Pedro Santos - Monografia

57
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PEDRO DA SILVA SANTOS Miguel Arraes de Alencar e as diferentes perspectivas de Reforma Agrária nas últimas quatro décadas do século XX na Zona da Mata pernambucana Niterói 2006

Transcript of Pedro Santos - Monografia

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSECENTRO DE ESTUDOS GERAISCURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PEDRO DA SILVA SANTOS

Miguel Arraes de Alencar e as diferentes perspectivas de Reforma Agrária nas últimas quatrodécadas do século XX na Zona da Mata pernambucana

Niterói2006

PEDRO DA SILVA SANTOS

Miguel Arraes de Alencar e as diferentes perspectivas de Reforma Agrária nas últimas quatrodécadas do século XX na Zona da Mata pernambucana

Trabalho apresentado ao curso de CiênciasSociais da Universidade Federal Fluminense,como requisito parcial para a obtenção do graude Bacharel em Ciências Sociais. Área deConcentração: Ciências Sociais.

Orientador: Professor Doutor MARCELO CARVALHO ROSA

Niterói2006

RESUMO

O presente trabalho pretende analisar a importância de Miguel Arraes de Alencar paraos movimentos sociais dos trabalhadores rurais da Zona da Mata pernambucana. Esserelacionamento entre Arraes e tais movimentos - iniciado com o seu primeiro governo entre1963 e 1964; foi interrompido com o golpe militar de 1964 e deposição de Arraes do governode Pernambuco, e posterior exílio; sendo restabelecido após seu retorno ao Brasil em 1979 - sedeu de forma bastante intensa ao longo de seus três governos, ocorrendo, dessa forma,mudanças referentes ao modo de ação coletiva e de percepção do Estado por aquelestrabalhadores, em função de um novo posicionamento da estrutura estatal. E em decorrênciadas políticas públicas dos governos Arraes, a idéia de Reforma Agrária foi utilizada comdiversas acepções, com o intuito de articular os objetivos pensados com as possibilidadesconcretas resultantes das interações sociais de cada época. Tais interações, por um lado,inviabilizavam certas metas, enquanto por outro, sinalizavam na direção de novos caminhos,modificando, assim, de acordo com a conveniência momentânea, a noção de Reforma Agrária.Contudo, seus programas de governo não perderam o foco social, nem deixaram de manterimplícita uma idéia de Estado mediador das disputas entre estamentos sociais distintos, alémde buscar conciliar desenvolvimento social com progresso econômico entre as camadas sociaismais baixas de origem rural.

Palavras-chave: Reforma Agrária – Pernambuco; Arraes, Miguel (1916-2005).

ABSTRACT

This work intends to analyze the Miguel Arraes de Alencar importance for the ruralworkers social movements from Pernambuco’s Zona da Mata1. The relationship betweenArraes and such movements – it started with his first government between 1963 and 1964; itwas interrupted with the military blow in 1964 and subsequent deposition of Arraes from thePernambuco government and exile; and this relationship was reestablished after his return toBrazil in 1979 – was quite intense during his three governments. Thus, happened changesregarding to colective action way and of the perception of the State for those workers, asconsequence of a new positioning of the State structure. And of view point of Arraes’s publicpolitics, the Agrarian Reform idea it was used with several meanings, viewing adjust theobjectives thought to the concrete possibilities originated from the social interactions of eachtime. Such interactions, on one side, made unfeasible certain goals; while for other, it signaledin the direction of new way, modifying in agreement with the momentary convenience theAgrarian Reform idea. However, his government’s programs did not lose its social focus, norit stopped maintaining implicit an idea of State mediator of the disputes among different socialclasses, besides trying to reconcile social development with economical progress among thepeople poor from rural origin.

Key-words: Agrarian Reform – Pernambuco; Arraes, Miguel (1916-2005).

1 This denomination is regarding to region closer to Atlantic Ocean, where was predominant the called “AtlanticForest”. Although nowadays there was not more these characteristic vegetation such which was past, thedenomination stays.

Sumário

Introdução ............................................................................................................................ 1A centralidade do personagem e as mudanças em Pernambuco ....................... 1Biografia de Miguel Arraes ............................................................................... 4

Capítulo 1 – O primeiro governo Arraes (1963-1964) ......................................................... 10Pernambuco na segunda metade do século XX ............................................... 10A construção do “mito do pai Arraia” ............................................................ 14Cajueiro Seco ................................................................................................... 17O Acordo do Campo ........................................................................................ 18Ligas e Sindicatos ............................................................................................ 18A igreja católica ............................................................................................... 21O golpe militar de 1964: a “Revolução” interrompida .................................... 23Conclusão do capítulo ...................................................................................... 24

Capítulo 2 – O segundo governo Arraes (1987-1990) .......................................................... 27O governo militar ............................................................................................. 27A redemocratização e o segundo governo ....................................................... 29Os programas sociais do segundo governo Arraes .......................................... 33Uma nova dinâmica social ............................................................................... 34Conclusão do Capítulo ..................................................................................... 35

Capítulo 3 – O terceiro governo Arraes (1995-1998) ........................................................... 37Um novo momento ........................................................................................... 37A Usina Catende ............................................................................................... 38O ocaso do “Pai Arraia” ................................................................................... 40Conclusão do capítulo ...................................................................................... 44

Conclusão ................................................................................................................................ 46

Referências Bibliográficas ..................................................................................................... 49

1

Introdução

Na edição de 22 de outubro de 2006, o jornal O Globo exibiu matéria referente à

conclusão do longo processo que perdurava desde o último governo Miguel Arraes em

Pernambuco (1995-1998) envolvendo a desapropriação da Usina Catende. Situada ao sul da

Zona da Mata pernambucana, e com um patrimônio que se estende por cinco municípios da

região, finalmente foi desapropriada e entregue aos trabalhadores a administração daquele

complexo sucro-alcooleiro que já foi o maior da América Latina e já correspondeu ao centro

de equilíbrio econômico da região canavieira localizada entre o sul de Pernambuco e o norte

de Alagoas. Transformando-se na “maior experiência de autogestão do país”, segundo o

jornal, sendo tal informação corroborada por Fernando Kleiman (2006). Com o desfecho desse

emblemático processo, vê-se assim o último traço do que foi chamado por Antonio Callado

(1980) de “tempo de Arraes”.

Um tempo que foi marcado por mudanças em relação ao posicionamento do Estado

envolvendo questões sociais e pela adoção de métodos alternativos no trato de tais problemas.

Esse tempo e os três governos Arraes caracterizaram-se também por oferecer às camadas

sociais mais baixas, principalmente àquelas de origem rural, condições de participar do

processo político através de uma inserção via movimentos sociais.

Por tudo isso, é fundamental analisar a trajetória de Miguel Arraes de Alencar, para se

compreender alguns aspectos contemporâneos relacionados com as questões agrárias em

Pernambuco, como os ressaltados por Sigaud (2000) e Rosa (2004). Evidenciando as

contradições no trato dos assuntos de natureza pública; e procurando desvendar as

expectativas e frustrações que se criaram em torno dessas questões, buscaremos descrever

algumas faces desse tempo de mudanças.

A centralidade do personagem e as mudanças em Pernambuco

Em relação às interações entre os atores que participaram dos debates em torno da

terra na Zona da Mata pernambucana, Arraes esteve envolvido em uma complexa rede de

interdependência entre diversos setores da sociedade, e foi um dos principais atores, pois

reivindicou para si, na condição de governador, a mediação das disputas entre grupos

econômica e socialmente antagônicos.

Além disso, a história dos trabalhadores rurais pernambucanos na segunda metade do

século passado foi acompanhada com algumas expectativas. Aquela região, tida como

2

paradigma de atraso, no que se refere aos modelos econômicos, passou a representar em

determinado momento o que havia de mais inovador em relação ao papel dos trabalhadores

rurais no contexto social brasileiro. A partir da experiência das Ligas Camponesas, iniciada

com o auxílio do advogado e deputado estadual Francisco Julião, a Zona da Mata

pernambucana passou por um grande processo de mobilização social.

Toda essa mobilização era propiciada pelos muitos problemas sociais existentes, dentre

os quais, as precárias condições de trabalho e a baixa remuneração percebida por aqueles

trabalhadores que resultava em uma situação de miséria. Para explicar parte do problema, José

de Souza Martins se utilizou da idéia de adaptação sofrida pelo setor rural, a partir do processo

que foi restringindo até extinguir completamente o trabalho compulsório no Brasil, juntamente

com a instituição da Lei de Terras em 1850, que substituía o regime de aquisição de terras de

sesmarias e estabelecia a compra como única forma de obtenção das terras devolutas,

surgindo, dessa forma, uma massa trabalhadora apta a se submeter ao trabalho que foi se

tornando cada vez mais escasso, em comparação com o quantitativo de trabalhadores

disponíveis, e menos remunerado pelos grandes proprietários rurais (Martins, 1986).

Por outro lado, há uma outra explicação, que complementa a anterior, na qual alguns

autores, dentre os quais Brandão Lopes (1981), atribuem parte do problema ao deslocamento

do foco econômico da produção açucareira para a cafeeira ainda no século XIX, e

geograficamente, do que atualmente se tem como regiões, do Nordeste para o Sudeste.

Francisco de Oliveira em seu elegia para uma re(li)gião propõe uma interpretação, na

qual o Estado brasileiro teria contribuído para a acentuação das desigualdades inter-regionais e

da manutenção de formas arcaicas de produção capitalista, a partir da adoção de políticas

econômicas que mantinham artificialmente competitivo o preço do açúcar, e

conseqüentemente contribuía para a perpetuação das condições de trabalho precárias no

Nordeste, em comparação com a produção açucareira do interior de São Paulo que possuía

uma industrialização mais consistente (Oliveira, 1987).

Neste trabalho, procuro relacionar as condições sócio-econômicas que possibilitaram o

surgimento de Miguel Arraes como um novo ator político naquele Pernambuco entre o final da

década de 1950 e início dos anos 1960, situando-o no concerto político pernambucano daquela

época, e sucessivamente até períodos mais recentes. E a partir da teoria sociológica que parte

da ação dos indivíduos, tentarei reconstruir certas redes de relacionamentos sociais em que

esteve inserido para compreender os processos dos quais tomou parte, sem, contudo,

3

negligenciar os eventos sociais mais amplos que serviram como argumento ou fundo temático

para alguns de seus posicionamentos.

Em função de sua posição privilegiada, por ter ocupado o governo do estado de

Pernambuco em três ocasiões, a trajetória de Arraes servirá como ponto de referência de toda a

análise. No entanto, não será feita uma minuciosa biografia do indivíduo Arraes para não

sobrecarregar com excessivas informações a narrativa, pois a pretensão principal é

compreender as posições defendidas por ele no contexto pernambucano, e até brasileiro, da

questão agrária no período histórico compreendido, e não construir sua biografia no sentido

literário. A partir de suas posições e das políticas públicas de seus governos, poderemos

compreender um pouco da complexidade das relações entre membros do Partido Comunista,

empresário rurais, trabalhadores rurais, sindicatos, Ligas Camponesas e padres católicos

envolvidos na discussão - de todas essas categorias entre si e destas com o Estado.

A hipótese da qual partirei é de que a noção de Reforma Agrária, segundo a concepção

de Arraes, foi sofrendo sucessivas adaptações aos momentos históricos distintos - quando não

ficava restrita apenas ao discurso - e sofreu diversas deformações semânticas, a fim de se

adequar com maior conveniência às suas políticas de Estado, o que lhe possibilitou

deslocamentos, quanto ao foco político, relativamente confortáveis entre estamentos sociais

distintos, mantendo, assim, em funcionamento aquele complexo sistema, em seus diversos

aspectos. A forma como Arraes se posicionava, as vezes dúbia, gerava certas incompreensões,

contudo, permitia-lhe mediar os conflitos de classe e manter, dentro de um princípio de “paz

social”, a dinâmica sócio-econômica fluindo sem grandes rupturas funcionais.

Além disso, o sentido que os processos possuem encontra apoio nas expectativas que

se criam em torno do projeto político de um determinado grupo social, em determinado

momento histórico. E para tal, o que Norbert Elias chamou de figuração, constitui cada um

dos vários enlaces sociais nos quais Arraes esteve envolvido (Elias, 2006). Porém, dessas

relações podem se originar dubiedades em torno das ações individuais, as quais, em geral, são

dissimuladas com justificativas que fazem alusão a princípios metasociais, tais como “em prol

da sociedade” ou “em benefício dos valores humanos”, com o objetivo de se buscar uma

coerência maior para esses atos, de acordo com o trabalho de Lahire (2002).

A técnica e o material de pesquisa são essencialmente a análise da bibliografia

produzida sobre Miguel Arraes de Alencar e pelo próprio, além daquela que trata dos

problemas rurais presentes no estado de Pernambuco na segunda metade do século XX. E

4

embora não seja sempre possível, procura-se evitar as armadilhas daquilo que Pierre Bourdieu

chamou de “ilusão biográfica”, já que boa parte da bibliografia analisada foi construída em

momentos bastante significativos – tanto do ponto de vista dos movimentos sociais, quanto

dos próprios autores.

Ademais, procurei evitar o caminho tradicional pelo qual o ex-governador em geral é

analisado. Ou seja, inserido em categorias que de tão utilizadas se tornaram vazias de

significado, como populismo e messianismo, ou daquelas que o enquadram sob perspectivas

abstratas do pensamento, como ideológico e mítico, que atendem a meras especulações

“típicas ideais”, mas que negligenciam o sentido mais concreto do impacto de suas ações

como formulador de políticas públicas e como ser humano.

Quanto às peculiaridades do trabalhador rural pernambucano, estas não foram tratadas

com maiores detalhes neste trabalho. E para efeito de localização geográfica, não foi dada

atenção ao Agreste e ao Sertão, toda a análise se refere especificamente à Zona da Mata.

Biografia de Miguel Arraes

Inicialmente, é conveniente tratar da biografia de Arraes, situando-o dentro de uma

complexa rede de relações (de parentesco e de amizade, dentre outras), as quais lhe

possibilitaram traçar sua trajetória. É essencial fazer essa reconstrução biográfica para se

compreender a forma como um indivíduo nascido no sertão cearense e oriundo de uma família

sem muitos recursos financeiros se tornou governador de um estado em que a tradição e o

patrimônio familiar tinham grande importância nesse processo.

O primogênito e único homem dos sete filhos de José Almino de Alencar e Silva e de

Maria Benigna Arraes de Alencar, ambos trabalhadores rurais, Miguel Arraes herdou o nome

do avô materno2. Nascido em Arararipe no sertão cearense em 1916 e posteriormente

mudando-se para a cidade de Crato também no sertão cearense, a fim de concluir os estudos

básicos, aos dezessete anos Arraes foi para o Rio de Janeiro, quando residiu na casa de um tio

materno, e cursou o primeiro ano do curso de Direito na Universidade do Brasil, atualmente

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Transferiu-se posterior e definitivamente para

a cidade do Recife, onde concluiu o curso de Direito na Universidade do Recife,

2 De acordo com informações constantes no trabalho de Brasil (1964), neste caso modificou-se um pouco atradição: a prática comum na região era atribuir ao primogênito o nome do avô paterno, porém como já havia umprimo seu com tal nome, Almino, optou-se por colocar o do lado materno, Miguel.

5

posteriormente incorporada à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), paralelamente ao

exercício da função de escriturário no Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) (Barros, 1965).

Casando-se em 1945 com uma mulher, cuja irmã era casada com Cid Feijó Sampaio,

que mais tarde viria a se tornar governador de Pernambuco, representando os usineiros. Dentro

do IAA, Arraes ascendeu funcionalmente até o cargo de Delegado Regional em 1947,

deixando o instituto naquele ano para assumir o cargo de secretário de Fazenda do estado, no

governo de Barbosa lima Sobrinho, com quem havia trabalhado no IAA.

