia impessoal, beatitude. Vida

    nua, ao contrrio, tal como Agamben a teorizou, a vida reduzida ao seu estado de mera

    atualidade, indiferena, disformidade, impotncia, banalidade biolgica. Para no falar na vida

    besta, exacerbao e disseminao entrpica da vida nua, no seu limite niilista. Se elas so to

    27 A. Badiou, "De la Via comme nom de ltre", in Rue Descartes, n. 20, PUF, 1998, p 32.

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    contrapostas, mas ao mesmo tempo to sobrepostas, porque no contexto biopoltico a

    prpria vida que est em jogo, sendo ela o campo de batalha. Contudo, como dizia Foucault,

    no ponto em que o poder incide com fora maior, a vida, que doravante se ancora a resistncia,

    mas justamente, como que mudando de sinal.. Em outras palavras, s vezes no extremo da

    vida nua que se descobre uma vida, assim como no extremo da manipulao e decomposio

    do corpoque ele pode descobrir-se como virtualidade, imanncia, pura potncia, beatitude.

    Se os que melhor diagnosticaram a vida bestificada, de Nietzsche e Artaud at os

    jovens experimentadores e pesquisadores de hoje, tm condies de retomar o corpo como

    afectibilidade, fluxo, vibrao, intensidade, e at mesmo como um poder de comear, no ser

    por que neles a vida besta atingiu um ponto intolervel? No estamos ns todos nesse ponto de

    sufocamento, que justamente por isso nos impele numa outra direo? Talvez haja algo na

    extorso da vida que deve vir a termo para que esta vida possa aparecer diferentemente... Algodeve ser esgotado, como o pressentiu Deleuze em Lpuis, para que um outro jogo seja

    pensvel.

    Volto agora ao terrorismo, para que ele no fique nas mos de uma fumaa terica, e

    confundido com o niilismo que Nietzsche reivindica. Talvez seja mais instrutivo, ao tratar do

    terrorismo contemporneo, levar em conta as consideraes mais analticas e menos

    metafsicas de um Chomsky, que faz a gnese da onda de fundamentalismo em estreita

    associao com a conjuntura geopoltica das ltimas dcadas. Quando o Consultor de

    Segurana Nacional do governo Carter, Zbigniew Brzezinski, confessa que em meados de

    1979 estimulou um apoio secreto luta dos mujahidin contra o governo do Afeganisto, de

    modo a atrair os russos para o que chamou de "arapuca afeg", arregimentando para a ocasio

    um exrcito de cem mil homens entre os extremistas da regio aos quais juntou-se o prprio

    Bin Laden inegvel que o maior terrorista da atualidade em tudo um filhote da estratgia

    americana... Se naquele momento a luta era dirigida contra a presena dos "infiis" no

    Afeganisto, depois o alvo passou a ser a presena americana na Arbia Saudita. Bin Laden

    seria, aos olhos de Chomsky, tudo menos um luntico niilista seu objetivo consiste em

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    derrubar os governos corruptos instalados e sustentados pelos "infiis" nos territrios

    muulmanos, para ali instituir uma verso extremista do Isl28.

    Se valer a definio de terrorismo dada pelos documentos oficiais dos EUA, como "uso

    calculado da violncia ou da ameaa de violncia para atingir objetivos polticos, religiosos ou

    ideolgicos, em sua essncia, sendo isso feito por meio de intimidao, coero ou instilao

    do medo", preciso dizer que a maior potncia do Ocidente tem promovido sistematicamente

    por todo o planeta essa espcie de atrocidade de que foi vtima em 11 de setembro em seu solo

    ptrio.29 A imputao de terrorismo unicamente aos agressores , por conseguinte,

    problemtica no mais alto grau. Tambm Derrida assinala, desde um ponto de vista

    terminolgico, a instabilidade semntica a envolvida: "O poder dominante aquele que

    consegue impor e assim legitimar, na verdade at legalizar..., em um palco nacional ou

    mundial, a terminologia e a interpretao que mais lhe convm em uma determinada situao.Foi assim no curso de uma longa e complicada histria que os Estados Unidos conseguiram

    atingir um consenso intergovernamental na Amrica do Sul, para oficialmente chamar de

    "terrorismo" qualquer resistncia poltica organizada aos poderes estabelecidos".30 Do mesmo

    modo, pergunta ele: "No possvel aterrorizar sem matar? ...No possvel que "deixar

    morrer", "no querer saber se outros so deixados morte" centenas de milhes de seres

    humanos, de fome, Aids, falta de tratamento mdico etc. tambm constitua parte de uma

    estratgia terrorista "mais ou menos" consciente e deliberada?... Todas as situaes de

    opresso estrutural social ou nacional produzem um terror que no natural...sem que aqueles

    que dele se beneficiem cheguem jamais a organizar atos terroristas ou a serem tratados como

    terroristas"31.

