Pelas Trilhas dos Filhos do Sol e da Lua: memórias das pinturas ...

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i Arenildo dos Santos Silva PELAS TRILHAS DOS FILHOS DO SOL E DA LUA: Memórias das Pinturas Rupestres de Monte Alegre, Pará, Amazônia, Brasil Dissertação de Mestrado Belém, Pará 2014

Transcript of Pelas Trilhas dos Filhos do Sol e da Lua: memórias das pinturas ...

  • i

    Arenildo dos Santos Silva

    PELAS TRILHAS DOS FILHOS DO SOL E DA LUA: Memrias das Pinturas Rupestres de Monte Alegre, Par,

    Amaznia, Brasil

    Dissertao de Mestrado

    Belm, Par 2014

  • ii

    Arenildo dos Santos Silva

    PELAS TRILHAS DOS FILHOS DO SOL E DA LUA: Memrias das Pinturas Rupestres de Monte Alegre, Par,

    Amaznia, Brasil

    Dissertao apresentada como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Mestre em

    Antropologia (Concentrao em Arqueologia)

    pela Universidade Federal do Par.

    Orientadora: Prof Dra. Denise Pahl Schaan.

    Co-orientador: Prof Dr. Agenor Sarraf Pacheco.

    Belm, Par 2014

  • iii

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    __________________________________________________________

    Silva, Arenildo Dos Santos, 1980-

    Pelas trilhas dos filhos do sol e da lua:

    Memrias das pinturas rupestres de Monte

    Alegre, Par, Amaznia, Brasil / Arenildo dos

    Santos Silva. - 2014.

    Orientador: Denise Pahl Schaan;

    Coorientador: Agenor Sarraf Pacheco.

    Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal

    do Par, Instituto de Filosofia e Cincias

    Humanas, Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia, Belm, 2014.

    1. Pinturas rupestres Monte Alegre (PA). 2.

    Arqueologia Monte Alegre (PA). 3. Monte Alegre

    (PA) Antiguidades. I. Ttulo.

    CDD 22. ed. 709.0113098115

    ____________________________________________________________

  • iv

    Arenildo dos Santos Silva

    PELAS TRILHAS DOS FILHOS DO SOL E DA LUA: Memrias das Pinturas Rupestres de Monte Alegre, Par,

    Amaznia, Brasil

    Dissertao de Mestrado

    Banca Examinadora:

    ________________________________________________ Prof Dra. Leila Mouro

    Examinador Externo

    ________________________________________________ Prof Dra. Marcia Bezerra de Almeida

    Examinador Interno

    ________________________________________________ Prof. Dr. Fabiano de Souza Gontijo

    Examinador Suplente

    ________________________________________________ Prof Dra. Denise Pahl Schaan

    Orientadora

    ________________________________________________ Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco

    Coorientador

    Belm, Agosto 2014

  • v

    Aos Montealegrenses (Pinta-Cuias), especialmente

    aos moradores do entorno das serras de Monte

    Alegre pelos saberes vivenciados e

    compartilhados.

  • vi

    SONO E SEGREDO

    Indesatveis ns

    Bas do Tempo

    As pedras guardam em si sono e segredo

    E resistindo assim a todos os degredos

    Futuramente

    Zombaro de ns.

    Antonio Juraci Siqueira

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    AGRADECIMENTOS

    A escrita desta dissertao foi possvel pelo apoio e dedicao de vrias pessoas, que

    contriburam de formas distintas para que eu pudesse concretiz-la.

    Meus pais, Adinaldo e Antonia, que sempre respeitaram minhas escolhas e me

    apoiaram em tudo que fiz.

    Minha esposa Aldacy, com quem dividi preocupaes, tristezas e alegres descobertas

    ao longo da pesquisa.

    Meus filhos Arthur e Augusto, seus sorrisos me fortaleceram nos momentos difceis.

    Meus irmos, Arinaldo, Arinei e Suly, e outros parentes e amigos, que mesmo de

    longe, sempre torceram por mim.

    A famlia de dona Francisca, Edimilson e Lorena que abriram a porta do seu lar e

    acolheram-me durante toda a minha permanncia em Belm para cursar o mestrado.

    A Professora Leila Mouro que desde a graduao em Histria tem acompanhou a

    trajetria da minha formao com palavras sbias e sugestes valiosas para o

    desenvolvimento da pesquisa.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Antropologia, da Universidade

    Federal do Par UFPA, alguns em especial:

    Professora Denise Pahl Schaan, que orientou este trabalho sempre com muito

    compromisso e exercitando pacincia e tolerncia diante da minha inexperincia e

    dificuldade durante este trabalho, compartilhando comigo ensinamentos e reflexes,

    demonstrando-me seriedade e profissionalismo na prtica arqueolgica e na vida.

    Professora Marcia Bezerra, que sempre nas suas aulas brilhantemente buscava

    relacionar os temas de cada docente aos temas abordados em sala. Sou grato pela leitura

    cuidadosa e valiosa contribuies ao projeto de qualificao desta dissertao. Sua

    dedicao, com a causa nobre de ensinar, um grande exemplo.

    Professor Agenor Sarraf Pacheco que alm de um grande mestre sempre foi um

    grande amigo nos momentos mais crticos da minha caminhada e na co-orientao deste

    trabalho.

    Durante a elaborao da dissertao pude contar com amigos (as) que me deram

    informaes, indicao de livros e apoio tcnico, assim agradeo ao Rhuan, Afonso e Antonia

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    que contribuiu na elaborao de mapas, ao Jernimo e Hermes pelas dicas de leituras, ao

    Reginaldo Salles pelo compartilhamento de documentos histricos.

    Sou devedor de gratido ao Nelsi Sadeck pelas coisas de Monte Alegre sempre

    compartilhadas de forma alegre, mas no menos crtica e responsvel.

    A professora Viviane Menna Barreto e ao Luiz Carlos Shikama pela parceria na

    elaborao da revista em quadrinho Gurupatuba que um subproduto desta pesquisa.

    A equipe de produo audiovisual 24 Cinquenta Filmes que neste trabalho foi

    composta pelos cinegrafistas Breno Pimentel e Arnei Barreto, pelo assistente de produo

    Felipe Silva, pelo diretor de fotografia Andr dos Santos e do roteirista Dario Viseu.

    Sou grato tambm a Secretaria de Estado de Meio Ambiente SEMA, na pessoa da

    Patrcia Messias, gerente do Parque Estadual Monte Alegre PEMA, que autorizou a

    realizao da pesquisa e sempre que possvel concedeu apoio na realizao da mesma.

    A Prefeitura Municipal de Monte Alegre e a Secretaria Estadual de Educao SEDUC

    por terem concedido licena remunerada para cursar o mestrado. A SEDUC em especial pela

    concesso de bolsa.

    Por ltimo, mas no menos importante, s pessoas da Vila do Erer que me

    receberam em longas conversas regadas a um bom cafezinho, em especial, ao seu Humberto

    Assuno, Lzaro Ribeiro, Joo Ucha, Arnaldo Carvalho (in memoriam), Dona Aldenora,

    Joo Batista (in memoriam), Dona Cleonice, professor Iraclio, professor Luiz Gonzaga, Dona

    Rosilda dos Santos, Luiz Almeida (in memoriam), Magno Assuno, Z Preto, Beque, Ronaldo

    Silva, Ileda Silva, Auriene Almeida, e ao meu escudeiro pelas trilhas e subidas s serras de

    Monte Alegre, Jairo Silva.

    A estas pessoas e s outras que, tambm contriburam para a realizao desta

    pesquisa, mas que neste momento, a minha memria no permitiu lembrar, o meu mais

    sincero agradecimento.

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    RESUMO

    O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre o conjunto de narrativas a cerca das pinturas rupestres da regio das serras de Monte Alegre, Par, na busca de compreender os significados que o patrimnio arqueolgico assume no mbito das relaes sociais contemporneas, em especfico, aquelas construdas segundo a lgica de populaes tradicionais. O estudo inicia com um dilogo histrico atravs das primeiras narrativas sobre estas imagens registradas por viajantes e naturalistas desde o sculo XIX, depois traz para discusso os trabalhos e conhecimentos produzidos pela cincia arqueolgica nas ltimas dcadas, e por ltimo, adiciona tambm as vozes de moradores da Vila do Erer e arredores sobre estas iconografias. A dissertao se construiu a partir do interstcio entre a Antropologia, Arqueologia e Histria, pois, as informaes que subsidiaram a pesquisa foram obtidas atravs de relatos de viajantes, dos trabalhos de pesquisa arqueolgica, de entrevistas, observao e do convvio com moradores da vila. O resultado um emaranhado de vozes distintas que se tecem, cruzam e ecoam na formao de um caleidoscpio de narrativas compostas por fragmentos de mundos, pautados nas experincias, na relao com a vida social e o presente vivido. As trilhas percorridas apontam reflexes acerca da poltica do patrimnio na Amaznia, e mais amplamente ponderaes da pesquisa tendo em vista uma prxis descolonial da cincia. Palavras-Chave: Monte Alegre; narrativa; patrimnio arqueolgico; arqueologia pblica.

    ABSTRACT The present work aims to reflect on the set of narratives about the cave paintings of the mountain ranges region of Monte Alegre, Par, in the seek to understand the meanings that the archaeological heritage takes within contemporary social relations, in particular, those built according to the logic of traditional populations. The study begins with a historical dialogue through the first narratives on these images recorded by travelers and naturalists since the nineteenth century, afterwards it brings for discussion the works and knowledge produced by archaeological science in recent decades, and finally, it also adds the voices of residents of the Village of Erer and surroundings about these iconographies. The dissertation was constructed from the interstitium between Anthropology, Archaeology and History, because the information that supported the research were obtained from reports of travelers, works of archaeological research, interviews, observation and the living together with residents of the village. The result is a tangle of distinct voices which weave, intersect and echo in the formation of a kaleidoscope of narratives composed by fragments of worlds, guided in the experiences, in the relationship with the social life and the lived present. The paths taken indicate reflections about the heritage policy in the Amazon, and more widely reflections of the search according to a decolonial praxis of science. Keywords: Monte Alegre; narrative; archaeological heritage; public archeology.