Segundo Adirson de Barros (1965), pela visibilidade alcançada na secretaria, foi

lançada sua candidatura para deputado estadual, e teve evidenciada a sua capacidade técnica

como argumento em prol de sua candidatura. Tido como funcionário competente em sua

passagem pelo IAA e pela Secretaria de Fazenda, Arraes não teve maiores problemas para

lançar sua candidatura, mas conseguiu apenas a vaga de suplente, no entanto acabou herdando

o mandato e o exerceu até 1954. Foi reeleito deputado estadual para o período de 1955 a 1958

e obteve bastante visibilidade nesse período, sendo eleito o “Deputado do Ano” de 1957, em

eleição promovida pelos jornalistas credenciados na Assembléia Legislativa, pela sua atuação

no combate ao novo decreto tributário imposto pelo então governador, o General Cordeiro de

Farias3. Na oposição, fazia críticas ao novo código tributário, porém, segundo Adirson de

Barros (1965), era um adversário respeitado pelo próprio governador.

Ainda em 1957 houve o chamado lock-out, uma paralisação total de toda a produção

industrial e do comércio na capital pernambucana, e ironicamente até mesmo os camelôs

aderiram ao movimento, em protesto ao aumento da carga tributária para o setor industrial

promovido pelo novo decreto do governador. Porém, essa relação de causalidade entre o

aumento da carga tributária e tais protestos não é suficiente para justifica-los, pois, segundo

Barros (1965), esses mesmos valores no governo de Cid Sampaio, que sucedeu Cordeiro de

Farias, aumentaram ainda mais, porém tal aumento não foi seguido de igual protesto. O que

demonstra que o lock-out foi promovido principalmente visando a sucessão do governo

estadual.

Ainda mais, porque tal movimento foi promovido pela Federação da Indústria de

Pernambuco, cujo presidente era Cid Feijó Sampaio que dessa forma conseguiu projetar sua

candidatura para o governo estadual. E do outro lado, Arraes continuava a fazer oposição ao

governo Cordeiro de Farias, comandando uma bancada de dez deputados em uma Assembléia

6

Legislativa que totalizava sessenta e cinco deputados. Ou seja, Arraes liderava uma bancada

minoritária e oposicionista dentro do Legislativo estadual (Barros, 1965).

Arraes foi ainda o principal articulador da campanha do usineiro Cid Sampaio, seu

concunhado, para o governo estadual em 1958. Indo ao interior constantemente para negociar

as alianças, e por isso negligenciou a própria reeleição para a assembléia legislativa. Depois de

derrotado nas urnas, a convite do governador eleito, voltou a ocupar o cargo que já ocupara

antes, o de secretário estadual de fazenda.

De acordo com Barros (1965), foi também sua capacidade técnica administrativa que

lhe deu subsídios para conquistar o eleitorado, na disputa pela prefeitura de Recife.

Aproveitando-se da administração, considerada boa, de seu antecessor Pelópidas Silveira, que

fora apoiado pela Frente do Recife4, e com o apoio do governo estadual, em 1959 foi eleito, e

sua atuação na prefeitura na resolução dos problemas habitacionais e na condução da política

fiscal lançar-lhe-ia para a disputa do executivo estadual.

Na campanha pela sucessão presidencial em 1960, o prefeito de Recife e o governador

de Pernambuco assumiram posições opostas: o governador Cid Sampaio apoiava Jânio

Quadros; enquanto o prefeito recifense apoiava o Marechal Henrique Lott. A Frente do Recife

o deixou com pouca mobilidade após a eleição (Barros, 1965; Soares, 1982). Ou seja, o bloco

formado em torno de sua candidatura, que tinha o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o

Partido Comunista Brasileiro (PCB)5 e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), entre outras

legendas, deixava Arraes preso a um esquema que o forçava a apoiar o candidato escolhido

pela esquerda brasileira para fazer oposição a Jânio Quadros, dito de direita. E com a morte de

sua primeira esposa em 1961, Arraes ficou livre dos laços de parentesco que o ligavam a Cid

Sampaio, rompendo definitivamente a relação.

3 Quanto à eleição de “Deputado do Ano”, Cavalcanti (1978), apresenta uma versão na qual diz ter ele próprioarticulado tal processo, visando a candidatura de Arraes a prefeito, que será tratado no primeiro capítulo.4 A chamada Frente do Recife teve sua composição inicial em torno da candidatura de Pelópidas Silveira para aprefeitura do Recife em 1955, agregando PTB, PSB e PCB, mas não teve a mesma composição durante todo otempo, ora aumentando o número de legendas, ora diminuindo. Caracterizou-se como um movimento político-partidário de esquerda em oposição aos grupos políticos tradicionais que controlavam o processo eleitoral dePernambuco. Segundo Soares (1982), a Frente do Recife foi a responsável pelas candidaturas ditas de esquerdana capital pernambucana de 1955 a 1964, incluindo todas as candidaturas majoritárias de Miguel Arraes.5 Embora contemporaneamente seja necessária a utilização da denominação Partido Comunista Brasileiro ou PCBem alusão ao partido fundado em 1922, que teve Luis Carlos Prestes como dirigente na década de 1930, paradistingui-lo da outra legenda fundada em 1962 por uma dissidência daquele, o Partido Comunista do Brasil (PCdo B), a utilização desta denominação ao longo deste trabalho poderá não ter a devida precisão, pois asinformações constantes na bibliografia pesquisada são escassas em relação a este aspecto. No entanto, na maioriados casos estará se referindo à legenda inicial que teve origem nos movimentos desencadeados pela RevoluçãoRussa de 1917 e que tinha em Moscou sua orientação ideológico-programática.

7

E embora o candidato que apoiara tivesse perdido o escrutínio presidencial, Arraes

ainda possuía margem de popularidade suficiente para se lançar na disputa ao governo

pernambucano em 1962. A transformação do sertanejo cearense em candidato elegível ao

governo pernambucano foi construída a partir de uma grande aliança entre a ala nacional

desenvolvimentista do empresariado pernambucano, Partido Comunista e setores da velha

oligarquia açucareira, em oposição ao candidato João Cleofas apoiado por Cid Sampaio, o em

outrora aliado.

Agora, na disputa pelo governo estadual, a sua condição de outsider foi utilizada como

atributo negativo pela oposição, assim como a do principal contribuinte de sua campanha, o

empresário de naturalidade alagoana José Ermírio de Moraes. Arraes era o “Zé Ninguém”

como diziam os oposicionistas. No entanto, o efeito foi o oposto ao desejado pela oposição, o

“Zé Ninguém” se utilizou do rótulo que lhe fora atribuído com sentido pejorativo

transformando-o em uma qualidade. Arraes se apropriou do discurso oposicionista e tirou

proveito dele, incorporando o personagem e buscando a simpatia dos outros “Zé Ninguém”

das camadas mais baixas da população, obtendo o esperado retorno. No interior dominado

pelas oligarquias agrárias a vitória de Arraes se deu com uma pequena margem de votos; a

capital, que tradicionalmente votava na oposição, fez a diferença na contagem final.

Um outro fator importante naquela eleição foi a presença bastante numerosa de

cidadãos estadunidenses em Pernambuco, que desde 1961 circulavam pelo estado. Em 4 de

setembro de 1961, o Congresso dos Estados Unidos aprovava o Foreign Assistance Act, com o

intuito de oferecer aos governos latino-americanos auxílio técnico e financeiro para a

resolução dos problemas sociais e no combate ao espectro vermelho que rondava o continente,

segundo o entendimento dos idealizadores da política externa estadunidense. E em 3 de

novembro do mesmo ano o Presidente John Fitzgerald Kennedy determinava a criação da

United States Agency for International Development (USAID), que instalaria uma de suas

filiais em Recife, no contexto do programa chamado Aliança para o Progresso, denominação

dada ao acordo estabelecido entre os Estados Unidos e alguns países latino-americanos

membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), com o intuito de promover o

desenvolvimento social e econômico das regiões mais pobres, através de financiamentos

promovidos pelo capital estadunidense (Page, s/d).

A oposição à Aliança para o Progresso viria a se tornar uma das bandeiras da

campanha de Miguel Arraes ao governo estadual, até porque esta lhe fazia oposição através do

8

Instituto Brasileiro para a Ação Democrática (IBAD), organização brasileira que, sob

orientação direta da política externa dos Estados Unidos, recebia ajuda financeira do governo

estadunidense para “promover a democracia”. E Além disso, a forma como o governo Cid

Sampaio assinou os acordos referentes a Aliança para o Progresso possibilitava a

movimentação de técnicos da USAID pelos diversos órgãos e instituições públicas de

Pernambuco, o que feria o orgulho dos nacionalistas. Como defendeu Cavalcanti (1978), entre

esses técnicos havia agentes da Central Intelligence Agency (CIA), que tinham acesso

irrestrito aos arquivos policiais.

Em 1964, com o golpe militar, Arraes foi deposto do governo estadual e esteve preso

durante quatorze meses, por determinação dos militares sob acusação de “ter colocado em

risco a segurança nacional”. Após esse período, com habeas Corpus expedido pelo Supremo

Tribunal Federal, exilou-se na Argélia até 1979.

Com a chamada “abertura política” e anistia aos acusados de “crimes políticos” em

1979, Arraes retornou ao Brasil e em 1982 se candidatou a deputado federal, obtendo

expressiva votação, com o maior número de votos atribuídos a uma pessoa na história de

Pernambuco até então, segundo Aurenéa Oliveira (2004).

Em 1986, candidatou-se ao governo estadual com o slogan “entrando pela que saiu”.

Com apoio dos sindicatos de trabalhadores rurais, elegeu-se com outra expressiva votação

frente ao representante do Partido da Frente Liberal (PFL) José Múcio Monteiro, exercendo

este segundo mandato de 1987 a 1990, que será tema do segundo capítulo. E outra vez, em

1990, foi eleito deputado federal, obtendo a maior votação proporcional do país para o cargo

(Idem).

E finalmente, pela terceira vez, foi eleito governador em 1994, para o exercício de

1995 a 1998, que será tema do terceiro capítulo. Esse governo foi conturbado pelo chamado

“Escândalo dos Precatórios” e pelas mudanças econômicas promovidas pelo Plano Real que o

levaram a entrar em confronto com o governo federal. E com a expedição da Emenda

Constitucional número 16, de 04 de junho de 1997, tentou se reeleger, mas foi derrotado pelo

antigo aliado Jarbas Vasconcelos do PMDB.

Com a derrota, ficou restrito ao exercício da presidência do PSB até 2002. Naquele

ano, candidatou-se novamente a deputado federal e foi eleito. Nesta eleição, ficou estabelecido

seu rompimento com as entidades sindicais que tradicionalmente o apoiaram. Enquanto Arraes

apoiou o candidato do Partido Socialista Brasileiro (PSB) Antony Garotinho para a

9

Presidência da República, a FETAPE optou por apoiar o candidato do Partido dos

Trabalhadores (PT) Luiz Inácio Lula da Silva.

E em 2005, teve que se afastar do exercício do cargo de deputado federal por

problemas de saúde, ficando internado em hospital do Recife por algum tempo, até que em

agosto do mesmo ano faleceu aos 89 anos, causando grande comoção popular.

10

Capítulo 1

O primeiro governo Arraes (1963-1964)

Pernambuco na segunda metade do século XX

Primeiramente, é preciso situar Arraes dentro do Weber (1968) chamou de “grupo de

status” para definir a condição de estabilidade entre os diversos níveis na composição

hierárquica de um determinado grupo social - em divergência com a “classe”, que segundo o

autor está mais relacionada com uma condição de mercado, e portanto oscila mais do que o

primeiro –, já que ele estava inserido em um “grupo de status” por laços conjugais, naquela

sociedade recifense que dominava o jogo político à época, pois se casara com uma mulher

cujo sobrenome era Souza Leão6. E talvez até estivesse inserido economicamente, porém não

possuía as qualidades julgadas importantes no contexto pernambucano da época: Arraes não

nascera no seio daquela sociedade, embora estivesse nela inserido por laços matrimoniais. Não

possuía os hábitos, bens, padrões de consumo, dentre outros aspectos, que o credenciassem a

ter pleno reconhecimento no interior daquele estamento social. Usando uma expressão de Levi

(2000), não trazia consigo uma “herança imaterial”, da qual pudesse utilizar-se para demarcar

sua posição no interior do grupo social.

De certo modo, a inserção de Arraes naquele grupo social, cuja direção política era

conduzida em função dos interesses dos proprietários de engenhos, provocou uma nova

figuração, de acordo com o conceito de Elias (2006). Situação esta, que possibilitou um novo

arranjo das relações sociais e permitiu uma mudança de rumo na política, incorporando outras

demandas, além das propriamente macroeconômicas. E Arraes tinha naquele momento o perfil

mais adequado para conduzir um grande acordo, inserindo-se na lacuna existente entre

proprietários e trabalhadores rurais, pois viera de uma posição social não muito baixa, o que

lhe dava a possibilidade de inserir-se, por nascimento, em uma posição ambígua na escala

social.

Além disso, situando a relação de Arraes na condição de outsider em oposição ao

establishment, de acordo com o trabalho de Elias (2000), vê-se que o objetivo primeiro de toda

6 Os Souza Leão são uma tradicional família proprietária de engenhos em Pernambuco, da cidade de Jaboatão dosGuararapes. Atualmente há uma tradicional rede de escolas na região metropolitana do Recife que leva o nome dafamília; há uma marca de cachaça, lançada recentemente, que também leva tal nome; e existe até uma receita debolo conhecida por “bolo Souza Leão”, sendo tal receita um símbolo de orgulho dos Souza Leão, pois, segundoos próprios, este bolo foi servido ao imperador D. Pedro II em visita a Pernambuco no final do século XIX.

11

ação no sentido de fortalecer as fronteiras sociais é a manutenção de um status quo, a fim de

impedir o acesso de outras pessoas a um grupo social que ocupa posição privilegiada. Com

isso, em um primeiro momento, o nome de Arraes para a disputa do governo estadual não foi

uma unanimidade. Inicialmente, o “Zé Ninguém” seria um perigo para aquele tipo de arranjo

social, onde a tradição era o principal parâmetro, ainda mais porque estava amplamente

apoiado pelos movimentos sociais, principalmente os de trabalhadores rurais.

E ainda, pelas razões mais diversas, são atribuídos adjetivos de superioridade aos

membros de um grupo social privilegiado, como foi no Brasil colonial ser “baiano” e

“bacharel” como sinônimos de civilidade e de elevada capacidade intelectual,

respectivamente; da mesma forma que pertencer à “nobreza rural” no momento em que o foco

econômico brasileiro se deslocava da cana-de-açúcar para o café - e conseqüentemente do

Nordeste para o Sudeste – era um qualificativo depreciativo e anacrônico; ou ainda ser

“mulato”, que situava o indivíduo entre dois grupos sociais distintos: senhores e escravos e

colocava aquele a quem se atribuía tal denominação em uma posição de inferioridade (Freyre,

1961).

A partir do final da década de 1950, a Zona da Mata pernambucana vivia um clima de

expectativa acerca da Reforma Agrária, provocado pelas Ligas Camponesas de Francisco

Julião e pelo crescente movimento popular em oposição às práticas políticas tradicionais no

estado. Segundo Camargo (1973), no visível ocaso do modelo político iniciado por Getúlio

Vargas e na debilidade da economia do setor açucareiro local, ficavam evidentes as

fragilidades da política há muito tempo praticada naquela região.

No contexto da Guerra Fria, os Estados Unidos estavam com uma agressiva política

externa voltada para o continente americano. E diante da possibilidade da região Nordeste se

tornar uma nova Cuba, na década de 1960 o governo dos Estados Unidos empregou alguns

milhões de dólares na Aliança para o Progresso. No governo Cid Sampaio foram assinados

acordos referentes ao auxílio técnico entre o governo estadunidense, representado pela

USAID, e o estado de Pernambuco. Porém, o papel desempenhado por aquela agência feria o

orgulho dos nacionalistas que a viam como uma grave ofensa à soberania nacional. O próprio

Miguel Arraes, já na campanha para o governo estadual, ao ser perguntado sobre a Aliança

para o Progresso e sobre a USAID, disse que não trataria de quaisquer assuntos com Estados

estrangeiros, já que tal prerrogativa é do Presidente da República (Page s/d; Cavalcanti, 1978 e

Brasil, 1964).