    O alargamento da noo de terrorismo nos leva s portas da visionria anlise de

    Virilio sobre o Estado mundial absoluto, caa do inimigo qualquer 32. a idia necrfila que

    Deleuze j v inscrita no prprio Apocalipse. "Destruir, e destruir um inimigo annimo,

    28 Noam Chomsky, 11 de setembro, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003, p. 99. No muito diferente aavaliao feita por Derrida, por exemplo, sobre os desgnios supostos de Bin Laden, na desestabilizao dosregimes despticos do Oriente Mdio, pr-americanos.29 Noam Chomsky, 11 de setembro, op. cit.30 Jacques Derrida, em Filosofia em tempo de terror, G. Borradori (org.), Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004, p.125.31 Idem, 118. Chomsky, por sua vez, d vrios exemplos nessa direo, sobretudo o bombardeio das instalaesfarmacuticas de Al Shifa, no Sudo, em 1998, pelo governo Clinton, com dezenas de milhares de vtimasindiretas, sobretudo crianas.32 Paul Virilio, Linsecurit du territoire, Paris, Stock, 1976

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    intercambivel, um inimigo qualquer, tornou-se o ato mais essencial da nova justia."33 Trata-

    se de instaurar um poder ltimo, judicirio e moral, prolongando ao infinito a sede de julgar, o

    esprito de vingana, a volpia da desforra e a narcsica autoglorificao. O filsofo v no

    prprio cristianismo, revelia da "elegante imanncia de Cristo", a origem dessa religio do

    Poder baseada na mania de julgar, de colocar a todos em estado de dvida infinita, de inspirar

    o terrore fazer de cada um um sobrevivente, um zumbi. Nos termos contemporneos, isso se

    corporifica como mquina de guerra mundial. Num primeiro momento, o do fascismo,

    converte a guerra num movimento ilimitado, mas num segundo momento, o do ps-fascismo,

    toma diretamente a paz por objeto, "paz do Terror ou da Sobrevivncia"34. Nesse contexto, "a

    prpria guerra total ultrapassada em direo a uma forma de paz ainda mais terrfica" que a

    morte fascista, no s por suscitar as mais abominveis guerras locais, mas por fixar um novo

    tipo de inimigo, que j no um outro Estado, mas o "inimigo qualquer", que est emqualquer parte, virtualmente todos e cada um.

    Diante disso, Deleuze e Guattari invocam as mltiplas modalidades de revide,

    mquinas de guerra que justamente no tm a guerra por objeto, seno "suplementariamente"

    pode ser um movimento artstico, cientfico, ideolgico, sob a condio de que trace um

    plano de consistncia, uma linha de fuga criadora preservando o privilgio da afirmatividade

    j reivindicada por Nietzsche. Mesmo a guerrilha, ou a guerra revolucionria, s podem fazer

    a guerra se criam outra coisa ao mesmo tempo. Assim, os autores insistem em distinguir dois

    plos distintos, capazes de mapear a natureza das foras atuantes no presente: a linha de fuga

    que cria, ou aquela que se transforma em linha de destruio; o plano de consistncia que se

    constitui, ou aquele que se transforma em plano de organizao.

    Ora, tudo isso foi escrito muito antes de 11 de setembro. Alguns herdeiros desse

    pensamento insistem, sobretudo depois desse evento, mas j antes dele, em no centrar a

    resistncia no plano da guerra. Dada a superioridade esmagadora da nova potncia mundial,

    no se trata de entrar no terreno da violncia em condies tais de assimetria. Como o dizem

    Hardt e Negri: "Necessitamos de armas que no pretendam responder simetricamente

    potncia militar vigente, mas que tambm se oponham a uma violncia assimtrica incapaz de

    ameaar a ordem atual, e fonte de um estranho mimetismo... Uma arma adaptada ao projeto

    33 Gilles Deleuze, Crtica e Clnica, So Paulo, Ed. 34, 1997, pp. 45-63.34 Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Plats v. 5, So Paulo, Ed. 34, 1997, p. 108.