  • x

    Lista de Figuras

    Figura 1 - Reproduo de imagens das pinturas rupestres em alguns lugares da cidade de Monte

    Alegre: a) Hidroviria; b) Bar da Orla; c) Banco da Praa da Orla; Palco da Praa Central, 26 Out. 2013

    ............................................................................................................................................................... 17

    Figura 2 - Mapa do Municpio de Monte Alegre - Par ......................................................................... 18

    Figura 3 - Dona Yurika e filhas. Fonte: lbum da minha famlia. .......................................................... 19

    Figura 4 - Ilustrao do transporte nos rios amaznicos em 1848. Fonte: Wallace 1979 .................... 44

    Figura 5 Estampas 3 e 4. Fonte Hartt (1871) ...................................................................................... 62

    Figura 6 - Estampas 5 e 8. Fonte: Hartt (1871) ..................................................................................... 65

    Figura 7 - Estampas 6 e 7. Fonte: Hartt (1871) ..................................................................................... 65

    Figura 8 - Painel da Serra da Lua, na Serra do Erer, 28 set. 2013 ....................................................... 72

    Figura 9 - Painel do Pilo na Serra do Paituna, 7 Nov. 2013 ................................................................. 73

    Figura 10 - Caverna da Pedra Pintada, 13 Jun 2013 .............................................................................. 74

    Figura 11 - Mapa com os principais stios com pinturas rupestres das serras ...................................... 78

    Figura 12 - Pinturas rupestres de crculos concntricos, marcas de mo, e uma figura invertida com

    cabea raiada, Serra da Lua, Monte Alegre. Fonte: Roosevelt at al. 1996 ........................................... 86

    Figura 13 - Logomarca do XV congresso da SAB. Fonte: Sabnet 2009 .................................................. 86

    Figura 14 - Local aps uma escavao arqueolgica. Foto: Nelsi Sadeck ............................................. 90

    Figura 15 - Seu Humberto no Painel de pinturas do Pilo. Foto: Andr dos Santos, 11 Out. 2013 ...... 98

    Figura 16 Seu Lzaro prximo a Pedra do Mirante. Foto: Andr dos Santos, 14 Out. 2013 .............. 99

    Figura 17 - Seu Joo Grande prximo pedra do Mirante. Foto: Andr dos Santos, 14 Out. 2013 ... 100

    Figura 18 - Ronaldo Silva e ao fundo a srra do Erer. Foto: Andr dos Santos, 13 Out. 2013 ............ 101

    Figura 19 - Patrcia Messias no Painel do Pilo. Foto: Andr dos Santos, 26 Out. 2013 ..................... 102

    Figura 20 - Nelci Sadeck a sombra de uma mangueira na vila do Erer. Foto: Andr dos Santos, 15 Out

    2013 ..................................................................................................................................................... 103

    Figura 21 - Trecho da rodovia MA-01 cortada pelo igarap do Erer, local chamado de Urubu, 16 Mai.

    2013 ..................................................................................................................................................... 108

    Figura 22 - Imagem da entrada da MA 01, ao fundo a serra do Erer, 16 Mai. 2013 ........................ 108

    Figura 23 - Imagem de aves sobrevoando o Campo do Desterro, 16 Mai. 2013 ................................ 109

    Figura 24 - O Domo de Monte Alegre. Fonte: Par 2009 .................................................................... 110

    Figura 25 - Imagem da casa de dona Dina, 16 Mai. 2013 ................................................................... 111

    Figura 26 - Cabine telefnica da dona Dina, 16 Mai. 2013 ................................................................. 112

    Figura 27 Centro da vila do Erer: (1) Capela; (2) barraco de festa; (3) prdio da APRORE; (4)

    Fbrica de polpa; (5) rea recreativa; (6) escola do Erer, 16 Mai. 2013 ........................................... 115

    file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927383file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927385file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927386file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927387file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927392file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927392file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927393file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927395file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927396file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927397file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927399file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927400file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927400file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927402file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927403file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927404file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927405file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927406file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927407file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927407

  • xi

    Figura 28 - Prdios destinado fabricao de artesanato e beneficiamento da polpa do miriti no

    Erer .................................................................................................................................................... 120

    Figura 29 - Jovem Jairo Silva, 13 Jun. 2013 ......................................................................................... 124

    Figura 30 - Pedra do Pilo, 13 Jun. 2013 ............................................................................................. 125

    Figura 31 - Casa alugada na vila do Erer, 16 Jun. 2013 ..................................................................... 127

    Figura 32 - Auriene e dona Ilda , 28 jun. 2013 ................................................................................. 128

    Figura 33 Criana brincando durante uma atividade da SEMA, ao fundo a serra do Erer, 07 Jun.

    2013 ..................................................................................................................................................... 129

    Figura 34 - Luiz Shikama e Nolisson, serra do Sol, 08 nov, 2013 ....................................................... 132

    Figura 35 - Pintura rupestre no painel do Pilo, chamada de "calendrio", 13 Jun. 2013 ................. 135

    Figura 36 - Turistas visitando a Serra da Lua. Foto: Nelsi Sadeck ....................................................... 136

    Figura 37 - Pinturas apontadas como cruz e estrela na Pedra Pintada e na Pedra do Mirante, 13 Jun.

    2013 ..................................................................................................................................................... 137

    Figura 38 - Pintura rupestre em forma da palma de uma mo, serra da Lua, 13 Jun. 2013............... 137

    Figura 39 - Rochedo do Pilo, Serra do Paituna, 07 Nov. 2013 ........................................................... 137

    Figura 40 - Caverna Tititira, Serra do Erer, 13 Jun. 2013 ................................................................... 137

    Figura 41- Pintura na Serra da Lua que pareceu com o Mapinguari para uma visitante, 13 Jun. 2013

    ............................................................................................................................................................. 137

    Figura 42 - Pintura no painel da Serra do Sol, na Serra do Erer, 08 Nov. 2013 ................................. 137

    file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927411file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927412file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927415file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927417file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927417file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927418file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927419file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927420file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927421file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927421file:///C:/Users/Arenildo%20Silva/Desktop/DISSERTAO%20ARENILDO.doc%23_Toc397927422

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    Lista de abreviaturas

    ACS Agente Comunitrio de Sade.

    AP Antes do tempo Presente.

    APA rea de Proteo Ambiental

    APRORE Associao de Produtores Rurais de Erer.

    CANP Colnia Agrcola Nacional do Par

    CH Cincias Humanas.

    DETRAN Departamento de Trnsito do Estado do Par.

    EJA Educao de Jovens e Adultos.

    FAPESPA Fundao de Amparo a Pesquisa do Estado do Par

    FIT Faculdades Integradas do Tapajs.

    FNMA Fundo Nacional do Meio Ambiente.

    FUNBIO Fundo Brasileiro para a Biodiversidade.

    GEP Grupo Espeleolgico do Par.

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.

    IBPEX Instituto Brasileiro de Pesquisa e Extenso.

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao

    IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional.

    PEMA Parque Estadual Monte Alegre.

    PPCE Programa Par Faz Cincia na Escola.

    PRONAPA Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas.

    PRONAPABA - Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas na Bacia Amaznica.

  • xiii

    MPEG Museu Paraense Emilio Goeldi.

    SAB Sociedade Brasileira de Arqueologia.

    SEDUC Secretaria de Estado de Educao.

    SEMA Secretaria de Estado de Meio Ambiente.

    SETRAN Secretaria de Estado de Transportes.

    UC Unidade de Conservao.

    UFOPA Universidade Federal do Oeste do Par.

    UFPA Universidade Federal do Par.

    URE Unidade Regional de Educao.

  • xiv

    Sumrio

    INTRODUO: Preparando-se Para as Trilhas ...................................................................... 16

    CAPTULO I: Ferramentas Terico-Metodolgicas Usadas Antes de Chegar s "Trilhas ....... 25

    CAPTULO 2 Trilhas e Vozes de Viajantes .............................................................................. 39

    CAPTULO 3: Trilhas e Vozes da Cincia ................................................................................... 70

    3.1 Em Busca da Preservao das Pinturas Rupestres .......................................................... 89

    CAPTULO 4: Trilhas e Vozes Locais .......................................................................................... 94

    4.1 Vivncias e Cruzamentos com os Caminhos e Trilhas das Serras ................................... 95

    4.2 - Primeiros Passos do Caminhar em Campo: o Estar l com o Outro .............................. 106

    4.3 - As Pinturas Rupestres na Interpretao de Moradores ................................................. 133

    4.4 - Expectativas Frustradas e Sonhos Possveis ................................................................... 147

    (IN)CONCLUSO: Repensando Trilhas Possveis .................................................................... 153

    Referncias Bibliogrficas .....................................................................................................158

    Anexos .................................................................................................................................... 168

  • 16

    INTRODUO: Preparando-se Para as Trilhas

    Pelas Trilhas dos Filhos do Sol e da Lua: memrias das pinturas rupestres de

    Monte Alegre, Par, Amaznia, Brasil, ser representada metaforicamente como uma

    escalada que se prope antropolgica. Explico. um convite a conhecer o conjunto de

    narrativas produzidas em distintos contextos histricos e por diferentes agentes sociais

    acerca das pinturas rupestres de Monte Alegre. uma trilha desafiadora, mas ao chegar aos

    diversos pontos do territrio patrimonializado, como acontece com um visitante, espero que

    a viagem permita outras descobertas, especialmente voltadas compreenso do dilogo

    entre Antropologia, Arqueologia e Histria. (Bezerra 2011b, Schaan e Marques 2012)

    As trilhas continuamente direcionaro um caminhar na tentativa de compreender

    significados, valores, memrias, sonhos e vivncias de distintos sujeitos que tiveram suas

    vidas tocadas por conhecerem as pinturas rupestres, em especial, os moradores da

    comunidade1 do Erer e arredores. Esta pesquisa teve como objetivo registrar, analisar,

    estudar e comparar o conjunto de narrativas expressas por viajantes, naturalistas,

    arquelogos, monitores de turismo e moradores locais sobre as pinturas rupestres das

    serras2 de Monte Alegre, na perspectiva de trabalhar todos esses saberes de forma no

    hierarquizada, verificando possveis relaes entre eles. Bas Filho (2009)

    A expresso Filhos do Sol e da Lua contida no ttulo uma referncia ao registro

    feito no sculo XIX por Herbert Smith (1879) acerca das crenas e rituais dos indgenas do

    Erer em torno de um eclipse, onde humanos e a lua so vistos como seres vivos e

    interdependentes. O desenvolver da vida humana nas fases de criana, adulto e velho foi

    comparada com as formas que a lua assume durante este fenmeno, pequeno, grande e

    1 Ressalto previamente que o sentido empreendido pelo termo comunidade, utilizado neste trabalho, se

    remete diretamente a ideia de uma mobilizao de um grupo social apoiada em critrios poltico-organizativos, sendo, portanto um grupo que se forma no seio de uma sociedade sem, entretanto, constituir, por si s, uma sociedade (Godelier, 2009 apud Bas Filho, 2009:565). A comunidade uma espcie de referncia simblica desejada ou imaginada -, mas preciso tambm enfoc-la como uma estratgia discursiva articulada a determinadas prticas concretas, vinculadas, por sua vez, a objetivos polticos, por vezes difusos, em outros casos, bastante definidos (Frgoli, 2003 apud Schaan e Marques, 2012:118-119). Sigo tambm Bezerra (2011:58) quando se refere a comunidade de pequena escala em funo das fronteiras claramente marcadas, dos estreitos laos de parentescos entre os moradores. 2 Utilizarei o termo serras para se referir as trs principais serras: Erer, Paituna e Aroxi. Estas compem o

    complexo de Serras de Monte Alegre, embora no sejam as nicas serras com pinturas rupestres, elas apresentam um nmero significativo.