12

Um outro fator importante nesse período foi o surgimento das Ligas Camponesas a

partir da segunda metade da década de 1950, cuja existência lançava um elemento novo na

relação entre trabalhadores rurais e proprietários de terra na região. Como apontado por Rosa

(2004), a propriedade da terra não era inicialmente o objeto de desejo dos trabalhadores rurais

de Pernambuco. O que se pretendia quando se propôs a criação do que viria a se tornar a

Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP) no Engenho Galiléia

em Vitória de Santo Antão, era a criação de um programa de assistência mútua que

possibilitasse aos seus membros enterrarem seus mortos com dignidade e se protegerem de

eventuais imprevistos nas relações de trabalho com os proprietários, e, dentre outros aspectos,

garantir a manutenção da alimentação mínima necessária para a sobrevivência.

A SAPPP visava inicialmente construir escola comunitária para os filhos dos

trabalhadores rurais, adquirir sementes, inseticidas e instrumentos agrícolas, e chegou até a ter

como presidente de honra o proprietário das terras, Oscar Arruda Beltrão. Porém, quando tal

noticia se espalhou, surgiram rumores, criados por outros proprietários de terra da região, de

que aquela sociedade era algo subversivo. Além disso, o filho de Oscar Beltrão resolveu que

não tinha mais interesse em manter aquele contrato informal bastante comum na região, no

qual proprietários e trabalhadores se comprometiam mutuamente, os primeiro a ceder e os

segundos a explorar a terra, e entrou com ação de despejo contra os trabalhadores. Os

trabalhadores em reação, foram procurar o deputado estadual e advogado Francisco Julião, que

lhes deu o necessário suporte jurídico, sendo assim iniciado o processo que resultaria na

criação daquela sociedade, tendo como data oficial de fundação o primeiro dia do ano de 1955.

E daí, por analogia com as Ligas Camponesas da década de 1940, tal sociedade passou a ser

chamada de Liga Camponesa (Page, s/d; Camargo, 1973). Apenas em 1959 a SAPPP

conseguiu a desapropriação do Engenho Galiléia.

E enquanto isso, Arraes saia da condição de funcionário técnico do IAA para ser duas

vezes secretário de fazenda estadual e outras duas vezes deputado estadual e uma vez prefeito

do Recife, até se lançar candidato ao governo do estado. Ao mesmo tempo em que ascendia à

presidência da república o representante paulista Jânio Quadros, juntamente com seu vice, o

gaúcho João Goulart7.

7 A dupla Quadros e Goulart protagonizou um momento bastante peculiar na história brasileira em 1961: oprimeiro renunciou ao mandato após um governo de alguns meses, numa tentativa de se fortalecer politicamente,pois pensava que o congresso não aceitaria sua renúncia, pelo vice ter fama de esquerdista, e em caso deaceitação seria reconduzido ao cargo por vontade popular, e acabou não ocorrendo uma coisa nem outra,enquanto Goulart foi impedido de tomar posse imediata por sua fama de esquerdista, e só sendo permitida a

13

O período compreendido entre o final de 1962 e o início de 1963 foi decisivo para a

nova configuração de forças na relação entre os movimentos dos trabalhadores rurais e o

Estado. Dois importantes acontecimentos foram essências para o reordenamento daquele

movimento: a eleição de Miguel Arraes para o governo de Pernambuco em outubro de 1962 e

o resultado do plebiscito que restitui o sistema presidencial ao Brasil e devolveu a João

Goulart as prerrogativas presidenciais em janeiro de 1963. Prerrogativas estas que lhe haviam

sido tiradas pelo Congresso Nacional, após a renúncia de Jânio Quadros em 1961, por se temer

uma guinada brusca de Goulart para a esquerda. Com esses dois eventos, o movimento

sindical passou a ser favorecido, em detrimento do tipo de ordenamento mais simétrico que

possuíam as Ligas Camponesas. E ainda em 1963, em março, foi expedido o Estatuto do

Trabalhador Rural, a partir do projeto encaminhado ao Congresso Nacional por iniciativa do

Poder Executivo, que diferenciava os trabalhadores rurais dos urbanos, reconhecendo as

peculiaridades do trabalhador do campo.

Goulart como herdeiro político de Getúlio Vargas sinalizava na direção de fortalecer o

sindicalismo, a fim de obter o apoio da classe trabalhadora; Arraes, adepto da

institucionalização dos movimentos sociais e defensor do Estado como promotor do

desenvolvimento social, também sinalizava na direção de fortalecer o sindicalismo.

Seguiu-se então o governo de Arraes, com este tendo dificuldades no trato com o

governo federal, que lhe negava apoio e o via como um adversário político, de acordo com a

interpretação de Barros (1965). E ainda havia a presença das Ligas Camponesas, que não se

comportavam do modo imaginado por Arraes para os movimentos sociais, ou seja, seguindo a

sua orientação tal qual os sindicatos. As Ligas acabaram sendo divididas sob duas facções8:

uma mais moderada, quanto ao tipo de ação e identificada com Francisco Julião; e outra

controlada por Clodomir dos Santos Morais, que se entusiasmava pela possibilidade da luta

armada.

Clodomir Morais, baiano de Santa Maria da Vitória, viveu em São Paulo trabalhando

como operário da Ford, na montagem de automóveis, na década de 1940. Militante do Partido

Comunista, teve contato com as Ligas no interior de São Paulo, e quando retornou ao Nordeste

contribuiu para a organização destas. Mais tarde, formou-se em Direito na Universidade

assunção da presidência após o congresso transformar o sistema de governo brasileiro em parlamentarista, o quedurou pouco tempo.8 A utilização deste termo aqui não tem qualquer conotação de ilicitude ou criminalidade, como é usualatualmente. A acepção com que é utilizado é a de parte divergente ou dissidente da orientação central de umgrupo ou partido.

14

Federal de Pernambuco. Foi deputado estadual em Pernambuco e foi um dos criadores de um

método de capacitação para os trabalhadores rurais que o levou a ser contratado pela

Organização das Nações Unidas (ONU) para atuar em outros países latino-americanos. Teve

seus direitos civis cassados durante o período militar e ficou exilado, o que lhe permitiu fazer

carreira acadêmica em alguns países como Alemanha e Chile, dentre outros países latino-

americanos.

Segundo Schmitt (2000), a composição político-partidária brasileira no período

chamado de Terceira República9 em relação ao número de filiados, de representantes no

Congresso Nacional e de governadores eleitos, tinha a seguinte formação: o maior partido era

o PSD, cujos membros se declaravam de centro; o segundo maior era a União Democrática

Nacional (UDN) ao qual se atribuía a posição de direita; e o terceiro o PTB, dito de esquerda.

Porém em 1962 inverteram-se as posições entre UDN e PTB – o PTB em segundo e UDN em

terceiro. Além desses três partidos havia outros onze, os quais se organizavam em torno dessas

três principais legendas. E desse modo, Pernambuco não fugia à regra estatística: era

governado desde o início da Terceira República pelo PSD.

Por isso, o PSD foi a primeira legenda de Miguel Arraes em 1949 ao se candidatar a

deputado estadual, pois este também era o partido de Barbosa Lima Sobrinho, de quem foi

secretário. No entanto, Arraes também contou com o apoio da UDN de Cid Sampaio quando

disputou a prefeitura do Recife, e posteriormente adotou o Partido Social Trabalhista (PST),

uma legenda com orientação ideológica à esquerda e pouco expressiva em relação ao número

de candidatos eleitos no Congresso, segundo Schmitt (2000), com a qual se lançou candidato a

governador em 1962.

A construção do “mito do pai Arraia”

Depois de eleito governador e de ter orientado a máquina estatal conforme seu

interesse, como a ação da Polícia Militar que, de acordo com Callado (Op. Cit.), “passou por

uma humanização” ao assumir uma postura de mediadora dos conflitos em vez de, como era

comum, tomar partido de alguma das partes, em geral da parte com maior poder econômico;

além da promoção do chamado Acordo do Campo, no qual se buscou um consenso entre

empresários e trabalhadores; Arraes foi construindo a imagem do “Pai Arraia” ou “Seu

9 O período chamado de “Terceira República” vai do período posterior ao final da Segunda Guerra Mundial,quando foi encerrado o período ditatorial comandado por Getúlio Vargas e foram instituídas eleições para o

15

Arraia”, como membros pouco letrados das camadas mais baixas da população o chamavam.

A orientação com a qual conduzia a máquina pública e sua constante exposição pública

opinando e explorando a discussão em torno dos problemas sociais passava para o trabalhador

rural uma imagem de salvador e de homem bondoso. Essas duas formas de se referir ao

governador traziam uma certa carga sentimental e uma dose de admiração por aquele que

prometia ao homem do campo novos tempos.

No entanto, essa suposta nova postura assumida pela polícia não foi compartilhada por

Carlos Montarroyos, um dos jovens trotskistas que em setembro de 1963 foi preso na sede do

sindicato rural da cidade de També10 e assim foi mantido durante alguns meses: “[...] o

governo de Miguel Arraes, que se dizia o mais democrático da federação, mantinha na prisão

vários militantes políticos, estudantes e camponeses enquadrados na Lei de Segurança

Nacional”11. Enquanto Callado saiu em defesa de Arraes em relação a esse episódio e

defendeu tais prisões, alegando que em tais casos, as pessoas envolvidas estavam empenhadas

em promover atos de violência espontânea, sem um fim político específico12.

Além disso, até mesmo a eleição promovida pelos jornalistas credenciados na

Assembléia Legislativa de Pernambuco, na qual Arraes foi eleito “Deputado de Ano” em 1957

que foi vista por Barros (1965) como um ato espontâneo, foi apresentada por Cavalcanti

(1978) de forma diversa:

Meu primeiro trabalho em fazer Arraes candidato [a prefeito] foi obter doscomponentes da “bancada da imprensa” da Assembléia Legislativa de Pernambuco, deque eu fazia parte, como redator político da Folha do Povo, que o elegêssemos‘Deputado do Ano’. A princípio houve resistência, o jornalista Paulo do Couto Malta,do Diário de Pernambuco, ensaiando um movimento de rebeldia. Ninguém punha emdúvida, no geral, os méritos de Arraes como parlamentar; faziam-se restrições ao seutemperamento arredio:- A gente vota nesse ‘cara’, e quando acabar, ele não paga nem um uísque para‘bancada da imprensa’.Não era só pagar uísque. Meu receio era o de que Arraes, eleito, chegasse ao local daimprensa e, num gesto muito seu, caçoando um lado do rosto com a mão espalmada,externasse em som gutural um ‘muito obrigado’, sem efusividade. Os jornalistasqueriam festa, muita bebida e muita comida, em retumbantes almoços deconfraternização entre deputado e homens de jornal.13

Ou seja, a construção da imagem do político competente foi articulada nos bastidores

de forma a mostrá-lo como um candidato viável. E Cavalcanti ainda cita um episódio no qual

Congresso Nacional e para a Presidência da República, e posteriormente a elaboração da nova constituição de1946, se encerra com o golpe militar de 1964.10 Tal sindicato era controlado por pessoas ligadas ao Partido Comunista.11 Montarroyos (1982, p. 22).12 Cf. Callado (Op. Cit., p. 132).

16

o próprio Arraes havia lhe confidenciado imaginar-se incapaz de se tornar um candidato

elegível depois de ter uma inexpressiva votação para deputado: “Em matéria de eleição ‘Seu’

Paulo. Quem teve quinhentos votos no Recife, não pode cogitar ser o seu prefeito”14.

Por outro lado, a transformação de Miguel Arraes na pessoa idolatrada, como aquele

que levou uma nova perspectiva para o campo, foi facilitada pela Superintendência de

Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), criada em 1959.

Francisco de Oliveira (Op. Cit.) defendeu a tese de que a partir do momento em que se

criam empresas estatais que se comportam do modo capitalista de obtenção de lucros, o Estado

sai da posição de mero mediador de interesses e passa a ser um dos interessados na obtenção

de vantagens econômicas, perdendo, portanto, sua posição de neutralidade15. E procura ainda

demonstrar esse viés capitalista da máquina estatal contrapondo Arraes a Cid Sampaio.

Quando em um programa envolvendo o abastecimento de água na cidade do Recife, o

governador Cid Sampaio e o prefeito da capital Miguel Arraes divergiram em torno do melhor

sistema. O modelo proposto pelo prefeito era formado pela construção de chafarizes e outras

formas alternativas, de modo a possibilitar o acesso dessa água ao cidadão de baixa renda;

enquanto o governador propunha um complexo sistema incluindo estações de tratamento e

redes de distribuição a domicílio. O primeiro modelo estava pautado em um menor gasto

estatal, e o segundo foi concebido e estruturado nos moldes capitalistas.

Ademais, como o papel da SUDENE foi concebido sob a inspiração capitalista, no

intuito de desenvolver economicamente projetos específicos, aquela superintendência de certo

modo rivalizava com os projetos do governo Cid Sampaio. E como no governo Sampaio foram

assinados acordos, no contexto da Aliança para o Progresso, em que a USAID passava a

desempenhar um papel que caberia à SUDENE, criava-se uma disputa. Em tal disputa estava

de um lado o governo João Goulart, tentando influenciar nos movimentos sociais via

SUDENE; de outro o governo estadual via USAID.

Com isso, quando Arraes assumiu o governo estadual e não manteve os acordos

firmados entre o governo Cid Sampaio e o governo estadunidense, via USAID, passou a

usufruir de todo o progresso promovido pela SUDENE. Entretanto, isso não significa que

estivessem em perfeita sintonia. O que pode ter mudado foi o enfraquecimento de uma postura

de rivalidade e a adoção de uma de complementaridade entre o governo federal e o estadual

13 Cavalcanti (1978, p. 280). Os grifos são do autor.14 Idem.15 Cf. Oliveira (1987, p. 110; 111; 124).

17

(Oliveira, 1987). A forma como se articularam as políticas da SUDENE com o governo

estadual, apesar das divergências entre Goulart e Arraes, beneficiou a construção da figura do

“pai Arraia”, ou daquele que pôs a estrutura estatal para funcionar em prol do

desenvolvimento social.

A cooperativa do Tiriri, que consistiu no arrendamento de um engenho na Zona da

Mata, que, segundo Francisco de Oliveira (Op. Cit.), serviria como demonstração do poder do

Estado diante das Ligas Camponesas, através da concretização de tal projeto, poderia-se passar

a idéia de que a forma organizada, na qual estava os sindicatos, seria mais eficiente do que

aquela comandada pelo ordenamento típico das ligas. O financiamento desse projeto veio da

SUDENE e estava inspirada nos moldes de uma empresa capitalista.

Cajueiro Seco

No ano de 1963 um grupo de pessoas, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, invadiu

uma área pertencente ao patrimônio da União e ali ficou instalado. Essa área pertencera a um

antigo engenho de cana-de-açúcar, mas havia sido desapropriada e incorporada ao Sítio

Histórico do Monte Guararapes, onde no século XVII ocorreu a última batalha entre

portugueses e holandeses, no processo que resultou na expulsão desses últimos do território

brasileiro. O governo estadual conseguiu deslocar as pessoas para um terreno próximo e em

seguida determinou que a Polícia Militar “guardasse” a área para evitar um fluxo de pessoas e

novas invasões. Incomodados com a presença da polícia, os moradores organizaram uma

marcha que se dirigiria para o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual

localizada no centro do Recife, para protestarem. O governador ao tomar conhecimento da

mobilização foi ao encontro do grupo e o interceptou-o, convencendo as pessoas a voltarem

para o local onde estavam instaladas sob a promessa de que daria uma atenção ao assunto e em

poucos dias enviaria uma equipe de técnicos para o local a fim de estudar alternativas para o

problema, e segundo Brasil (1964), o governador saiu do local aplaudido.