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    poltico da multido entretm com as armas do poder uma relao que no nem simtrica

    nem assimtrica, o que seria ao mesmo tempo contra-produtivo e suicidrio."35 A concluso se

    impe por si mesma: "Precisamos hoje inventar novas armas para a democracia... Precisamos

    ajustar armas que no sejam somente destrutivas, mas que sejam elas mesmas formas de poder

    constituinte, armas capazes de construir a democracia e de desfazer as armas do Imprio."

    Armas biopolticas, capazes de contrapor-se guerra, ao biopoder, prpria soberania, mas

    tambm aos afetos que as sustentam, a sede de vingana, de julgamento, de intimidao, ou a

    obsesso niilstica com a Nova Jerusalm. "Cada vez que se programa uma cidade radiosa,

    sabemos perfeitamente que uma maneira de destruir o mundo, de torn-lo "inabitvel" e de

    inaugurar a caa ao inimigo qualquer"36. Isto vale, diga-se de passagem, para todo e qualquer

    fundamentalismo. Contra o estado de exceo permanente, um estado de exceo

    constituinte...Eu vou tentar amarrar tudo isso a partir da primeira colocao feita acima, onde

    evocava uma fita de Moebius para caracterizar nossa situao contempornea. Como dizia, por

    um lado e por toda parte vemos o poder insinuando-se sobre todas as esferas de nossa vida e a

    engolfando por inteiro, nas suas dimenses mais infinitesimais. Por outro lado, por toda parte

    detectamos, mesmo em gestos minsculos, pequenas deseres, afetaes e agenciamentos

    coletivos que nossa percepo midiatizada e nossa sensibilidade amortizada j tem dificuldade

    em captar, vitalidades insubordinveis. Mas esse por um lado e por outro lado no so dois

    campos opostos separados por uma fronteira clara, so como que as duas faces da mesma

    moeda, ou melhor, os dois lados de uma mesma fita retorcida, as duas dimenses que nos

    atravessam e constituem, eles so coextensivos e inseparveis, passamos de um a outro

    imperceptivelmente, somos um e outro ao mesmo tempo, e a guerra entre eles passa por dentro

    de ns e nos rasga por dentro, obrigando-nos menos a tomar posio do que a reinventar

    tticas vitais. A geometria dos conflitos, por isso mesmo, se alterou inteiramente. No h

    combate que no se trave tambm contra ns mesmos, contra certos poderes que nos

    atravessam e nos constituem e dos quais ns resultamos e que ns mesmos sustentamos e aos

    quais aderimos, nossa revelia. Ningum pode imaginar-se habitando o lado certo, a margem

    independente, o lugar da Grande Recusa, pois ningum pode considerar-se protegido do que

    35 Michael Hardt e Toni Negri, Multitudes, Paris, La Dcouverte, 2004, p. 393.36 Gilles Deleuze, Crtica e Clnica, op. cit., p. 55..

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    nos constitui por fora e por dentro. Isso pode dar uma impresso claustrofbica ou sem sada

    para aqueles que anseiam por dicotomias fceis, inimigos visveis, resolues definitivas, o

    assalto final ao Palcio de Inverno. Mas o contexto contemporneo que alguns chamam de

    Imprio mais complexo e sutil, mais mvel e molecular. Contudo, apesar da inimaginvel

    capacidade de expanso e de anexao e depauperao da vida que empreende, est mais

    prximo da descrio feita por Kafka a Janoush: No vivemos num mundo destrudo,

    vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro

    destroado. Talvez o desafio atual seja intensificar esses estalos e rachaduras a partir daquilo

    que pipoca por toda parte, essa vida no orgnica, os modos de cooperao que surgem aqui e

    ali, a inteligncia coletiva que fervilha, as contra-subjetivaes que pedem passagem e

    redesenham nossa paisagem coletiva. Afinal o poder, como diz Negri inspirado em Espinosa,

    superstio, organizao do medo: Ao lado do poder, h sempre a potncia. Ao lado dadominao, h sempre a insubordinao. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do

    ponto mais baixo: este ponto ... simplesmente l onde as pessoas sofrem, ali onde elas so as

    mais pobres e as mais exploradas; ali onde as linguagens e os sentidos esto mais separados de

    qualquer poder de ao e onde, no entanto, ele existe; pois tudo isso a vida e no a morte.37

    37 A. Negri, Exlio, So Paulo, Iluminuras, 2001.