  • 17

    fino; eles acreditavam que rituais eram necessrios para afastar os espritos malficos que

    imaginavam ficar expostos durante o eclipse.

    Entretanto, at a concretude desta pesquisa etnogrfica algumas experincias

    anteriores foram necessrias para chegar ao contorno e trilhas que sero apresentados nas

    pginas seguintes. Assim, para imergir nesse percurso e sentir os passos seguidos e que hoje

    compem os fios da minha memria, inicialmente peo o exerccio de sua faculdade mental

    de imaginao.

    Imagine-se um adolescente de dezessete anos morando em uma pequena cidade do

    interior amaznico que, tendo passado cinco anos estudando fora, ao retornar

    surpreendido com a reproduo de pinturas, que nunca vira antes, impressas nos prdios

    pblicos, praas e carros oficiais do governo municipal de sua cidade. Pense essas pinturas

    como figuras totalmente estranhas, nunca vistas antes e sem nenhum significado para voc.

    Figura 1 - Reproduo de imagens das pinturas rupestres em alguns lugares da cidade de Monte Alegre: a) Hidroviria; b) Bar da Orla; c) Banco da Praa da Orla; Palco da Praa Central, 26 Out. 2013

    3

    Abusando um pouco mais da sua capacidade imaginativa, peo para voc imaginar a

    capacidade de algumas pessoas, pelo entusiasmo e orgulho que possuem por estas

    iconografias, possam contagiar e despertar em voc e em outros sujeitos um forte interesse

    3 As fotografias utilizadas na dissertao foram capturadas por mim durante o perodo de campo. Ao utilizar

    material de outra procedncia, fao a indicao apropriada.

  • 18

    inicial em conhecer um pouco mais sobre essas imagens. Para entender o porqu de tanta

    imaginao vou narrar o pouco da minha prpria trajetria de vida.

    O cenrio desta histria o municpio de Monte Alegre localizado na regio noroeste

    do Estado do Par, na calha norte do rio Amazonas, com uma rea superior a 18 mil km2. O

    municpio se estende no sentido norte-sul e constitui limite territorial a oeste com Alenquer,

    a norte e nordeste com Almeirim, a sul e sudoeste com Prainha. No censo de 2010, a

    populao era estimada em 55.462 habitantes (IBGE 2014). A sede da cidade de Monte

    Alegre est s margens do rio Gurupatuba, medindo aproximadamente 623 km em linha reta

    de Belm (Carvalho 2010).

    Figura 2 - Mapa do Municpio de Monte Alegre - Par

  • 19

    Nasci e cresci vivendo entre ladeiras e mirantes da cidade Pinta-Cuia4. Vivi num

    ambiente familiar com grandes contadores de narrativas fantsticas. Guardo em minha

    memria s vezes em que eu e meus irmos amos passar frias5 na casa de meu av Joo,

    na comunidade de Linha 1, e quando chegava noite, aps o jantar luz de lamparina,

    ficvamos ouvindo aquelas histrias contadas por meus tios e meu av que enchiam nossa

    imaginao de cenrios e seres fantsticos, com povoados e gentes que viviam e realizavam

    as coisas mais surpreendentes. Acredito que isso contribuiu, em certa medida, para que eu

    optasse pela formao de historiador e antroplogo.

    No percurso, tanto de ida como de volta das frias, ficou em minhas lembranas

    tambm a presena imponente daquela serra gigantesca, chamada Serra do Erer. De longe

    nutria o desejo de um dia poder olh-la de perto e tambm escal-la. Recordo que no lbum

    de fotografia de minha famlia da dcada de 1980, at hoje existe uma imagem que minha

    me dizia ser da Serra da Lua. Esta foto era das filhas do seu Moacir e dona Yurika, um casal

    de bancrios que moravam em Monte Alegre e fizeram o registro em uma viagem s serras.

    4 Pinta-Cuia nome dado ao povo de Monte Alegre em referncia ao trabalho de pintar cuia que era feito pelas

    ndias montealegrenses no perodo Colonial. Com o passar do tempo, o termo assume um carter identitrio e passou a denominar as pessoas naturais do lugar (Silva, 2011) 5 Frias entre aspas porque, como em muitas famlias pobres do interior amaznico ainda hoje, os pais

    aproveitavam o recesso escolar dos filhos para estes ajudarem no trabalho de produo da farinha de mandioca e outros produtos.

    Figura 3 - Dona Yurika e filhas. Fonte: lbum da minha famlia.

  • 20

    Temos este registro porque minha me trabalhava como domstica na casa deles e

    ganhou a foto. A imagem despertava curiosidade e imaginao. Na minha capacidade

    imaginativa de criana, associava o nome Serra da Lua com um cenrio lunar daqueles que

    se via na televiso. Hoje sei que o cenrio da fotografia no foi a Serra da Lua e sim, o

    interior escuro e mido de uma caverna que logo ficaria conhecida internacionalmente por

    Caverna da Pedra Pintada.

    Estudei o fundamental menor, 1 a 4 srie, na Escola Municipal Professora Aracoele

    Pinheiro. Em seguida, minha me me matriculou na Escola Imaculada Conceio onde

    conclui o ensino fundamental em 1994. Nesta poca, participava de encontros religiosos

    com as Testemunhas de Jeov, o que me motivou a desenvolver habilidades na arte do

    ensino. No ensino mdio, influenciado pela atividade de evangelizao, optei pelo curso de

    Magistrio. Estudei no Colgio Estadual Francisco Nobre de Almeida, fundado em 1980, o

    mesmo ano do meu nascimento. Veja como as histrias de tempos distintos se tocam na

    construo de uma memria individual e coletiva.

    Dos trs anos do curso de magistrio, alm das teorias e prticas pedaggicas,

    constitui grandes amizades com alunos e professores. Entretanto, no recordo de nenhuma

    inferncia significativa em toda a trajetria estudantil que tenha sido marcante na minha

    memria com relao s pinturas rupestres das serras de Monte Alegre neste perodo. Hoje

    tenho conhecimento de que o professor de Geografia, Rosivaldo Carvalho, cuja famlia

    morou na vila do Erer perto das serras, levava seus alunos para conhecerem as pinturas.

    No tive o privilgio desse exerccio pedaggico na poca, porque o professor Rosivaldo

    ministrava aulas apenas para o curso de Cincias Humanas (CH).

    Com a concluso do Magistrio em 1997, a despeito de o diploma de professor

    habilitar-me para atuar no ensino das sries iniciais, no queria encerrar minha trajetria

    estudantil ali. E assim como outros montealegrenses, tive de sair do municpio para

    continuar os estudos. A universidade pblica mais prxima encontrava-se na cidade de

    Santarm. Em 1998, por influncia da igreja na qual me congregava, decidi que iria

    aprofundar meus conhecimentos na rea do ensino, por isso fiz e fui aprovado no vestibular

    para o curso de Pedagogia da Universidade Federal do Par (UFPA), Campus de Santarm. J

    no ambiente universitrio assim como em outros ambientes, quando falava que era de

  • 21

    Monte Alegre, as pessoas geralmente buscavam reiterar a informao com as perguntas: Tu

    s de Monte Alegre, ? E as pinturas rupestres das serras?.

    As pinturas rupestres eram uma temtica recorrente que sempre emergia quando eu

    falava que era montealegrense. Muitas vezes ficava constrangido por nada poder falar sobre

    as pinturas, mesmo porque nunca tinha ido v-las de perto. Neste perodo de adaptao em

    Santarm, procurei me associar aos montealegrenses que tambm estavam estudando na

    UFPA, quando conheci a jovem Mnica Luz Costa. Ela cursava Direito nas Faculdades

    Integradas do Tapajs (FIT) e Pedagogia na UFPA, o mesmo curso no qual eu acabara de

    ingressar. Recordo neste perodo, que as msicas do festival de boi da cidade de Parintins,

    no estado do Amazonas, faziam sucesso na mdia nacional e internacional. Dentre estas

    msicas, havia uma chamada Amaznia Quaternria. Lembro que, em uma das minhas

    conversas com Mnica, ela falou que aquela msica era baseada nas pesquisas

    arqueolgicas feitas em Monte Alegre; indiretamente essa convivncia fez meu interesse

    pela msica regional e pela histria de Monte Alegre aumentar.

    Em outubro de 2004, j como professor pedagogo da rede estadual de ensino em

    Monte Alegre conheci a pesquisadora estadunidense Anna Roosevelt, que foi a Monte

    Alegre, quando fui indicado pela diretoria da rdio comunitria Gurupatuba a entrevist-la,

    mediante a interveno do senhor Nelsi Sadeck. Anna Roosevelt, a princpio, ficou com

    receio de receber um reprter, mas como o Nelsi era amigo dela, e ele disse que eu era

    algum de sua confiana, ela aceitou conceder a entrevista. Nelsi, pelo seu entusiasmo,

    conhecimento e trajetria de vida, seria a pessoa que passaria a me influenciar no apreo e

    na busca de conhecer as pinturas rupestres do municpio.

    Neste perodo, o interesse em conhecer as pinturas rupestres de Monte Alegre s

    aumentava. Como eu estava fazendo a Especializao em Metodologia do Ensino de Histria

    e Geografia, busquei algumas matrias em revistas sobre as pesquisas de Anna Roosevelt e

    fiz um roteiro com algumas perguntas. Lembro que o senhor Nelsi me confessou depois que

    a Anna Roosevelt ficou surpresa com as perguntas, visto que se tratava de um reprter de

    rdio comunitria no interior da Amaznia.