Depois de realizados estudos, o governador definiu uma área para a instalação

definitiva daquelas famílias, enviou meios de transporte para fazer o deslocamento dos

pertences dos moradores e criou Serviço Social do Mocambo que, dentre outras coisas,

serviria para auxiliar na construção de casas de pau-a-pique, aquele local passou a ser

chamado de Cajueiro Seco. Também foram instalados banheiros coletivos e chafarizes para o

fornecimento de água. Em seguida foi criado o Serviço Social do Contra Mocambo para

18

transformar as casas em construções de alvenaria e, através de financiamentos intermediados

pelo governo estadual, foi criada uma cooperativa para incentivar a produção e

comercialização dos artefatos de couro, roupas, móveis de madeiras e outros utensílios

domésticos produzidos pelos moradores (Brasil, 1964).

O Acordo do Campo

Ficou conhecido como Acordo do Campo a elaboração de uma lista de atividades, com

suas respectivas remunerações, gerada a partir do encontro promovido por Miguel Arraes entre

empresários rurais, trabalhadores rurais, fornecedores autônomos de cana-de-açúcar,

sindicatos rurais, Ligas Camponesas e da Delegacia Regional do Trabalho. Esse encontro,

proposto pelo governador possibilitou o debate entre as diversas partes envolvidas na

produção rural local e o posterior reconhecimento de direitos trabalhistas.

Contudo, é necessário enfatizar que entre a edição de uma determinada legislação e sua

aplicabilidade há um grande espaço que pode ser preenchido de diversas formas. De acordo

com trabalho de Levi (2000), a concreta aplicação das normas jurídicas em situações nas quais

as práticas vigentes destoam dos pressupostos legais instituídos a posteriori tende a ser

negociada, e mesmo divergir dos parâmetros legais definidos. Com isso, uma interpretação

corriqueira desse primeiro governo Arraes, costuma atribuir à figura do governador a

responsabilidade, em última instância, pelas mudanças ocorridas em relação ao cumprimento

dos direitos trabalhistas. Ora, se a simples vontade do governador tivesse sido inflexivelmente

acatada e cumprida não haveria a necessidade de encontro como esse, em que as partes

envolvidas discutiram seus pontos de vista e estabeleceram acordos.

Ligas e Sindicatos

E quanto à diferença entre sindicatos e Ligas Camponesas, esta se dá menos pelas

diferenças de representatividade e organizacional do que pela direção política e pelas disputas

do poder por grupos situados em posições distintas. Na verdade havia mais uma relação de

complementaridade do que de divergência quanto aos princípios de ação em ambos os

movimentos.

Ademais, os sindicatos rurais de Pernambuco foram herdeiros diretos das Ligas

Camponesas, pois estas foram as responsáveis pela quebra de algumas tradições que regiam as

relações de trabalho na Zona da Mata pernambucana e foram as precursoras daquele novo tipo

19

de ação social, que em um intervalo de tempo relativamente curto foi capaz de alterar desde as

relações de trabalho até as formas de interação social16 .

Essa dicotomia entre Ligas e sindicatos obedece apenas a critérios políticos pela

“paternidade” e tutela dos movimentos sociais. Em um jogo de forças em que estava presente

Igreja Católica, Governador do estado e Presidente da República, além de indivíduos

autônomos como Francisco Julião e Clodomir Morais, em que se pretendia em por uma lado

arrefecer a agitação da massa trabalhadora, e por outro, cada uma das partes envolvidas

desejava consolidar seu domínio sobre os movimentos sociais. O desfecho acabou servindo,

em certa medida, como justificativa para o levante das forças conservadoras.

Em uma entrevista feita por Antonio Callado com o padre Edgard Carício da cidade de

Quipapá, vizinha a Palmares onde o líder comunista Gregório Bezerra coordenava um dos

sindicatos vinculados ao Partido Comunista, o padre diz: “Se a situação dos camponeses

continuar melhorando como agora, eles não irão para o Partido Comunista”17, e mais adiante o

mesmo padre ainda diz: “A igreja está sendo muito mais freqüentada agora do que antes do

movimento sindical”18. Ou seja, estava se travando naquele espaço territorial situado entre

Palmares e Quipapá um embate ideológico, de uma versão bastante peculiar, da disputa entre

Roma e Moscou. Callado ainda cita um outro trecho da conversa com o padre em que o

clérigo incentiva os trabalhadores a receber o dinheiro oferecido pelos patrões para votarem

em seus candidatos, dizendo-lhes para o aceitarem independentemente da pessoa em que

votariam (Callado, 1980, p. 105-106).

Embora respeitasse o trabalho do antigo sargento do exército brasileiro, Gregório

Bezerra, o padre gostaria que todos os trabalhadores envolvidos com os movimentos sociais

estivessem vinculados aos sindicatos controlados pela igreja.

Além do padre Caricio há outros dois padres que se destacaram na condução de

sindicatos: o padre Antonio Melo da cidade do Cabo de Santo Agostinho e o padre Crespo de

Jaboatão dos Guararapes. No ano de 1961, sob a direção dos padres Melo e Crespo, foi

fundado o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco (SORPE), com a finalidade de

organizar os trabalhadores rurais em torno de cooperativas e sindicatos, trabalhando de forma

a construir lideranças sindicais, tal como descrito por Jaccoud (1990, p. 48) : “Criado a partir

da constatação da necessidade de passar de uma atuação menos assistencialista e mais política

16 Cf. Camargo (1973).17 Callado (Op. Cit., p. 100)18 Ibidem, p. 107.

20

devido à penetração das ideologias de esquerda na região, o SORPE foi formado com o

objetivo de promover a sindicalização rural de Pernambuco”.

Com isso, os padres deixavam de lado a retórica da imparcialidade no processo político

e assumiam posturas mais marcadas, atuando na seleção, treinamento e desenvolvimento de

lideranças que fariam a ponte entre os movimentos sociais e a Igreja Católica, na disputa de

força com o Parido Comunista.

No trabalho de Morais (1997), o autor descreve a criação das Ligas Camponesas desde

a década de 1940 como uma estratégia jurídica para a institucionalização dos movimentos

sociais do campo, em virtude de uma resistência que havia para a criação dos sindicatos rurais:

“Pelo fato de não se poder superar esses rígidos limites institucionais, a única possibilidade

residia em atuar dentro do âmbito do Código Civil, o mesmo que admite as organização de

associações de caráter não especificado trabalhistas”19. Ou seja, diante da dificuldade de se

criar sindicatos dentro dos parâmetros legais referentes às representações trabalhistas

instituídas pela legislação sindical criaram-se organizações moldadas segundo o Código Civil,

que não tem o caráter trabalhista. As Ligas foram estruturadas similarmente às atuais

Organizações Não Governamentais (ONG), que também são construídas a partir dos

parâmetros definidos pelo Código Civil. Porém, os dois casos – Ligas e ONG – não se dão

pelas mesmas razões, as primeiras foram fruto de uma estratégia jurídica para a superação de

obstáculos políticos, enquanto as segundas resultam da inexistência de uma legislação

específica.

Em parte a resistência à criação dos sindicatos rurais pode se explicar pelo forte lobby

político que os grandes proprietários de terra exerciam junto aos poderes centrais, tanto no

Legislativo quanto no Executivo e até mesmo no Judiciário, isso quando não eram os próprios

que estavam exercendo cargos em tais poderes. Por outro lado, pode se explicar pela premissa

que dominou as concepções de “modernização” do Brasil que começaram a surgir a partir do

último governo Getúlio Vargas, quando começou a se esboçar um projeto de industrialização

brasileira, na qual o campo representava o arcaico enquanto a urbanização e a produção

industrial urbana seriam as grandes responsáveis por tirar o Brasil de uma certa inércia

econômica e social e inserir o país no grupo dos países desenvolvidos. Tal pressuposto só

passou a perder força nas discussões políticas com o fortalecimento do chamado agronegócio,

pois a partir do momento em que os produtos agrícolas passam a representar um volume

19 Morais (1997, p. 12)

21

considerável na Balança Comercial brasileira, o campo passa a ser digno de uma certa

consideração. No entanto, segundo Graziano Neto (1999), o reconhecimento do desempenho

do setor rural passa por um paradoxo, já que o retorno econômico da agricultura é desejável,

porém os rótulos de atrasado e retrógrado que tradicionalmente são atribuídos ao setor rural

tendem a permanecer, e com isso as políticas públicas ficam vulneráveis aos mais diversos

equívocos em relação à orientação ideológica.

Enfim, a disputa política em torno dos movimentos sociais, do embargo das

reivindicações trabalhistas e do reconhecimento do status do trabalhador constituem um

complexo quadro, no qual as definições e denominações acerca do tipo de arranjo social mais

obedecem a critérios políticos do que propriamente técnicos. Além das estratégias de ação

social que se estruturam convenientemente objetivando “um menor esforço possível em prol

de um maior benefício almejado”, como seria uma definição utilitarista.

A Igreja Católica

A divisão entre questões de natureza religiosa e as não religiosas, não é algo recente na

história do cristianismo. Porém, com o surgimento da modernidade, passou-se a se exigir tal

distinção de forma mais clara e relativa a todos os aspectos da vida social, como define Talal

Asad:

The medieval Church was always clear about why there was a continuous need todistinguish knowledge from falsehood (religion from sought to subvert it) as well assacred from profane (religion from what was outside it), distinctions for which theauthoritative discourses, the teachings and practices of the Church, not the convictionsof the practitioner, were the final test. Several times before the Reformations, theboundary between the religious and the secular was redrawn, but always the formalauthority of the Church remained preeminent. In later centuries, with the triumphantrise of modern science, modern production and modern state, the churches would alsobe clear about the need to distinguish the religious from the secular, shifting, as theydid so, the weight of religion more and more onto the moods and motivations of theindividual believer.20

Com isso, o comportamento dos clérigos foi cada vez mais referente ao “mundo

espiritual”, em detrimento do “mundo terreno” e as práticas do coletivo para o individual. No

entanto, essa distinção não fica clara no âmbito das relações microssociais, e tal distinção

contraria a própria estrutura da Igreja Católica na condição de herdeira do espólio do Império

Romano, pois herdou uma estrutura de Estado e dela não se desfez. E essa estrutura não lhe

permite se abster sobre as questões políticas. Dessa forma, em se concebendo a idéia de

20 ASAD (1993, p. 39).

22

religião como um conjunto de práticas que não estão desvinculadas do mundo concreto e do

contexto social em que está inserido, esta não prescinde das questões de diversas ordens, com

as quais se relaciona mais intimamente e sua simbologia, em geral, está aludida ao mundo

concreto:

[...] My argument, I must stress, is not just that religious symbols are intimately linkedto social life (and so change with it), or that they usually support dominant politicalpower (and occasionally oppose it). It is that different kinds of practice and discourseare intrinsic to the field in which religious representations (like any representation)acquire their identity and their truthfulness. From this it does not follow that themeanings the religious practices and utterances are to sought is social phenomena, butonly that they possibility and their authoritative status are to be explained as productsof historically distinctives disciplines and forces.21

Assim, o papel desempenhado pelos clérigos em Pernambuco nas eleições de Cid

Sampaio e posteriormente de Arraes, ambas para o governo do estado, está coerente com o

conceito de religião que não a desvincula do mundo concreto. E também não se pode esquecer

a força e a credibilidade que tem a Igreja Católica perante o trabalhador rural, pois em muitas

situações é a única instituição a qual ele pode recorrer.

E ainda como adverte Giovanni Levi (2000), algumas vezes, em eventos aparentemente

insignificantes e que passariam despercebidos, pode estar condensada uma série de

significações sociais. Quando o Arcebispo de Olinda e Recife Dom Antônio de Almeida

Moraes Júnior em 1958 condenou e aconselhou os católicos a não votarem em Cid Sampaio,

Por ter ele feito uma aliança com o partido comunista, há outros fatores envolvidos em tal

declaração além daqueles ditos propriamente católicos.

E embora, na Bahia o Partido Comunista não apresentasse o mesmo nível de

penetração que atingira em Pernambuco no meio rural, o arcebispo de Salvador D. Augusto

Álvaro da Silva se preocupava, como citado por Barros (1965, p. 29): “Acho que a solução

mais prática seria o Partido da Igreja Católica. Mas isto a Santa Sé não aprova. Mesmo no caso

especial do Brasil, ameaçado pelo comunismo, aliado a outras correntes políticas, acho que a

Santa Sé não concordaria com a criação do Partido da Igreja.”

Enfim, os clérigos passaram a agir de forma mais explicita e distante do discurso da

imparcialidade política. Não se sabe até que ponto a cúria romana aprovava tais

posicionamentos e se tinha integral conhecimento dos acontecimentos no Brasil, mas naquele

momento havia uma orientação do vaticano para uma maior inflexão da igreja em relação aos

problemas sociais. O papado de João XXIII foi marcado por uma reformulação dos ritos

21 Ibidem, p. 53-54.

23

religiosos de forma a democratizar o conteúdo religioso, como a celebração das missas nas

línguas locais e não mais em latim, além da posição do oficiante que não mais deveria

permanecer voltado para o altar e sim para o público.

O golpe militar de 1964: a “Revolução” interrompida

A “Revolução Pernambucana”, como foi chamado por Antonio Callado (Op. Cit.) e

Jocelyn Brasil (Op. Cit.), dentre outros autores, o processo pelo qual passou Pernambuco

desde o início do governo Arraes. Tal projeto, tanto pela sua vertente armada, controlada por

Clodomir Morais, quanto por aquela “legalista” cujo representante maior era Miguel Arraes,

foi visto ruir com o golpe militar. A primeira já nascera morta, em função da própria

composição: um grupo de estudantes que estabeleceu uma base operacional no estado de

Goiás, sem possuir treinamento militar adequado e sem uma logística que lhes permitisse

sobreviver a um possível bloqueio; enquanto a vertente “legalista”, se viu desarticulada diante

do conjunto de fatores que levaram ao golpe (Page, s/d; Andrade, 1986b).

Ainda em 1962 foi criado o American Institute for Free Labour Development (AIFLD),

uma organização privada, não lucrativa, cujo objetivo seria combater as influências

comunistas e castristas entre os movimentos trabalhistas latino-americanos, promovendo o

apoio técnico e atuando no sentido de fornecer subsídios para a nova política agrícola

brasileira. A AIFLD era uma espécie de subsidiária da American Federation of Labor and

Congress of Industrial Organizations (AFL-CIO), que atuava sob o aval da CIA e de certa

forma em concordância com a política externa estadunidense. E após o golpe aquela

instituição continuou exercendo essa função.

Como defendem alguns autores, o evento retardado em uma década com o suicídio de

Getúlio Vargas finalmente chegara. Com o golpe militar de 1964, Arraes foi deposto pelo

novo governo militar, pelo comandante do IV Exército o General Justino Alves Bastos,

responsável pela jurisdição militar do estado de Pernambuco, que mais tarde daria uma

declaração constante no prefácio do livro de Callado (Op. Cit.) dizendo que o próprio

presidente João Goulart quando lhe designou para a função no Recife estava interessado em

manter Arraes sob vigilância. Dessa forma, o homem de confiança de João Goulart dentro do

exército também conspirou contra ele, enquanto Carlos Montarroyos criticou Arraes por não

ter assumido uma postura de reação ao golpe militar de 1964: “O governo não fez um só

24

pronunciamento. Não deu satisfação à população, não orientou nada. Esperou tranqüilamente

pelo seu próprio fim”22 .

Foram várias perdas compulsórias de mandato e muitos exilados. Arraes inicialmente

se refugiou na Argélia, após uma grande batalha jurídica, resolvida pelo Supremo Tribunal

Federal em favor de sua libertação e de lá escreveu várias críticas ao novo governo ditatorial.

Por outro lado, a diminuição das diferenças inter-regionais que era um os propósitos

dos intelectuais da esquerda ficou em segundo plano. Os incentivos fiscais concedidos às

indústrias instaladas no Nordeste tinham o propósito de amenizar as desigualdades econômicas

e sociais entre as regiões, mas quando as indústrias do Sudeste começaram a reivindicar os

mesmos benefícios, faltou ao governo central uma voz ativa que defendesse o tratamento

diferenciado como forma de resolver distorções históricas. Tratando como iguais os diferentes,

foi um dos tipos de confusão na orientação política que predominava no novo governo

ditatorial. Não havendo um efetivo controle do Estado sobre as formas de emprego

tecnológico, pois a rápida modernização da indústria acentuava ainda mais o problema do

desemprego.

Conclusão do capítulo

Aplicando-se a idéia de figuração proposta por Elias (2006), no primeiro governo

havia uma em torno dos movimentos sociais um conjunto de fatores envolvidos e um grupo de

atores disputando a liderança dos trabalhadores rurais.

Havia a Igreja Católica, com um discurso que condenava o comunismo e toda forma de

fazer política que objetivasse subverter a ordem estabelecida; o Partido Comunista que visava

uma grande aliança entre os trabalhadores rurais, trabalhadores urbanos e setores do

empresariado em prol de um modelo político que se aproximasse do socialismo pensado por

Vladímir Ilitch Uliánov (Lênin), e essa estratégia seria articulada por meio dos sindicatos;

havia também os líderes que se destacavam isoladamente a frente dos movimentos sociais, tais

como Clodomir Morais e Francisco Julião com as Ligas Camponesas e Gregório Bezerra com

o sindicalismo rural; havia os padres Caricio, Melo e Crespo com os sindicatos vinculados à

Igreja Católica; e ainda havia Miguel Arraes, que ocupava uma outra posição, não como

liderança isolada, mas apoiado por toda estrutura estatal na condição de governador; e

observando a tudo e articulando uma outra espécie de mobilização estavam alguns oficiais

22 Montarroyos (1982, p. 133).

25

militares como o general Castelo Branco, que viu “foices e martelos” no comício promovido

por João Goulart no centro da cidade do Rio de Janeiro23, juntamente com algumas pessoas de

setores conservadores da sociedade brasileira que temiam uma “reforma agrária”,

independentemente do que significasse isso, e o comunismo.

Enfim, a disputa pelo controle do movimento social protagonizado pelos trabalhadores

rurais de Pernambuco envolvia pessoas e instituições, divididos quanto ao modo de ação, entre

sindicatos e Ligas Camponesas. Arraes estava do lado do sindicalismo, que ajudara a inserir

no meio rural, em oposição às Ligas de Julião, e divergindo do sindicalismo controlado pela

Igreja Católica e pelo Partido Comunista.

Além disso, a idéia de interdependência proposta por Elias (2001), na qual os

indivíduos não agem exclusivamente motivados por ethos pessoal, pode se adequar ao caso

analisado neste trabalho. A descrição de Arraes como um administrador arrojado e um técnico

competente foi fortalecida por interpretações precipitadas, porém é necessário que se perceba a

construção que resultou na rotulação de político competente, como descrito por Paulo

Cavalcanti (1978), em que a construção de sua candidatura foi fruto de negociações, além das

negociações que foram necessárias para a implantação das políticas públicas com viés social.

Contudo, tais constatações não devem diminuir a figura do individuo envolvido na rede de

relações sociais que lhe deu suporte. Se em determinado momento não houvesse um indivíduo

capaz de concentrar tais características, situado em um contexto social que lhe permitisse

tomar certas decisões, os processos aqui analisados não ocorreriam da forma como se

desenrolaram.

E quanto à Reforma Agrária, que segundo a legislação brasileira: “[...] é o conjunto de

medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime

de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de

produtividade”24 , no primeiro governo Arraes, inicialmente tinha tal conotação, porém em

determinado momento passou a significar um programa de habitação popular que reduzisse os

problemas urbanos da região metropolitana do Recife, como foi o caso de Cajueiro Seco; e por

fim transformou-se na ratificação dos direitos trabalhistas pelo Estado sintetizados no Acordo

do Campo. Com o Estado incorporando as demandas sociais e as transformando em políticas

públicas, o que inevitavelmente levava a uma deturpação dos movimentos sociais.

23 Cf. Parker (1977)24 Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra).

26

Ademais, o processo de sindicalização reforçava o pacto funcional entre os

trabalhadores e a usina, arrefecendo de um lado o ânimo dos trabalhadores em levar a cabo as

reivindicações de uma forma mais truculenta; e de outro, deixava os patrões menos

apreensivos em relação à possibilidade de uma radical alteração nas formas de interação e

reprodução social.

27

Capítulo 2

O segundo governo Arraes (1987-1990)

O governo militar

Antes de se iniciar a descrição do segundo governo Arraes é conveniente retomar

alguns pontos do período que o antecedeu, a fim de não se cometer bruscas mudanças de

rumo. Neste ponto será analisado o primeiro período dos governos militares, que vai do seu

início em 1964 até o final da década de 1970.

Após o processo golpista ser concluído e os militares não terem voltado aos quartéis,

nem tampouco os grupos de esquerda terem se levantado na sua totalidade contra o governo

militar para a tomada do poder25, a chamada elite política brasileira viu seus aliados militares

se posicionarem de forma a não permitir qualquer possibilidade de devolução do poder aos

civis. Em parte, porque os nomes e legendas com maior visibilidade naquele período eram os

de esquerda, além da direita estar desgastada e enfraquecida e sem possuir um projeto político

que criasse algum consenso em torno de si.

As Ligas Camponesas que viam de um processo de enfraquecimento político antes

mesmo do golpe, foram sendo extintas por meio da violenta repressão exercida pelo governo

militar, que forçava seus membros ou se desvincularem delas ou terem sua vidas sob ameaça;

além dos partidos de esquerda que também foram sofrendo pressão semelhante. Em outubro

de 1965 foram extintos todos os partidos políticos e foi instituído o sistema bipartidário no

Brasil, através do Ato Institucional número 2. À direita a Aliança Renovadora Nacional

(ARENA), formada majoritariamente pela UDN e egressos do PSD; e à esquerda o

Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

No entanto, como dito por Palmeira (1979), não se pode dizer que o período militar foi

marcado essencialmente pelo retrocesso nos movimentos sociais. Em tal período, embora este

tenha se caracterizado pela forte repressão, também houve cumprimento da legislação, pois o

sindicalismo continuou a trabalhar dentro de alguns parâmetros traçados antes do golpe. Os

direitos trabalhistas continuaram a ser reivindicados.

O autor faz uma comparação da Zona da Mata pernambucana com o interior de São

Paulo. Enquanto o sindicalismo rural de Pernambuco continuou exercendo pressão política e

agindo em prol do cumprimento da legislação trabalhista, o que fazia aumentar o custo da

28

mão-de-obra e conseqüentemente da mercadoria final; em São Paulo a situação era um pouco

diferente, os custos eram inferiores, em função de um sindicalismo rural menos expressivo do

que o caso pernambucano, além de possuir terras mais planas e uma mecanização mais

acentuada, o que em combinação aumentava expressivamente a produção de cana em

comparação a Pernambuco, e conseqüentemente a lucratividade.

Por outro lado, diante do encarecimento relativo da mão-de-obra, os produtores de

Pernambuco começam a se desfazer das obrigações informais, porém consensuais, que havia

entre patrões e empregados, obrigações tais que de tanto praticadas se materializaram em

“normas sociais” não instituídas mas minimamente regulamentadas; além daquelas formais e

instituídas legalmente. Neste último caso por meio de estratégias que forçavam o trabalhador a

não cumprir com suas obrigações de empregado por ser fisicamente impossível a execução da

atividade ou por demandar excessivo esforço, como por exemplo, estabelecer o prazo de um

dia para a execução de uma tarefa que exigiria um período de tempo superior ao concedido, o

que poderia levar o trabalhador a se irritar e se auto demitir. Uma outra tática usada pelos

patrões era a negociação individual com o intuito de forçar o rompimento de uma coletividade,

o que transformaria as reclamações em problemas individuais, e não mais do grupo (Idem).

Com isso, havia um leve movimento migratório de trabalhadores rurais para as cidades,

e os que permaneciam no campo tinham que se submeter a menores salários e aceitar o seu

recebimento informalmente, isentando o empregador das tributações legais.

Ainda nesse contexto, havia a figura do empreiteiro, que servia de mediador entre

trabalhadores e patrões, e em última instância era ele o empregador, pois era o empreiteiro, na

condição de funcionário da usina, quem se responsabilizava por todos os detalhes relacionados

com a execução do trabalho, inclusive o pagamento dos salários, e sobre cuja folha de

pagamento incidiam todos os encargos tributários, já que recebia dos proprietários o valor

combinado e o repassava aos trabalhadores, sem o registro final destes. E segundo Moacir

Palmeira (Op. Cit.), o empreiteiro foi o responsável pelo afastamento do trabalhador do

sindicato: “além de ser suspeito ao proprietário o trabalhador que freqüentava o sindicato,

havia uma pressão muito grande no sentido dos trabalhadores abdicarem dos seus direitos”.26

A partir da constatação desse problema, os sindicatos passaram a combater o trabalho

via empreiteiro. E o estado que também era burlado por essa modalidade de trabalho, em

25 Com exceção dos movimentos de guerrilha, como a do Araguaia, entre outras, que de um modo geral nãoforam suficientes para provocar grandes estragos ao governo militar.26 Ibidem, p. 46.

29

função da inclusão dos trabalhadores rurais no sistema previdenciário na década de 1970 – na

época Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) - o Ministério do Trabalho passou a

fiscalizar as ações dos empregadores e a aplicar multas quando havia violação da legislação.

Contudo, o trabalho por empreitada continuou existindo e os trabalhadores sendo submetidos a

diversos tipos de estratégia encontradas pelos patrões para driblar a legislação e explora-los

além do trabalho contratado, tais como, instrumentos de medida e balanças fora dos padrões,

além da realização da pesagem da cana colhida depois do horário em que o sol irradia mais

calor, o que provocava a desidratação da cana e conseqüentemente a levava a ter um menor

peso e valor inferior a ser pago; além dos atrasos no pagamento dos salários ordinários e do

décimo terceiro salário (Palmeira, Op. Cit.).

Diante dos problemas anteriormente apontados, dentre outros, e beneficiados pelo

enfraquecimento do governo militar que entrava em decadência, os movimentos sociais da

Zona da Mata começavam uma nova fase. Em parte, esse ocaso do modelo político em vigor

se atribui a problemas econômicos gerados pela chamada “Crise do Petróleo” na década de

1970, juntamente com o endividamento em que o estado brasileiro foi posto pelos governos

militares, em virtude das atraentes taxas de juros no mercado internacional antes da crise, e

com a crise, os juros internacionais aumentaram bruscamente, levando à insustentabilidade da

dívida brasileira com os credores estrangeiros, e posteriormente a decretação da moratória. Em

função dos problemas econômicos e da escassez do petróleo, investiu-se na produção de álcool

para substituir os derivados de petróleo. O governo brasileiro criou o Programa Brasileiro do

Álcool (PROÁLCOOL), o que levou ao crescimento da importância dos usineiros no contexto

econômico brasileiro entre o final da década de 1970 e início dos anos 1980.

Com isso, a partir do final da década de 1970 a Zona da Mata pernambucana passou a

viver um período de sucessivas greves. Essa mobilização era propiciada em parte pelo

aumento da produção de álcool exigida pelo programa e também como resultado da mudança

do modelo político em vigor.

A redemocratização e o segundo governo

O que se convencionou chamar de redemocratização, para a maioria dos autores se

inicia em 1979, quando o presidente militar João Baptista Figueiredo concede anistia política

aos condenados por “crimes políticos” durante o regime militar, embora as mudanças

institucionais tenham começado já no governo de seu antecessor, o também militar Ernesto

30

Geisel, e vai até 1985, quando Tancredo Neves foi eleito presidente ainda pelo modo indireto,

tendo como Vice-presidente José Sarney.

Para Lygia Sigaud (1986), houve no período compreendido entre 1979 e 1985 um

reordenamento dos laços sociais entre os trabalhadores, em oposição ao período anterior,

quando os trabalhadores foram submetidos a coações pelos patrões para negociarem

individualmente em detrimento da coletividade. E em função disso, as reivindicações foram

mais bem articuladas e os movimentos grevistas foram bem sucedidos. A autora ainda enfatiza

que não houve qualquer relação entre os movimentos grevistas por ela estudados e os demais

eventos produzidos pelos operários urbanos na mesma época.

Além disso, a partir da análise de Sigaud, os resultados dessa movimentação não foram

contabilizados pelo aspecto trabalhista apenas, este até pouco se sobressaiu em relação ao

aspecto social. Ou seja, o movimento grevista na Zona da Mata pernambucana passou a

exercer uma outra função social, além daquela referente às relações trabalhistas, pois desde o

momento que antecedia a greve havia uma intensa movimentação de pessoas na expectativa

dos eventos que ocorreriam em uma ordem sucessiva, das negociações, passando pelo do ápice

de toda aquela mobilização, até a declaração da greve propriamente dita (Sigaud, 1986).

Na composição desses movimentos, os trabalhadores formais, chamados de fichados,

eram maioria, mas também havia uma presença significativa dos clandestinos, aqueles que não

possuíam vínculos formais com as usinas às quais prestavam serviço, além de pequenos

proprietários locais. As entidades sindicais, como Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR),

Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (FETAPE), e

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), eram as responsáveis

por liderar as greves (Idem).

Ainda, segundo a análise da autora, o fato de ter ocorrido ou não as greves não tem

importância para o que se quer observar – a mobilização social em torno de uma causa

comum. De fato só ocorreram duas greves devidamente formalizadas em 1979 e 1980, nos

anos subseqüentes – 1981, 1982, 1983, 1984 – não ocorreu greve propriamente dita, em

função de decisões judiciais, mas houve toda a mobilização de construção da mesma. E em

1985 não ocorreu porque se conseguiu um acordo no último dia de negociações, mas nesse

caso pode ter havido um interesse fora do contexto das relações trabalhistas e dos pressupostos

econômicos, pois muitos desses proprietários de engenho sairiam candidatos ao legislativo nas

31

eleições do ano seguinte. Enfim, os aspectos sociais que ocorriam em torno da greve tinham

um peso significativo e não apenas as questões trabalhistas.

A preparação da greve envolvia uma grande massa de trabalhadores, não só os

formalmente empregados, mas também outros sem vínculos formais com as usinas, incluindo

os sazonais. Esses processos, minuciosamente descritos por Sigaud (Idem), eram coordenados

e conduzidos pelas entidades sindicais, o que lhes dava um revestimento de legalidade, pois

além de serem organizados por instituições formais, também seguiam os pressupostos

jurídicos. E como dito anteriormente, toda essa construção da greve era um importante

momento para a coletividade e quando se demonstravam as identidades, tanto individuais,

quanto coletivas.

A partir da participação em tais processos, o indivíduo se sentia pertencente a um

conjunto que transcendia a esfera familiar e o restrito circulo do ambiente de trabalho, ao

mesmo tempo em que se inseria individualmente, com características próprias. Nesse duplo

movimento em que o indivíduo, ora é mais peculiar, ora é mais coletivo, tal qual o modelo

teórico de Elias (1994) supõe, substituindo, assim, os modelos sociológicos clássicos que

colocavam indivíduo e sociedade em posições distintas, a autora cita que eram mais do que

simples eventos trabalhistas, as pessoas se vestiam como se fossem a uma festa, levavam a

família, e enquanto discutiam as metas do processo grevista para o benefício coletivo se

afirmavam como indivíduos.