    Diante da boa receptividade, aproveitei a oportunidade e mostrei meu interesse em

    ir s serras com a equipe de Roosevelt. Mais uma vez o Nelsi intermediou a conversa nesse

    sentido e foi assim que fui s serras pela primeira vez. Hoje considero esta oportunidade um

  • 22

    privilgio mpar visto que esta pesquisa tem como rea de concentrao a arqueologia. Mas,

    naquele momento, confesso que no recordo muito bem o que eles foram fazer ali. Apenas

    lembro-me de um grupo de alunos de Santarm que ela levou para uma espcie de

    aprendizado. Recordo da presena de um pesquisador brasileiro, o qual dizia que aqueles

    alunos eram peso morto. Atualmente analiso que ali se apresentavam duas concepes

    distintas do fazer arqueolgico, uma interessada em envolver as pessoas da regio e outra

    que via nisso um atrapalho para a execuo da pesquisa. Lembro que eles estavam fazendo

    uma espcie de localizao de alguns pontos via satlite. Nesta viagem o meu foco maior foi

    preparar uma matria que contemplasse o trabalho da pesquisadora, o que no me permitiu

    contemplar melhor as pinturas. (Brasil 1996)

    No ano desse episdio, atuava como professor no curso Normal (antigo Magistrio),

    entretanto este curso estava sendo extinto devido exigncia da nova legislao da

    educao (LDB 9394/96) que primava pela atuao de professores na educao bsica

    apenas com a formao em nvel superior. Com isso, comecei a prever que as cargas

    horrias nas disciplinas pedaggicas seriam extintas, e to logo estaria sem carga horria e

    fora da sala de aula. (Pacheco, Schaan e Beltro 2012)

    Esse possvel impasse na carreira me fez buscar uma formao em outra rea. Em

    2005, a UFPA lanou um edital de vestibular para o curso de Histria em regime intervalar

    para o Campus de Soure, no arquiplago de Maraj. Cursei Histria de 2006 a 2010 naquela

    cidade. Conheci muitos professores brilhantes com quem aprendi muitos contedos

    relacionados histria a partir da colonizao europeia. Na disciplina Brasil I, ministrada

    pelo professor Jorge Watrin, tive o privilgio de conhecer o professor Agenor Sarraf, um

    marajoara que ama a sua terra e que muito me influenciou na minha formao acadmica,

    inclusive na minha escrita6. Agenor sempre se mostrou acessvel e disposto a me ajudar.

    Entretanto a vontade de conhecer a pr-histria amaznica e montealegrense no

    seria sanada com o curso de Histria. Mas foi no trabalho de concluso do curso que vi a

    oportunidade de aproximar arqueologia, histria e educao. J atuando como professor de

    Histria em Monte Alegre, senti a dificuldade de trabalhar a histria local em sala de aula,

    diante da escassez de material didtico. O meu projeto de pesquisa precisava contribuir

    6 Esse tpico da apresentao tem como inspirao a escrita do texto O garoto, um anel de ouro e muitas

    histrias de Agenor Sarraf, publicado no 2 volume do Projeto Remando por Campos e Florestas (Pacheco, Schaan e Beltro 2012).

  • 23

    neste sentido. Na ocasio, a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Par (FAPESPA)

    em parceria com a Secretaria de Estado de Educao (SEDUC), lanou um edital para

    financiamento de projetos para professores pesquisadores, no Programa Par Faz Cincia na

    Escola (PPCE). Vi neste edital a oportunidade de produzir algo que contemplasse meus

    anseios e de outros professores. O professor Agenor, que na ocasio ministrava aulas num

    curso de Especializao em Histria do Brasil em Santarm, ajudou-me na formatao da

    proposta. O projeto previu a elaborao de um livro para o pblico infanto-juvenil e um

    vdeo-documentrio. Estes materiais foram inclusive apresentados como trabalho de

    concluso do curso de Histria, sob a orientao da professora Leila Mouro. Pelas aes

    deste projeto tive os primeiros contatos com os moradores do Erer.

    No processo de pesquisa, produo do livro e do documentrio os dilogos iniciais

    com alguns entrevistados do Erer foram de suma importncia. Em 2011, decidi que

    continuaria a minha formao intelectual com a mesma temtica. Pela ocasio do

    lanamento do livro Remando por Campos e Florestas volume 1, publicao organizada

    pelos professores Denise Schaan, Agenor Sarraf e Jane Beltro, Agenor me apresentou a

    professora Denise e disse que provavelmente eu seria seu futuro orientando. Fui aprovado

    na seleo de mestrado e o previsto pelo professor Agenor se concretizou. Com a aprovao

    no mestrado em Antropologia, tendo como rea de concentrao a Arqueologia, procuro

    apresentar, nessa dissertao, um dilogo entre Antropologia, Arqueologia e Histria;

    valorizando especialmente as narrativas de diferentes sujeitos sociais, relembrando o que

    ensina o antroplogo James Clifford (2011:244): vejo o trabalho de campo como o lugar de

    cruzamento criativo, assim como de disciplinarizao dessas fronteiras.

    Neste trabalho, portanto, procuro compreender o modo pelo qual as narrativas sobre

    as pinturas rupestres foram sendo construdas historicamente por diferentes sujeitos sociais,

    tendo em vista a memria e os significados que atribuem s imagens. O fio condutor da

    anlise ser entender como uma memria coletiva foi sendo construda em torno das

    pinturas rupestres. Busco, ainda, ressaltar as centralidades culturalmente diferenciadas do

    patrimnio, quando efetivadas por comunidades tradicionais na Amaznia.

    Assim, organizei esta dissertao em quatro trilhas (captulos), alm da introduo.

    Depois de sistematizar o material emprico levantado, quatro caminhos temticos se

    mostraram possveis de discusso para sua compreenso. Na primeira trilha, apresento as

  • 24

    ferramentas terico-metodolgicas as quais irei utilizar no percurso das trilhas seguintes. Na

    segunda trilha, proponho um revisitar analtico sobre rastros deixados por viajantes e

    naturalistas que passaram por Monte Alegre e de algum modo registraram as suas

    impresses sobre as pinturas rupestres; as impresses das pessoas do lugar e outros

    aspectos do modo de viver das pessoas da poca. Na terceira trilha, dialogo com trabalhos

    arqueolgicos direcionados regio das serras, na tentativa de verificar as mudanas e

    continuidades nos discursos cientficos em consonncia com os registros histricos visto na

    caminhada inicial. Na quarta trilha, trago para o dilogo as vozes de alguns moradores de

    Monte Alegre, principalmente os do Erer e regio circunvizinha ao Parque Estadual de

    Monte Alegre (PEMA)7 sobre impresses em torno das pinturas, a criao do PEMA e

    atividades de turismo. Depois de ter percorrido as trilhas, apresento minhas percepes

    diante dos dilemas, promessas e atitudes, especialmente do poder pblico local em relao

    ao processo de criao do PEMA, discutindo tambm procedimentos adotados pelo trabalho

    arqueolgico na regio. (Par 2001)

    So esses os caminhos que norteiam a elaborao de nossa subida. Agora prepare o

    flego, pois vamos comear a escalar.

    7 A rea das serras do Erer, Paituna e Aroxi tornaram parte do Parque Estadual Monte de Alegre a partir da Lei

    6.412 de 09 de novembro de 2001.

  • 25

    CAPTULO I: Ferramentas Terico-Metodolgicas Usadas Antes de Chegar s

    "Trilhas

    Antes e durante a realizao do percurso desta dissertao foram escolhidas

    ferramentas e reflexes tericas que embasaram a minha trilha de pesquisa.

    Estabelecer um dilogo terico entre Antropologia, Arqueologia e Histria uma

    tarefa desafiadora, porm enriquecedora. Estas disciplinas fizeram trocas e aproximaes na

    construo do conhecimento e no seu reconhecimento enquanto cincias oitocentistas.

    Segundo Boaventura Santos (1988) o modelo de racionalidade que preside a cincia

    moderna constituiu-se a partir da revoluo cientfica do sculo XVI e foi desenvolvido nos

    sculos seguintes basicamente no domnio das cincias naturais; s no sculo XIX que este

    modelo se estende s cincias sociais emergentes.

    O sculo XIX foi marcado por modificaes e direcionamentos em todos os campos

    do conhecimento, especialmente na aplicao de novas regras e mtodos para orientao

    da pesquisa cientfica. Os principais centros da Europa estavam passando por marcantes

    transformaes causadas pela produo industrial, legitimada pelo domnio burgus e pela

    urbanizao das cidades. A efervescncia cultural do perodo contribuiu para impulsionar

    mudanas no modo de pensar e, consequentemente, nas cincias sociais com os primeiros

    estudos j com foco iluminista (Ribeiro 2007).

    O livro A origem das Espcies de Charles Darwin8 de 1859 repercutiu nas cincias

    humanas, cincias biolgicas e na religio. A arena entre criacionismo e evolucionismo

    estava montada e os embates deram-se incio. Independente da opo e crena do

    indivduo, esta obra apontou para a necessidade de uma nova abordagem dos estudos sobre

    o passado e sobre a origem da humanidade (Funari 2006, Ribeiro 2007).

    A Antropologia, como disciplina cientfica, surge nesse perodo e, assim como a

    Histria, depositam na pesquisa arqueolgica uma perspectiva de tentar resolver questes

    sobre antiguidade humana e sua evoluo histrica. A Arqueologia foi fundamental para o

    evolucionismo cultural, por ter descoberto artefatos que atestavam a antiguidade da

    humanidade. Os artefatos de pedra ajudaram a construir o discurso sobre diversos estgios

    8 A coautoria da teoria evolucionista foi reconhecida posteriormente ao ingls Alfred Russel

    Wallace.

  • 26

    da histria humana. Os dois principais centros cientficos da poca eram Europa e Estados

    Unidos.

    Na Europa a Arqueologia estava mais ligada Histria, especialmente Pr-Histria,

    e nos Estados Unidos a Arqueologia era considerada um dos domnios da Antropologia

    (Ribeiro 2007). Tanto que Pedro Paulo Funari (2006) distingue a Arqueologia de acordo com

    o local de origem em Arqueologia dos Estados Unidos e Arqueologia europeia. Essas

    Arqueologias influenciaram a formao terica de arquelogos brasileiros e,

    respectivamente o seu fazer profissional.

    A Arqueologia como disciplina surgiu no centro do Imperialismo do sculo XIX.