Por outro lado, de acordo com Sigaud (Op. Cit.), as perdas envolvidas nessa questão,

para os patrões, não eram apenas de ordem econômica, mas também políticas, e de certa

forma moral. Por isso, conter a greve antes que ela ganhasse força seria uma decisão que

interessaria mais aos proprietários do que aos empregados:

Os prejuízos, no entanto, não são apenas econômicos; há também prejuízos políticos:para os patrões, na medida em que o momento da greve é o momento em que asatenções da imprensa se voltam para o engenho e os aspectos mais dramáticos dascondições de vida dos trabalhadores são revelados à sociedade, e para o Estado, poisque um confronto envolvendo 240 mil trabalhadores, de um lado, e milícias privadasdo outro, representa um ameaça à ‘ordem pública’ e traz em si a possibilidade deintervenção da forças repressivas, com sérios danos para a imagem do governo.27

A própria legislação que regulamentava a greve, composta por um excessivo número

de exigências para esta ser declarada, que em princípio serviria de empecilhos para a

mobilização dos trabalhadores, funcionou em um segundo momento como propulsora da

27 Sigaud (1986, p. 325), grifo da autora.

32

afirmação de uma identidade coletiva dos trabalhadores dos engenhos de açúcar (Idem). Dessa

forma, percebemos que não há meios eficazes de conter uma onda de mobilização social na

qual se demandam modificações necessárias ao sistema social. As próprias exigências, tais

como a necessidade de um quorum mínimo para votação e do voto secreto, que em tese seriam

fatores negativos, ao contrário, serviam para estimular o contato social e para expressão das

identidades individuais em meio à coletividade.

Nessa mobilização coletiva também estava implícita uma idéia que aludia ao período

vivido pelos trabalhadores rurais de Pernambuco na década de 1960, quando Arraes era o

governador, e foi dada grande atenção aos direitos trabalhistas. De certa forma, a campanha de

Arraes para o governo estadual em 1986 também explorou, por meio dos sindicatos que o

apoiavam, essa luta pelos direitos trabalhistas como uma das virtudes de Arraes para se tornar

o preferido do eleitorado.

No trabalho de Rosa (2004, p. 37) há uma referência a Romeu da Fonte, que foi

assessor jurídico da FETAPE, deputado estadual, secretário do segundo governo Arraes, e

atualmente exerce função no Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE). Fonte é um exemplo da

estreita ligação entre Arraes e aquela federação. Após a eleição, ele assumiu o cargo de

secretário de trabalho e serviu como mediador entre o governo e as reivindicações trabalhistas.

Segundo Palmeira (1998), durante o período militar, foram eleitas pessoas ligadas à

hierarquia das usinas para as câmaras de vereadores, que solicitavam o apoio dos sindicatos de

trabalhadores rurais, porém os sindicatos não as apoiavam. Os membros dos sindicatos

preferiam, em geral, assumir uma postura de não participação do processo político. Porém essa

postura começou a mudar com o lançamento da candidatura de Arraes para a Câmara Federal

em 1982, já que ele continuava sendo uma referência para os trabalhadores rurais.

Para a disputa do governo estadual Arraes contou o apoio do ex-padre Pedro Mansueto

de Lavor Nascimento que disputava uma vaga para o Senado, a quem se atribui trabalhos

sociais realizados no sertão pernambucano na época de padre, que dava a Arraes a

oportunidade de conquistar os eleitores sertanejos (Miranda, 1991). O partido era o PMDB,

oriundo do sistema bipartidário implantado no Brasil em 1965 pelo governo militar ao qual se

atribuiu a palavra “Partido”, para cumprir exigências da legislação, mas manteve-se a mesma

denominação anterior.

Já em 1982, após o retorno do exílio em 1979, Arraes foi eleito deputado federal pelo

estado de Pernambuco com grande apoio popular. E em 1986, elegeu-se governador com uma

33

expressiva votação. “Voltando pela porta que saiu” ao Palácio do Campo das Princesas com

grande apoio dos sindicatos rurais. Agora teria pela frente muitos desafios. Precisava atender,

pelo menos em parte, às expectativas populares que se criaram em torno de sua volta, e para

tal criou alguns programas sociais; investiu esforços em um grande programa de eletrificação

rural, segundo Edson Miranda (Op. Cit., p. 93): “mais de vinte e duas mil ligações foram

realizadas em três anos de governo, superando a marca da companhia de eletrificação em toda

sua existência”; incentivou a agricultura familiar com créditos do banco estadual (Banco do

Estado de Pernambuco – BANDEPE) e do Banco do Brasil; mobilizou esforços em torno de

um programa de financiamento de material de construção; e se empenhou em um programa de

incentivo ao produtor agrícola para este comercializar sua própria produção (Miranda, 1991).

Durante o segundo governo, ainda ocorreram dois processos de Reforma Agrária,

decorrentes de ação protagonizada pela Comissão Pastoral da Terra, envolvendo o antigo

Engenho Pitanga na cidade de Abreu e Lima, que não tiveram a participação de Arraes.

Denominados de Pitanga I e Pitanga II, o primeiro em 1986 e o segundo em 1987 (Wanderley,

2003).

Ainda nesse período começava a chegar a Pernambuco um novo movimento social de

origem rural, surgido no sul do país - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Empolgado pelo histórico da Zona da Mata pernambucana, tal movimento pretendia trabalhar

em prol de uma Reforma Agrária na região. Porém essa entrada, como descrita por Rosa

(2004), não foi tão simples como se imaginou: a tradicional relação de Arraes com os

movimentos sociais pressupunha a mediação das entidades sindicais no diálogo deles com o

Estado. E o MST não contabilizou em sua estratégia esse custo, e o resultado foi frustrante.

Os programas sociais do segundo governo Arraes

No período entre maio e agosto quando a produção de cana-de-açúcar é interrompida, a

entressafra, e os trabalhadores em geral precisavam recorrer a empregos alternativos para

sobreviver. O programa Chapéu de Palha foi criado para preencher esse período de

esfriamento da microeconomia e de desajuste social, quando muitas pessoas precisam se

deslocar para áreas urbanas para encontrar trabalho.

Os Programas Vaca Leiteira e Boi na Corda promoviam financiamento de gado leiteiro

e de abate para os pequenos pecuaristas. Fazendo distinção quanto ao sexo do animal para um

melhor aproveitamento do retorno financeiro da atividade econômica.

34

O programa de eletrificação rural promovido no segundo governo, de acordo com

Miranda (Op. Cit.), teve a maior marca da história da Companhia de Eletrificação de

Pernambuco (CELPE). E quanto às desapropriações, foi criado o Programa de

Desapropriações Seletivas para, dentro dos parâmetros estabelecidos para os governos

estaduais e municipais, promover um programa de Reforma Agrária, pois esta como definida

em legislação é prerrogativa exclusiva do governo federal. A partir da alegação de “interesse

público”, previsto em legislação, eram desapropriadas áreas, descobertas pelo Grupo de Ação

Municipal próximas ao perímetro urbano, que por se localizarem próximas às áreas urbanas

não demandariam grandes investimentos em infraestrutura e ficaria mais fácil de justificar a

alegação citada (Idem).

Além dos programas citados foram implantados outros, tais como: Programa de

Revitalização Econômica dos Núcleos Urbanos da Zona da Mata, Programa de

Democratização dos Serviços Sociais Básicos da Zona da Mata, Programa de Integração

Econômica e Social de Comunidades da Mata e do Agreste, Programa Mata Livre. E como se

pode observar pela denominação, havia uma preocupação maior com a Zona da Mata, além de

uma tentativa de conciliar assistência social com desenvolvimento econômico.

Uma nova dinâmica social

Em um episódio ocorrido na cidade do Cabo de Santo Agostinho em 1989, quando o

MST promoveu a invasão de um antigo engenho desapropriado pelo governo do estado para a

construção de um complexo portuário, que serviria para ampliar a capacidade operativa do

porto de Suape, Arraes se negou a dialogar com o MST, alegando que não negociaria com

grupos isolados, apenas com o sindicato ou com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura

de Pernambuco – FETAPE (Rosa, 2004).

Esse episódio ficou marcado para o MST por ter superestimado as condições para a

inserção em Pernambuco, pois não houve negociação prévia com os movimentos locais, nem o

conhecimento das condições pernambucanas (Rosa, 2004). E ainda, segundo o autor, esse

evento serviu também para reforçar ainda mais os laços do governador com a FETAPE, pois,

naquele momento a FETAPE ainda era o elo entre Arraes e os movimentos sociais do campo.

35

Conclusão do Capítulo

Assim, como adverte Palmeira (1979), em função de mudanças na estratégia de

reclamação dos direitos trabalhistas pelos interessados, além da pouco interesse que o

problema do trabalhador rural despertou após a efetivação do regime militar, as interpretações

precipitadas descartariam a existência de luta entre 1964 e 1979. No entanto, se os problemas

continuaram existindo a luta pelo reconhecimento dos direitos trabalhistas também

permaneceu, o que mudou foram as formas de articulação entre as pessoas e as entidades

representativas, de modo a encontrar alternativas viáveis para a efetivação das reivindicações.

A mudança no regime político, no máximo induziu a uma mudança de postura e a

elaboração de novas estratégias. Contudo, não resolveu os problemas sociais a que estavam

submetidos os trabalhadores.

Neste segundo governo, Arraes manteve sua proposta em relação ao campo restrita aos

programas sociais de desenvolvimento da agricultura familiar, além daqueles de subsídio para

os pequenos pecuaristas e para os canavieiros no período de entressafra, e um amplo programa

de eletrificação rural. No sentido agrário propriamente dito, criou um serviço para fazer

desapropriações previstas nas prerrogativas do governo estadual, nas quais o mesmo pode

efetuar desapropriações por “interesse público”, contudo, mais uma vez se manteve distante de

uma Reforma Agrária, tal como definida pela legislação e como pensada por ele. O que

ocorreu de mais significativo, do ponto de vista da Reforma Agrária, foi conduzido pela CPT

sem a participação de Arraes.

E de acordo com a leitura que fiz do trabalho de Aurenéa Oliveira (Op. Cit.), a partir de

suas entrevistas, havia entre os trabalhadores rurais uma memória que aludia às conquistas

trabalhistas da década de 1960. A referência ao reconhecimento dos direitos do trabalhador

ainda era a característica mais marcante que se atribuía a Miguel Arraes. Ademais, sua

tradicional postura de interlocutor entre proprietários de usina e trabalhadores era também uma

das expectativas que se tinha a seu respeito. Postura esta que lhe dava autonomia tanto para

exigir o cumprimento da legislação trabalhista pelos patrões, quanto para reivindicar junto ao

governo federal apoio à produção sucro-alcooleira.

E quanto à forma de interação com outros atores sociais, o sindicalismo continuou a ser

seu instrumento de mobilização social e seu principal divulgador e colaborador na implantação

e estudo dos programas sociais. No momento do segundo governo, a figuração que se formou

tinha a FETAPE e os sindicatos de trabalhadores rurais como principais suportes do governo

36

em relação aos movimentos sociais; havia a contestação do relacionamento daquela federação

com o Estado exercida pela Central Única dos Trabalhadores (CUT); o MST já começava a

surgir em Pernambuco; existiam ainda, os movimentos sociais surgidos da relação de

membros Igreja Católica com os grupos de esquerda, a partir dos encontros promovidos por

aqueles grupos no interior das igrejas como estratégia para fugir da repressão do regime

militar, como a Comissão Pastoral da Terra; dentre outros atores.

A forma como Arraes se relacionou com os movimentos sociais no primeiro governo já

começava a sofrer alterações. As Ligas Camponesas de Francisco Julião já não mais existiam.

A inserção do MST no contexto pernambucano, juntamente com a crise dos sindicatos que

causou o esvaziamento da representação exercida pela FETAPE e pelos sindicatos de

trabalhadores rurais, traria profundas mudanças nessa relação. Problemas tais, que serão

tratados no próximo capítulo.

Segundo algumas análises, esse segundo governo ficou marcado pela grande

expectativa criada seguida de frustração. Porém a memória relacionada com os direitos

trabalhistas ainda era a principal ligação de Arraes com os movimentos sociais.

37

Capítulo 3

O terceiro governo Arraes (1995-1998)

Um novo momento

Após a administração de Joaquim Francisco de Freitas Cavalcanti do PFL, Miguel

Arraes, agora pelo PSB, assumiu novamente o governo do estado. A sua relação com o

sindicalismo sempre foi de muita proximidade, era uma via de mão dupla, ou seja, a

implantação do sindicalismo rural em Pernambuco teve fundamental participação sua em seu

primeiro governo, da mesma forma que foi através da institucionalização dos movimentos

sociais, via sindicatos, que ele obteve maior força política e uma maior legitimidade como

“representante do povo”. Ambos se ampararam mutuamente - Arraes e os sindicatos. Do seu

ponto de vista, todo movimento social que desejasse ter êxito em Pernambuco deveria passar

pela sua aprovação.

Em seu último governo (1995-1998), Arraes, que anteriormente havia se negado a

negociar com o MST, em 1997 na disputa pela reeleição fez questão de aparecer publicamente

em um evento do MST. Logo, se houve uma mudança de discurso e de comportamento esta

não foi gratuita, ou por uma simples mudança de opinião a respeito daquele movimento.

Arraes percebeu que mudanças ocorreram, ou seja, ele já não dispunha mais da força política

que lhe permitira em outrora o controle sobre os movimentos sociais, a figuração mudara. A

sua simpatia pelo MST era conseqüência da nova interação entre os atores, a FETAPE e os

sindicatos de trabalhadores rurais foram se aproximando do MST e gradativamente foram

assimilando sua forma de ação.

Essa ligação nem sempre se deu por afinidades ideológicas, em alguns momentos ela

ocorreu para atender a alianças político-partidárias, como no caso de Rio Formoso quando um

sindicalista pretendia se candidatar a prefeito e procurava aliados e por isso encontrou naquele

movimento uma boa oportunidade para fazer tal aliança (Rosa, 2004, p. 80-81).

Enfim, pelas diversas circunstâncias as entidades sindicais foram se aproximando do

MST. E não necessariamente para atender às necessidades acima citadas, essa foi uma das

razões, porém se as relações com Arraes não estivessem estremecidas não haveria

possibilidade de tais acordos. A nova dinâmica social do estado propiciava novas interações e

novos arranjos que atendessem aos anseios dos trabalhadores, a idéia de Reforma Agrária

como uma disputa pela propriedade da terra começava a se mostrar como um caminho viável.

38

A Usina Catende

No terceiro governo Arraes, um dos seus principais empreendimentos foi o diálogo

criado em torno das questões trabalhistas e da continuação da produção a Usina Catende. Esta

usina, como citado na introdução já teve a maior produção da América Latina, mas naquele

momento estava passando por uma séria crise. A paralisação da produção da Usina significaria

um grande problema para a população local que, direta ou indiretamente, dependiam da

produção daquela usina. Antes de se iniciar a descrição do problema será feita uma breve

introdução sobre a história da usina, da fundação até o momento mais recente.

No momento em que o Brasil perdia o monopólio da produção açucareira, surgiu em

1892 a usina Catende, localizada ao sul da Zona da Mata pernambucana e construída no antigo

engenho Milagre da Conceição, na cidade cujo nome lhe herdou, por ter surgido em seu

entorno, por isso a importância da usina para a população local: a cidade se formou em função

daquela usina, a economia local é visceralmente dependente da produção da usina.

Com um patrimônio que se estende por outros quatro municípios da região – Água

Preta, Xexéu, Jaqueira, e Palmares, além da parte industrial que se situa em Catende. Essa

usina estava relacionada com uma pequena modernização tecnológica pela qual passaram as

empresas produtoras de açúcar de Pernambuco. Até que em 1929, com a crise mundial

provocada pela bolsa de valores de Nova Iorque, o governo brasileiro criou o Instituto do

açúcar e do álcool – IAA, cuja função era formular políticas públicas voltadas para as diversas

fases da produção e comercialização dos derivados da cana-de-açúcar. O IAA atuou nessa

regulamentação até ser extinto em 1990, no governo de Fernando Collor de Mello.

A intervenção estatal sustentou a economia local por longo tempo. Posteriormente

ainda foi lançado o PROÁLCOOL, visando a redução no consumo de derivados do petróleo e

a busca de novas fontes energéticas. E em função de alguns problemas apontados por

Francisco de Oliveira (Op. Cit.), tal como: o relativo atraso tecnológico da indústria sucro-

alcooleira nordestina em relação à paulista, a região Nordeste foi perdendo a posição de

liderança para São Paulo.

Com terras planas e que não sofreram os mesmos efeitos degradantes da agricultura

predatória, em comparação com o Nordeste, e com maior investimento em maquinaria e em

pesquisa, São Paulo passou a ter uma produtividade muito superior de açúcar e do álcool em

comparação a Pernambuco e Alagoas. A perda de competitividade econômica foi levando a

39

usina Catende a acumular dívidas com seus credores, sendo o principal o Banco do Brasil, e

com o Estado, até tornar-se ineficiente do ponto de vista econômico.

A história de todo o processo envolvendo a Usina Catende - desde a redução da

produção e demissão em massa de funcionários, até a disputa judicial que transferiu a

administração da usina para os funcionários e criação do projeto Harmonia-Catende - é

relatada com maiores detalhes no trabalho de Fernando Kleiman (2006). Segundo o autor, no

ano de 1993 foram demitidos 2.300 trabalhadores que, posteriormente, passaram a reivindicar,

com o suporte do sindicato, os valores indenizatórios atinentes à demissão. E no réveillon

referente à passagem de 1994 para 1995, quando os trabalhadores já estavam sem receber

pagamento, sob alegação dos patrões de falta de recursos, na capa do Diário de Pernambuco

foi estampada reportagem de uma grande festa promovida por alguns usineiros, inclusive

proprietários da Usina Catende. Com isso, foi deflagrada uma greve, onde participaram os

trabalhadores demitidos e os ainda empregados na usina, durante 19 dias.

Assim, a partir desses eventos, deu-se início ao processo de pedido de falência feito

tanto por trabalhadores quanto pelos proprietários e pela disputa pelo controle da “massa

falida”. Nesse período, o governador do estado era novamente Miguel Arraes, que segundo

Kleiman (Op. Cit.), foi essencial para que as decisões judiciais fossem favoráveis aos

funcionários, pois com a sua participação nas negociações, estas passavam a ter uma garantia a

mais e um respaldo de peso, o governo estadual. Havia muitas partes envolvidas no litígio,

dentre as quais o Banco do Brasil e o próprio governo estadual, e para que a justiça desse um

parecer favorável aos funcionários seria necessária alguma garantia formal de cumprimento

das etapas necessárias, e Arraes estava disposto a auxiliar (Idem).

Por um lado, a decisão do governador visava o recebimento das dívidas da usina com a

Fazenda estadual, entretanto, não se pode simplificar todo o esforço a apenas esse aspecto,

pois o seu sucessor, Jarbas Vasconcelos, ao assumir em 1999 a administração do estado,

enviou à Assembléia Legislativa um pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito

(CPI) para apurar as possíveis irregularidade cometidas pelo antecessor referentes à Usina

Catende, porém a conclusão da CPI não encontrou qualquer anormalidade. As principais

preocupações do governador eram em relação às conseqüências sociais do fechamento da

empresa e ao desequilibro econômico que sofreria a região.

Além disso, o apoio de Arraes não se restringiu aos aspectos burocráticos, mas também

à assistência alimentícia, através da distribuição de cestas básicas; do investimento de recursos

40

do Fundo de Amparo ao Trabalhador na capacitação dos funcionários da usina; além de outros

tipos de apoio. No entanto, também não se pode atribuir todo o crédito a Arraes pela bem

sucedida ação dos trabalhadores, houve de fato uma complementaridade do governador, que se

não tivesse encontrado condições propícias para a intervenção no processo de falência de

Usina Catende, este teria ocorrido como milhares de outros casos que ocorrem anualmente no

Brasil (Idem).

Apesar de inovadora do ponto de vista econômico, aquele empreendimento não é uma

unanimidade entre os trabalhadores. Os movimentos que reivindicam Reforma Agrária o vêem

como anacrônico, do ponto de vista social, e como a perpetuação de práticas combatidas, já

que a produção da cana-de-açúcar permaneceu:Em declaração publica [em 1998], o MST aponta a sobrevivência de Catende comosímbolo da manutenção de um modelo histórico, oriundo da colônia, de exploração dotrabalhador, que é a produção agro-exportadora do latifúndio canavieiro. [...] Esta éuma visão da historia de Catende que não coincide com a dos trabalhadoresentrevistados do Projeto, que apresentam a recuperação da Usina e a organizaçãocoletiva da exploração de suas terras como uma solução de emancipação e nãomantenedora das relações de exploração passadas28.

Desse modo, fica explícita a rivalidade entre as “velhas” e as “novas” formas de ação e

reprodução social. É interessante notar que em tal protesto, sob o comando do MST,

participaram inclusive trabalhadores ligados à Usina Catende, que em tese teriam interesse na

manutenção do patrimônio em mãos de trabalhadores. Ou seja, diferentemente do que possa

parecer, não se tem, e talvez esteja distante de se criar, algum consenso em torno do projeto

Harmonia-Catende, em função da heterogeneidade presente na sua composição.

O MST tem em seu discurso a inovação das relações de trabalho, enquanto alguns

trabalhadores locais ainda mantêm fortemente enraizada no imaginário uma idéia de uso da

terra sem necessariamente se ter a propriedade da mesma. E em meio a essa discussão se deu a

retomada da produção da usina.

O ocaso do “Pai Arraia”

Passada a expectativa inicial provocada pelo segundo governo, a volta do homem que

dera há três décadas atrás ao trabalhador rural novas perspectivas sociais já tinha significados

bastante diferentes. “Voltar pela porta que saiu” ao Palácio do Campo das Princesas, deixando

de lado toda a carga emocional e simbólica, tinha naquele momento uma nova interpretação.

28 Kleiman (2006, p. 83)

41

Há um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)29 que aponta uma

possível dificuldade para a implantação de políticas públicas do modo como Arraes concebia o

Estado. Entre as décadas de 1980 e 1990 o estado de Pernambuco, apresentou crescimento

abaixo da média nacional e da média nordestina, constituindo o que os pesquisadores José

Vasconcelos e José Vergolino chamaram de “descentralização da economia do Nordeste”. O

Produto Interno Bruto (PIB) pernambucano, segundo os autores, no período de 1986 a 1995,

foi inferior ao de outros estados, considerados de menor expressão econômica, e embora o

setor agrícola tenha apresentado resultados positivos, o manufatureiro apresentou crescimento

negativo, o que acabou por definir o resultado final da equação econômica, já que

tradicionalmente o setor manufatureiro é o grande responsável pela condução da economia.

Além disso, o mesmo estudo aponta a perda da capacidade do Estado atuar como promotor do

desenvolvimento econômico.

Segundo Barroso Filho (1999), na década de 1990 Arraes já não era benquisto pelos

movimentos sociais: “Los líderes de los movimientos sociales consideran al gobernador como

enemigo de la reforma agraria aunque sea considerado hombre de izquierdas e oponga a la

política neoliberal del gobierno federal”30. Porém essa informação não se aplica a todos os

casos, pois os Sindicatos de Trabalhadores Rurais continuavam a tê-lo como um de seus

ícones. Em princípio, a opinião do autor aponta para um enfraquecimento do apoio de outrora,

em relação aos movimentos urbanos.

Além disso, a imagem de administrador público competente ficou abalada com o

chamado “Escândalo dos Precatórios”. Juntamente com o seu secretário de Fazenda, o seu

neto Eduardo Henrique Accioly Campos31, em 1997 Arraes foi denunciado pelo Ministério

Público Federal por emissão fraudulenta de títulos públicos para pagamento de precatórios32,

foi inclusive criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a ação de

vários governos estaduais envolvidos nas denúncias. E só em 2003 o Supremo Tribunal

Federal rejeitou tais denúncias.

29 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Vasconcelos, José Romeu de; Vergolino, José Raimundo.Texto para discussão número 628. Pernambuco: Economia, Finanças Públicas e Investimentos nos anos de 1985a 1996. Brasília, fevereiro de 1999.30 Barroso Filho (1999, p. 182).31 Eduardo Campos foi Ministro da Ciência e Tecnologia no primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva. Em2005 foi eleito presidente do PSB, cargo que já fora ocupado por seu avô, e atualmente é o Governador eleito doestado de Pernambuco para o exercício 2007-2010.32 Precatórios são ordens de pagamento provenientes de sentenças judiciais, geradas a partir de títulos de origempública não honrados por governo Federal, Estadual, Distrital ou Municipal no prazo devido.

42

Por outro lado, a década de 1990 no Brasil ficou marcada pelo controle da inflação

monetária que vinha se acentuando desde a década anterior. Com a implantação do Plano Real

em 1994 no governo Itamar Franco, do qual fez parte Fernando Henrique Cardoso, que mais

tarde seria lançado candidato a presidência da república, e beneficiado pelo controle da

inflação monetária, Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente, ao mesmo tempo em que

Arraes foi eleito governador de Pernambuco pela terceira vez.

No governo Fernando Henrique Cardoso a política econômica foi marcada

principalmente pela redução dos gastos do Estado; pelo controle da inflação monetária, com

aumento das taxas de juros ao consumidor e flexibilização de tarifas alfandegárias, dentre

outras medidas; e pelo controle cambial que mantinha a moeda brasileira valorizada em

relação ao Dólar. Com isso, em um primeiro momento houve uma significativa redução dos

preços de produtos eletrônicos e bens de consumo de uma maneira geral, provocados pela

entrada de produtos importados, com o crédito ao consumidor sendo expandido. E de uma

maneira geral o consumo foi incentivado e a popularidade do governo federal se manteve alta.

Porém, em relação aos gastos estatais houve uma certa insatisfação dos grupos de

esquerda com o governo federal. O próprio Miguel Arraes fez muitas críticas públicas ao

governo Fernando Henrique pela redução dos gastos sociais provocada pela política

econômica de contenção. Também se dizia preterido pelo Presidente da República Na

campanha pela reeleição em 199833 Arraes se referia ao governo federal com certo desdém:

“Eu não gostaria de ser governador de um estado que se curvasse [ao governo federal]”34 .

Ademais, o principal adversário de Arraes na disputa, o candidato do PMDB Jarbas

Vasconcelos, estava apoiando a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Uma das promessas

de campanha de Vasconcelos foi a duplicação de uma rodovia federal. A BR-232 corta

Pernambuco da Zona da Mata ao sertão, esta rodovia representa a principal via de acesso para

o turismo fora da capital: na Semana Santa há um grande fluxo de veículos que sai do litoral

em direção ao Agreste para a cidade de Brejo da Madre de Deus onde acontece o espetáculo

da Paixão de Cristo; e no mês de junho também há uma intensa movimentação em direção a

Caruaru para as festas juninas. Dessa forma, Jarbas apontava na direção de uma sintonia com o

governo federal, enquanto Arraes dava indício de que se reeleito juntamente com Fernando

Henrique Cardoso levaria adiante as divergências entre ambos.

33 Os discursos estão disponíveis em: < http://www.pe-az.com.br/politica/historia_campanha_arraes.htm.34 Discurso proferido em 01 de 1998 em Santa cruz da Baixa Verde no sertão pernambucano.

43

Mas o que de mais significativo houve, talvez tenha sido o afastamento das entidades

sindicais de Arraes, como estratégia de sobrevivência para elas. A composição há tempos

estabelecida entre Miguel Arraes e os sindicatos de trabalhadores rurais e FETAPE; que tinha

na oposição o MST-PE35, com Bruno Maranhão e o Partido dos Trabalhadores, e a simpatia da

CUT em oposição à FETAPE; ao ser alterada a figuração em torno desses atores, Arraes ficou

desprotegido e mais vulnerável do que jamais estivera antes. Gradativamente, em alguns

momentos para atender alianças político-partidárias, os antigos aliados foram se distanciando

de Arraes.

Esse afastamento das entidades sindicais, de alguma forma, estava relacionado com a

chamada “crise dos sindicatos” ocorrida na década de 1990, quando os sindicatos perderam

grande parte dos seus associados, devido ao crescimento da informalidade no campo do

trabalho. Com isso, aquelas entidades passaram a ficar sem representatividade e sofreram um

esvaziamento de significado e uma crise de identidade. E com o crescimento do movimento

desencadeado pelo MST, viram a possibilidade de uma rearticulação com os movimentos

sociais:

Até a década de 80, reforma agrária significava, para o sindicalismo pernambucano, namaioria dos casos, o apoio dos sindicatos a trabalhadores rurais e posseiros queestavam sendo expulsos das terras que cultivavam. A partir da década seguinte, o quese viu foram os sindicatos da região se organizando para exigir, por meio deocupações e acampamentos, o acesso à terra para todos os trabalhadores rurais queassim o desejassem36.

Assim, houve um reordenamento de forças, em prol de uma maior representatividade

das entidades sindicais.

E em relação à Reforma Agrária, em 1997 houve uma intenção do governo federal em

descentraliza-la, atribuindo aos estados e municípios a responsabilidade sobre esse assunto.

Em Pernambuco foi criada a Comissão Estadual de Reforma Agrária (CERA), cujo objetivo

era estabelecer metas e diretrizes para a efetivação de uma Reforma Agrária promovida em

escala local e não federal. Porém tal tentativa acabou não se concretizando e as ações

acabaram ficando apenas no campo do planejamento (Idem).

35 O Movimento Sem Terra de Pernambuco (MST-PE) teve origem em 1984 no congresso de fundação do MST,no Paraná. Uma facção do Partido dos Trabalhadores liderada por Bruno Maranhão organizou uma representaçãopernambucana para participar do evento. E após a fundação do MST, esse grupo preferiu manter-se independentepor divergências com o grupo do sul do país. Posteriormente este grupo passou a se chamar Movimento deLibertação dos Sem Terra (MLST).36 Rosa (2004, p. 74). Os grifos são do autor.

44

Conclusão do capítulo

No momento em que Arraes tentava a reeleição e o Brasil colhia os frutos de uma

estabilidade monetária, que há duas décadas era tentada sem sucessos, além de uma forte

expansão do consumo e da oferta de crédito que fortaleciam a imagem do governo Fernando

Henrique Cardoso, no plano federal, ante a população brasileira mais pobre. A divergência de

Arraes com o governo federal poderia trazer algum dano ao estado, talvez seja essa uma das

interpretações possíveis para a explicação da perda da tentativa de reeleição, no entanto, tal

suposição carece de elementos para se sustentar, e principalmente de pesquisa.

Por outro lado, o sindicalismo que lhe dava o suporte político passava por período de

desprestígio, em parte pelo crescimento da informalidade das atividades trabalhistas, o que o

deixava sem um caráter representativo; juntamente com o próprio clássico modo sindical de

agir, que passava uma imagem de anacronismo através de seu discurso, cuja referência se fazia

ao Welfare State que, pelo discurso econômico, era tido como responsável por um gasto

exagerado do Estado; além de aludir a um socialismo leninista que já havia entrado em

descrédito, após a fragmentação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Dessa forma, Arraes foi ficando cada vez mais isolado. O seu modo de conceber o

Estado também já era tido como arcaico e defasado historicamente. No momento em que, na

esfera global, o discurso político apelava para um “Estado mínimo”, ou seja, a redução da

participação estatal na regulamentação econômica. Deveria o Estado, segundo tal concepção,

deixar a mão invisível do mercado, segundo o modelo de Adam Smith, reger as relações

comerciais para que todos usufruíssem dos supostos benefícios do livre mercado. Naquele

momento, Arraes seria um dinossauro político, prestes a ser extinto pelas “leis espontâneas”

da política.

Entretanto, não causaria surpresa alguma se no momento atual o ex-governador, se

ainda vivo, conseguisse se eleger com outra expressiva votação, após passada a euforia em

torno do modelo econômico da era Fernando Henrique Cardoso. Por isso, se torna tão perigosa

a análise que o tem como um mito, pois conceber a idéia de mítica em um plano fora do

mundo concreto é algo completamente diferente de faze-lo em relação a um ser humano, que

está vulnerável a todo tipo de pressão e coação social.

Preferi seguir o caminho teórico que considera as interações sociais como estratégia de

análise a reproduzir certas concepções que se formaram em torno da figura de Arraes que o

consideram apenas pelo aspecto mítico.