    Assim como a Antropologia, no incio ela tambm serviu como um instrumento para

    expanso do domnio das potncias coloniais europeias, que buscavam riquezas explorando

    outros lugares. Neste contexto, a Arqueologia estudava objetos e monumentos do perodo

    clssico e pr-histrico na Europa e, na Amrica, os artefatos deixados pelos povos pr-

    contato. No coincidncia que ainda hoje, a imagem do arquelogo esteja ligada a filmes

    de aventureiros em busca de tesouros perdidos (Barreto 2010, Funari 2006). Neste perodo,

    o conhecimento arqueolgico advinha do artefato em si, do objeto pelo objeto. O estudo

    deste era o nico meio de obter informaes sobre o passado. Os artefatos eram

    classificados em estgios cronolgicos da evoluo humana (Trigger 2004).

    A relao entre Antropologia, Arqueologia e Histria nesse perodo era intrnseca.

    Comumente, as cincias estavam influenciadas por uma viso evolucionista. A Antropologia,

    com base nos dados depurados dos artefatos, tencionou reconstruir a Histria humana

    atravs da cultura que evolua do estgio primitivo, passando pela barbrie at o ltimo

    estgio, o civilizado(Eriksen e Nielsen 2007). Este modelo cientfico ficou conhecido como

    Evolucionismo Cultural. Este modelo influenciou a formao do pensamento arqueolgico

    nos anos posteriores.

    Da antropologia cultural boasiana surgem as primeiras crticas ao evolucionismo.

    Franz Uri Boas (1858-1942) atravs do histrico-culturalismo buscava explicar a diversidade

    humana. A concepo de cultura boasiana tem como fundamento o relativismo, baseado no

    reconhecimento de que cada ser humano v o mundo sob a perspectiva da cultura em que

  • 27

    cresceu, pois, cada ser est apegado aos grilhes da tradio da sua prpria cultura (Boas

    2007). Essa corrente terica dominou a arqueologia americana por cerca de 40 anos.

    Atravs da abordagem que ficou conhecida por histrico-cultural (Alarco 1996), ou

    Arqueologia da Histria da Cultura (Ribeiro 2007) a Arqueologia refora ainda mais o status

    de Cincia. A respeito desta abordagem, o arquelogo portugus Jorge de Alarco afirma:

    A Arqueologia histrico-culturalista parte, como alis, qualquer forma de arqueologia, dos vestgios materiais do passado: objectos e estruturas (de habitat, funerrias, rituais e outras). Pretende, antes de mais, determinar-lhes as funes; depois classific-los em tipologias, isto , reduzir a diversidade dos objectos (ou estruturas) unidade de determinados modelos ou normas que os homens tinham em mente ao fabricarem os objectos ou ao construrem as estruturas. A classificao pois, um dos objectivos principais da Arqueologia histrico-culturalista, que logo se orienta para a procura de paralelos, isto , de vestgios semelhantes. As semelhanas permitem, por outro lado, definir culturas e, por outro lado, rastrear contactos e influncias (1996:09).

    A Arqueologia histrico-cultural centrava-se no estudo da distribuio geogrfica

    dos artefatos e suas relaes com grupos histricos, reconstruindo cronologias, enumerando

    as culturas e ressaltando atributos tcnicos dos artefatos. As mudanas culturais eram

    explicadas por fatores externos, atravs de migraes de povos ou difuso (Barreto 2010,

    Funari 2006, Reis 2004).

    Esta abordagem se diferenciava do evolucionismo pela busca da distribuio

    geogrfica dos artefatos e suas relaes com grupos histricos, onde se procurava

    reconstruir cronologias minuciosas e descritivas e a extenso geogrfica de culturas

    arqueolgicas. O conceito de cultura arqueolgica do arquelogo alemo Gustaf Kossinna

    (1858-1931). Ele entendia cultura arqueolgica como um conjunto de conhecimentos,

    crenas, arte, moral, costumes e hbitos adquiridos pelo ser humano em sociedade, obtidos

    na escavao (Ribeiro 2007:132). O conjunto de caractersticas culturais apreendidas

    indicavam etnicidade. A etnicidade era a fonte da identificao de povos e territrios, de

    modo que uma antiga posse era justificada para a retomada e invaso de territrios. Para

    esse arquelogo alemo, a Arqueologia era a mais nacional das cincias.

    Este paradigma da Arqueologia recebeu influncia das teorias difusionistas e

    migracionistas, pois as mudanas culturais eram explicadas por causas externas, pelas

    migraes de povos ou pela difuso geogrfica das culturas (Barreto 2010).

  • 28

    Enquanto isso, no contexto europeu da dcada de 1920, a Antropologia teve

    significativa contribuio atravs do trabalho de Bronislaw Kasper Malinowski (1884-1942)

    na Melansia, cuja pesquisa etnogrfica buscou compreender a cultura de um grupo estudo

    a partir do ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua viso de seu

    mundo (Malinowski 1978-34). No campo da historiografia, a contribuio vinha da escola

    francesa dos Annales. Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram em 1929 uma revista de

    estudos, a Annales dhistoire conomique et sociale, onde rompiam decididamente com o

    culto aos heris e a atribuio da ao histrica aos chamados homens ilustres,

    representantes das elites (Bloch 2002, Febvre 1989). As novas contribuies da Histria e

    Antropologia influenciariam a Arqueologia americana dcadas mais tarde.

    A partir de 1945, o neoevolucionismo foi reconhecido como uma tentativa de

    alguns antroplogos americanos de naturalizar o domnio do pas ps-segunda guerra

    mundial. A posio hegemnica que os Estados Unidos usufruam era defendida como um

    resultado inevitvel de um processo evolutivo. O que diferenciava do modelo evolucionista

    do sculo XIX, era o fato dos neoevolucionistas acreditarem que as mudanas culturais

    ocorriam por imposio de fatores fora do controle humano, e no necessariamente como

    resultado da criatividade individual. A natureza humana em si era vista como conservadora,

    resistente a mudanas, homeostase (Trigger 2004:288).

    As ideias neoevolucionistas tiveram bastante influncia na Arqueologia

    desenvolvida no Brasil a partir da dcada de 1950, principalmente na Amaznia pelos

    arquelogos norte-americanos Clifford Evans e Betty Megers (Barreto 1999-2000). As

    anlises destes arquelogos consistiam em apontar o norte e o centro da cordilheira dos

    Andes como grandes centros de inovao9 na histria da ocupao humana no continente e

    dali teriam difundido para outras reas, inclusive a bacia amaznica. (Neves 2006)

    A partir da dcada de 1960, inicia-se na arqueologia uma nova abordagem, cunhada

    de Nova Arqueologia ou Arqueologia Processual. A partir desta abordagem, a Arqueologia

    procurava criar bases tericas e metodolgicas para assegurar o mesmo status das outras

    cincias (Barreto 2010).

    9 Por centro de inovao entende-se aqui os locais onde se desenvolveram inicialmente elementos tais como a

    agricultura, a produo cermica e o Estado (Neves 2006:59)

  • 29

    Um dos principais precursores foi Lewis Robert Binford (1930-2011). Este acreditava

    que a arqueologia devia ter os mesmos objetivos da Antropologia. Com o seu artigo

    Archaeology as Anthropology, publicado na American Antiquity, Binford clama pela unio

    das duas disciplinas e pelo embasamento das perspectivas arqueolgicas relacionadas s

    interpretaes antropolgicas. Para apontar as possibilidades e responsabilidades que a

    Arqueologia poderia representar, ele escreveu neste artigo:

    Arqueologia deve aceitar uma maior responsabilidade no mbito dos objetivos da antropologia. At pela grande quantidade de dados que os arquelogos controlam que so utilizados na soluo de problemas relacionados com a evoluo cultural ou mudana sistmica, ns estamos no apenas deixando de contribuir para o mbito dos objetivos da antropologia, mas retardando a realizao destes objetivos. Ns, como arquelogos temos disponvel uma ampla gama de variabilidade e uma grande amostra de sistemas culturais. Etngrafos esto restritos aos pequenos e formalmente limitados sistemas culturais existentes. (Binford 1962:224, traduo minha)10.

    Binford defendia que o mesmo objetivo tradicionalmente buscado pela

    Antropologia: explicar o amplo espectro de semelhanas e diferenas no comportamento

    cultural (Trigger 2004:287); tambm deveria ser o objetivo da Nova Arqueologia. Ele

    acreditava que a Arqueologia deveria contribuir mais com a Antropologia no sentindo de

    compreender a cultura dos povos que deixaram vestgios e reconstruir o comportamento

    humano que os originaram. Para ele, a Arqueologia deveria buscar explicar as similaridades

    e diferenas na atividade cultural humana, e por perodos de tempo ainda maiores do que os

    etnlogos estudavam.

    Nesta abordagem, a Arqueologia deveria ultrapassar os limites da abordagem

    anterior que consistiam na tcnica de coleta, descrio e classificao tipolgica dos

    artefatos, com o fim de estabelecer uma sequncia histrico-cultural, para se assumir como

    10 Archaeology must accept a greater responsability in the furtherance of the aims of

    anthropology. Until the tremendous quantities of data which the archaeologist controls are used in the solution of problems dealing with cultural evolution or systemic change, we are not only failing to contribute to the furtherance of the aims of anthropology but retarding the accomplishment of these aims. We as archaeologists have available a wide range of variability and a large sample of cultural systems. Ethnographers are restricted to the small and formally limited extant cultural systems(Binford 1962:224).

  • 30

    cincia responsvel em entender os processos de mudana cultural e na reconstituio do

    sistema adaptativo das sociedades do passado (Trigger 2004).

    Diferentemente da abordagem Histrico-Cultural, que parecia esquecer as pessoas

    que produziam os objetos, os novos arquelogos deveriam utilizar os dados na perspectiva

    de servirem para formular hipteses e generalizaes sobre o comportamento humano. A

    verificao de hiptese e generalizaes daria uma dimenso mais cientfica Arqueologia,

    assim como em outras cincias.

    Nos anos de 1980 acirraram-se as crticas abordagem processual por

    desconsiderar as transformaes prprias da sociedade e suas modificaes no tempo,

    relegando o processo histrico ao segundo plano. O antievolucionismo, a necessidade de

    compreender os propsitos das aes humanas, a individualizao dos grupos e a

    contextualizao histrica foram os elementos que compuseram a base e os anseios da

    abordagem arqueolgica que ento surgia nos anos 1980. Ian Hodder (1948-) o principal

    precursor desta abordagem denominada de Contextual ou Ps-Processual.

    Nesta abordagem, a Arqueologia tenta reencontrar a Histria, buscando entender

    as sociedades estudadas numa perspectiva diacrnica e no somente sincrnica. As

    sociedades preteridas so estudas arqueologicamente na tentativa de se compreender as

    suas especificidades e no uma busca de leis padronizadoras. Esta aproximao com a

    Histria e seus debates tericos se deu tardiamente. Segundo Ribeiro (2007), alguns

    conceitos que foram adotados pela Arqueologia Processual foram formulados pela

    historiografia dos anos 1940 e 1950 pela cole de lAnnales. A Arqueologia retoma debates

    que a historiografia havia realizado com no mnimo 30 anos antes.

    Uma das influncias da Nova Histria francesa, que aos poucos foi sendo

    incorporada pela Arqueologia, consiste na compreenso que as interpretaes arqueolgicas

    no podem ser frutos de uma neutralidade objetiva, ou seja, reconhecesse a subjetividade

    do arquelogo como algo intrnseco a sua anlise, percebendo-se a si mesmo como sujeito

    do seu tempo, com olhar e percepo historicamente condicionada e cuja interpretao se

    altera por tais fatores.

  • 31

    Assim, a Antropologia, a Arqueologia e a Histria desde o sculo XIX, na busca pelo

    reconhecimento enquanto cincias modernas foram reconstruindo suas bases tericas e o

    fazer cientfico, ora se aproximando, ora se distanciando. Entretanto, assim como outras

    cincias humanas, estas tambm contriburam para o processo de dominao e colonizao

    do mundo no-ocidental, na construo da dicotomia Ocidente e o resto (Hall 1995),

    ocidente/oriente (Said 2007).

    A Antropologia, a Arqueologia e a Histria contriburam para edificao do

    monoplio ocidental que foi imposto como o padro para o resto do mundo na

    modernidade. Enrique Dussel analisa como o eurocentrismo da modernidade universalista

    e faz uma representao em sete elementos:

    1. A civilizao moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posio eurocntrica). 2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, brbaros, rudes, como exigncia moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (, de fato, um desenvolvimento unilinear e europia o que determina, novamente de modo inconsciente, a falcia desenvolvimentista). 4. Como o brbaro se ope ao processo civilizador, a prxis moderna deve exercer em ltimo caso a violncia, se necessrio for, para destruir os obstculos dessa modernizao (a guerra justa colonial). 5. Esta dominao produz vtimas (de muitas e variadas maneiras), violncia que interpretada como um ato inevitvel, e com o sentido quase-ritual de sacrifcio; o heri civilizador reveste a[s] suas prprias vtimas da condio de serem holocaustos de um sacrifcio salvador (o ndio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruio ecolgica, etc.). 6. Para o moderno, o brbaro tem uma culpa (por opor-se ao processo civilizador) que permite Modernidade apresentar-se no apenas como inocente mas como emancipadora dessa culpa de suas prprias vtimas. 7. Por ltimo, e pelo carter civilizatrio da Modernidade, interpretam-se como inevitveis os sofrimentos ou sacrifcios (os custos) da modernizao dos outros povos atrasados (imaturos), das outras raas escravizveis, do outro sexo por ser frgil, etc. (Dussel 2005:29)

    Aproximando desta anlise de Dussel, outros intelectuais americanos como

    Cristbal Gnecco (2009) e Edgardo Lander ( 2005) apontam que no decorrer de sua histria,

    a cincia realizada na Amrica no descolou totalmente de processos e aspectos polticos,

    onde as estruturas de colonialidade nos seus meios de construir o conhecimento foram

    constitudas por violncias epistmicas s outras formas de pensar. Neste sentido, a

    Antropologia pode e tem contribudo para o rompimento desta lgica colonialista do saber

    cientifico quando, atravs da especificidade de seus mtodos, dialoga e aponta outras

  • 32

    epistemologias do saber. A Antropologia desenvolve sua histria no dilogo com os saberes

    dos outros e o saber cientfico sobre esses (Goldman 2006:163).

    Para Santos (1994) o paradigma emergente da cincia ps-moderna deve apostar

    num dilogo com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por eles. Para

    Salzano (2009) j est mais que na hora da Antropologia romper com a segmentao.

    Gnecco (2009) e Lander ( 2005) avanam na reflexo e apontam que o momento da cincia

    romper com a colonialidade do saber.

    No contexto brasileiro, debates e pesquisas direcionadas aos temas patrimnio,

    memria e identidade inevitvel adentrar nas sinuosidades das relaes de fora e poder.

    No que concerne a Arqueologia, Funari alerta para a capa da ilusria objetividade cientfica

    e o poder arqueolgico:

    Uma rgida hierarquia, no interior das instituies acadmicas, estabelece a legitimidade cientfica dos projetos de pesquisa. Da que os critrios poltico-ideolgicos por detrs de cada pesquisa, de cada ascenso ou estagnao acadmica, sejam sempre apresentados, pelos detentores do poder arqueolgico, como se fossem critrios totalmente objetivos, cientficos, comprovveis, portanto, exteriores ao domnio do conflito social, incontestveis (Funari 2006:107).

    As relaes entre arquelogos e comunidades locais que moram em torno de stios

    arqueolgicos tem resultado em reflexes acerca da responsabilidade social e tica da

    profisso. O arquelogo Klaus Hilbert problematiza as relaes que se estabelecem entre as

    comunidades locais, os arquelogos e os resultados dos programas de educao patrimonial:

    Primeiro, os arquelogos procuram convencer as pessoas da importncia e dos inestimveis valores da cultura material arqueolgica que est na sua propriedade. Depois distribuem cartilhas em linguagens infantis, elaboram programas de educao patrimonial sem sentido para a comunidade local, at a ameaam com multas e priso em caso de desobedincia s leis, e depois, quando finalmente os moradores do stio arqueolgico do sinal de ter incorporado o discurso dos educadores patrimoniais, esses objetos to valiosos e importantes, so levados embora pelos arquelogos (Hilbert 2006:100).

    Este processo descrito por Hilbert foi reproduzido em Monte Alegre com relao s

    pinturas rupestres, com uma pequena, mas significativa particularidade, os paredes com

    pinturas no puderam ser levados do local. O que no exime, na perspectiva de Funari

  • 33

    (2006), ao inevitvel posicionamento e comprometimento do arquelogo perante a

    sociedade e tomada de conscincia de sua decorrente responsabilidade.

    A regio das serras de Monte Alegre conhecida nacional e internacionalmente

    pela presena de vrios painis com pinturas rupestres. Vrias pesquisas foram realizadas

    atestando o valor destas para compor a histria da presena humana na Amaznia e na

    Amrica (Hartt 1885, Roosevelt et al. 1996, Silveira, Pinheiro e Pinheiro s.d., Wallace [1848]

    1979).

    Entretanto, tanto arquelogos como profissionais das mais diversas formaes

    foram registrando desde o sculo XIX aes depredativas, saques, pichaes nos

    objetos arqueolgicos da rea (Andrade 2012, Consens 1989, Hartt 1871b, Pereira 2012b,

    Silveira, Pinheiro e Pinheiro s.d.). A preocupao por parte de visitantes, autoridades e,

    sobretudo pesquisadores com os danos e perdas que estas aes causavam aos stios das

    serras de Monte Alegre contriburam para a criao de uma lei a qual instituiu a rea como

    uma Unidade de Conservao na categoria de parque em 2001, o PEMA. As pinturas

    rupestres foram legalmente reconhecidas como patrimnio arqueolgico.

    O patrimnio arqueolgico ou herana arqueolgica, segundo Schaan (2009b: 109-

    110) compem um conjunto de bens culturais produzidos pelos seres humanos e que so,

    em determinado momento histrico, considerados como significativos, e cuja preservao e

    proteo so reivindicadas, pelos menos por parte da sociedade, como relevante.

    Os argumentos a favor da preservao e conservao do patrimnio apontam, na

    maioria dos casos, para o distanciamento entre as comunidades locais e os objetos do

    passado. Os especialistas acabam tendo a exclusividade da fruio com os objetos e os que

    no esto nesse grupo so excludos. Seguindo Bezerra (Bezerra 2013), na retrica

    patrimonial, as epistemologias das pessoas do lugar so aniquiladas pelo discurso da

    cincia, ao ponto de ser impossibilitada a percepo sensorial como o toque. As pinturas

    rupestres que sempre fizeram parte do universo de percepo das pessoas do entorno das

    serras no podem mais serem tocadas por eles.

    Entretanto, mesmo diante da lei patrimonializando a rea, aes vistas como

    danosas s pinturas ainda continuam. Em vista deste problema, surge uma questo que

  • 34

    merece reflexo. Por que pessoas danificam as pinturas que so um bem de todos? Para

    responder preciso adentrar e conhecer as dimenses que o patrimnio arqueolgico

    assume no cotidiano de diferentes grupos sociais, entender como se define patrimnio e

    problematizar a relao de poder que se estabelece por quem usufrui e define o que deve

    ser preservado do passado.

    Na Arqueologia considerada ps-processualista, posturas hermenuticas

    possibilitam compreender a insero do processo de produo de conhecimento

    arqueolgico em um contexto social e histrico (Trigger 2004). Nesta perspectiva, emitir

    assertivas, fazer uso e atribuir significado aos objetos do passado no uma prerrogativa

    apenas de arquelogos (Silva 2002). Pessoas que moram prximas s pinturas rupestres das

    serras de Monte Alegre tiveram, antes da lei do PEMA, e ainda tem relaes afetivas,

    econmicas e de lazer que no podem ser descartadas no fazer de um conhecimento

    coletivo e participativo. O desafio que se prope estabelecer relaes mais simtricas e

    dialgicas entre arquelogos e os diversos agentes sociais envolvidos no processo de

    construo do conhecimento sobre o passado (Moraes 2012).

    A Arqueologia Pblica tm proporcionado reflexes epistmicas e discusses ticas

    sobre o fazer da cincia arqueolgica. Esta perspectiva do fazer Arqueologia conceituada

    pela arqueloga Marcia Bezerra como uma:

    Vertente da Arqueologia preocupada em compreender as relaes entre distintas comunidades e o patrimnio arqueolgico, considerando o impacto do discurso acadmico em sua viso de mundo, o lugar de suas narrativas na construo do passado e a gesto comunitria dos bens arqueolgicos (...), a Arqueologia Pblica , ao mesmo tempo, produto e vetor de reflexes acadmicas, de aes polticas e de estratgias de

    gesto (Bezerra 2011b: 62).