45

Neste último governo, a figuração na qual esteve inserido o deixou mais vulnerável do

que nunca, do ponto de vista político. A entrada do MST e a inserção de um novo método de

ação na reivindicação pela Reforma Agrária, além de uma mudança no objeto idealizado pelos

trabalhadores rurais, alteraram completamente a rede de interdependência.

De acordo com o trabalho de Rosa (2004), se em um primeiro momento a presença do

MST naquele estado foi vista como um problema de desemprego, e por isso se quis inseri-los

no Programa Chapéu de Palha; no segundo momento, no terceiro governo, a luta pela terra,

que era uma novidade, significou a possibilidade das entidades sindicais que tradicionalmente

o apoiavam se redescobrirem ante o vazio de significado em que se encontravam.

A propriedade da terra que não era uma meta antiga, e continua assim para muitos,

passou a ser tema de interesse do sindicalismo rural pernambucano. As ocupações e a

aproximação de uma idéia de Reforma Agrária, tal como concebida inicialmente, significou o

reencontro daquelas organizações com as aspirações dos trabalhadores rurais, que naquele

momento estavam em grande número na informalidade, em função da anteriormente citada

crise pela qual passavam os sindicatos na década de 1990. Dessa forma, Arraes ficou isolado e

sem força para articular sua reeleição.

46

Conclusão

As pessoas tomam as decisões em meio a incertezas e possibilidades remotas. Porém,

tais decisões se analisadas a uma distância atemporal e fora das condições práticas em que

foram tomadas, podem nos conduzir a leituras equivocadas da realidade, as quais tenderão a

atribuir uma “racionalidade” e uma coerência que não lhes são próprias.

O pressuposto de que “desde sempre” as decisões foram tomadas com vista a um

objetivo que também desde o princípio fora concebido e delineado tal qual o desfecho final,

pode dar consistência à reconstituição de uma trajetória, contudo, leva a resultados

equivocados acerca da vida palpável, aquela vida concreta, na qual não há seleção dos eventos

mais convenientes para se lhes atribuir sucessivas relações de causalidade, mas onde só há

espaço para a experiência concreta, como advertido por Bourdieu (1996).

Quando, em entrevista a Jocelyn Brasil, a mãe de Miguel Arraes diz: “Miguel nunca

foi menino”37, em princípio ela estava querendo justificar a trajetória do filho a partir de uma

suposta característica inata que ele possuía. E Brasil ainda diz: “explicou então a velha mãe de

Miguel Arraes que ele fora sempre muito compenetrado e cumpridor fiel de seus deveres e

obrigações”.38 Ora, há muitos filhos de trabalhadores rurais que não concebem a idéia de

infância, tal qual é concebida por crianças urbanas, e assimilam as obrigações ditas de adulto,

as desempenhando com presteza sem, contudo, tornarem-se governadores, presidentes de

partido político ou parlamentares.

O curso lógico da vida cotidiana não nos permite antever seus resultados. Assim, João

Goulart, Miguel Arraes e Francisco Julião não teriam a capacidade de imaginar a priori as

possíveis repercussões de suas respectivas ações. Os rumos que sucederam seus atos não

podem ser considerados propositais em última instância. O golpe militar, o “pai arraia” e o

crescimento das Ligas Camponesas não foram programados com a devida antecedência, a

ponto se ter a princípio um esboço do desfecho.

Além disso, de acordo com a teoria de Lahire (2006), a busca de coerência demanda

esforço dos indivíduos e o custo desta costuma ser alto ao ser perseguido, pois, quando Arraes

se recusou a seguir os conselhos dos que o apoiavam a candidatar-se ao senado em vez de

disputar a reeleição ao governo estadual, e ele teria dito que “há eleição que se ganha

37 Brasil (1964, p. 10).38. Ibidem.

47

eleitoralmente e se perde politicamente e vice-versa”39, talvez tenha passado pela sua cabeça

que alguém com sua trajetória não poderia se recusar de participar de determinados debates,

independentemente do custo político.

E se traçarmos um esboço da trajetória de Arraes do momento de sua primeira eleição

para governador até sua última, poderemos perceber que as figurações em que esteve

envolvido variaram bastante.

No primeiro momento, a sua chegada ao Palácio do Campo das Princesas, de acordo

com a minha interpretação, era necessária para arbitrar uma luta de classes: produtores rurais e

trabalhadores estavam em divergência e cresciam os movimentos como as Ligas Camponesas,

tudo isso provocado por mudanças no relacionamento entre esses dois grupos. Além da grande

divulgação que o governo federal fazia de uma proposta de Reforma Agrária, que colocava em

discussão pública tal tema.

A partir daquele momento, o relacionamento de Arraes com os movimentos sociais

rurais foi mediado pelo sindicalismo rural que ele próprio incentivou a criação, em virtude do

seu empenho em cumprir a legislação sindical que previa a criação dos sindicatos de

trabalhadores rurais, mas que, segundo Clodomir Morais (1997), havia uma grande resistência

pela criação destes.

Posteriormente, a memória das conquistas trabalhistas ainda era um grande referencial

para as camadas mais pobres do meio rural. E somando-se a isso, criou-se uma expectativa,

projetada a partir passado, sobre o que ele poderia ter feito ou faria naquele momento,

amplamente explorada pela campanha de 1986 (“ele está voltando”), que funcionou como

justificativa para o seu retorno ao governo. E nesse momento a sua base de apoio ainda

continuava funcionando com as entidades sindicais lhe dando o suporte necessário para a

manutenção de sua posição relativa aos movimentos sociais, e já não havia mais as Ligas

Camponesas, mas o MST chegava a Pernambuco.

Já no terceiro governo, o seu isolamento foi ficando cada vez mais acentuado, no que

se refere ao seu relacionamento com os movimentos sociais, e sua imagem passou a ser

definida como retrógrada: o governador era tido como aquele cujas idéias já estavam

superadas40. Em 1998 esse suposto anacronismo pesou um pouco mais, de certo modo, em

função da política econômica do governo federal, que se anunciava modernizadora do Estado,

39 Informação disponível em: <http://pe-az.com.br/politica/historia_campanha_arraes.htm >

48

a qual Arraes combatia. E essa idéia se acentuou ainda mais por ele ter perdido o apoio que

tivera anteriormente da FETAPE e dos sindicatos, que passaram a se identificar com as

“novas” formas de ação dos movimentos sociais. E conseqüentemente, amargou a primeira

derrota depois de voltar do exílio em 1979.

Por outro lado, os processos que resultaram em assentamentos relacionados com a

Reforma Agrária, conduzidos pela Comissão Pastoral da Terra, dentre outros movimentos,

continuaram acontecendo entre as décadas de 1980 e 1990, sem que Arraes, necessariamente,

tomasse parte ou lhes fizesse qualquer menção pública. O que significa que,

independentemente da vontade do governador, estavam em vigor ações em prol de uma

Reforma Agrária em Pernambuco, articulada por outras instituições que não aquelas que

nutriam simpatia por ele.

E pela importância que Miguel Arraes teve para os movimentos sociais pernambucanos

nas últimas quatro décadas do século passado, inclusive para os urbanos, essa relação ainda

carece de pesquisas bem elaboradas que a investigue minuciosamente. Seu nome era

constantemente lembrado ou citado, fosse por ter dado apoio a determinado projeto, ou por

não ter participado de nenhuma forma de algum outro. Demonstrando, assim, o quanto o seu

nome estava relacionado com a questão agrária em Pernambuco.

40 Algo que já havia sido tentado em 1986, mas que não surtira o efeito esperado, em contraposição a José MúcioMonteiro do PFL, tido como aquele que levaria inovações relativas à política e a modernização econômica para oestado (OLiveira, 2004).

49

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, Manuel Correia de (1986a) A terra e o homem no nordeste: contribuição aoestudo da questão agrária no Nordeste. São Paulo: Atlas.

__________. (1986b). Lutas camponesas no Nordeste. São Paulo: editora Ática.

ARRAES DE ALENCAR, Miguel (1965). Palavras de Arraes. Rio de Janeiro: civilizaçãobrasileira.

__________. (1981). O jogo do poder no Brasil. São Paulo: alfa-omega.

__________. (2006); O Brasil, o povo e o poder. Recife: editora universitária da UFPE.

ASAD, Talal (1993). Genealogies Of Religion: Discipline and Reasons of power inChristianity and Islam; Baltimore: Johns Hopkins University Press.

BARROS, Adirson de (1965); Ascensão e queda de Miguel Arraes. São Paulo: editoraEquador.

BARROSO FILHO, Vantuil (1999). La lucha social por la terra em la Zona da Mata dePernambuco, Brasil. La participación del movimento de los trabajadores rurales sin terra,MST. Tese de Doutorado, Facultad de Ciências Políticas e Sociologia, Universidad de Deusto,Bilbao.

BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello (2004). Ensaios sobre o capitalismo no século XX. SãoPaulo: editora da Unesp.

BOLTANSKI, Luc (2000). El amor y la justicia como competencias: tres ensayos desociologia de la accion. Buenos Aires: Amorrortu editores.

BOURDIEU, Pierre (1989) “A identidade e a representação. Elementos para uma reflexãocrítica sobre a idéia de região”. In: ___________. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL; Rio deJaneiro: Bertrand Brasil.

___________. (1996) “A ilusão Biográfica”. In: Bourdieu, P. Razões Práticas. Sobre a Teoriada Ação. Campinas: Papirus, 1996.

BRANDÃO LOPES, Juarez Rubens (1981). Do latifúndio à empresa: unidade e diversidadedo capitalismo no campo. Petrópolis: Vozes/CEBRAP.

BRASIL, Jocelyn (1964); Arraes, o fazedor de homens livres: primeiro ano da revoluçãopernambucana. Sem local: editora fulgor.

CALLADO, Antonio (1980). Tempo de Arraes: a revolução sem violência. Rio de Janeiro:Paz e Terra.

50

CAMARGO, Aspásia Alcântara de (1973). Brésil Nord-Est: Mouvements paysans et Crisepopuliste. Tese de doutorado. Paris: Universidade de Paris.

CAVALCANTI, Paulo (1978). O caso eu conto, como o caso foi: da coluna Prestes à quedade Arraes - memórias. São Paulo: Alfa-Omega.

D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso. Democracia e Forças Armadas no cone sul. Riode Janeiro: FGV, 2000.

ELIAS, Norbert (1995). Mozart. Sociologia de um Gênio. RJ: Jorge Zahar editor.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John (2000). Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro:Jorge Zahar editor.

ELIAS, Norbert (2001). A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza esobre a aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

__________. (2004). A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

__________. (2006). “Conceitos Sociológicos fundamentais”. In: Waizbort, L.; NEIBURG, F.(Orgs.). Norbert Elias: Escritos & Ensaios. 1- Estado Processo, Opinião Pública, vol. 1. Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor.

FERREIRA, Marieta de Moraes (org.) (2006). João Goulart: entre a memória e a história.Rio de Janeiro: FGV editora.

FREYRE, Gilberto (1961). Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural edesenvolvimento do urbano. 2º Tomo. Rio de Janeiro: José Olympio editora.

_____________ (2003). Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sobre oregime da economia patriarcal. 47ª edição. São Paulo: Global editora.

Fundação Getúlio Vargas (1987). Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. FGV.

GRAZIANO NETO, Francisco (1999). O paradoxo Agrário. São Paulo: Pontes.

GRAZIANO SILVA, José (1980). O que é questão agrária. São Paulo editora Brasiliense.

HOBSBAWM, Eric J. (1995). A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:Companhia das Letras.

HONNETH, Axel (2003). Luta por Reconhecimento – A gramática moral dos conflitossociais. São Paulo: Editora 34.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). VASCONCELOS, José Romeu de;VERGOLINO, José Raimundo Brasília. Pernambuco: Economia, Finanças Públicas eInvestimentos nos Anos de 1985 a 1996, Texto para discussão número 628, fevereiro de 1999.Disponível em <http://www.ipea.gov.br/pub/td/td_99/td_628.pdf>

51

JACCOUD, Luciana Barros (1990). Movimentos sociais e crise política em Pernambuco(1955-1968). Recife: FUNDAJ/Editora Massangana.

KLEIMAN, Fernando (2006). Lições de catende: um estudo sobre a luta pela construção deuma autogestão na Zona da Mata sul de Pernambuco na década de 1990. Dissertação deMestrado. Brasília: Universidade de Brasília.

LAHIRE, Bernard (2002). O homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes.

____________(2006). A cultura dos indivíduos. São Paulo: Artmed.

LEVI, Giovanni (2000). A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte doséculo XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

MARTINS, José de Souza (1986) Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis, vozes.

___________ (2004). Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: EDUSP.

MIRANDA, Edson (1991); Chapéu de Palha: o segundo governo Arraes. São Paulo: alfa-omega.

MONTARROYOS, Carlos (1982). O Tempo de Arraes e o Contratempo de Março. Rio deJaneiro: Folha carioca.

OLIVEIRA, Aurenéa Maria de (2004). O segundo governo Arraes: a reconstrução de seumito na região da Zona da Mata pernambucan. Recife: Artelivro.

OLIVEIRA, Francisco de (1987). Elegia para uma re(li)gião. 5a.ed. Rio de Janeiro, Paz eTerra.

PAGE, Joseph (s/d). A revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil 1955-1964. Rio deJaneiro, Record.

PALMEIRA, M. (1979), “Desmobilização e Conflito: Relações entre Trabalhadores e Patrõesna Agroindústria Pernambucana”. Revista de Cultura e Política, no 1, vol. 1, pp. 41-55.

___________. (1998) “Os sindicatos no poder. Que poder?”. In: BARREIRA, Irlys ePALMEIRA, Moacir (orgs.). Candidatos e Candidaturas: Enredos de Campanha Eleitoral noBrasil. São Paulo: Annablume.

PARKER, Phyllis R. (1977). 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de Estado de 31 demarço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

PRADO JÚNIOR, Caio (1979). A questão agrária. São Paulo: editora brasiliense.

ROSA, Marcelo Carvalho (2004); O engenho dos movimentos: Reforma Agrária esignificação social na zona canavieira de Pernambuco. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro,

52

IUPERJ.

_____________. As novas faces do sindicalismo rural brasileiro: a reforma agrária e astradições sindicais na Zona da Mata de Pernambuco. Dados. Rio de Janeiro, v. 47, n. 3,2004. Disponível em: <http://test.scielo.br/scielo.php>

SIGAUD, Lygia (1980). Greve nos engenhos. Rio de Janeiro: Paz e terra.

___________. (1986).“A Luta de Classe em Dois Atos: Notas sobre um Ciclo de GrevesCamponesas”. Dados, vol. 29, nº 3, pp. 319-343.

_____________(1999). As vicissitudes do“ensaio sobre o dom”. Mana. 1999, vol. 05, no.2.Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=>

_____________ (2000). “A forma acampamento: notas a partir da versão pernambucana”.Novos Estudos Cebrap, n° 58, 2000.

_____________(2004). Armadilhas da honra e do perdão: usos sociais do direito na matapernambucana. Mana. 2004, vol.10, no.1. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php>

_____________(2005). As condições de possibilidade das ocupações de terra. Tempo Social,2005, vol.17, no.1. disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php>

SCHMITT, Rogério (2000). Partidos políticos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor.

SOARES, José Arlindo (1982). A frente do Recife e o governo do Arraes: nacionalismo emcrise – 1955/1964. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

TAVARES, Cristina; MENDONÇA, Fernando (1979). Conversações com Arraes. BeloHorizonte: VEJA.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel (2003). “‘Morar e Trabalhar’: o ideal camponêsdos assentados de Pitanga”. In: Martins, José de Souza (coordenador). Travessias. PortoAlegre: editora da UFRGS, 2003.

WEBER, Max (1968): “Classe, Status, Partido”. In: Velho, Otávio; Palmeira, Moacir; Bertelli,Antônio (orgs.); Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar editores.

WEBER, Silke (org.) (1991). Democratização, Educação e Cidadania: caminho do governoArraes (1987-1990). São Paulo: Cortez.