    Com esta perspectiva de ao poltica e social que pretendo dialogar com as

    narrativas dos moradores do entorno das serras onde esto as pinturas rupestres de Monte

    Alegre, onde a prtica arqueolgica pode no apenas reconhecer o outro, mas a sua

    participao em todo o processo de construo do conhecimento, assim como o

    gerenciamento comunitrio do patrimnio arqueolgico.

    Na busca do reconhecimento do outro, a adoo do mtodo etnogrfico no

    mbito de pesquisas arqueolgicas possibilita condies para uma cincia preocupada em

  • 35

    descolonizar sua prtica, considerando os usos sociais e polticos do passado, tal como na

    Arqueologia Pblica. Para Santos (1988), a Antropologia atravs de seu mtodo contribuiu

    para problematizar o status quo metodolgico das cincias sociais e a noo de distancia em

    que estas se assentavam. Logo outras cincias fariam uso da observao participante

    (Malinowski 1978) para estudar o outro. Entretanto, o mtier do fazer etnogrfico (Cardoso

    de Oliveira 2006) tambm foi sendo reconfigurado. Clifford Geertz a partir de 1980 proclama

    com uma pretensa originalidade11 a ideia de que agora somos todos nativos, podendo o

    outro estar alm-mar ou no fim do corredor (Geertz 2012: 154).

    Nesse sentido, a presente pesquisa foi baseada nos pressupostos de abordagem da

    arqueologia pblica e etnogrfica (Bezerra 2003, Castaeda 2008, Pyburn 2009) tendo como

    objetivo compreender as relaes e significaes atribudas ao patrimnio na

    contemporaneidade, e em especfico, analis-las conforme o contexto de rea

    patrimonializada e as relaes que implicam com as populaes que moram prximas aos

    stios. (Peirano 1997)

    Nessa conjuntura de pesquisa estiveram em inter-relao interesses de distintos

    agentes sociais e governamentais, num local que se tornou objeto de uma poltica pblica de

    patrimonializao. A rea das serras foi demarcada como domnio e controle da SEMA num

    processo de formao de patrimnio (Gonalves 2003). Segundo Maria Fonseca (2003) a

    concepo de patrimnio precisa ser ampliada para alm da pedra e cal que quase sempre

    resulta no tombamento de bens que referem os grupos identificados com a classe

    dominante (Choay 2001).

    Nesta perspectiva, a categoria de patrimnio foi vista para alm de uma poltica de

    governo que privilegia qualidade como a da monumentalidade, seguindo a admoestao de

    Marcel Mauss que recomenda:

    antes de tudo, [ necessrio] formar o maior catlogo possvel de categorias; preciso partir de todas aquelas das quais possvel saber que os homens se serviram. Ver-se- ento que ainda existem muitas luas mortas, ou plidas, ou obscuras no firmamento da razo (Mauss 1974:205).

    11

    Peirano (1997) aponta que Malinowski em 1939 atribui valor a monografia sobre os camponeses chineses do seu orientando chins, Hsiao-Tung. Malinowski escreveu sobre o trabalho: It is the result of work done by a native among natives. ( o resultado do trabalho feito por um nativo entre os nativos - traduo minha) (Malinowski 1939 apud Peirano 1997, 72).

  • 36

    A Antropologia contribui de forma original na construo e no entendimento da

    categoria patrimnio, pois consiste na ambiguidade da noo de cultura, permanentemente

    exposta s mais diversas concepes do nativo. Neste sentido, na pesquisa busquei seguir o

    antroplogo Jos Reginaldo Gonalves que aponta o patrimnio como categoria de

    pensamento que vem a ser pensada etnograficamente, tomando-se como referncia o

    ponto de vista do outro (Gonalves 2003: 28).

    Marta Anico caracteriza a ps-modernidade como um perodo de transio e de

    transformao social, onde a crescente patrimonializao de elementos das culturas locais

    contribuiu para o alargamento do campo patrimonial que passa a integrar no s o

    patrimnio associado a prticas culturais elitistas, mas tambm um patrimnio cotidiano,

    material ou intangvel, relacionado com as memrias e as histrias orais, abrindo assim

    caminho integrao de um vasto conjunto de bens culturais na categoria de patrimnio,

    fruto de uma crescente elasticidade conceitual, mas tambm temporal (Anico 2005: 80).

    As semnticas, usos e a importncia do patrimnio se reconfiguram a partir de

    lgicas nativas da cultura. De modo que as mltiplas dimenses do patrimnio perpassam

    por novos usos e sentidos que ele assume sob o prisma de determinada cultura. A relao

    com os objetos que representam o passado tambm refeita a partir da multiplicidade de

    variveis que participam nos processos de apropriao, interpretao e de construo de

    significados culturais.

    Neste processo, o patrimnio como conservao nostlgica e autntica do passado

    passa a representar os modos de ver e compreender o mundo dos grupos sociais ao passo

    que as polticas patrimoniais se orientaram no sentido da incorporao de elementos

    culturalmente representativos. O passado construdo pelo presente, configurando-se como

    parte integrante de uma cultura contempornea. Para Anico, so as condies do presente

    que lhe conferem sentido e um significado, significado esse que pode ser construdo e

    negociado por diversos atores sociais, cujas relaes de poder nem sempre so simtricas

    (2005: 77).

    O interesse cultural em torno do passado encontra condies e possibilidades

    quando este ainda est no presente e permite tambm vislumbrar aes futuras. Alm disso,

    a memria tem o trabalho de reconstruir o acontecimento vivido (Bosi 1994, Halbwachs

    2003), atribuindo significados constitudos atravs da experincia cotidiana das pessoas.

  • 37

    Segundo Rodrigues, a memria por ser entendida como processos sociais e histricos, de

    expresses, de narrativas de acontecimentos marcantes de coisas vividas, que legitimam,

    reforam e reproduzem a identidade do grupo (Rodrigues 2012).

    Na pesquisa utilizo a categoria de patrimnio, contextualizado etnograficamente a

    partir das relaes de identidade e memria. Segundo Halbwachs (2003), a identidade

    reflete todo o investimento que um grupo faz, ao longo do tempo, na construo da

    memria. Portanto, a memria coletiva est na base da construo da identidade. Esta

    refora o sentimento de pertena identitria e, de certa forma, garante coeso e

    continuidade histrica do grupo.

    Entender os significados e usos que os moradores do entorno das serras de Monte

    Alegre atribuem as pinturas rupestres perpassa por reflexes sobre os dilogos que se

    estabelece entre as categorias de patrimnio, memria e identidade. O que os relatos

    histricos permitem perceber das interpretaes dos moradores do lugar a partir do sculo

    XIX? O que hoje ainda faz parte da memria coletiva? Que dimenses o patrimnio

    apresenta no processo de criao do PEMA? Como a arqueolgica pode contribuir para uma

    vivncia menos assimtrica entre pesquisador e comunidades locais?

    Portanto, o patrimnio como categoria de pensamento, contextualizado

    etnograficamente, permite entender como as pessoas interagem entre si e com os objetos e

    lugares, quando se considera efetivamente o lugar do outro no processo de

    descolonizao do passado e da arqueologia (Bezerra 2011b, 2012, Bezerra 2013, Castaeda

    2008, Pyburn 2009). Assim, busquei abordar discusses que inserem tanto no campo da

    antropologia, quanto da arqueologia e da histria, os significados que o patrimnio pode

    assumir na cultura de um povo.

    Para construir as duas trilhas dos captulos seguintes, a pesquisa foi feita em

    documentao histrica com anlise antropolgica, observando uma prtica que tem se

    manifestado comum entre diversos antroplogos e historiadores. Nesse sentido, bastante

    inspiradora a atitude de Manuela Carneiro da Cunha (1986: 08), analisando

    antropologicamente material histrico, ou seja, incluindo o implcito, o no-dito, o simblico,

    no pensamento poltico e na estrutura social do Brasil de sculos passado. Na leitura dos

    documentos, procurei visibilizar as impresses dos viajantes e cientistas sobre as pinturas

    rupestres, tal como fazem os antroplogos com as informaes produzidas no trabalho de

  • 38

    campo. Ao longo das vrias leituras procurei relaes entre as interpretaes dos viajantes,

    arquelogos e populao local. Em alguns casos o resultado foi bastante satisfatrio, como

    no cruzamento do percurso da Hartt no sculo XIX e os locais onde a arqueloga Anna

    Roosevelt fez suas pesquisas no final do sculo XX.

    Na ltima trilha analisarei os resultados da experincia etnogrfica que foram

    adquiridos atravs da observao participante, dos registros em dirio de campo e

    entrevistas. Uma descrio mais detalhada dos procedimentos metodolgicos ser realizada

    no incio da trilha. Agora renove o flego, pois vamos continuar a caminhada pelas trilhas

    dos relatos dos viajantes.

  • 39

    CAPTULO 2 Trilhas e Vozes de Viajantes

    Todo visitante cuidadoso, ao iniciar uma trilha a um lugar desconhecido procura

    obter informaes antes de comear a viagem. Hoje com a internet, ficou mais fcil buscar

    mapas e roteiros tursticos. comum tambm procurar sugestes e dicas com pessoas que

    j visitaram o lugar. Entretanto, imagine como deveria ser difcil e ao mesmo tempo

    desafiador para um estrangeiro, geralmente europeu, deixar o seu lar e familiares para

    realizar uma viagem na Amaznia do sculo XIX. Nesta trilha, seguiremos os rastros deixados

    por alguns naturalistas que registraram as pinturas rupestres e as percepes das pessoas de

    Monte Alegre.

    No sculo XV, a expanso europeia, que partiu fundamentalmente da Pennsula

    Ibrica, inicia uma nova etapa da histria da humanidade, mas tambm a conquista dos

    grandes descobrimentos cientficos, com os avanos tecnolgicos e as transformaes que

    acarretaram. A busca por novas rotas e territrios desconhecidos foi impulsionada por

    lendas, riquezas e a propagao do catolicismo como f universal (Pizarro 2012).

    Contudo, o perodo histrico iniciado em fins do sculo XVIII e que percorre todo o

    sculo XIX reveste-se de caractersticas totalmente distintas daquelas que povoaram as

    representaes dos viajantes, marinheiros e cronistas do sculo XVI. As narrativas

    fantsticas, vigentes no perodo anterior, do lugar a uma espcie de racionalidade que leva

    s ltimas consequncias a dominao cega do homem sobre a natureza e sobre os outros

    homens.

    A cincia era a forma suprema do conhecimento para os filsofos, porque parecia criar verdades seguras, baseadas na observao e no experimento. Sua confiana no mtodo cientfico era tanto, que acreditavam ser a prpria fora do iluminismo e do progresso; em princpio, no havia nenhum mbito da vida ao qual no pudesse se aplicar. Eles pensavam que este homem novo, que estava sendo criado pelo mtodo cientfico, era um ser que entendia e, consequentemente, dirigia a natureza(Hamilton 1995:27, traduo minha)12.

    A referncia cultural dos viajantes estrangeiros passa a ser a de um tempo que se

    convencionou chamar de modernidade, envolvendo amplas transformaes no plano da 12 Science was the supreme form of knowledge for the philosophes because it seemed to create secure truths based on observation and experiment. Their confidence in scientific method was such that they believed it was a force for enlightenment and progress: there was in principle no domain of life to which it could not be applied. They believed that a new man was being created by this scientific method, one who understands, and by his understanding masters nature (Hamilton:1995, 27).

  • 40

    sociedade e da cultura (Barreiro 2002). Deste modo, a ideia de Ocidente foi se

    consolidando como mais do que uma designao geogrfica, foi se transformando num

    conceito de poder frente ao Outro, no-ocidental, o brbaro, como aquele que no se

    enquadrava ao padro homogeneizador de europeu (Hall 1995).

    Nas primeiras dcadas do sculo XIX, o panorama poltico brasileiro decorrente do

    processo de descolonizao, do rompimento administrativo com a coroa portuguesa e da

    formao do Estado Nacional, corroborou para uma espcie de redescoberta do Brasil pelos

    viajantes. Durante este sculo, esse movimento intensificado e todas as ento provncias

    brasileiras so visitadas. Por onde passavam produziam-se relatos minuciosos sobre

    mltiplos aspectos da vida social do pas (Barreiro 2002:8)

    A regio amaznica tambm se constituiu um roteiro muito procurado pelos

    viajantes neste perodo em virtude dos atrativos da sua biodiversidade, bem como pelas

    especificidades do modo de viver do povo amaznida. Algum tempo antes, nos dois

    primeiros sculos da conquista europeia, criaram-se narrativas fantsticas sobre o universo

    amaznico como o lugar do paraso perdido, habitado por ndias guerreiras, as lendrias

    Amazonas, da mitologia grega, ou o lugar do eldorado, a cidade encantada feita de ouro

    (Ugarte 2003).

    Estas e outras narrativas compuseram o imaginrio ocidental povoado por vises

    estigmatizadas sobre os povos amaznicos e seu modo de vida na floresta tropical. Estas

    narrativas foram disseminadas pelos conquistadores no sculo XVI fascinando reis e plebeus

    na Europa ibrica, mas ainda hoje ecoam no espao amaznico, e at pouco tempo foi

    reforado por uma produo cientfica neo-evolucionista sobre o desenvolvimento cultural

    na regio (Heckenberger 2006).

    Quem so esses viajantes, naturalistas e cientistas que percorreram a regio

    amaznica entre os sculos XVIII e XIX? Estes homens eram das mais diferentes

    nacionalidades e tinham distintas formaes acadmicas. Seu olhar sobre o Novo Mundo era

    de pessoas que falavam a partir do mundo europeu. A Europa era o padro de civilizao,

    cincia e progresso a ser seguido. Eram homens filhos da modernidade e da racionalidade

    cientfica que definia de imediato seu paradigma de superioridade: a superioridade da

    civilizao, da racionalidade (Pizarro 2012).

  • 41

    O discurso do viajante cientista sobre a Amaznia condiciona a identidade que a

    define como um imenso tesouro a ser explorado, onde seus habitantes indgenas so vistos

    como incapazes de faz-lo. O naturalista se constitui como um sujeito privilegiado da

    modernidade, efetivando a produo do conhecimento, que naquele contexto era sinnimo

    de cosmopolitismo. Estes homens de cincia, salvo quando enviados como agentes

    governamentais, segundo Margarita Pierini, se consideravam quase que eleitos, dotados

    de uma misso que ultrapassa os domnios utilitrios, possudos pelo esprito do progresso

    que se encarna neles para o bem da humanidade (1994:165).

    Neste contexto, a produo de conhecimento implica, de qualquer modo, formas

    de transferncias de poder para o centro. Atravs dos viajantes, as potncias colocavam em

    funcionamento suas estratgias para conquistar um lugar proeminente na geopoltica do

    conhecimento, na expresso de Walter Mignolo (2003). Por isso, alguns naturalistas

    tiveram suas viagens financiadas e/ou autorizadas por governos e instituies de pesquisa,

    outros viajavam com recursos prprios e com o dinheiro que adquiriam com a venda das

    colees coletadas enviadas a Europa ainda em campo.

    Quase trs sculos depois do primeiro contato com os europeus, a regio

    amaznica, e nela o povo de Monte Alegre e as pinturas rupestres foram objetos de registro

    por alguns desses viajantes. As serras, onde podem ser encontradas as pinturas rupestres,

    foram objeto de visitao de viajantes, religiosos, cronistas e naturalistas.

    Este segundo captulo tem como objetivo principal proporcionar ao leitor uma

    apresentao de um cenrio que historicamente foi tecido e se constitui de mudanas e

    permanncias, a fim de possibilitar a configurao histrica das narrativas desses viajantes,

    encontradas em documentao onde so descritas as pessoas e as pinturas rupestres da

    regio de Monte Alegre e, em especial, do lugar onde realizei minha pesquisa, a vila do

    Erer. O olhar estrangeiro evidenciou elementos da cultura das pessoas da poca assim

    como suas prprias impresses sobre as pinturas rupestres e das pessoas do lugar na poca.

    Comecemos ento, esta empreitada antropolgica e pessoal pelo primeiro viajante a fazer

    referncia s pinturas rupestres que encontrei documentao histrica.

    O ingls Alfred Russel Wallace, em 1848, escreveu sobre as pinturas rupestres no

    livro Viagem pelos rios Amazonas e Negro. Mas o que o tornou famoso foram seus escritos

    sobre a ideia da evoluo dos seres vivos pela seleo natural, que foram apresentados em

  • 42

    conjunto com as ideias de Charles Darwin, em uma comunicao sobre a origem das

    espcies, em 1 de julho de 1858, na Linnean Society, na Inglaterra (Ferri 1979, Lima

    2013)13.

    Aos vinte e cincos anos, o jovem Wallace decide iniciar sua carreira de viajante

    naturalista pela Amaznia. O ressarcimento das despesas com a viagem foi realizado atravs

    da venda das colees coletadas. No entanto, o objetivo de Wallace extrapolava o interesse

    de obter vantagem econmica com a comercializao de espcies raras da fauna e flora da

    floreta tropical no lucrativo mercado de colecionadores de Londres, mas um objetivo mais

    relevante era buscar a chave de interpretao para a origem da vida orgnica na terra

    (Lima 2011:4).

    A escolha de Wallace pela Amaznia foi feita mediante alguns fatores. Dentre estes

    se destacam: Os laos comerciais estabelecidos entre Portugal e a Inglaterra (Basile 1990)14;

    e as leituras da literatura de viajantes precursores, como o naturalista Alexander Von

    Humboldt (1769-1869) que no havia conseguido explorar o rio Amazonas, mas, sobretudo

    os escritos de William H. Edwards (Edwards 1847). Este ltimo indicou as principais

    qualidades que um viajante poderia encontrar na Amaznia: o fcil acesso, o clima

    saudvel, a hospitalidade que possibilitava a economia de recursos e por ser uma regio

    que no havia sido amplamente coletada (Lima 2013). Wallace viu na Amaznia o meio de

    ganhar a vida com a coleta de objetos de histria natural.

    A viagem de Liverpool at a ento vila de Salinas foram vinte noves dias,

    desembarcando numa manh de maio de 1848. Nesta viagem, Wallace foi acompanhado

    pelo ontomlogo, tambm ingls, Henry W. Bates15. Entretanto, ao chegar ao Par, algumas

    das viagens exploratrias ao interior da Provncia foram realizadas separadamente. Em 1850

    os dois se separaram em definitivo16: Bates seguiu pelo Solimes enquanto Wallace viajou

    pelo alto rio Negro e do Uaups (Ferri 1979:10). Antes disso, a partir de junho de 1849,

    chegou ao Par o irmo mais novo de Wallace, Herbert, para ajud-lo no trabalho de coleta.

    13

    O ensaio de Wallace sobre a sobrevivncia dos mais aptos e o sumrio das ideias de Darwin de 1842 foi apresentado como um trabalho conjunto na referida Sociedade (Ferri 1979). 14

    O prncipe regente D. Joo por conta de reformas econmicas e administrativas admitiu a vinda de estrangeiros mais livremente com a abertura dos portos brasileiros em 1811, inclusive concedendo licena para participar da explorao de minerais. 15

    Bates era dois anos mais jovem que Wallace e permaneceu por quase onze anos coletando material zoolgico e botnico na Amaznia, ele retornou para Inglaterra em 1859. 16

    Alguns dos provveis motivos da separao so apontados por Lima (2013).

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    Para Monte Alegre, Wallace foi acompanhado de seu irmo (Bates [1863]

    1944:365). Wallace faz uma descrio detalhada de tudo o que observava e despertava

    interesse e/ou estranhamento. Ele relata as dificuldades e as condies desconfortantes do

    transporte em barcos e canoas que singravam a Amaznia naquele perodo. No havia um

    servio regular para passageiros e nem o advento do vapor (Loureiro 2007)17. Reclama do

    mau cheiro do poro, os buracos no convs e a falta de amurada18 (Wallace [1848] 1979:91).

    A multiplicidade de canais, a vazante da mar, encalhamento, as tempestades e a falta de

    vento levam esse ingls a registrar e a admitir o saber e o domnio dos moradores da regio

    e a sua prtica da espia19.

    Aliado a essas dificuldades, ele registra o uso de bebidas embriagantes pelos

    indgenas que o acompanhavam e uma rede de comrcio e locais de troca que pontilhavam

    as margens do rio entre casas, povoados e vilas durante todo o percurso da ento Cidade do

    Par, como ele chamava Belm, at Santarm20. Wallace precisou estabelecer relaes de

    amizade, negociaes com os nativos e integrar-se s estruturas materiais e coletivas do

    mundo que pretendia explorar (Lima 2013:73). A viagem iniciou nos primeiros dias de

    agosto de 1848.

    Naquele tempo, foram necessrios 28 dias para completar este percurso que, hoje,

    por via area, pode ser realizado em